Tocantinenses são destaque no 2º Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus

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Evento on-line começa nesta quarta-feira (25) e busca valorizar a produção audiovisual amazônica

Discutir o racismo através do audiovisual e valorizar a produção de cinema realizada por afro-brasileiros, sobretudo da Região Amazônica, são os objetivos do II Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus. O evento ocorre entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro de 2020 de forma virtual por meio da plataforma www.todesplay.com.br e redes sociais do Cine Diáspora.

Esta edição homenageia a diretora de cinema e atriz Rosilene Cordeiro, que também é professora, produtora e colaborou com o curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Pará (UFPA). A programação inclui debates, premiação e exibição de filmes. A abertura será feita através de live nas redes sociais, com a exibição do filme Princesa do Meu Lugar, de Pablo Monteiro (São Luís/MA).

Nesta edição, 135 produções foram recebidas, sendo 56 (41,48%) da Região Amazônica e 79 (58,52%) de outras regiões do país. Desses, 21 projetos de cineastas amazônicos foram selecionados e concorrem ao prêmio Zélia Amador de Deus nas categorias: Clipe da Região Amazônica; Projeto para Web da Região Amazônica; e Curta-Metragem da Região Amazônica. Dentre eles, destacam-se as obras A Sússia, de Lucrécia Dias (Arraias/TO), e Romana, de Helen Lopes (Natividade/TO).

Cena de “Romana” por: Helen Lopes

Acessibilidade – Visando a ampliação do entretenimento, o Festival de Cinema Negro também terá uma sessão especial com ferramentas de acessibilidade para pessoas com deficiência auditiva e surdas. Com interpretação na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) e dirigidas por negras, Blackout, de Rossandra Leone (RJ), e Seremos Ouvidas, de Larissa Nepomuceno (PR), são duas das obras selecionadas.

Confira as sinopses: Seremos Ouvidas – “Como existir em uma estrutura sexista e ouvinte? Gabriela, Celma e Klicia, 3 mulheres surdas com realidades distintas, compartilham suas lutas e trajetórias no movimento feminista surdo”.

Blackout – “Em um Rio de Janeiro futurista nada parece ter mudado. Abuso de autoridade, violações de direitos, racismo e machismo ainda dão o tom da relação do poder público com a favela. Dessa vez, entretanto, algo parece estar para mudar”.

O projeto – A primeira edição do festival ocorreu em novembro de 2019, e recebeu 107 filmes de todo o Brasil – a maioria da Região Amazônica, e teve 14 pontos de exibição nas periferias da Grande Belém. A iniciativa, batizada com o nome da professora emérita da UFPA, ativista e atriz Zélia Amador de Deus, é uma realização da produtora audiovisual Cine Diáspora e tem o apoio do Prêmio Preamar de Cultura e Arte da Secretaria de Estado de Cultura do Pará (Secult).

“O II Festival Zélia Amador de Deus parte de uma construção coletiva feita a partir de uma reunião de amigos artistas, cineastas e produtores culturais negros, que sentem em suas vidas a importância do cinema, o percebem como instrumento de mudança de mentalidades, incentivando práticas antirracistas e de valorização da produção artística afrodiáspórica e africana”, conta Fernanda Vera Cruz, da curadoria e produção da iniciativa, que contribui na renda de 24 profissionais negros e periféricos da periferia de Belém.

Serviço – II Festival de Cinema Negro Zélia Amador de Deus ocorrerá entre os dias 25 de novembro e 10 de dezembro via www.todesplay.com.br e Instagram (@cinediaspora) e Facebook (/cinediasporapa).

Indicados por categoria:

Clipe da Região Amazônica
– Estorvo – Mc Super Shock por Saturação (Macapá/AP)
– Batidão – Enme por Jessica Lauane (São Luís/MA)
– Pretinha – Taslim por Nádia D’Cassia (São Luís/MA)
– Eu sou Tambor – Vanessa Mendonça (Belém/PA)
– Retomada Ancestral – Vanessa Mendonça (Belém/PA)
– Pesadelos – Bruna BG por Anna Suav (Belém/PA)

Projeto para Web da Região Amazônica
– Enme No Corre – Enme Paixão (São Luís/MA)
– AfricAmazônia – Amérika Bonifácio (Icoaraci-Belém/PA)
– Teia de Aranha – Emily Cassandra Bonifácio (Belém/PA)
– Medo de Travesty – Attews Shamaxy (Ananindeua/PA)
– Turva Preamar Marejante – Samily Maria (Belém/PA)

Curta-Metragem da Região Amazônica
– Brilhos Apagados – Nilce Braga (São Luís/MA e Buenos Aires/ARG)
– Quedaria – Brenna Maria (São Luís/MA)
– Sobre Aquilo que Fica – Thais Sombra (Belém/PA)
– Mametu Muagile Rainha de Angola – Elizabeth Leite Pantoja (Belém/PA)
– Que Liberdade é Essa? – Sol Oliver (Belém/PA)
– A Sússia – Lucrécia Dias (Arraias/TO)
– Romana – Helen Lopes (Natividade/TO)
– Minguante – Maurício Moraes (Belém/PA)
– Traçados – Rudyeri Ribeiro (Belém/PA)
– São Geraldo – Homem de Música e Planta – Keila dos Santos (Manaus/AM)

