Yoga é aliada da Psicologia como Prática Integrativa e Complementar

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Há vários estilos de yoga, e a técnica vem sendo usada por profissionais da saúde como um importante aliado para a mudança de estilos de vida e promoção da saúde – sobretudo a saúde mental

Uma das técnicas de meditação que envolvem aspectos psicofísicos – e espirituais/integrais – mais conhecidas no ocidente, hoje, é o yoga. Trata-se de uma prática originária da Índia, fortemente ligada as tradições hindus e muito difundida no Brasil, Europa e EUA a partir do Vedanta, um conjunto de crenças que busca o despertar espiritual através das ações do cotidiano – que são sacralizadas.

Há vários estilos de yoga, e a técnica vem sendo usada por profissionais da saúde como um importante aliado para a mudança de estilos de vida e promoção da saúde – sobretudo a saúde mental. Neste sentido, o yoga compõe o mix de opções ofertadas pelas Práticas Integrativas e Complementares do SUS – Sistema Único de Saúde, por se entender que o modelo biomédico/biologicista, centrado na medicalização, não consegue atender as demandas apresentadas pelos sujeitos contemporâneos.

Dentro das linhas de yoga há a Kundalini Yoga, que em Palmas é ofertada pela professora Hari Kiran Kaur (Márcia Finelli), uma egressa do Ceulp/Ulbra do curso de Fisioterapia. Hari Kiran Kaur é certificada pelo Internacional Kundalini Yoga Research Institute com aperfeiçoamento em Nível II, Módulos: Ciclos de vida & estilo de vida; Mente e meditação; Comunicação Consciente; Estresse e vitalidade.

De modo resumido, a Kundalini Yoga é uma ciência milenar voltada para a arte de lidar com a expansão da consciência, a partir do despertar da energia Kundalini, composto sutil bioenergético situado na base da coluna. O esforço dos praticantes é fazer subir esta energia pela coluna, a partir de posturas físicas (asanas), intervenções na respiração, além do uso de mantras, dentre outras coisas.

Neste contexto, o Yoga vem sendo cada vez mais usado por profissionais da Psicologia para auxiliar nas intervenções clínicas – sobretudo a partir de abordagens como a Psicologia Junguiana e a Psicologia Transpessoal –, bem como em ações com grupos. Para falar mais sobre este tema, o (En)Cena entrevistou a professora Hari Kiran Kaur. Confira abaixo.

(En)Cena – Quais as contribuições do Yoga para os processos terapêuticos?

Hari Kiran Kaur – O Yoga nos traz a consciência, nos ensina a controlar nossa mente, é um processo de cura para qualquer pessoa e qualquer tipo de doença. Estatisticamente falando 90% das pessoas têm uma mente negativa; se não há um equilíbrio entre as mentes positiva, negativa e neutra, são criadas limitações que geram frustrações que podem se manter internalizadas em nosso subconsciente, levando a algo físico. Nossos pensamentos são primordiais para nossa saúde. Yoga é uma ferramenta importantíssima para gerar o equilíbrio, auxiliando para a diminuição ou extinção de um processo de ansiedade, síndromes de pânico, depressões, onde o aluno passa a tomar consciência da sua responsabilidade no seu processo da própria cura. Se a pessoa não se curar, não vai ter ninguém que poderá fazer isso por ela.

(En)Cena – A psicologia bioenergética e a transpessoal já usam muito o Yoga como suporte/complemento. É possível desvencilhar a prática de seu caráter espiritual?

Hari Kiran Kaur – Desbravando mais uma vez o tema Mente, memórias de um subconsciente carregado por toda nossa vida e com respostas sendo concretizadas na matéria (no corpo como doenças), o Yoga vem nos mostrar e conscientizar que o que o homem vem fazendo consigo mesmo o torna extremamente superficial. Construímos um poder que rodeia o indivíduo. Por exemplo, sempre fazemos as seguintes perguntas: Quantos carros você tem? Quantas casas você tem? Quantos namorados você tem? Que roupa você veste?

O homem está buscando Deus fora de si. O Yoga veio para unir o individual da consciência com a consciência infinita. E a partir da procura deste aluno ou paciente, entra o propósito que ele busca na prática. Mas tornar esta prática espiritual dependerá da crença de cada um. Torna-se possível desvencilhar sim, mas depende de qual linha este aluno irá seguir e como será seu olhar. Segundo a psicóloga Priscila Sobral, as pessoas vão em busca do que faz sentido para elas. ‘Às vezes elas entram em um espaço de Yoga com várias estátuas de deuses Hindus, não se sentem bem… outras pessoas já acham que aquilo faz parte da decoração… tudo vai do que estas pessoas procuram’. As pessoas às vezes confundem o estilo de vida com a religião.

(En)Cena – Você acredita que os terapeutas já focam em intervenções psicofísicas, ou ainda se negligencia o corpo?

