Inacreditável: a violência psicológica mascarada pelo medo

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A minissérie americana de drama intitulada- Inacreditável (Unbelievable) de 2019, conta uma história em volta de três mulheres: duas investigadoras e uma jovem de 18 anos que se chama Marie. Ela cresceu em vários lares adotivos e por ser muito introvertida, não tem muitos amigos. Esta minissérie é baseada em fatos reais e na reportagem de 2015 “Uma inacreditável história de estupro”.

A vida de Marie muda completamente quando ela passa por uma situação de violência, pois um homem invade seu apartamento e a estupra.  Ela foi submetida a passar por constrangimentos e foi fotografada durante o ataque.

Marie resolve dar queixa da violência sofrida, mas não foram recolhidas provas da agressão e durante o interrogatório Marie começa a apresentar algumas falas inconstantes que fazem com que os investigadores comecem a desconfiar se ela estava mesmo dizendo a verdade. Essa dúvida não parte apenas dos policiais, mas também dos seus pais adotivos que suspeitam do discurso. Pois, segundo eles, ela estava apresentando poucas reações emocionais diante do fato que ela disse ter ocorrido e que poderia estar apenas chamando a atenção, já que Marie sempre foi considerada “problemática”.

Devido aos comentários das pessoas, à enorme pressão, sofrimento e medo que começou a vivenciar, Marie decide assumir que mentiu aos investigadores e que tudo foi apenas invenção da sua mente ou que poderia ter sido um sonho. Estes fatos remetem que a violência psicológica pode ser conceituada como a forma mais pessoal de agressão contra a mulher, através da qual as palavras provocam sofrimento, pressão, poder para ferir, fragilizar e impactar a autoestima da mulher (SIQUEIRA, ROCHA, 2019).

Fonte: encurtador.com.br/iDIP4

Siqueira e Rocha, (2019) mencionam que as causas deste tipo de violência podem ser ocasionadas por ciúmes, influência cultural, bebidas alcoólicas, políticas públicas, visão conservadora, histórico de violência familiar do agressor e interrupção do apoio da família.

Em Inacreditável, Marie não conseguiu apoio de seus pais adotivos que a pressionaram para contar o que realmente aconteceu, sempre remetendo ao seu comportamento do passado, o que a fazia se sentir culpada e até mesmo duvidar se ela mesma não teria inventado toda a história. Fonseca e Lucas (2006) afirmam que quando a mulher não consegue apoio dos seus familiares e tem a dinâmica familiar interrompida, ela entra em um estado de vulnerabilidade maior, pois se sente sozinha, contribuindo para que o agressor continue com os episódios de violência. E neste caso da minissérie os próprios pensamentos, sentimentos e lembranças da agressão sexual vivida se tornaram o motivo que a deixou muito vulnerável e mais retraída.

Enquanto os investigadores decidem arquivar o caso, já que Marie confessou que havia mentido, em Colorado outra investigadora chamada Karen Duvall investiga outro estupro e decide unir forças com Grace Rasmussen do Departamento de Polícia de Westminster ao descobrir que as duas estavam com um caso de estuprador em série em mãos, pois vários casos de estupro com as mesmas características do caso de Marie foram denunciados.

Fonte: encurtador.com.br/ctCKV

Em cada um dos casos, as vítimas foram submetidas a constrangimentos e também foram fotografadas. Ao finalizar a agressão, o criminoso conseguiu não deixar pistas para que fossem recolhidas provas do crime. Marie continuou sofrendo as consequências da agressão por três anos, e foi taxada de mentirosa pela sua família e amigos. Ela tentou seguir sua vida. As autoras Siqueira e Rocha (2019) citam que a mulher em situação de violência sofre consequências como o esgotamento emocional, se sente cansada, perde o interesse em cuidar de si mesma, isola-se e sofre perdas significativas na qualidade de vida. A minissérie retrata todas estas consequências na vida de Marie, onde ela se encontra completamente sozinha, amedrontada, e sem esperança de conquistar algo melhor na vida.

Em 2011, após reunirem pistas e provas, as investigadoras Grace e Karen conseguem prender Chris McCarthy, um ex-militar que estuprava mulheres que moravam sozinhas e na sua casa escondia provas das violências cometidas, inclusive fotos que comprovavam as agressões. Durante a análise das fotos, as investigadoras conseguiram encontrar a foto de Marie e dessa forma conseguiram reabrir o caso dela, que posteriormente foi inocentada da acusação de falso testemunho.

A minissérie finaliza com Marie agradecendo as investigadoras por terem contribuído para que voltasse a se sentir segura, mesmo que não tenha tido nenhum contato com as duas. 

Esta história nos faz pensar em quantos casos acontecem em que as vítimas permanecem caladas por causa do medo e do sofrimento e tem que seguir a vida tentando esquecer. Em muitos casos o agressor é uma pessoa próxima, como pai, irmão, cunhado, tio, mãe, cônjuge ou um amigo.

Fonte: encurtador.com.br/mCEKZ

Recentemente foi sancionada a Lei 14.188 que inclui ao Código Penal Brasileiro o crime de violência psicológica contra a Mulher.

A Lei 14.188/21, inseriu o artigo 147-B no Código Penal:

Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. (BRASIL, 2021, Art. 147-B)

A pena para este crime é de seis meses a dois anos e também tem uma multa. A violência psicológica contra a mulher tem crescido muito e esta lei surge como uma forma de proteger e trazer mais segurança para as mulheres. Mesmo com a lei em vigor, os danos à saúde mental das vítimas são muitos e faz-se necessário um acompanhamento psicológico e intervenções com as redes de apoio das vítimas que também sofrem com efeitos da agressão (SIQUEIRA, ROCHA, 2019).

Esta minissérie nos mostra como a violência contra a mulher está inserida culturalmente. Marie não teve o apoio de sua própria família pois por ela ter tido comportamentos “problemáticos”, não acreditaram no que ela disse. A história nos leva a refletir que muitas pessoas que passam por situação de violência sexual tem seu sofrimento intensificado quando não conseguem a confiança e credibilidade da família, cônjuge e amigos. Marie passou por momentos de tristeza e culpa por ter que ouvir as pessoas de sua rede de apoio não acreditarem no seu relato.

Ressalto que a culpa pela violência cometida não é da mulher e que existem redes de apoio para acolhimento de mulheres que estão nesta situação e que elas têm direito a assistência em saúde e que nos casos de violência sexual há medidas específicas para evitar gravidez indesejada e ISTs. As redes de apoio que mulheres em situação de violência podem procurar são o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, através do número telefônico 180 e nas situações em que há agressão física, são resguardadas pela Lei Maria da Penha. A lei assegura que qualquer mulher, independente da classe, raça, etnia, orientação sexual, religião, cultura, devem ter direito, oportunidades e facilidades de viver sem violência familiar e doméstica e também o direito de preservar sua saúde física, mental, moral, intelectual e social. (BRASIL, 2006).

Faz-se necessário que os profissionais de saúde, assistência social e segurança pública sejam treinados para realizar um atendimento mais humanizado a fim de garantir acolhimento, direitos civis e a dignidade das mulheres.