Curta-Metragem Nacional
– Blackout – Rossandra Leone (RJ)
– Alfazema – Sabrina Fidalgo (RJ)
– 111+ – Ivaldo Correa (RJ)
– Um Grito Parado no Ar – Leonardo Souza (RJ)
– Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé – Janaina Oliveira Refem e Rodrigo Dutra (RJ)
– A Cama, o Carma e o Querer – Daniel Fagundes (SP)
– Alforria Social Beat – Rodjéli Salvi (SP)
– Minha Deusa e Eu – Gabrela Vieira (SP)
– Barco de Papel – Thais Scabio (SP)
– Dádiva – Evelyn Santos (SP)
– Aurora – Everlane Moraes (SP)
– Corre – Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo (SE)
– Filhas de Lavadeira – Edileuza Penha de Souza (DF)
– Pernambués – Quilombo Urbano de Lúcio Lima (BA)
– Adventício – Abdiel Anselmo (CE)
– Live – Adriano Monteiro (ES)
– Rio das Almas e Negras Memórias – Taize Inácia Thaynara Rezende (GO)
– Nove Águas – Gabriel Martins e Quilombo dos Marques (MG)
– Reflexo Reverso: O Outro em Branco – Fernanda Thomaz (MG)
– Banho de Flor – Hiura F. (PB)
– Seremos Ouvidas – Larissa Nepomuceno (PR)
– 2704 km – Letícia Batista (PE)
– Notícias de São Paulo – Priscila Nascimento (PE)
– Os Verdadeiros Lugares Não Estão no Mapa – João Araió (PI)
– Por Gerações – Leila Xavier (RJ)
– Encruza – Bruna Andrade, Gleyser Ferreira, Maíra Oliveira e Uilton Oliveira (RJ)
– Por Trás das Tintas –  Alek Lean (RJ)

Filmes Convidados

– Princesa do Meu Lugar – Pablo Monteiro (São Luís/MA)
– O Nikse é Que Nos Socorre – Weverton Ruan Vieira Rodrigues (Belém/PA)

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Purl e a difícil entrada das mulheres em um mundo dominado por homens

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A criadora do curta-metragem Kristen Lester, contou durante um vídeo do canal da Pixar que baseou a animação Purl na experiência que teve em seu primeiro trabalho

Purl é o novo curta-metragem da Disney Pixar, criado pela diretora e roteirista Kristen Lester que mostra a realidade de muitas mulheres que decidem entrar em um mercado de trabalho que é dominado por homens. No curta, conhecemos Purl, uma bola de lã rosa muito animada para começar em seu novo emprego e conhecer seus colegas de trabalho.

A bola de lã rosa chega bastante falante, cumprimentando a todos e tentando se encaixar em um grupo, no entanto, há um grande problema. Ela é uma bola de lã rosa e baixinha. Todos se afastam de Purl quando ela se aproxima, ninguém ri de suas piadas, as pessoas, todos homens, a excluem ao máximo para que ela não tenha uma voz ativa na empresa.

Fonte: https://bit.ly/2EkD35S

Purl, querendo muito ser inserida no meio, decide alterar toda a sua essência. Podemos ver isso quando ela vai ao banheiro e começa tricotar uma nova versão dela. Sua cor rosa chiclete fica em um tom mais claro e ao mesmo tempo fechado, agora está usando um terno e sua – antes divertida e viva – expressão, agora se tornou séria e grosseira.

Assim, ocorre uma enorme mudança na forma de tratamento dos homens da empresa para com Purl. Eles a respeitam. Agora, Purl não é mais fofa e nem delicada. Ela começa a ter voz na empresa pois tem abordagem agressiva e “sem noção”, assim como os homens da empresa.

Fonte: https://bit.ly/2EkD35S

Quando Purl já está totalmente integrada ao grupo masculino, outra bola de lã entra para a empresa, e inicialmente, não querendo ser desprezada pelos seus colegas de trabalho, faz uma piada sobre a nova integrante da empresa e acompanha os homens para uma saída ao “Happy Hour”. Mas Purl para e começa a pensar que ela já esteve na mesma situação da outra bola de lã e de última hora, decide ajudar a novata. Seus colegas homens ficam confusos e constrangidos e a deixam.

É bem evidente que a bola de lã Purl e a outra bola amarela representam mulheres e suas grandes dificuldades em serem inseridas em um emprego onde a grande maioria é composta por homens. Pois mulheres são comumente vistas como bolas de lãs frágeis e delicadas demais para conseguirem tomar uma decisão que leve a empresa para um bom rumo. Isso é verdade? Não. Mas é o que é propagado? Também não.

Fonte: https://bit.ly/2EkD35S

Infelizmente, o que acontece são mulheres mudando suas características para conseguir ter o mesmo tipo de voz que um homem teria, e acabam perdendo sua identidade. Por que características femininas como a delicadeza são tão rejeitadas? Porque é isso o que acontece quando você tem que enfrentar um “mundo de homens” para atingir seus objetivos.

A criadora do curta-metragem Kristen Lester, contou durante um vídeo do canal da Pixar que baseou a animação Purl na experiência que teve em seu primeiro trabalho, onde era a única mulher presente no ambiente e que para continuar a fazer o que gostava, teve que “se tornar um dos caras” sic. Contou também que quando encontrou um novo trabalho, com uma equipe na qual havia mulheres, teve consciência que seu antigo emprego a fez deixar seu aspecto feminino para trás para ser incluída em um grupo. (Você pode assistir o vídeo de Kristen por meio deste link).