Hari Kiran Kaur – Ainda existe uma negação de muitos. Lembro-me do início da acupuntura aqui no Brasil, muitos médicos eram irredutíveis em indicar ao paciente este tipo de tratamento; hoje eles querem o tratamento só para a área da medicina. As mentes estão se abrindo, todos estão conseguindo visualizar a mudança na mente e no corpo. E o acesso que temos via internet está muito fácil, hoje podemos estudar sobre tudo, o que nos limita realmente é a falta de conhecimento. Temos aí um bom livro como, por exemplo, “O Segredo” de Rhonda Byrne, que fez mudar o pensamento de muitas pessoas, temos a física quântica dando sua cara, a Nova Medicina Germânica e por aí vai.

(En)Cena – Em sua opinião é possível ser psicólogo e ser yogi?

Hari Kiran Kaur – É possível ser de qualquer área profissional e ser um yogi.

(En)Cena – O Yoga serve para quem? Há contraindicações?

Hari Kiran Kaur – Yoga é para todos e para todas as idades, não existe contraindicação; alguns exercícios devem ser evitados, por exemplo, em caso de gestantes, temos exercícios que aceleram processos de contrações, mas tudo isso vai ser indicado e todo o cuidado será orientado através do professor. Assim como alunos que apresentem hérnias discais podem fazer Yoga, mas a orientação será primordial para que não haja lesões ou agravamento do quadro clínico.

Quando o aluno entra na sala pela primeira vez, ele não consegue fazer todas as poses, o ganho é gradativo, em longo prazo, mas orientamos que eles fechem seus olhos e se visualizem na pose, este já é um estímulo dado ao cérebro que dará o retorno desejado.

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A abordagem existencialista de Sartre na superação da alienação do sujeito

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O Existencialismo de Sartre e os estudos focados no existencialismo trazem grandes contribuições para a humanidade com melhorias na qualidade de vida do homem. Partindo deste princípio mostraremos um breve contexto histórico de sua vida e uma centralização ao seu entendimento, O existencialismo é um humanismo, elucida de forma clara e sucinta a compreensão do tema proposto.

Gonzaga Godoi Trigo (2012), afirma que Sartre destrói o conceito criado no século XVIII sobre a natureza humana onde a essência do homem que precede sua existência; para este filósofo exemplar acontece o contrário: a existência precede a essência, para Sartre o homem sempre será o que tiver projetado ser. As pesquisas sobre a vida e obra deste filósofo nos apresentam os principais pensamentos do autor, dentre eles a liberdade, a responsabilidade, a angústia, a natureza humana, a verdade e a má-fé e sua opção pelo ateísmo.

A existência da subjetividade e sua importância para o desenvolvimento humano harmonicamente condiz com a interação da liberdade e autenticidade de nossos comportamentos. Diante disso e abordando a temática sobre a superação da alienação do indivíduo, as intervenções psicológicas atuam promovendo saúde e prevenindo doenças psicopatológicas seguidas da terapia existencialista sartreana. O que proporciona confiança aos pacientes, familiares, educadores e profissionais psicólogos. Num contexto geral, Trigo (2012, p. 74,88), considera o Existencialismo Sartreano uma temática significativa dimensionada muito além de textos acadêmicos, mas vastamente em literaturas, romances, filmes, contos ou peças. Suas influências direta ou indiretamente produziram obras fundamentadas nesta corrente filosófica.

Fonte: https://goo.gl/57hi8Q

O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo […] o homem será apenas o que ele projetou ser (SARTRE, 1970, p. 3). Em Existencialismo um enfoque cultural (Trigo,2012), nos é apresentada uma breve descrição deste filósofo contemporâneo Jean Paul Sartre (1905-1980), nascido na França, homem livre e polêmico identifica sua defesa na separação total do Existencialismo de conceitos idealistas, considerados para Sartre como nossas evasões, fugas ou abandono para um alívio à busca do perturbador processo do existir.

Ao longo de sua trajetória intelectual foram muitas as críticas que perseguiram o filósofo e por muito tempo, no entanto assim a sua defesa sobre O existencialismo é um humanismo (Sartre, 1945), na conferência realizada na cidade de Paris possibilita Sartre definir o humanismo como base estrutural e de abordagem predominante sobre o se Existencialismo contrapondo e reprimindo inúmeras críticas marxistas e cristãs sobre a trajetória desta sua conduta.

Dois principais grupos lideraram suas perseguições, os marxistas (comunistas) e os cristãos. Os marxistas presumiam o Existencialismo responsável a instigar as pessoas de permanecerem no imobilismo do desespero, o acusando de uma filosofia contemplativa voltada a um tipo de pensamento da burguesia evidenciando a vergonha humana. Os religiosos cristãos a acusação estava pautada em que o Existencialismo de Sartre, negava a realidade e seriedade aos entendimentos humanos e a sua falta de essência espiritual extinguia os mandamentos de Deus; se os seus valores contemplariam apenas a pura gratuidade, onde cada um poderia então fazer o que bem entender, isto impossibilitaria a partir de um ponto de vista pessoal a condenar os pontos de vistas de outros seres baseados nos princípios morais da igreja católica.