FICHA TÉCNICA

Título: Inacreditável (Unbelievable)

Ano: 2019

Gênero: Drama/Crime

Emissora: Netflix

1 temporada

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (2021). Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher.. Lex. Diário Oficial da União, 28 jul. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/3462817. Acesso em: 04 set. 2021

BRASIL. Constituição (2006). Lei nº 11.340/2006, de 07 de agosto de 2006. Lex. Diário Oficial da União, 07 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 04 set. 2021.

DA FONSECA, P. M.; LUCAS, T. N. S. Violência doméstica contra a mulher e suas consequências psicológicas. Disponível em: http://newpsi.bvs-psi.org.br/tcc/152.pdf. Acesso em 01 set. 2021

SIQUEIRA, C A; ROCHA, E S S. Violência psicológica contra a mulher: Uma  análise  bibliográfica  sobre causa e consequência desse fenômeno. Disponível em: https://arqcientificosimmes.emnuvens.com.br/abi/article/view/107/63. Acesso em 01 set. 2021

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“Elize Matsunaga – Era uma vez um crime”: conteúdos psicológicos da controversa série brasileira

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A série brasileira “Elize Matsunaga – Era uma vez um crime” é um documentário televisivo original da Netflix em parceria com a produtora Boutique Filmes, dirigida por Eliza Capai. A produção lançada em julho de 2021, tem conteúdo com censura 14 anos, melancólico focado, especialmente, nos sintomas psicológicos e jurídicos da autora confessa de um dos crimes mais impactantes da história recente do país ocorrido em 19 de maio de 2012.

Figura 1 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

A série explora fotos e vídeos de conteúdo intimista do antigo casal, apresenta vasto material jornalístico veiculado à época do julgamento, as falas de amigos, familiares e de especialistas sobre o caso oferecendo, e, por fim, destaca-se por conter muitas horas de declarações diretas de Elize tomadas durante uma saída oficial do ressesso de páscoa da prisão de Tremembé em 2019, falando em primeira pessoa, com iluminação e enquadramentos ajustados para fazer audiência sentir-se em frente a ela, olhando nos olhos, com expressiva proximidade.

Os episódios da série são: 1 – Estado civil: viúva; 2 – Uma vida de princesa; 3 – A infeliz ideia de Eliza e 4 – Ecos de um crime.

Figura 2- (Crédito: Reprodução/Netflix)

São apresentados temas de muito relevo para a psicologia e psicanálise, sadismo, masoquismo, depressão, e psicopatia foram conceitos diversas vezes mencionados pelos que tentavam enquadrar e compreender a subjetividade complexa da autora do crime bárbaro.

No julgamento, tanto a defesa como a acusação fundavam seus argumentos e aspectos psicológicos relativos a Elize. Os primeiros arguiam que a pena do crime deveria ser afastada, atenuada ou reduzida, pois no momento que atitou no marido, e esquartejou o corpo dele e o transportou em malas, ela não respondia por suas ações, pois estava tomada por violenta emoção.

Segundo a defesa, a autora do crime teve uma crise de ansiedade decorrente de longo período do medo que sentia de ser machucada e morta pelo marido, e tal medo estaria justificado no longo período de violência psicológica sofrida por ela contexto do casamento.

Já a acusação também faz uso da psicologia para pedir aumento da pena de Elize, que teria cometido o crime por motivo torpe, por mero ciúme e a associa a figura estigmatizada da mulher que deseja ser Cinderela, e ter “uma vida de princesa”, deixar as raízes humildes e ascender socialmente por meio do casamento do qual ela não estaria disposta a abrir mão.

Figura 3 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

Neste contexto, entre argumentos de defesa e de acusação as personalidades de Elize e do marido assassinado tornam-se objeto de diversas discussões e especulações ao longo da série num esforço de compreensão e categorização da barbárie.

Como exemplo, tem-se a apresentação ao público de “fatos novos” que poderiam justificar para o público os comportamentos de Elize. Isso porque, foi descrito o impacto da morte prematura do pai na história dela. Foram retratados a vida difícil em termos de condições materiais que a família enfrentava e o contexto rural e muito rústico que ela viveu a infância e adolescência.

Além disso, tem-se um possível abuso sexual que ela teria sofrido aos 15 anos, perpetrado pelo padrasto e que teria marcado profundamente sua subjetividade e, por fim, a experiência vivida como profissional do sexo que a levou a sair do contexto familiar e a conhecer o futuro marido.

Por fim, vale destacar a releitura feminista que a série se propõe a fazer tanto do crime em si questionando diversos pontos de pré-conceitos ligados ao fato de a autora ser uma mulher, ter sido profissional do sexo e ter agido motivada por ciúmes, destacando, ainda, diversos casos famosos como o de Ângela Dinis morta pelo marido nos anos 60. O crime de Elize teria o mesmo fim caso fosse cometido por um homem? Fica a dúvida necessária e o convite à reflexão.

FICHE TÉCNICA

Elize Matsunaga – “Era uma vez um crime”

Ano produção: 2021

Dirigido por Eliza Capai

Classificação – Não recomendado para menores de 14 anos

Gênero: Documentário

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Estatística de assédio sexual pode ser subnotificada por vergonha e medo de desemprego, avalia DPE-TO

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 Mesmo se o crime ocorreu sem testemunhas ou provas físicas, a vítima deve procurar ajuda

O assédio sexual dentro do ambiente de trabalho ainda é uma realidade não discutida nas empresas e instituições, em que a vítima ainda sofre calada, por diversos motivos, entre eles, receio de sofrer retaliações como perder o emprego. Além disso, o assédio causa constrangimento diante dos demais colegas de trabalho e da família, fazendo com que a vítima se sinta agredida, lesada, perturbada. Por causa disso, as denúncias são quase inexistentes, afirma a coordenadora do Núcleo Especializado em Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), a defensora pública Franciana di Fátima Cardoso.

O assédio sexual se caracteriza por uma abordagem repetitiva, que pode ser praticado por um superior hierárquico da vítima, que pode ser um chefe, gerente ou supervisor, mas também ocorre independentemente da hierarquia entre a vítima e o ofensor – apenas diferenciando o tipo de assédio (no assédio por chantagem é exigida a hierarquia entre assediador e vítima). 

Fonte: encurtador.com.br/oyJR4

Conforme a coordenadora do Nudem, a maioria das vítimas é mulher, mas não há distinção de gênero para esse crime, o que configura que sua prática é “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, conforme cita o artigo 216-A do Código Penal.

É importante que a vítima saiba que o assédio sexual pode ocorrer mesmo fora do ambiente da empresa. “Se é evidenciado que as relações entre a vítima e o agressor ocorram por conta do trabalho e não existe a reciprocidade da vítima, configura o crime”, explicou a defensora pública Franciana di Fátima. Ela lembra que se ocorreu uma mera sedução não ofensiva e também não é repetida, não é considerado assédio sexual.