Fonte: https://bit.ly/2EkD35S

O final do curta é bem admirável, pois encontramos o ambiente de trabalho de Purl com várias outras bolas de lã, ou seja, mulheres, compartilhando com harmonia e amizade o espaço com os “caras”. A atitude de Purl ao ajudar Lacey (bola de lã amarela), foi significativa para que o local totalmente guiado por homens comece a dar espaço para as mulheres também.

A desigualdade de gênero no mercado de trabalho é uma realidade mundial.  Há, obviamente, as poucas exceções onde pode se encontrar um ambiente trabalhista onde mulheres e homens dispõem dos mesmos direitos, mas como vemos em Purl, é uma caminhada a ser seguida para que esses direitos sejam obtidos. Haverá um dia onde nenhuma mulher precisará alterar sua identidade para conseguir um cargo e os mesmo direitos que homens têm sem fazer grandes esforços. Já estamos caminhando para essa realidade. Ainda bem.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

PURL

Título original: Purl
Direção: Kristen Lester
País: Estados Unidos da América
Ano: 2019
Gênero: Animação

REFERÊNCIAS:

Pixar drops first short film from new animation program SparkShorts. Disponível em: <https://ew.com/movies/2019/02/04/pixar-purl/>. Acesso em 12 de Fevereiro de 2019.

Pixar’s Purl Is a Charming and Insightful Yarn About Women in the Workplace. Disponível em: <https://www.themarysue.com/pixar-purl-short/>. Acesso em 12 de Fevereiro de 2019.

Pixar’s new short “Purl” takes on toxic workplace bro culture. Disponível em: <https://www.fastcompany.com/90303807/pixars-new-short-purl-takes-on-toxic-workplace-bro-culture>. Acesso em 13 de Fevereiro de 2019.

Pixar’s new short stars a swearing ball of feminist yarn. Disponível em: <https://www.polygon.com/2019/2/4/18210951/purl-pixar-short-film-sparkshorts>. Acesso em 13 de Fevereiro de 2019.

Mulheres e o mercado de trabalho: os desafios da igualdade. Disponível em: <https://www.thinkwithgoogle.com/intl/pt-br/tendencias-de-consumo/mulheres-e-o-mercado-de-trabalho-os-desafios-da-igualdade/>. Acesso em 13 de Fevereiro de 2019.

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Professor da Psicologia será jurado em festival de cinema

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III Festival de Cinema Estudantil de Palmas ocorrerá nos dias 19 a 21 de setembro

O professor de Psicologia Me. Sonielson Luciano de Sousa foi convidado pela comissão organizadora do III Festival de Cinema Estudantil de Palmas – Você na Tela, para compor a comissão do Júri da Crítica que irá conceder Prêmio da Crítica de Melhor Filme do festival. O evento será realizado nos dias 19 a 21 de setembro com mostras competitivas no Cine Cultura e a premiação no Theatro Fernanda Montenegro no dia 21 de setembro, às 19h.

O Festival é promovido pela Fundação Cultural de Palmas em parceria com a Secretaria Municipal de Educação com a finalidade de estimular a realização e a exibição de obras audiovisuais produzidas no ambiente escolar por estudantes das redes pública e privada de ensino. As categorias serão divididas em Mostra Competitiva (Pequeno Cineasta e Jovem Realizador) e Mostra Não Competitiva, contendo obras audiovisuais produzidas no âmbito das escolas do Ensino Fundamental e Médio, além de instituições como associações comunitárias e pontos de cultura localizadas no município de Palmas.

Gravações do curta premiado “Menina Bonita de Trança”. Fonte: Agência Revive

Sonielson Luciano de Sousa atualmente é professor universitário no Ceulp/Ulbra nas disciplinas de Filosofia, Antropologia, e Sociedade e Contemporaneidade. Filósofo (UCB), é Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT), pós-graduado em Educação, Comunicação e Novas Tecnologias; bacharel em Comunicação Social (Publicidade – Ceulp/Ulbra); sócio-fundador do jornal e site O GIRASSOL (desde 1999) e coordenador e colaborador do Portal (En)Cena (http://www.encenasaudemental.net).

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A solidão coletiva em “O Homem das Multidões”

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O personagem do conto tem uma força interessante, uma estranheza que me agrada, um tipo de solidão que é justamente o contrário: a necessidade de estar no meio de muita gente. É uma solidão no múltiplo, não apenas no estar só.
Cao Guimarães

O filme O Homem das Multidões, lançado em 2013, possui inspiração no conto homônimo de Edgar Allan Poe. Em linhas gerais há um argumento simples, intrigante e inquietante: a solidão de um homem frente ao seu mundo. No entanto, este estado de ostracismo é mais relativo que absoluto, já que reside no mesmo um grau particular de relacionamento com a sociedade. Há uma admiração, interação, e degustação da multidão, complementando o modo de ser deste indivíduo na coletividade. Poe elenca alguns destes aspectos em seu conto, e muitos destas características são explorados no filme:

Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘es lässt sich nich lesn’ (POE, 1990, p.189-190).