Contrapondo e ponderando estas acusações, Sartre (2014, p.33) evidencia que o existencialismo não poderia ser considerado uma filosofia do quietismo, o existencialismo sartreano define o homem pela ação. Esta reflexão apresenta um homem que se faz com uma ação “engajada” e primordial na construção da sua personalidade, tornando o indivíduo o próprio condutor da sua ação “isolada”, ao designar o que vai escolher para a formação do seu ser, do seu eu. Na concepção de Sartre o Existencialismo tratava-se de uma doutrina que tornava a vida humana possível fundamentada na verdade e ação existindo no entanto uma subjetividade humana em construção, o que de fato originava dois tipos de existencialismos: O Cristão e o Ateu. Considerava o Ateu um existencialismo mais coerente e ponderava sobre  a existência de um ponto de concordância entre os existencialismos, a essência. No entanto para o cristão a essência precede a existência e para o ateu a existência precede a essência sendo necessário partir de uma subjetividade.

Assim se manifesta um comparativo de Deus, sendo este o artífice do homem e o homem o construtor da sua essência, do seu querer, do seu eu perante as suas realizações. Para Sartre então seria impossível existir a essência antes da existência, se assim o fosse, ocorreria uma oposição total ao conceito da subjetividade. Sendo assim, o existencialismo ateu defendido por Sartre como o mais correto, declara que Deus não existe e que a natureza humana não existia também pois não teria um Deus para concebê-la, pelo fato de que a existência viria antes da construção do ser. O que existiria seria a ideia de destino, um plano para o que devo ser. Esta ideia pressupõe que sejamos determinados a ser algo definido em nosso destino, e para a filosofia existencialista isto não existe, nascemos o nada e o que viramos a ser depende de nossa existência.

Não há destino, não há Deus, não há uma natureza que me imponha como devo ser, como devo agir, não existe uma ética pronta previamente colocada a qual devemos simplesmente seguir. Primeiramente é necessário o ser existir para depois ser definido por algum conceito, de modo que o homem se descubra. Pois ao nascer nada, a nossa frente se coloca uma diversidade, uma multiplicidade de coisas, de valores e formas que podemos ser. Segundo Sartre, o primeiro esforço do existencialismo, é colocar o homem no domínio do que ele atribui a total responsabilidade de sua existência. Assim, afirma que o homem não é responsável por si, ele também é responsável por todos os homens.

Estes sentimentos e estas emoções até então envolvidas nesta literatura cogitam nossos pensamentos e trazem questionamentos para a nossa vivência, poderíamos indagar situações como: vivemos nossa vida? Vivemos a vida como escolha ou vivemos o que outros escolheram? Se vivo motivado por escolhas alheias então não pratico minha liberdade, não estou vivendo! Sou um covarde, pois “o homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos” (SARTRE, 1970, p. 9).

Partindo do seu princípio, Sartre não acredita em uma receita para a vida, quando copia-se um modelo, o indivíduo não torna-se si mesmo, mas sim um ser influenciado e moldado por outras pessoas, renuncia sua liberdade e assume um papel pronto na sociedade, um comportamento definido pelo que se chama de má-fé. O que é possível nessa relação é usar de inspirações para criar-se a si mesmo. Em sua análise de ‘‘subjetivismo’’ Sartre encontra dois significados: A escolha do sujeito individual por si próprio; e ser impossível o homem impor limites a subjetividade humana. Entretanto ao focalizar o princípio de sua existência, onde todos querem existir ao mesmo tempo a responsabilidade é bem maior que poderia supor, porque ela abarca a humanidade inteira.

Ao analisar o principal sintoma deste posicionamento o existencialismo define um homem livre, liberto, condenado a liberdade. Um ser humano que é lançado ao mundo e desde então responsável por tudo que ele fizer a partir disso. Perante esta conduta se configura o sentimento de desespero. O desespero está envolvido na sua consciência, e quando o indivíduo se der conta que ele não é apenas o que ele escolheu ser, mas também condutor de seus valores, significados, suas metas e suas visões de mundo na qual escolhe a si e também a humanidade inteira, não consegue escapar da sua total responsabilidade, profundamente envolvida pelos sentimentos de angustias e desamparo, seria como se a humanidade inteira fossem os olhos fixos a cada homem com suas opções regradas.

O indivíduo é um sujeito questionador, e ao ter em mente sobre o que seria melhor para si, para o homem que nasce nada e vai se construindo ao longo da vida, encontra um ser atormentado pela responsabilidade e angústia. Ao defender a liberdade e a autenticidade de cada ser humano como essenciais que ao invés de consumir éticas pré definidas e defende seus próprios valores existe uma clareza que se permite ao indivíduo usar inspirações para criar-se a si mesmo.  Evidentemente podemos concordar, gostar nos apropriar de um valor já existente, “mas” isto cabe a nós.