As violências de cunho sexual podem ocorrer como consequência de relações de poder ou sexualidades nocivas, em geral. O papel dos gestores da empresa ou instituição é relevante para mudar esse cenário. “Já não temos espaço em nossa sociedade para ambientes profissionais onde colaboradores se beneficiam profissionalmente e crescem na empresa, mesmo com comportamentos inadequados e até mesmo criminosos”, destacou a coordenadora. 

Fonte: encurtador.com.br/ciqKT

Denúncia

A primeira coisa que a vítima deve fazer é repudiar o ato do agressor, tentando fazer com que ele/ela pare e a situação não se agrave. Não é necessário que haja o contato físico para que se caracterize o crime, mas somente a vítima pode dar início a um processo judicial de assédio sexual, que tem pena de um a dois anos de detenção.

O assédio sexual pode ser provado de diversas formas, como gravações de áudios e vídeos, mensagens eletrônicas (e-mail, whatsapp, inbox nas redes sociais, mensagens de celular), bilhetes, cartas, registros de ocorrência dentro dos próprios canais da empresa, ligações telefônicas e até testemunhas de expressões, comentários e indiretas sexuais do agressor. Para o Nudem, ainda que a vítima não tenha provas contundentes, caso o agressor faça isso em momentos que está sozinho com a vítima, a denúncia deve ser levada adiante às instituições da justiça.

Já a empresa deve ouvir a vítima e tratá-la, com respeito, porque o descrédito aprofunda a revitimização e pode aumentar os danos e os riscos para a empresa, visto que a empresa também é responsável pelas condutas de seus funcionários e colaboradores que afetarem a integridade dos trabalhadores no ambiente laboral, incluindo casos de assédios. Vale destacar, ainda, que tanto a intimidade das pessoas envolvidas, quanto o caso denunciado à empresa, devem ser tratados com sigilo para não potencializar as consequências. 

Além da rescisão indireta – justa causa no empregador, é cabível uma indenização pelos danos morais ocasionados no trabalhado. Já o agressor, em casos graves de assédio comprovado, é possível fazer a demissão por justa causa, sem que se faça uma gradação das sanções.    

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Detainment: a história real de duas crianças acusadas de um crime brutal

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Concorreu com  1 indicação ao OSCAR:

Melhor Curta-metragem

O curta-metragem indicado ao Oscar, “Detainment”, apresenta a história real de um dos mais perturbadores assassinatos do século XX. O curta de 30 minutos revive o assassinato de uma criança de 2 anos de idade, em 1993, tendo como base as transcrições das entrevistas que ocorreram entre a polícia e os meninos Robert Thompson e Jon Venables, ambos com 10 anos, logo após às suas prisões. Os meninos, ao final, foram condenados pela justiça inglesa pelo sequestro, tortura e assassinato de James Bulger. Os dois garotos atraíram a criança em um shopping center próximo a Liverpool, depois o torturaram, violaram e mataram.

O filme do diretor Vicent Lambe provocou a indignação de várias pessoas na Grã-Bretanha, inclusive foi feita uma petição, iniciada por Denise Fergus, a mãe do bebê assassinado, que contou com mais de cem mil assinaturas solicitando que o curta fosse retirado da lista do Oscar, o que não aconteceu. O diretor do filme disse à BBC , antes da indicação ao Oscar, que “o motivo pelo qual o filme foi feito foi uma tentativa de buscar uma compreensão sobre como esses dois garotos de 10 anos puderam cometer um crime tão horrível, pois acho que, se não entendermos a causa disso, é provável que algo similar aconteça novamente no futuro” [1].

Para o diretor, ao adaptar quase 15 horas de entrevistas em um drama de 30 minutos, tem-se um breve vislumbre do que aconteceu durante o procedimento da entrevista. Segundo ele, tudo no filme é inteiramente factual, sem nenhum embelezamento. E acrescentou que “há certos eventos na história que são deixados intocados por um longo tempo e este é um deles. É um assunto extremamente sensível – de medo, desespero e tão horrível que muitas pessoas evitam absorver mais fatos sobre isso” [2].

Fonte: https://goo.gl/WKrYiR

Segundo artigo publicado em [3], casos de crianças (12 anos de idade ou ainda mais novas) que mataram outras crianças são extremamente raros.

David Finkelhor e Richard Ormrod, professores da Universidade de New Hampshire, em um estudo realizado para o Departamento de Justiça Juvenil e Prevenção da Delinquência (OJJDP), descobriram que os assassinatos de crianças cometidas por menores de 11 anos representam menos de 2% de todos assassinatos de crianças nos EUA Os casos também tendem a diferir significativamente, por isso as conclusões podem ser difíceis de serem feitas. Mas há algumas semelhanças que surgiram, esclarecendo um pouco mais sobre o perfil de quem, ainda bem jovem, comete esse tipo de crime. [3]

Algumas conclusões apresentadas nesses estudos mostram que as crianças que cometem o crime de assassinato, geralmente, foram severamente maltratadas ou negligenciadas, além de terem tido uma vida doméstica tumultuada. Para o psicólogo Terry M. Levy [3],

as crianças que têm sérios problemas de apego (que geralmente resultam de cuidados ineficazes) e uma história de abuso podem desenvolver comportamentos muito agressivos, assim como também podem ter dificuldades em controlar as emoções, o que pode levar a explosões impulsivas e violentas dirigidas a si ou aos outros.[3]

Segundo pesquisa realizada pelo cineasta em relação às origens das famílias dos dois meninos, suas personalidades e como funcionava a dinâmica em suas casas, ele relatou em entrevista que [2]: Jon veio de uma família de classe média, respeitável, seus pais estavam separados, mas conduziam juntos a educação do filho. Jon passava parte da semana com a mãe e a outra parte com o pai. Nessas pesquisas, foi apresentado que Jon era hiperativo e fazia brincadeiras um tanto violentas na escola. Ele conheceu Robert quando foi transferido de escola. Ambos haviam repetido de ano e começaram a estudar juntos. Já Robert fazia parte de uma família terrivelmente disfuncional. Seu pai era um homem abusivo, que bateu em sua mãe durante o tempo que ficou em casa e deixou a família quando Robert tinha 5 anos. Sua mãe tentou se suicidar com overdose de comprimidos, mas acabou recorrendo à bebida como meio de fuga. Em síntese, a família Thompson era um caos completo, seis filhos, uma mãe alcoólatra e um pai ausente. Enquanto Robert era agredido e espancado por seus irmãos mais velhos, seu comportamento refletia também na forma que tratava seus irmãos mais novos e vulneráveis, ou seja, espancando-os como era espancado.

Fonte: https://goo.gl/DLfT41

Enquanto Robert tem um tipo de contexto familiar que se assemelha aos perfis traçados de assassinos muito jovens, Jon aparentemente não tinha um ambiente que suscitasse tal falta de controle e violência. Em parte do tempo do interrogatório, conforme toda a documentação disponibilizada para domínio público, e como foi apresentado no filme, Jon se mostrava extremamente emotivo, angustiado. Enquanto foi possível, negou com toda veemência que havia cometido o crime, e fazia isso entre lágrimas, abraçando a mãe e até o investigador. Mas na medida em que sua culpa se tornava mais evidente, ele tentava mostrar que a ação de Robert tinha sido maior na consecução do crime. Robert, por sua vez, agia de forma mais fria, dura, tentava não demonstrar emoções, argumentava com mais facilidade e, também, insistiu em sua inocência. Quando as provas tornaram-se mais contundentes para a resolução do assassinato, um menino tentou responsabilizar o outro em relação às partes mais violentas do crime.