Percebe-se que o importante é ressaltar o cotidiano, suas sutilezas e trivialidades, a insignificância de grandes acontecimentos contrapondo-se a significância dos pequenos detalhes. Outras obras que trabalham com esta problemática são O Idiota da Família de Jean-Paul Sartre, O Espelho de Machado de Assis, o Homem Duplicado de José Saramago. Este sui generis da rotina, presente em o Homem das Multidões e suas fontes de inspiração, é que recebe o protagonismo, mais que os próprios personagens das estórias:

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias (POE, 1990, p. 164).

Esta imersão solitária na coletividade do urbano, das grandes metrópoles contemporâneas foi trabalhada também no conceito francês de flâneur – o “perambulador” urbano. Este indivíduo é uma variação interpretativa do andarilho de O Homem das Multidões. Charles Baudelaire discutiu profundamente sobre este indivíduo, que degusta, circula, percorre e perscruta a multidão, sem necessariamente interagir completamente com ela:

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flanêur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem que a linguagem não pode definir  senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda a parte o fato de estar incógnito (BAUDELAIRE, 1995, p. 857).

Os próprios diretores de O Homem das Multidões (2013) Cao Guimarães e Marcelo Gomes, se lançaram sobre o tema da solidão coletiva moderna, em dois filmes anteriores: A alma do osso (2004) e Andarilho (2007). Esta sequência de filmes expõe um ciclo de experimentações, ou melhor, a reificação da mesma estória em busca do seu aperfeiçoamento, seja por seu desenvolvimento, personagens ou ambientação.

Outro grande estudioso da vida urbana na Modernidade Georg Simmel, salienta que para este ser em solidão, estar desta maneira é atingir seu estado de liberdade. A metrópole provoca o surgimento destas inflexões individuais, os ostracistas urbanos, que se fecha em seu mundo, como uma autopreservação. O autor ressalta que esta acepção já é conhecida, principalmente pelos habitantes das cidades menores, pela “frieza” e distanciamento dos metropolitanos, e em O Homem das Multidões, esta composição é exalada em cada minuto da projeção.

Na medida em que o individuo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva. Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece. quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a urn estado psíquico inimaginável (SIMMEL, 1973).

Em parte esse fato psicol6gico, em parte o direito a desconfiar que os homens tern em face dos elementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessária nossa reserva. Como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos. E e esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nos faz parecer frios e desalmados (SIMMEL, 1973).

Até o momento o longa-metragem foi galardoado com prêmio de melhor filme do Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, Melhor Direção Première Brasil do Festival do Rio, Prêmio Especial do Júri e Melhor Fotografia do Festival de Guadalajara, indicações ao Urso de Ouro do Festival de Berlim, dentre outros. Estes prêmios vêm ao encontro de grandes filmes nacionais (ou com atores e atrizes brasileiros) que estão arrebatando destaque internacional nos últimos anos, como Elena (2012), Praia do Futuro (2014) e O Lobo Atrás da Porta (2013).

A multidão em suas individualidades

Em O Homem das Multidões acompanhamos o cotidiano de Juvenal (Paulo André), um maquinista que vive sozinho em seu apartamento e com uma rotina regrada a perambular por entre as pessoas de uma grande cidade. Podemos observar a inexistência de uma parceira, amigos ou familiares, ao mesmo tempo em que este isolamento não representa um estado de tristeza ou depressão, mas um olhar vago, fala calma e pausada e uma postura introspectiva e absorta na maior parte do tempo.

Apesar do título do filme remontar a figura do personagem nos cartazes e demais divulgações, ao longo das cenas percebemos que há uma “dupla” de solitários, formada por Margô (Silvia Lourenço) e o personagem que encabeça a narrativa, Juvenal (Paulo André). Ambos se comportam como eremitas urbanos, cada qual a seu modo de ser e interação com o mundo. Enquanto um age como legítimo tecnofóbico, do outro lado a solidão também se exala, mas pela tecnofilia de Margô.

Este é o paradoxo entre a solidão e ser solitário presente em O Homem das Multidões. Em outros termos, é possível diferenciar estes dois conceitos, e o filme expõe tal distinção por suas imagens e parcos diálogos. Juvenal (e Margô) vive e desfruta de um estado de solidão coletiva, que a onipresença urbana ajuda a fortalecer. Esta é a argumentação utilizada pelo direto Cao Guimarães sobre sua obra:

Na cidade, você precisa construir elementos narrativos que gerem a sensação de solidão, e isso é algo muito perigoso, pois quisemos evitar que o Juvenal parecesse uma pessoa patológica. Queríamos alguém comum, tímido, introspectivo. […] Ela entra com a questão contemporânea do virtual, de uma solidão diferente, numa relação com as pessoas completamente efêmera de quem se envolve com os outros apenas pelo computador (Cao Guimarães).

A ligação dos sozinhos, sua empatia e dialogia também são enriquecidas nos momentos em que Juvenal e Margô contracenam. E sobre esta relação entre estar sozinho, a solidão e ser solitário, o próprio ator de Juvenal (Paulo André), reflete sobre esta postura do personagem que interpreta, ressaltando que por não possuir um rosto conhecido do grande público acabou por encontrar maior facilidade nas tomadas públicas e coletivas ao longo do filme:

É um personagem paradoxal. Um solitário que gosta e sente prazer de estar junto a uma multidão, no meio de pessoas que não conhece, sem ser notado. Um solitário que se exaspera, se angustia quando está só. Uma pessoa que não tem nenhum traquejo social. Ao menor sinal de interação, de interlocução, ele se esquiva. Um tipo estranho e ao mesmo tempo ordinário, comum. Sem “cores fortes” na composição. É capaz de ficar horas no caos de um centro urbano sem ser percebido (Paulo André).