O desespero, desamparo, o medo faz com que todos sofram essa angustia. E ao tentar disfarçar, livrar-se desta angústia o homem age de má fé, isto é, se identifica com uma forma pronta de comportamento e copia esta forma. Nesta situação surge um sujeito que se desculpa ou mente, isto demonstra que ele não está em paz com sua consciência, pois não está sendo o agente da construção de sua vida. Má fé implica um valor universal na qual se atribui a mentira porque mesmo disfarçando, a angustia aparece. Má fé é a renúncia a própria liberdade assumindo um papel pronto na sociedade ou atribuindo suas escolhas a fatores externos, é voluntariamente renunciar a sua liberdade de auto construção e assumir um papel pronto na sociedade e em outra situação muitas vezes você abandona seu eu e ainda culpa os valores externos.

No existencialismo sartreano esta angústia é confrontada com a verdade.

“Não é possível existir outra verdade, como ponto de partida, do que essa: penso logo existo, é a verdade absoluta da consciência que aprende a si mesma. Toda teoria que assume o homem fora desse momento em que ele apreende a si mesmo, é antes de qualquer coisa, uma teoria que suprime a verdade, pois fora deste cogito cartesiano todos os objetos são apenas prováveis, e uma doutrina de probabilidades, que não é elevada a uma verdade afunda no nada, para definir o provável é preciso possuir o verdadeiro. Portanto, para que exista uma verdade qualquer, é preciso uma verdade absoluta; e esta é simples e fácil de atingir, ela está ao alcance de todo mundo; e consiste em aprender-se sem intermediários.” (SARTRE, 2014, p. 33,34)

Tendo assim a verdade como uma das bases, representando o substrato motivador da teoria existencialista, pelo fato de não se aglutinar “a um conjunto de belas teorias” que apresentassem esperanças mas sem um fundamento real. Evidencia a esta  verdade dita como absoluta porque parte do princípio que a consciência aprende a si mesma e fora do cogito cartesiano, todos os objetos serão apenas prováveis.

Na discussão da conferência de Paris, diante a uma pergunta relacionada ao seu trabalho publicado no Action sobre o desespero e desamparo encontra-se uma ressonância muito mais forte em um texto existencialista, onde esta filosofia se fundamenta quando vivenciada para ser verdadeira e sincera. Para Sartre, sua “filosofia desce as praças públicas”, esta metáfora por ele dita é direcionada ao comportamento do próprio Marx que vulgariza seu pensamento. Nesta mesma discussão ao final da conferência de Paris, levanta a questão onde o fato do indivíduo humano viver no mundo, depende de certas verdades adquiridas, e acrescenta questionando de onde vem a certeza da verdade absoluta, na ocasião considerada por ele, inexistente. Outro ponto reforçado é sobre a natureza humana, que dentro da existência de um indivíduo, cada época se desenvolve seguindo leis da dialética, mas depende da época e não da natureza humana.

Levando em consideração a relevância sobre a abordagem existencialista de Sartre, linhas teóricas no campo da psicologia clínica investigam sobre alguns fenômenos psicológicos encontrados no existencialismo, ao colocar o objetivo de ser da pessoa em suas próprias mãos, esta postura torna o sujeito responsável de sua própria vida e sua história. (RIBEIRO, SHNEIDER,2006.)

“A tarefa da ciência psicológica deve ser, portanto, investigar as condições de possibilidades de certos fenômenos de ordem psicológica ocorrerem, considerando-os em suas essências específicas, suas variáveis constitutivas, seus significados (Sartre, 1939). Sendo assim, a psicologia clínica, cujo objeto é a personalidade e a psicopatologia do paciente, para ser científica, em sua teoria, em seu método e em seus procedimentos, deve investigar quais as condições de possibilidade para um sujeito chegar a ser quem ele é, ou seja, como chegou a constituir-se determinada personalidade, sustentada em um projeto de ser específico, esclarecendo como foi que se complicou psicologicamente. Deverá, assim, poder especificar, em sua história, os contextos antropológicos (cultural, material) e sociológicos (rede de relações e de mediações de ser) que forneceram as condições de sua personalização e psicopatologização’’ (RIBEIRO, SHNEIDER,2006, p.8)

A postura da psicologia clínica diante desta investigação, traz uma constatação interessante de Pretto e Langaro (2012, pag. 1029) ao utilizar este recurso na construção da subjetividade em uma criança. Trata-se de um estudo de caso sobre a história de Pedro, 7 anos de idade, que é levado a uma clínica psicológica pela sua mãe justificando ele ser um menino agressivo, volúvel e de humor instável. Mãe e filho participam atentamente das sessões e tem papel fundamental na intervenção existencialista o qual ofereceu bases para os reflexos sobre a criança e a mãe e o desdobramento para a constituição dos sujeitos.