Fonte: https://goo.gl/BzcU8Y

É aterrador tentar entender como duas crianças espancaram de forma tão brutal e sem piedade um bebê e o deixou jogado em um trilho de trem para morrer. O corpo de James foi encontrado dois dias depois. “Um legista disse mais tarde que seus ferimentos eram tão intensos, que não tinha como dizer qual ‘golpe’ o matou, pois havia cerca de 42 ferimentos em seu corpo, além de ter sido atropelado por um trem” [4].

Esse caso provocou atenção internacional e desencadeou intensos debates sobre quais motivos eram capazes de gerar tamanha violência. Para alguns, não haviam motivos, os meninos tinham simplesmente nascido maus, só precisaram de um gatilho para despertar tais instintos maléficos. No entanto, não vimos de forma frequente crianças com impulso de matar ou mutilar, isso é raro, conforme pesquisas apresentadas em [3]. Então, quando ocorre a exceção, de quem é a culpa? Somente da criança? Ou da família, do contexto? Essa é a pergunta mais perturbadora, pois isso retira os impulsos ocultos do foco e traz à tona comportamentos violentos, abusivos, ausentes ou inadequados capazes de modificar ou extinguir a noção de empatia.

Para Katie Woodland, psicóloga do desenvolvimento com ênfase em criminologia, “nós nunca olhamos para trás e perguntamos ‘por que isso aconteceu?’ Há uma percepção criada há 25 anos de que esses garotos eram apenas maus. Nós, como sociedade, temos dificuldade em examinar esse caso horrível porque temos medo” [5]. E ainda acrescentou que:

“Sim, existe uma interação genética, sim, há muitos fatores, mas durante a infância, a responsabilidade da sociedade é garantir que as crianças cresçam bem. É mais seguro pensar em mim como mãe: não há como meus filhos crescerem dessa maneira, eles não são maus. Mas quando você recua e trabalha todas as pequenas coisas que aconteceram para levar a algo, como ofensas violentas ou falta de cuidados, você começa a se questionar.”[5]

Fonte: https://goo.gl/HKfLAA

Em 2016, a APA (American Psychological Association) publicou um estudo abrangente sobre a violência juvenil (disponível em [5]). Atos de violência são frequentemente influenciados por múltiplos fatores, assim análises em relação ao comportamento violento possuem grande complexidade. Uma síntese desse estudo foi realizada em [4] e é apresentada a seguir:

Pesquisadores descobriram que a influência da família desempenha um papel descomunal em crianças que cometem atos potencialmente violentos. Os pais que são autoritários, rejeitam seus filhos, cometem atos de violência doméstica, negligenciam seus filhos ou não monitoram seu comportamento, muitas vezes têm filhos que mostram sinais anteriores de comportamento violento. Crianças sem vidas familiares estáveis ​​podem ser violentas e têm maior probabilidade de ter abuso de substâncias e problemas de saúde mental. Além disso, a violência na mídia popular, o abuso de drogas, a rejeição social e a doença mental diagnosticada também podem desempenhar um papel na determinação do motivo pelo qual um ato violento foi cometido.

Quando o crime ocorreu, segundo Vicent Lambe, a mídia em geral, buscando refletir a indignação das pessoas, rotulou os meninos como “monstros “, “cria de Satanás” e “aberrações da natureza”. Para ele, o curta metragem mostra Jon e Robert, pela primeira vez, “não como os monstros malignos da imaginação popular, mas simplesmente como eles eram – dois garotos de dez anos que cometeram um crime horrendo e não sabem explicar o porquê”. E acrescentou que “o filme não teve a intenção de ser simpático aos meninos ou de dar desculpas de qualquer forma, mas ao dramatizar autenticamente as transcrições das entrevistas, talvez nos força a reconhecer o pior do potencial humano e ainda ver a humanidade” [2]. Para a psicóloga Katie Woodland, ao mostrar Jon e Robert como seres humanos e, portanto, complexos, o filme “abre um diálogo necessário para entender esse tipo de ofensa violenta e abominável”, e acrescenta “e isso nunca teve como propósito diminuir o dano em relação ao que eles causaram e como tais atos terríveis afetaram a família do bebê James, mas sim sobre o fato de que se não entendermos o porquê, não podemos melhorar” [5].

Robert Thompson e Jon Venables – imagens reais

Robert Thompson e Jon Venables foram os mais jovens assassinos condenados na Inglaterra, mas devido à sua idade, eles foram libertados da prisão quando completaram dezoito anos, em 2001. A partir desse ano, ficaram em liberdade condicional vitalícia e adotaram novas identidades. Jon quebrou sua liberdade condicional duas vezes (em 2010 e em 2017), em ambos os momentos porque a polícia encontrou fotos de pornografia infantil em seu computador [6]. Os últimos acontecimentos parecem indicar que Jon Venables terá problemas em relação ao seu comportamento inadequado e criminoso pelo resto de sua vida, e continuará preso pelos próximos 3 anos. Já Robert Thompson, que no interrogatório se mostrou mais frio e maduro para sua idade, vive no anonimato e nunca violou a condicional.

Duas crianças tomam uma decisão aos 10 anos de idade e modificam por completo suas vidas, a vida de suas famílias e, em especial, da família da vítima, pois todos os sonhos que os pais haviam tido em relação ao seu bebê foram brutalmente interrompidos. Para [4], a questão não é “se devem ou não ser perdoados, mas o que levou esses dois garotos a se transformarem em monstros”.

Crimes como esse tendem a desencadear pensamentos binários sobre a natureza do ser humano. É mais fácil acreditar que alguns já nasceram maus, pois isso nos liberta da reflexão sobre os corriqueiros atos que nos torna mais e mais insensíveis a dor do outro. Se o mal vem de uma conjunção genética, então não há o que discutir, o que refletir, o que mudar, apenas há o isolamento e o castigo para quem nasce assim, sem remorsos ou culpa. Humanizar alguém não é torná-lo bom, é entender, sobretudo, que o ser humano não está situado entre dois polos (bom ou mau), mas está em trânsito entre uma série de complexos fatores.

FICHA TÉCNICA DO FILME

DETAINMMENT

Título Original: Detainment 
Direção:
Vicent Lambe
Elenco: Ely Solan, Leon Hughes
Ano: 2018
Reino Unido
Drama, História

Referências:

[1] https://www.mercatornet.com/features/view/detainment-should-a-film-about-two-boy-murderers-have-been-made/22139

[2] https://www.thefourohfive.com/film/article/meet-vincent-lambe-director-of-detainment-the-award-winning-short-film-based-on-the-interrogations-in-the-1993-murder-of-james-bulger-154

[3] https://www.psychologytoday.com/intl/blog/talking-about-trauma/201502/children-who-kill-are-often-victims-too

[4] https://www.fatherly.com/love-money/detainment-oscars-parents-controversy/

[5] Bushman, B. J., Newman, K., Calvert, S. L., Downey, G., Dredze, M., Gottfredson, M., . . . Webster, D. W. (2016). Youth violence: What we know and what we need to know. American Psychologist, 71(1), 17-39. http://dx.doi.org/10.1037/a0039687 Disponível em: https://www.apa.org/pubs/journals/releases/amp-a0039687.pdf

[6] https://www.themarysue.com/short-film-james-bulger-criticism/

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Quanto vale cada vida?