E, nesta angústia e inquietude metropolitana, Juvenal possui três interações claras ao longo filme: consigo próprio, os mais sugestivos e importantes para a estrutura e desenvolvimento da projeção; com a urbanidade, pois somente em contato e interação com ela que o conceito e a vivência da solidão coletiva toma corpo e se configura como tal, inclusive, como alegoria para nossa época e sociedade; e, por fim, com Margô em “diálogos não verbais”, já que nela o personagem encontra seu duplo, alguém que, de alguma maneira, reflita parte de sua personalidade em sua condição social de individualidade solitária.

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A temática da solidão coletiva, principalmente em ambientes urbanos, é tratada em obras de grande e pequeno alcance, em curtas e longas metragens, em diferentes formas de representação artística, e com variados enredos de desenvolvimento reflexivo, estético e artístico, algumas obras que apresentam tais características são: A casa em cubinhos (2008), Le Cyclope de La Mer (1999), O Céu no Andar de Baixo (2011), Preciosa (2009), O Cheiro do Ralo (2007), A Outra Terra (2011), Asas do Desejo (1987), I’m here (2010), Amantes Eternos (2013), The Lunchbox (2013), Era uma vez eu, Verônica (2012), O Homem Duplicado (2013), Edifício Master (2002).

Em todos estes filmes de linguagem cinemática similar ou paralela à O Homem das Multidões. Multidões, cenários marítimos, texturas pasteis ou monocromáticas, bandas sonoras depressivas e minimalistas e personagens com grande grau de inquietude do eu consigo, propondo grandes reflexões da condição humana, não necessariamente em sua solidão, na contemporaneidade.

A ideia central deste projeto é a solidão do homem contemporâneo, cidadão de uma grande metrópole no Brasil: Belo Horizonte. Resolvemos compor nossos personagens relacionando-os de forma obstinada com esta espécie de alteridade compacta presente nas grandes cidades: a multidão. No mundo contemporâneo podemos pensar em duas formas de multidões. A multidão real, verificável na realidade das ruas, nos aglomerados de pessoas na urbe; e a multidão virtual, intermediada por uma tela (de computadores, celulares e outros aparatos eletrônicos) que redefine toda a sensorialidade presente em nosso estar no mundo. A partir de dois personagens (Juvenal e Margô), arquétipos de uma sociedade industrial e moderna, queremos refletir sobre o processo de isolamento do indivíduo e da massificação das estruturas sociais. As relações perdem a naturalidade do olhar, do falar, do ouvir, ou seja, de tudo o que nos faz estabelecer contato com o outro. Nossos personagens são a incorporação radical desta sensação (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).

Alguns toques da direção, figurino, cenografia, movimentos de câmera e técnicas de filmagem dão o tom das obras, como, por exemplo: ambos os personagens de foco (o protagonista e sua coadjuvante) possuem fugas sexuais para sua solidão, a trilha sonora residual, a polifonia idiomática presente em alguns momentos (francês, inglês, chinês, etc. o simbolismo da Babel contemporânea), o ruído urbano permanente, as cenas de amostragem do cotidiano de Juvenal e Margô, dentre outras.

A multidão em sua unicidade

As cenas finais de O Homem das Multidões propõe uma trilha, senão em direção contrária à solidão coletiva de Juvenal e Margô, pelo menos como uma possibilidade de habitação para além deste estado no qual os dois estão. Cabe a cada espectador da obra embarcar nas reflexões existentes em seus elementos, seja no urbano, na socialidade (ou não) dos personagens e temática da solidão, os limites para este exercício se expandam a cada novo início de interpretação, assim como o cotidiano, os ruídos e a continuidade da vida de cada pessoa em sua individualidade e coletividade.

Espera-se que esta obra consiga adquirir a visibilidade de público correspondente a sua já aclamação pela crítica, já que o cenário brasileiro de cinema nacional e de dominância estrangeira – a harmonia é desejada, e não a limitação de uma ou outra forma de produção, de pequena ou grande escala, na sétima arte –, acaba por limitar a entrada de filmes como o de Cao Guimarães e Marcelo Gomes num alcance maior de apreciação nos cinemas.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar
.”

Copo Vazio, Chico Buarque

REFERÊNCIAS: 

O HOMEM DAS MULTIDÕES. Direção e Roteiro (Cao Guimarães e Marcelo Gomes).  Cinco em Ponto e REC Produtores Associados. 2013. 95 min.

BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”. In: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. 3. ed. São Paulo: Globo, 1999.]

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. Trad. Sérgio Marques dos Reis. In: VELHO, Otávio Guilherme. O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O HOMEM DAS MULTIDÕES

Diretores: Cao Guimarães e Marcelo Gomes
Elenco: Sílvia Lourenço, Jean-Claude Bernardet, Paulo André;
País: Brasil
Ano: 2012
Classificação: 14

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O imponderável da existência em “O Céu no Andar de Baixo”

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“Para ele, o céu é uma opção e um significado.”