Fonte: https://goo.gl/AFudo7

No processo de desenvolvimento do artigo analisado, Pretto e Langaro (2012) em base ao depoimento da mãe descrevem que ela sentia angústias em determinadas situações quando encontrava dificuldades em dizer não aos seus filhos por medo de frustra-los e ao mesmo tempo tentava controlar suas ações e as reações, como uma forma de induzi-los a agirem de forma dentro das suas escolhas e com isto futuramente não sofreria tanta angústia.

“Relacionados a responsabilidade que os indivíduos têm com relação aos seus projetos e também com os projetos de ser dos demais. Ambos puderam, então, compreender que escolher para si implica escolher também para o outro, e, além disso, para o contexto social mais amplo, tendo em vista que os sujeitos são sempre seres em relação e que constituem sua personalidade a partir da subjetivação da exterioridade criada também a partir da objetivação que fazem de sua subjetividade, em um processo dialético de construção individual e social.”  (PRETTO, LANGARO, 2012, p.1036)

Verificado que quando a criança refletiu criticamente sobre si mesma, fez mais do que assumir o que lhe foi imposto, superando-se para se situar em um determinado horizonte. Nesta situação é perceptível o efeito do Existencialismo. Pretto e Langaro (2012), estabelecem a superação da alienação daquela criança à partir das histórias e das relações estabelecidas com a exterioridade, e não apenas ver ali um indivíduo que buscaria na psicoterapia a resposta para suprir suas dificuldades, suas lamentações. Esta observação permitiu aderir a diversidade dos fenômenos ao qual foram trabalhados na terapia considerando que o homem será um eterno vir a ser numa projeção para o futuro.

Consideração Finais

O existencialismo de Sartre e as reflexões filosóficas de sua obra, O Existencialismo é um humanismo, apresenta um sincronismo com nosso desenvolvimento, ao afirmar que o ser humano não é nada no seu início, mas se torna algo com sua vivência e com o que escolhe para si mesmo. O homem tem total retenção da responsabilidade de sua existência, mas não apenas para o ser, único, e sim pela humanidade, ou seja, por todos os homens. Para o homem não existe natureza determinada e sim uma construção do ser, não existe algo pré-estabelecido e o fato de sermos humanos nos concebe sentir e vivenciar emoções dentro de uma responsabilidade consciente que diretamente esta imunizada, assegurada pela verdade.

As discussões e críticas sobre a conduta sartreana projetam as mais variadas perspectivas do desenvolvimento humano e define a existência da sua subjetividade. As intervenções psicológicas embasadas no existencialismo de Sartre, atingiram a superação do sujeito resgatando o mesmo da sua alienação com aspectos de grande relevância sobre a formação, desenvolvimento, definição e entendimento da personalidade humana.

REFERÊNCIAS

GONZAGA GODOI TRIGO, Luiz.  Existencialismo: um enfoque cultural: O existencialismo sartreano. In: GODOI TRIGO, Luiz Gonzaga. Existencialismo: um enfoque cultural. Curitiba: Inter Saberes, 2012.cap. 2, p. 52-91.

PRETTO, Zuleica; LANGARO, Fabíola. Pais e Filhos em Psicoterapia: O atendimento clínico com uma criança. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=282025530019>. Acesso em: 25 fev. 2017.

RIBEIRO SCHNEIDER, Daniela. Novas perspectivas para a psicologia clínica a partir das contribuições de J. P. Sartre. Disponível em: <http://revistas.ufpr.br/psicologia/article/view/5764>. Acesso em: 27 fev. 2017.

SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um humanismo. 4ª.ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 62 p.

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A Cabana: você perdoaria?

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Após perder a sua filha mais nova, Mack Allen Phillips vive atormentado. Além da provável morte trágica, já que houve sinais de que ela teria sido violentada e assassinada, o corpo da menina nunca foi encontrado. Passaram-se anos e a família nunca mais foi a mesma, até que Mack recebe uma carta misteriosa que fará com que ele receba uma lição de vida e tudo muda na vida dele.

Fonte: http://zip.net/bwtKrH

A história de “A Cabana”

A Cabana é um livro escrito em 2007 pelo autor William P. Young. A história fez tanto sucesso que rapidamente se tornou um Best-seller, chegando a vender mais de 18 milhões de cópias. O livro aborda uma questão bastante comum na vida de todos, a existência do mal.

Mack Phillips é um personagem que vive em uma tristeza profunda após perder sua filha de seis anos, Missy (Melissa). A menina foi sequestrada durante um acampamento que ele fazia com seus três filhos em uma reserva na cidade de Joseph, no final de semana. Embora as buscas tenham sido constantes, o corpo da criança nunca foi encontrado.