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Afinal, diante da tragédia em Brumadinho, a gente que saber: O QUE VALE?
Eu preciso escrever sobre isso…

Observo pessoas culpando partidos, políticos, mineradoras, flexibilização das leis ambientais, por suas respectivas ineficiências, omissões e ganâncias, para tentar justificar essa catástrofe. E confesso considerar necessárias, justas e compreensíveis tais denúncias e análises. Por isso, deixo-lhes o mérito para se pronunciarem sob esse viés político-financeiro-ideológico.

Logo, acredito que Vale a INDIGNAÇÃO, mas vou associá-la à REFLEXÃO:

Quanto vale cada vida?

Quantas pessoas estão desaparecidas?

Quantos animais e plantas, simplesmente, desvaneceram?

Fonte: https://bit.ly/2Nmdzs1

Você consegue mensurar o desespero desses seres diante da chegada inesperada da morte?

Para alguns (58 pessoas), a morte já foi confirmada. Para outros (ambientalistas), a morte foi anunciada. Para outros (mais de 150 pessoas resgatadas), a morte foi escapada. Para centenas (mais de 300 pessoas desaparecidas), a morte, segundo as autoridades, aguarda para ser anunciada…

Então, fechemos nossos olhos e contemplemos o “humano”, acima de tudo.

Esforcemo-nos para compreender que ” A VIDA É TÃO RARA”, e se esvai, às vezes, abruptamente. Neste caso, lavada por uma lama de irresponsabilidade, ambição e mercantilismo.

Sonhamos com viagens de longo trajeto e, ontem, alguns queriam simplesmente ter feito a viagem de volta para casa.

Planejamos momentos para grandes confraternizações familiares e, ontem, muitos queriam somente viver a rotina de abraçar ou dar um “oi” para o parente, amigo ou conhecido quando chegasse do trabalho na mineradora.

Idealizamos sermos partícipes dos hábitos daqueles que amamos e, hoje, centenas de pessoas vivenciam a angústia pela incerteza de não saberem notícias das pessoas que amam. Esperamos tanto pelo final de semana e, hoje, para muitos, serão projetos que jamais poderão ser concretizados.

Ambicionamos tantos bens materiais, mas jamais permitamos que a ambição nos cegue ao ponto de ceifar a vida do outro.

Impossível não exigir RESPONSABILIDADE, contudo, necessário se faz, também, prestar SOLIDARIEDADE.

Fonte: https://bit.ly/2SmWCyu

Impossível não sentir luto por todas essas pessoas de quem foi usurpada “A RARIDADE DA VIDA”

E quem quer saber?

Nós sabemos! Isso VALE!

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Pessoas com deficiência mental podem ser punidas?

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Histórias como a de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, de 29 anos, que sofre de esquizofrenia e foi preso em 2010 acusado pelo assassinato do cartunista Glauco Vilas Boas e do filho dele, Raoni Vilas Boas, chamam a atenção para como a doença mental é vista pelas leis brasileiras. Segundo o Código Penal Brasileiro, a doença mental ou retardamento (desenvolvimento mental incompleto ou retardado) tornam o indivíduo inimputável perante a Justiça Penal.

Tal benefício está disposto no artigo 26 do Código Penal. “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato”. Diante de tais circunstâncias, o indivíduo será avaliado clinicamente e, se comprovado que por conta de sua condição era totalmente incapaz de discernir suas atitudes, não poderá responder pelos seus atos.

Entretanto, não significa que o portador de doença mental o retardamento poderá retornar para a sociedade. Análise psicológica deverá avaliar o grau de periculosidade e, se necessário, a Justiça poderá solicitar sua internação em instituição específica por tempo determinado.

Foi exatamente isso que aconteceu com Carlos Eduardo, conhecido como Cadu. Apesar de ter confessado a morte do cartunista e de seu filho, o jovem não chegou a ser julgado porque a Justiça o considerou inimputável. Assim, Cadu foi internado em uma clínica psiquiátrica em Goiânia. Mas, em agosto de 2013 a Justiça de Goiás decidiu, diante de avaliação médica realizada em junho daquele ano, que ele estava apto a receber alta médica.

Porém, em setembro de 2014, Carlos Eduardo foi preso, juntamente com outro indivíduo, acusados de um roubo seguido de morte (latrocínio) e pela tentativa de outro latrocínio. E novamente conduzido a internação.

Outro aspecto que deve ser abordado e diferenciado da imputabilidade, aplicada quando o indivíduo é “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato”, é quando a pessoa apresenta, no momento do fato ilícito, alguma capacidade de discernimento.

De acordo com o parágrafo único do artigo 26 do Código Penal, “se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardamento não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” gozará de benefício, mas não da imputabilidade total. Neste caso, a pena prevista para o crime praticado poderá ser reduzida de um a dois terços.

Por fim, ainda sob a luz do Direito Penal, a pessoa com doença mental ou desenvolvimento incompleto pode também ser objeto de ação de terceiros. Isto é, ser usado como arma ou um instrumento para praticar alguma conduta ilícita. Neste contexto, o indivíduo que provocar ou instigar qualquer ato ilícito de alguém com deficiência mental, deverá responder pelos resultados obtidos, conforme o artigo 13 do Código Penal.

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Como pássaros na gaiola: a realidade das famílias enclausuradas pelo sistema penitenciário brasileiro

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“Todo homem é maior do que o seu erro”
MARIO OTTOBONI

Para que haja uma completa reinserção dos presidiários na sociedade, faz-se necessário disponibilizar os meios para que eles alcancem este fim.

Assim, por interesse pelo assunto e por uma proposição da disciplina de Estágio Básico V do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, nós, acadêmicos, passamos a fazer parte do Conselho da Comunidade na Execução Penal (CCEP) de Palmas/TO.

Nosso ingresso no conselho se deu com o intuito de conhecer de perto a realidade na qual vivem as famílias das mulheres apenadas. Assim, estávamos imersos em dois campos desconhecidos: a visita domiciliar e o sistema prisional.

De imediato surgiram inúmeros desafios: o medo das demandas com as quais iriamos nos deparar ao longo do processo; a incerteza de como seriamos recebidos por essas famílias e seus respectivos reeducandos; com nossos próprios (pre)conceitos; nossas inseguranças e angústias.

O processo foi árduo. Batemos em várias portas em busca de conhecer melhor a realidade das famílias de algumas das mulheres em privação de liberdade na unidade prisional de Palmas/TO, mas, na maioria delas, o endereço que nos foi fornecido estava desatualizado. O que de pronto, já evidenciava o mais comum dos descasos que o nosso sistema penitenciário: ignorar a participação a família no processo de reeducação dos apenados.