Há no Brasil inúmeras iniciativas de desenvolvimento independente da sétima arte. A quantidade de festivais, feiras e premiações sobre curtas, médias e longas-metragens é considerável. Infelizmente muitas das obras apresentadas nestes eventos não possuem uma grande divulgação, não impedindo que sejam prestigiadas, mesmo que por um público de nicho, formado por produtores, roteiristas, diretores e atores anônimos, em início de carreiras e independentes. Todos os anos uma plêiade de inspiradas produções são elaboradas, apresentadas e debatidas, e é sobre um destes pontos luminosos que este texto se trata.

A breve introdução é necessária para a entrada do debate sobre o curta-metragem O Céu no Andar de Baixo lançado em 2010, exposto em diferentes oportunidades neste ano e em 2011 por todo Brasil. A direção, roteiro e produção ficou a cargo de Leonardo Cata Preta formado em Desenho e Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes da UFMG, com ajuda do programa Filme em Minas. O trabalho foi vencedor de premiações como o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, Melhor Curta – Prêmio da Crítica no Cine Ceará em 2011, e de Melhor Roteiro no Festival de Cinema de Triunfo em 2011, dentre outros.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O MUNDO DE FRANCISCO

A obra conta a história de Francisco, um jovem acometido por uma condição congênita de “descalcificação” dos ossos do seu pescoço, transformando sua cabeça em um pingente, conforme as palavras do narrador – o próprio Leonardo, roteirista da estória. Esta condicionante fisiológica é que fundamenta todo o desenvolvimento, tanto do personagem principal, como também das situações as quais o mesmo se vê relacionado durante a projeção do curta-metragem.

Os dias de Francisco possuem um ar monótono ao lado de seu cachorro de estimação, Pereba, mas envoltos numa dinâmica peculiar: o ato de registrar, desde os 12 anos, os momentos mais importantes de sua vida com uma máquina fotográfica, e como ele só vê o céu (ou o chão), devido sua enfermidade, estas ocasiões possuem cada qual um enquadramento diferente do firmamento, com suas nuvens, iluminação formando assim os diferentes “Quandos” de sua vida, pois: “[…] há um céu para cada acontecimento assim como há uma expressão nos rostos das pessoas para diferentes ânimos” alimentando ainda mais sua sede imaginativa.

Outra discussão interessante levantada no filme é sobre o foco da visão do protagonista, que, devido seu problema físico, precisa optar em sempre olhar par ao céu ou para o chão; no primeiro caso “o mundo de cima” apesar de ser o mais bonito em sua preferência, acaba por atrapalhar suas atividades cotidianas, pois nada consegue ver além do azul e nuvens; no segundo caso “o mundo de baixo” possibilita uma maneira de atingir sua mobilidade, mas, obrigando-o a sempre olhar para a sujeira dos caminhos percorridos, na maior parte composto por restos, imundícies, e demais detalhes admoestados pela visão retilínea dos demais transeuntes, algo parecido da análise presente na animação australiana Mary & Max (2008).

Assim, em sua rotina, Francisco não se mostra muito motivado a interagir com as outras pessoas, preferindo preservar o seu ostracismo. No entanto, devido às inúmeras investidas de socialização por parte dos seus vizinhos de prédio, este acaba cedendo, mesmo não se ajustando às reuniões do grupo, preferindo os passeios no parque com o seu cão, Pereba, já que o falatório inócuo de sentido não lhe soa convidativo: “Devido ao seu comportamento incomum de poucas palavras, melhor dizendo, de nenhuma palavra, os vizinhos acham que FRANCISCO é mudo. Mas FRANCISCO apenas gosta demais do seu silêncio para quebrá-lo com qualquer um. Aqui, FRANCISCO é valor agregado, está presente estritamente como ouvinte passivo. Silencioso, mas presente”. E há um pequeno detalhe no endereço do personagem principal, pois o número do apartamento de Francisco, 1304, faz uma referência direta à outo trabalho do diretor Moradores do 304 (2007), que é a numeração real da casa do idealizador do filme.

Este dia-a-dia apático, reforçado pelo minimalismo cromático, sonoro e objetivo das cenas, contribui para que possamos mergulhar na solidão coletiva de Francisco.  E tal cenário só é quebrado pela ação da casualidade, na tentativa de suicídio, saltando do seu apartamento, captada pela sua câmera, no enquadramento do “pares de pernas” no meio do céu.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O que se coloca, desta maneira, é a apresentação espelhada deste conflito onto-ontológico do mundo de Francisco, ou seja, aquele no qual vive, e do qual não aprecia nem o que vê – a vista para o chão sempre –, muito menos as pessoas com as quais precisa conviver. E, do outro lado existe a projeção da essência das coisas que o mesmo vivencia, do ponto de vista do impacto de significação desta selva de objetos, ambientes e acontecimentos que o rodeia, como, por exemplo, na projeção do mundo que mais se sente à vontade – a imensidão do firmamento –, mas que lhe é impossível e desfrutar tanto de forma perene como cotidiana.