Porém, a polícia conseguiu encontrar, em uma cabana abandonada nas montanhas, sinais de que Missy havia sido violentada e assassinada. Passado três anos e meio após o acontecimento, Mack e sua família nunca se recuperaram do ocorrido. Em especial Mack, que ficou imerso em uma dor profunda, entregando-se a uma tristeza sem fim. Foi então que o pai recebe uma carta misteriosa que parece ter sido escrita por Deus.

Na carta ele é convidado a voltar para a cabana, onde o personagem tem um encontro especial com Deus. Lá, ele irá encontrar a resposta para a sua dor, assim como também para a questão que tanto o atormenta, ou seja, ele não aceita o fato de que Deus é tão poderoso e tenha deixado a sua pequena Missy morrer cruelmente.

Fonte: http://zip.net/bmtKPj

Deus, Jesus e o Espírito Santo ajudam Mack a compreender os tristes episódios de sua vida, levando-o a ser uma pessoa mais compreensiva, sem rancor e sem tristeza. Após trabalhar esses aspectos na vida de Mack, libertando-o ao perdão, Deus ajuda o pai da menina a encontrar o seu corpo, cumprindo assim a sua última missão, ou seja, de poder enterrar o corpo da filha.

Antes de “voltar” para a casa, Mack tem direito a escolher ficar com Missy ou voltar para a sua família, que tanto precisa de sua ajuda. Ele percebe que, em especial, a sua filha mais velha Kate Phillips é quem mais precisa dele. Isso porque a garota se culpa pela morte da irmã, já que na história, ela quem causa a situação onde o pai se afasta de Missy.

Então, Mack decide voltar para a casa e ajudar a sua família. No caminho ele sofre um acidente. Após o acidente de carro e acorda em um hospital, onde lhe é revelado que ele nunca chegou a voltar à cabana. E tendo certeza de tudo o que lhe aconteceu, ele contacta as autoridades, revelando o seu “sonho” e mostrando o local onde o corpo da criança está. Isso contribuiu para que os policiais conseguissem encontrar também o corpo de outras meninas, mortas pelo mesmo assassino de Missy.

Passado algum tempo, os policiais seguem as pistas encontradas no local onde foi encontrado o corpo da menina e chegam até o assassino de meninas. O pai então vai ao julgamento do “matador de meninas”, onde explica a todos como encontrou o local onde estava o corpo de sua filha, comovendo a todos ali presente.

A história do livro é passada igualmente no filme, que já rendeu mais de 1 milhão de expectadores só no Brasil.

O processo de enlutamento

Podemos dizer que o enlutamento possui 5 fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. O personagem Mack Allen Phillips vive exatamente essas fases, onde a negação vem com o não desejar saber e o não aceitar, se isolando e até mesmo não falando sobre a sua dor.

Já a raiva é nitidamente demonstrada por ele diversas vezes, ao entrar em desarmonia psíquica em relação a dor da perda, se recuperando apenas ao final do filme. A negociação podemos ver quando o personagem tenta voltar ao como era antes de tudo acontecer. Depois, podemos sentir o quanto o personagem fica depressivo em várias cenas, devido a falta que sua filha faz e ao fato de não ter “conseguido” protegê-la, se culpando o tempo todo. E a resiliência é quando Phillips consegue aceitar essa nova condição e dar o perdão, libertando-se da culpa e dor que o consumia.

O filme nos mostra o quanto somos levados a incertezas e lutos, nos passando a certeza de que, embora não possamos nos desviar da dor, podemos encontrar o melhor caminho para prosseguir, mesmo com ela.

Curiosidade:

Você sabia que na cidade Joseph, nos Estados Unidos, existe um parque como o narrado no livro e filme “A Cabana”? Estamos falando do Parque Estadual “Wallowa Lake State Park. Ele oferece atividades variadas, com passeios a cavalo, trilhas, passeios de barco, mini-golfe, canoagem, bonde que vai até o topo da montanha, vida selvagem abundante e, é claro, área para campistas.

Fonte: http://zip.net/bbtKP1

Se você tem interesse em conhecer o lugar, não se esqueça de levar o seu guia mundial para campistas, afinal, para experimentar a vida selvagem, você precisa seguir algumas regras e aproveitar algumas dicas.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A CABANA

Diretor: Stuart Hazeldine
Elenco: Sam Worthington, Tim McGraw, Octavia Spencer, Radha Mitchell;
Ano: 2017
País: Estados Unidos
Classificação: 12 anos

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A Vida de Brian: a incomunicabilidade produzindo a religião e a política

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“A Vida de Brian” (1979) do grupo inglês de humor Monty Python é um filme que não só se tornou atemporal como, depois de 38 anos, ganhou novas leituras. Paradoxalmente, com a expansão das novas tecnologias de comunicação como Internet e redes sociais. Por que? Porque o filme explora a incomunicabilidade humana: Religião e a Política como subprodutos da mentira, ilusão e ideologias que sempre tentam justificar algum mal entendido resultante da radical incomunicabilidade da espécie: o fato de que cada um vê o que quer ver e ouve o que quer ouvir.