Fomos a campo, com a finalidade de compreender como vivem os familiares das presidiárias, saber de suas possíveis necessidades e dificuldades, para assim conhecer mais a fundo em quais aspectos o CCEP poderia contribuir para amenizar o sofrimento dessas famílias, visando sempre fortalecer o vínculo dos apenados com suas famílias.

Gostaríamos de esclarecer que este deveria ser um relato de nossas experiências práticas enquanto membros do CCEP, porém – como uma espécie de reflexo do caos que circunda não só meio prisional mas todas as instituições – o que transcrevemos a seguir é, em grande parte, um pouco de nossas tentativas frustradas de intervir junto às famílias das reeducandas de um presídio feminino no Tocantins.

Além disso, trazemos um pouco de nossos aprendizados extraídos de nossa intervenção e de todo o arcabouço teórico adquirido por meio das intensas discussões ao longo do semestre acerca do sistema penitenciário brasileiro.

Todavia, antes de qualquer relato, julgamos imprescindível explicar aos leitores sobre o que é e como funciona o CCEP.

Apesar de sua importância e previsão em lei, o CCEP é um órgão pouco conhecido pela população brasileira. Trata-se de um mecanismo instituído pelos Artigos nº 80 e 81 da Lei de Execução Penal (LEP), a qual estabelece a existência de um conselho da comunidade em cada comarca, composto por, no mínimo, um representante de associação comercial ou industrial, um advogado indicado pela seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e um assistente social escolhido pela Delegacia Seccional do Conselho Nacional de Assistentes Sociais.

O Conselho tem a função de representar a sociedade em um processo que se inicia no ingresso do indivíduo no âmbito prisional e só se encerra com a retomada de sua liberdade. Todavia, é a própria comunidade quem detém as alternativas a serem ofertadas ao réu condenado.

O seu objetivo é aproximar a comunidade do sistema penitenciário e seus reeducandos, visando minorar os danos ocasionados pelo encarceramento, pelas privações e pelas condições degradantes, as quais comumente eles são submetidos.

Percebemos – do pior modo possível – que o termo “reeducanda”, costumeiramente utilizado para se referir as presidiárias, na maioria das vezes, se trata apenas de um mero jogo de palavras. É um modo “politicamente correto” para se referir àquelas pessoas que se encontram segregadas em nosso falido sistema carcerário. Que, acreditamos, não seja restrito de Palmas/TO.

Ao nós apossarmos do termo: dizermos reeducandas, estamos sugerindo que elas estejam sendo submetidas a um sistema de reintegração social. No mundo real, sabe-se que não é bem isso que acontece.

Empossados de todas essas informações já compartilhadas, fomos em busca dessas famílias. De pronto, a primeira barreira era nosso semblante de constrangimento, ao nos depararmos ao difícil tema que seria abordado, que vez por outra parecia se mesclar a um sentimento de pseudoautoridade, diante dos entrevistados.

Nossas primeiras visitas foram frustradas, pois não encontrávamos familiares das presidiárias, mas tivemos uma rica observação de como a comunidade se referia a elas e suas famílias.

Quando perguntávamos se ali era a casa de fulana, víamos rostos espantados e com uma resposta tão rápida quanto um disparo: “– Não!”. Então, tentávamos iniciar uma conversa, questionando se eles conheciam alguém que teve seu familiar preso. E as respostas eram bem uniformes: “– Sim, mas eles mudaram de Palmas!”.

Em algumas dessas visitas, saímos com a nítida sensação de que, mesmo com todas as explicações acerca do que é o Conselho, os residentes preferiam negar seu parentesco com as reeducandas. Talvez por medo, vergonha ou insegurança.

Nas visitas, os nomes daquelas mulheres e suas histórias quase não eram lembrados, mas os crimes, estes ainda estão vivos na memória dos que nos recebiam. Era como se todo histórico de uma vida tivesse sido apagado, restando apenas um único e cruel capítulo: o crime.

Podemos supor que além do sofrimento presente em cada uma dessas histórias, o preconceito que essas famílias passam a sofrer seja a principal causa de mudarem seu endereço. Uma tentativa de se apagar o passado vergonhoso.

Em vários casos, pudemos comprovar que o afastamento se dá também em relação as apenadas, que – não raramente –  são abandonadas por seus familiares no cárcere.

A distância das unidades prisionais em relação ao distrito urbano, as dificuldades financeiras e as constrangedoras revistas realizadas antes das visitas nos presídios são alguns dos fatores apontados pelos familiares como justificativa por sua ausência e descaso em relação às reeducandas.

Quando conseguimos cumprir nossa missão, fomos muito bem acolhidos. Por meio dos relatos e da postura adotada pelas pessoas que se encontravam nessas residências.

Deparamo-nos também com uma realidade de sofrimento causada pelas drogas, que de tanto se perdurar, já passou a fazer parte de seus traços e hábitos. Um exemplo é o da filha de dona Ana, hoje com 29 anos, é usuária de drogas ilícitas desde os 13. Fato que fez com que ela já fosse detida por 6 ou 7 vezes.

Hoje, sua família vive em um misto de incredulidade e esperança de que Mariana possa reestabelecer sua vida quando retomar a liberdade.

Uma vez que a visita domiciliar foge dos padrões dos atendimentos psicológicos tradicionais, ainda há uma enorme carência de materiais que abordem como se deve proceder nesse tipo de intervenção.

São raras as discussões e produções acadêmicas que tenham como foco as famílias de pessoas em privação de liberdade, o que evidência um vasto campo a ser explorado.

A falta da literatura para nortear nossas práticas gerou desconforto e o receio de estarmos (ou não) invadirmos a privacidade daquela família. Nosso receio era o de ferir o direito à privacidade em meio à toda dor que assolavam aqueles lares.

Em nossa busca por uma intervenção íntegra, fomos convidados a experimentar um modelo de intervenção, em que, claramente teríamos de nos deixar ser conduzidos pelos limites impostos pelo outro (cliente), uma vez que aquele era o seu ambiente, seu território.

 

Nota: Todos os nomes pessoais aqui utilizados são fictícios, com vista a preservar a identidade dessas pessoas.

 

Referências:

BRASIL. Lei de Execução Penal. Brasília: Senado, 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.>. Acesso em: 26 de março de 2014.

MARTINS, J.S. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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Criminalidade Feminina

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A mulher era sinônimo de beleza, sensibilidade e de inferioridade sexual e intelectual, cumprindo o seu papel natural na reprodução da espécie e no cuidado dos filhos, o que define, a mulher esposa, mãe e guardiã da casa.

Com a constituição de 1988, a mulher foi se libertando, tomando o seu papel na sociedade, e junto com essa evolução vieram a autonomia, as conquistas e as obrigações. A participação feminina no mercado de trabalho possibilitou o exercício da coragem em meio às conquistas e oportunidades, onde o dever  moral masculino passou a ser ignorado.

Mulheres que por terem casamentos frustrados e viverem em situações humilhantes, acabam dando um jeito, sozinhas. Há aquelas que buscam na religião uma mudança, outras nos familiares, mas as que não viram outra saída, partiram para o ilícito.