Ademais este primeiro encontro inesperado, ambos voltam a dividir o mesmo lugar no elevador, e, a maneira pela qual o diretor escolhe para representar o desejo de Francisco pela moça, percebendo-a em uma cadeira de rodas, devido à malfadada tentativa de tirar a própria vida, ocorre por meio de uma grande aranha “vestindo” uma calcinha, um capricho simbólico, reforçado por seu deslocamento imagético. Os encontros, pela fotografia e no elevador, irão levar Francisco para o ápice e a queda de seu repentino frisson, na constante e perigosa relação entre a especulação perspectiva e constatação da realidade imponderável.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

AMORES E DESAMORES

A sentença da árvore de pé-de-manga ao lado do banco de Francisco no parque é direta: “É mal de amor que você tem!”. O rapaz encontrava-se laçado pela moça misteriosa, moradora do andar abaixo do seu, com a qual nutria seus hodiernos sentimentos. Por esta razão, em meio à confusão de sentires obscurecidos pela falta dos falares inauditos, escuta a preleção da velha árvore sobre o amor após seus questionamento sobre o tema:

“Sei que é como eu, um pé de manga espada, e também, é igual a qualquer árvore que conheço. O amor nasce de sementes distraídas que brotam ao acaso. E, então, se a morte precoce não as alcança, crescem e ganham força. Em baixo, expandem-se fugindo do sol, enraizando-se no profundo e no escuro húmus subterrâneo. Lá onde está o que não se deve mostrar, nossas fraquezas e medos disformes, nossos defeitos e manias, nossas vergonhas. Lá em baixo está a fonte das horas difíceis e 4 medrosas do amor. Aquelas que ninguém quer ter ou lembrar. Os momentos de deleite do amor são como os galhos que buscam a luz do sol. Acima de tudo, do perigo e da desventura, para o alto crescem diariamente, buscando o calor das boas horas do dia. Lá em cima onde se revela o melhor de nós, folhas verdes em forma de sorrisos e afagos. A copa da frondosa árvore é a boa ventura do amor.”

Embebido nas palavras de seu conselheiro vegetal em acréscimo aos sentimentos pela moça suicida, Francisco toma coragem e envia-lhe um plano detalhado, por meio de um bilhete, para que possam se encontrar, conhecendo-se melhor, já que até então não lhe sobrara coragem ou iniciativa para fazê-lo, devido sua estrema timidez e ostracismo:

“Um: um bilhete convidando a moça para um encontro, que seria no banco da praça, debaixo de um Pé de Manga-Espada. O bilhete foi escrito sobre uma cópia da fotografia do dia que FRANCISCO se mudou para o apartamento. Dois: um mapa de localização do ponto de encontro, com instruções e pontos de referência para que ela não se perdesse e para que fizesse um caminho mais confortável com a sua cadeira de rodas. Três: um exemplar da folha do pé de Manga-Espada para que ela não se engane de árvore.”

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O decurso da cena, que entrelaça o envio do bilhete e a ida de Francisco ao parque para o esperado encontro, nos oferece a dualidade entre a intencionalidade e a causalidade. No primeiro caso, há a tentativa de ação direta nos eventos por parte do personagem principal, e em seguida a alteração desta linearidade planejada de forma incisiva do fator causal:

“Francisco chega ao local combinado, mas encontra seu amigo, o pé de manga espada, cortado. Era uma árvore velha, já com poucas folhas, mas talvez não precisassem tê-la matado. Seja como for, Francisco agora só pensava numa coisa: como a moça iria encontrar um banco debaixo de um Pé de Manga-Espada, se já não havia um Pé de Manga-Espada naquele local? Francisco então pensou no que a velha árvore havia dito sobre o amor. Pensou sobre as raízes, a zona obscura do amor. Pensou que talvez todo o amor seria, um dia, cortado, e só restariam as raízes, lá em baixo, sepultadas em algum buraco de quem amou. E que o melhor seria sair dali rápido, pois, talvez, daria tempo de chegar ao bar do Seu Tião para dar de comer ao Pereba.”

Assim todo o planejamento de Francisco com a moça que tentara o suicídio há poucos dias malogra-se no fatídico fim dado ao pé de Manga-Espada, sua conselheira amorosa e, indiretamente, incentivadora de suas motivações sentimentais. A moça de calças listradas, e tão suicida como as irmãs virgens de Sofia Coppola, estremece os “quandos”, “ondes” e “porquês” do rapaz, alimentando com a esperança da vista superior que mais o agrada – e é assim, que a vê pela primeira vez, em seu incidental e malfadada decisão existencial.

Como visto o diretor do curta-metragem, além de se mostrar um roteirista de mão cheia versa sobre temas intimistas e reflexivos ao longo de sua breve obra. E, por se tratar de uma carreira ainda em fase seminal, pode-se projetar caminhos diversos aos quais seguir em trabalhos futuros, ora investindo mais na profundidade e desenvoltura narrativa, ora na carga sígnica das imagens postas, sobrepostas e em movimento durante seus filmes.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

Talvez haja a probabilidade de encontrarmos cada vez mais introspecção no trabalho de Cata Preta, pois, percebe-se sua narração, apesar das excelentes reflexões e incremento à trama, como um ponto de apoio ao qual se segura. A força de suas imagens, a riqueza de detalhes juntamente com o peso dos temas abordados em seus subtextos certamente não exclui, mas fortalece ainda mais esta pequena obra, singela, profunda e plena de inquietação.