Brian é confundido com o Messias e passa a ser perseguido não só pelos romanos como também por uma multidão de seguidores que veem nele apenas aquilo querem ver. Pedem de Brian um “sinal” da sua suposta divindade. Não importa o quanto Brian se esforce para tentar desfazer o mal entendido. Involuntariamente criou uma nova religião. E o que é pior: a multidão está ávida por um mártir que morra por ela na cruz…

Certamente Jesus de Nazaré gostaria do filme Vida de Brian (1979) da trupe de humor inglês Monty Python. Afinal, Jesus tinha senso de humor, manifestado em trocadilhos ocasionais na Bíblia como, por exemplo, “É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino do Céu”. Ao contrário dos seus seguidores: na época do lançamento do filme, muitos representantes de religiões, sejam protestantes ou católicos, acusaram o filme de blasfemo e o grupo inglês de herege.

O filme chegou a ser banido em muitas cidades dos EUA. Apesar disso, A Vida de Brian não zomba da vida de Cristo, mas de um certo “Brian de Nazaré” que nasceu no mesmo dia e num estábulo vizinho ao recém-nascido famoso e aureolado. Aliás, no filme, Cristo aparece apenas duas vezes, sempre de passagem: na cena inicial como o vizinho famoso de Brian e na sequência do Sermão da Montanha. Diante de uma enorme multidão reunida, alguém se queixa: “Não consigo ouvi-lo! O quê ele disse?”. “Parece que ele disse que os gregos herdarão a Terra… e bem aventurados os produtores de queijo…”, alguém responde.

Depois de décadas, esse humilde blogueiro teve a oportunidade de voltar a assistir A Vida de Brian, o segundo longa do grupo depois do Em Busca do Cálice Sagrado (1975). O que me surpreendeu é que, 38 anos depois, o filme comprovou não só ser atemporal como também parece ter se renovado com o tempo ganhando novas leituras dentro do contexto cultural atual. Ao contrário de humoristas da mesma época que acabaram ficando datados como, por exemplo, as paródias de Mel Brooks (O Jovem Frankenstein, SOS Tem Um Louco no Espaço ou História do Mundo Parte 1).

Bem diferente, A Vida de Brian parece ter ganho ainda mais força paradoxalmente devido a posterior expansão das tecnologias de comunicação: TV digital, Internet, redes sociais etc. Apesar de toda banda larga tecnológica, o grande problema humano ainda é a incomunicabilidade. Algo parecido com o “ruído” do “telefone sem fio” da sequência do Sermão da Montanha no filme.

Como não poderia deixar de ser, tudo se passa sob o domínio e arbitrariedades do Império Romano que oprime o povo judeu. O filme acompanha a vida de um zé-ninguém chamado Brian Cohen (Graham Chapman) e a sua mãe Mandy Cohen (Terry Jones): ranzinza, autoritária e materialista, que o trata como fosse ainda uma criança. Toda a narrativa é como se fosse um acúmulo de mal entendidos, ruídos e enganos que vão se amontoando até chegar ao caos final. Já na primeira sequência o filme já dá o tom: os três reis magos entram no estábulo errado e acham que o recém-nascido Brian é o Messias. Sua mãe os trata como fossem bêbados pedófilos até que descobre que querem presenteá-lo com ouro, incenso e mirra. Ela fica com os presentes enquanto os magos rezam para o messias errado.

Claro que depois os reis magos descobrem o engano, empurram a mãe de Brian e retomam a força os presentes, enquanto o pobre bebê é esbofeteado pela mãe frustrada por não aguentar mais ouvir tantos choros, além de ter perdido os valiosos presentes. A Vida de Brian nos mostra como essa série de enganos (produzidos pela incomunicabilidade humana) se espalha não só pela infeliz vida de Brian, mas também se alastra na Política, na Religião e no Poder. É o ápice do senso de humor do grupo Monty Python: non sense, cinismo e humor negro – a capacidade de através do humor abordar temas muito sérios. De como o riso cínico pode desconstruir uma realidade aparentemente sólida e racional.

Após a impagável sequência inicial do engano dos três reis magos, acompanhamos Brian aos 33 anos, preocupado com sexo, em dúvidas se é realmente atraente para as mulheres e complexado pelo seu nariz grande. Chateado de ser ainda um filhinho da mamãe trintão, Brian vê a chance de ser alguém e se livrar da possessão materna: juntar-se à Frente Popular da Judéia, uma célula terrorista que pretende minar a dominação dos romanos sobre o povo judeu. O grupo planeja a ação mais ousada: sequestrar a esposa de Pôncio Pilatos. Mas na ação no subsolo do palácio de Pilatos, dão de frente com outro grupo terrorista que teve a mesma ideia.