Sabe se que o número de mulheres encarceradas é menor que dos homens, mas  dados revelam que nos últimos anos a população carcerária feminina cresceu em relação ao universo masculino. Segundo o levantamento do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias feito em 2011, a maioria das mulheres encarceradas tem idades entre 18 e 24 anos (26%) e a minoria composta por mulheres com mais de 60 anos (1%).

“Não há uma única razão para que pessoas cometam delitos, há uma gama de variáveis envolvidas, podendo ser desde casos em que há o contato com o delito através de namorados, companheiros, até casos de busca de subsistência”, explica a advogada e professora universitária Luciana Avila. A advogada trabalhou na assistência a pessoas encarceradas  por 10 anos.

Luciana Avila – Foto: Arquivo Pessoal

 

É cada vez maior a presença da mulher em delitos relacionados a entorpecentes e também a crimes interpessoais  violentos, como roubos, seguidos ou não de morte, e sequestro.  Algumas mulheres continuam a se envolver na criminalidade, devido a suas relações amorosas, e não encontram outra saída a não ser servir de cúmplice.

“São diversas as histórias, desde uma mãe que foi presa por furtar um caderno e dois lápis para que o filho pudesse ira a escola, até  de uma moça que a menos de um a semana de ser liberada por indulto, fugiu da penitenciaria porque o seu companheiro que também  encontrava preso estava fugindo”,  relata Luciana.

De acordo com o livro “Falcão: Mulheres e o tráfico”, de Celson Athayde e MV Bille, mulheres estão chegando a posições de chefia nas bocas de fumo e realizam trabalhos de execução de pessoas.

De acordo pesquisa, 87% das mulheres encarceradas possuem filhos, a maioria vem de comunidades pobres e possui baixa escolaridade e qualificação profissional.

A maioria das presidiárias são “chefes de família”. As crianças já sem o referencial materno e por vez paterna são sentenciadas a perderem vínculos familiares, e acabam levadas ao sistema prisional. Dados estatísticos  dizem que 78% dos que chegam a idade adulta viram presidiários antes dos 22 anos (fonte ONG Pró-Vida).

 “Deve-se lembrar que a grande maioria das encarceradas do Brasil são pobres, com ensino fundamental incompleto, e não possuem recursos para contar com uma defesa jurídica de maior qualidade”, alerta a advogada.

A realidade é que grande parte das mulheres que ingressam no sistema prisional traz uma historia de violência sofrida, seja com a separação e a necessidade de oferecer o essencial para os filhos, seja pela falta de oportunidade diante da necessidade financeira, seja por relação afetiva ou amor bandido, o certo é que elas arriscaram e o resultado é que, a maioria cedo ou tarde, se dá mal.

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Dos Delitos e das Penas

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View of Daniel Defoe (1660-1731) – Fonte: The Bridgeman Art Library

O livro “Dos delitos e das penas”, de Beccaria, é uma obra que reflete a consciência crítica sobre um tema, em muitos aspectos, de difícil inovação. Foi escrito no século XVIII, em meio à forte influência advinda da inquisição e da tirania de alguns soberanos. Esse livro, antes de qualquer outro aspecto técnico, discorre sobre a liberdade humana. O autor utiliza uma argumentação lógica e sucinta para demonstrar algumas verdades que a ele não são apenas necessárias, mas, em alguns casos, vitais para iluminar o pensamento sombrio que recaía sobre o significado dos delitos e das penas no contexto em que foi escrita a obra.

Um dos pontos enfatizados por Beccaria é que “as vantagens da sociedade devem ser distribuídas equitativamente entre todos os seus membros“, desta forma fica evidente que o seu pensamento causaria um mal-estar na sociedade da época. Ele inicia suas argumentações trabalhando com o princípio de que a “verdade é uma e a mesma em toda a parte”. Logo, já deixa claro que abomina o fato da lei ser adequada a um dado contexto ou a um certo indivíduo. Sobre isso, ele diz:

Qualquer que seja a conclusão de todas essas questões, apenas direi que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as dos mais ínfimos cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem de modo igual das mesmas leis, as distinções não serão mais legítimas.

O autor construiu suas argumentações a partir de certos questionamentos, desde qual seria a origem das penas, ou em que se baseia o direito de punir, até sobre como diferenciar os crimes e como estabelecer suas penas. Mostrou-se desde o início preocupado com os costumes da época, que atribuíam uma certa divindade ao carrasco que possuía o direito de torturar em nome de uma verdade obscura.

Tortura na Idade Média – Fonte: Hulton Archive/Getty Images

Numa revisão da história, Beccaria discorreu que “as leis foram as condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, à superfície da terra”. Acrescenta ainda que o homem tem uma forte tendência ao despotismo. De certa forma, é observável em todas as sociedades, desde os agrupamentos humanos iniciais, que o mais forte quer impor seu poder sobre o mais fraco. Assim, é mister que tal característica seja relevante ao delinear as leis que regem um povo. Pois, segundo ele, “somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade”, então se ele quer ter segurança nessa convivência em comunidade, ao compreender a sua própria natureza, entenderá que é interessante abandonar sua condição de homem livre em termo absoluto, para que o outro, com características tão similares às suas, não venha também a desejar usurpar-lhe algo, ou invadir seus domínios.

A partir dessa reflexão, o autor concluiu que a “reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir”. Desta forma, quando no exercício do poder houver um afastamento deste fundamento, tal ato constituirá abuso e não justiça. Como consequências desses princípios, o magistrado, que é parte da sociedade, não pode em nome da justiça aplicar leis que não estão previstas no código. Pois, “se o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado”.

Sobre a questão da “interpretação das leis”, Beccaria desenvolveu vários argumentos, especialmente no que tange a questão do direito que um juiz tem de fazer a leitura da lei ao seu bel prazer. Para ele, a lei deve ser definida e interpretada pelos legisladores, cabendo aos juízes executá-las. Sendo assim, o juiz não pode interferir, em nome de suas crenças e valores, para o bem ou para o mal do acusado.

O autor utiliza os fundamentos da Lógica Clássica para estabelecer o silogismo sobre o qual o juiz deveria se ater ao estabelecer a culpabilidade ou inocência de um indivíduo, assim, tem-se que: “a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena“. Logo, o juiz não poderia levantar questões que não estivessem sobre a regência dessa estrutura lógica, evitando, assim, caminhos incertos e reflexões obscuras.

Para o autor, “se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão“, pois “a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes”. Nesse ponto, ele remete sua argumentação à teoria do Contrato Social, de Rousseau, e discorre sobre a balança tênue que existe equilibrando as relações sociais a partir dos direitos e deveres das partes que as constituem.