FICHA TÉCNICA

O CÉU NO ANDAR DE BAIXO

Direção: Leonardo Cata preta
Roteiro: Leonardo Cata preta
Produção: Leonardo Cata preta
Gênero: Animação
Ano: 2010
Duração: 15 min

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O Cotidiano Monocular: análise do curta-metragem Le Cyclope de La Mer

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 Cena do curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999

O curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999 é uma produção francesa, que, apesar de não fazer uso de falas, possui uma ampla gama de simbologias visuais em sua breve narrativa, enriquecida por uma rica banda sonora, todos estes elementos ainda são elevados devido à graciosidade da técnica stop-motion utilizada na composição das cenas. No conto acompanhamos a estória de um jovem ciclope que vive isolado num farol de uma ilha, tendo a companhia de suas bugigangas, um peixe solitário e algumas gaivotas. Sua rotina é composta pelos dias neste inóspito local, nas atividades diárias de sua existência, completadas pelo seu labor noturno de projeção da luz do farol no além-mar, trabalho este que é reforçado pela sua própria condição fisiológica monocular, focada diversas vezes pela câmera durante o curta.

Alguns elementos podem ser destacados na construção da narrativa de Le cyclope de la mer, que aumentam o seu grau dramático e existencial, assim como em outras obras similares. Trata-se da presença do mar como metáfora da imensidão do mundo e pequenez da imanência, a ilha como símbolo máximo do isolamento resultando em olhares, trejeitos e situações de melancolia (vide o foco ao momento de ir para cama do ciclope, ou seus hábitos cotidianos, acompanhados pelos gritos dos pássaros apenas) e a figura do farol, numa icônica referência à vontade de comunicação com o exterior, em dialogia ao único olho do personagem principal da obra.

Outro ponto que merece destaque na animação é o apuro com a trilha sonora, que consegue passar ora tenuemente ora mais tempestivamente as emoções e situações as quais o ciclope, personagem título da obra, perpassa durante os poucos minutos da projeção. Dentre estas melodias podemos destacar a intensa Une Destruction Aveugle e as profundas Matin Mécanique e Divertissement De Poisson, compostas pelo galardoado músico Yann Tiersen, autor de outras trilhas fílmicas memoráveis como as dos filmes Le Fabuleux Destin D’Amelie Poulin (2001) e Goodbye Lenin! (2003).

De forma similar a animações, igualmente premiadas, como o japonês A casa dos pequenos cubinhos (2008) e, em certo ponto, até com o brasileiro Trancado por dentro (1989), o pequeno conto do ciclope isolado numa ilha nos traz mensagens de reflexões existenciais profundas. Tais subtextos podem perpassar desde o manuseio e construção de suas ferramentas e residência, a interação com os elementos naturais que o cercam, a expectativa de locução com outrem além-mar, a perseverança na manutenção de sua rotina ostracista, dentre outros.

A chegada de uma tempestade anuncia o evento da causalidade na pacata rotina do ciclope, que em composição com a banda sonora da projeção contribui para aumentar o apelo dramático desta passagem, que magistralmente se inicia com uma iniciativa de replicação do farol em miniatura no interior do aquário, após uma fatídica tentativa de suicídio por não se adaptar ao ambiente mimético construído pelo ciclope. E, após a turbulenta noite entre trovões e açoites das águas, o dia apresenta o cenário de destruição que assola o farol. Dentre móveis, esculturas e demais destroços de estilhaços da mimese criada pelo personagem central vemos o principal impacto provocado casualístico da noite pregressa, a cegueira do Ciclope, que será aprofundada metaforicamente nesta segunda parte do curta.

Após o esporro vindo dos céus a quietude reversa do respectivo evento. Dentre as decisões a serem tomadas pelo protagonista ocorre inicialmente a libertação do seu companheiro de solidão marítima. E mesmo com sua atual condição, ou seja, a perda de sua visão, que o absorvia da realidade solitária em que vivia, o ciclope utiliza os elementos da destruição para a realização de uma fogueira final, a qual se encerra com um distanciamento perspectivo do farol no imenso mar noturno.

Se se pode enaltecer uma alegoria mais enraizada na temática existencial do curta-metragem esta pode ser escolhida como sendo a da visão, e o personagem principal em sendo um ciclope justifica tal recurso narrativo para interpretação dos apreciadores da mensagem do breve filme. Deste modo, aquele que sempre buscava um contato com o mundo pelo olho luminoso do imenso farol acaba por perder o seu próprio farol, num momento de descobrimento do seu próprio eu interior, a alvura de sua cegueira não deixa de ser inquietante neste aspecto, fazendo um diálogo luminescente entre esta e os raios luminosos do farol em alto mar.

Por fim, a solidão ou o estado de estar sozinho como muito bem retratado no curta-metragem de Jullien traz à tona uma velha discussão, àquela na qual o ser humano, ou neste caso o ciclope, mesmo exercendo um esforço de isolamento frente à sociedade, acaba por buscar alguma forma de interação ou partilha com outros entes, mesmo que de forma subjetiva ou projetiva, como é o caso do cuidado diário com o farol da ilha.

Por possuir camadas metafóricas consideráveis, Le Cyclope de la Mer, sugere múltiplas interpretações, das quais, podemos sugerir ao invés da titulação desta pequena resenha, avistamento, haja o seu contrário, o ocultamento do mundo de si, por opção próprio Ciclope, que após todos os eventos que suscitaram o estremecimento de seu esmerado mundo, o mesmo escolhe por manter a seu enclausuramento, potencializado por sua derradeira condição de privação do aspecto fisiológico que o define, a visão.

 

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

LE CYCLOPE DE LA MER

Diretor: Phillippe Julien
País: França
Música: Yann Tiersen
Duração: 13 minutos
Ano: 1999

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