O homem muitas vezes é levado, segundo o autor, pelo axioma comum de que há um espírito na lei a ser consultado, tal qual um oráculo que tudo sabe, tudo entende e que para tudo tem uma resposta. O grande problema em interpretar livremente uma lei é se deixar levar pela emoção de axiomas gerados pela ignorância, pois “cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos”. Assim, por essa diversidade de visões sobre um mesmo tema, é que não se pode construir verdades tendenciosas. Pois, cada homem carrega em si um conjunto de verdades que pode ser aplicado segundo seu interesse e sua necessidade. Ainda que não haja uma verdade universal, é necessário o estabelecimento de regras gerais que poderão nortear e sustentar a vida em sociedade. Acrescenta ainda, que “com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime”.

Um ponto ressaltado no livro de Beccaria e que é uma evidência cada vez mais latente nos dias atuais, é o fato de que “as leis e os usos de um povo estão sempre atrasados em vários séculos em relação aos progressos atuais”.

Como exemplo, é possível citar os avanços na área da informática que fizeram surgir novas formas de crimes e de vítimas. No entanto, existem poucas leis que lidam com tal situação. Isso dá margem a necessidade de buscar nas analogias formas eficazes para a compreensão de um crime. No entanto, uma analogia inadequada pode acarretar em inúmeros problemas e afastar a lei do seu objetivo maior, o alcance da justiça.

Ao tratar dos indícios do delito e da forma dos julgamentos, Beccaria estabeleceu um teorema geral que permite calcular a certeza de um fato e o valor que alguns indícios têm para um dado crime. No teorema ele demonstra que:

Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto é, quando os indícios do crime não se mantêm senão apoiados uns nos outros, quando a força de inúmeras provas depende de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai na probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, se destruís a única prova que parece certa, derrocareis todas as demais.

Quando, porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.

A coerência desse raciocínio é observada no fato de que o teorema é baseado numa regra que apresenta o quanto as provas que se condicionam em outras podem ser frágeis e passíveis de refutação. É evidente que fatos encadeados podem ser usados para solidificar uma dada consequência, no entanto, é preciso que aquele que julga tal ato compreenda que um fato falso desmorona o encadeamento e impossibilita que se encontre o consequente final dos condicionais.

Ainda que seu raciocínio seja extremamente lógico e, em alguns casos, ele tenha a tendência de buscar quase uma demonstração matemática, o autor admite que, sendo o Direito uma ciência subjetiva, “toda certeza moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu consentimento”.

Beccaria distinguiu as provas de um delito em duas categorias: provas perfeitas e provas imperfeitas. “As provas perfeitas são aquelas que demonstram positivamente que é impossível ser o acusado inocente. As provas imperfeitas derivam-se do fato de que a possibilidade de inocência do acusado não é excluída”. Então, pode-se concluir que basta uma prova perfeita para condenar um indivíduo e que é necessário um número muito grande de provas imperfeitas para provar que, juntas, constituem a certeza (ainda que relativa) de que o acusado é culpado.

Seguindo sua tendência em explicar suas teorias de forma lógica, Beccaria discorre sobre uma proposição que, segundo ele, é muito simples, que diz: “ou o crime é certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais necessidade das confissões do acusado. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não está provado”. Com essa proposição, ele demonstra sua aversão à tortura como forma de identificar a culpa ou inocência de um acusado. Essa proposição simples (vale ressaltar que o simples não é simplório, mas carrega em si uma certa “suficiência” que refuta muita argumentação complexa) deve ser a máxima de qualquer código penal (“o acusado é inocente até que se prove o contrário”, Código Penal Brasileiro).

A partir de Beccaria, foi apresentada com mais clareza a necessidade de se estabelecer a duração dos processos e, principalmente, o tempo necessário para sua prescrição. Segundo o autor, esses fatos já devem ser definidos a priori, por lei, assim, evitaria que os juízes exercessem a função de legislador, ou que algumas situações injustas viessem a ocorrer. Para ele, podem ser distinguidas duas espécies de crimes: a dos crimes horrendos, que se inicia com o homicídio e engloba toda a progressão das formas mais terríveis de assassinatos; e a dos crimes menos hediondos do que o homicídio. No código penal brasileiro, também comete crime hediondo aquele que subtrai a vida de outrem e, para esses crimes, a pena é mais dura e o tempo de prescrição é maior. No entanto, há inúmeras críticas com relação ao Código Penal Brasileiro, especialmente no que tange às questões relativas à progressão da pena.

Ao demonstrar sua opinião contrária à pena de morte, Beccaria constrói seu melhor argumento, como pode ser verificado adiante:

A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrificar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?

Ou tem o homem o direito de suicidar-se, ou não pode passar tal direito a outrem nem à sociedade toda.

A pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão.

A partir do entendimento de como se dá a doação da liberdade para o alcance da justiça, o autor desenvolve uma disjunção que implica, necessariamente, em dois caminhos obscuros. Assim, ele demonstra que a pena de morte não nos remete a nenhuma consequência justa, qualquer caminho que se segue para validá-la é por si só um caminho vicioso e sombrio.

O autor enfatiza, ainda, que o rigor do castigo não determina a sua eficácia em coibir novos atos da mesma forma ilícitos. Ou seja, que não adianta executar uma ação brutal e rápida (como a pena de morte) se a continuidade de um ato possibilita mais recordação do que a violência instantânea. Maquiavel já argumentou sobre isso em “O Príncipe”, que o mal deve ser feito de forma rápida, se a pessoa não quiser ser lembrada por ele. Já as boas ações devem ser realizadas com calma e de forma constante, assim dará a impressão que o homem que a faz é melhor do que talvez seja. É claro que as situações supramencionadas são diferentes, no entanto, a ideia é semelhante. A visão de permanecer preso numa cela por trinta anos é menos poética e mais apavorante do que uma morte rápida. A natureza humana tende a desafiar o perigo extremo, mas teme a dor constante e a ausência de liberdade.

Sobre a pena aplicada a crimes aparentemente semelhantes, é observado que no código penal brasileiro há uma diferenciação entre a pena para o roubo que é feito com violência e aquele em que é retirado o bem do cidadão, sem, no entanto, atacá-lo fisicamente. Beccaria, diz que “o roubo com violência e o roubo com astúcia são crimes totalmente diversos; e a política sã deve admitir, mais ainda do que a matemática, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita”.

Um ponto em que Beccaria sempre retorna é a questão da igualdade civil, desta ser “anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas”. Essa preocupação constante é explicável especialmente tendo em vista a época em que o livro foi escrito. Num mundo em que a barbárie é pregada pela mesma fonte de conforto e amor, que é a igreja, é compreensível que há uma inversão de valores e quem percebe isso e tenta confrontar tal situação, tem que fazê-lo de forma insistente. Mas, também, parece ser uma temática atemporal, dada as inúmeras discussões e protestos atuais em torno das questões relacionadas aos Direitos Humanos.

Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.

Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta de delitos.

Desejais evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas; porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam maiores.

A inteligência está na sensibilidade de perceber que, “sob boas leis, o homem apenas perdeu a nefasta liberdade de cometer o mal”. O ponto mais interessante nessa obra está na constatação tão atual de que “a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil, de tornar os homens menos propensos à prática do mal é aperfeiçoar a educação”.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

DOS DELITOS E DAS PENAS


Autor: BECCARIA, Cesare
Tradução: Torrieri Guimarães
Ano:
2002

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