Resultado: todos começam a brigar entre si enquanto, incrédulos, os soldados romanos observam esperando todos lutarem até cair para depois levar todo mundo preso. Brian é capturado e levado na presença de um impagável Pôncio Pilatos (Michael Palin) com língua presa (troca constantemente o “r” pelo “l”) e inseguro por perceber que os soldados o ridicularizam pelas costas. Enquanto Pilatos ameaça punir os soldados que o ridicularizam, Brian escapa e pula de uma janela, para cair em um beco onde estão diversos candidatos a “messias” fazendo discursos. Cada um com seus seguidores, todos tolerados pelos soldados romanos.

O Messias involuntário

Brian então finge ser mais um candidato a messias para passar desapercebido pelos romanos. Inventa um discurso qualquer e… pronto! Um pequeno grupo se forma para ouvi-lo. Brian fala de forma desconexa, preocupado com os soldados que o procuram e sai correndo, deixando incompleta uma frase. O pequeno grupo, que vira uma multidão, vai atrás de Brian, pedindo que complete a frase. Todos acreditam em algum desfecho de frase místico ou profético. Pronto!

A contragosto, Brian virou um novo messias, seguido por diferentes grupos que têm uma interpretação diferente para as palavras desconexas que ouviram. Não precisa de muito tempo para sabermos que ironicamente sua vida, que sempre correu paralela a de Jesus Cristo, poderá ter o mesmo desfecho trágico do filho de Deus. O cinismo em relação ao Poder, às burocracias e aos prestadores de serviço (seja dos pedintes aos comerciantes) são temas que perpassam o humor do Monty Python desde os tempos da série de TV Flying Circus (1969-1974) na BBC.

Em A Vida de Brian é ainda mais explícito: o ex-leproso revoltado porque Jesus o curou e ele perdeu seu ganha-pão de pedir esmolas; a Frente de Libertação propositalmente burocrática e inerte para evitar derrotar os romanos e chegar ao Poder porque não saberia o que fazer quando chegasse lá; comerciantes que precisam pechinchar não pela racionalidade econômica, mas por um obrigação moral; os seguidores de Brian que não aceitam os desmentidos do seu “messias”, não porque acreditam que ele seja um profeta mas porque sem ele não teriam outra coisa melhor para fazer; os romanos tão desorganizados que só conseguem dominar a Judéia porque os judeus parecem mais interessados em cuidar das suas vidas e fazer troça dos romanos, e assim por diante.

O cinismo do helenismo grego

Embora o humor do grupo a princípio trabalhe com estereótipos (o judeu materialista e covarde, um Pilatos gay enrustido etc.), vai muito mais além disso: explora uma forma especial de cinismo que remonta a tradição filosófica do período helenístico da Grécia antiga de Diógenes e Pirro – o cinismo (ou “kynismo” para os gregos da antiguidade) como forma crítica contra as três formas de falsidades que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a ilusão mobilizada para finalidades políticas) – sobre isso clique aqui.

O cinismo do grupo inglês é cético: vê uma espécie de reversão irônica em cada ação humana – a fala de Jesus no Sermão da Montanha vira um “telefone sem fio”; a Frente política de oposição aos romanos vira um fim em si mesmo; tudo que Brian fala é filtrado por aquilo que seus seguidores querem ouvir. Por mais que Brian negue e insista que tudo foi um mal entendido, seus seguidores interpretam como algum tipo de mensagem mística cifrada. Por isso A Vida de Brian vê a Religião, a Política e o Poder de forma cínica – tudo é um conjunto de mal entendidos e incomunicabilidade na qual cada um entende o que quer entender, ouve o que quer ouvir.

Religião e política como racionalizações

Toda a mentira, a ilusão e as ideologias produzidas por elas seriam nada mais que racionalizações para justificar esse mal entendido radical. Assim como na emblemática sequência em que Brian foge desesperado não só dos romanos mas também de uma multidão de seguidores que pedem dele um “sinal” de sua divindade. Na fuga, Brian deixa derrubar uma cabaça (vaso de barro com gargalo estreito e comprido) e uma sandália acaba saindo do seu pé, ficando para trás.

O grupo que pegou a cabaça, ergue o objeto dizendo que é “a cabaça sagrada de Jerusalém” e passam a se autodenominar “cabacenos”. Enquanto outro grupo rival levanta a sandália para o céu e grita que aquilo é o verdadeiro “sinal”. Pronto! Acabou de ser criado o primeiro cisma religioso da história do Cristianismo. E sabemos que mais tarde o Império Romano adotou o Cristianismo como a religião oficial. Será que foi mais uma estratégia maquiavélica de “dividir para reinar” entre tantos outros exemplos que a História nos conta?

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A VIDA DE BRIAN

Diretor: Terry Jones

Elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Jones, Eric Idle, Michael Palin, Terry Gillliam

País: Reino Unido

 Ano: 1979

Classificação: Livre

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Os Deuses Devem Estar Loucos: máquinas ou humanos?

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Os deuses devem estar loucos é uma trilogia antiga (primeiro lançamento em 1980) que, através do cômico, levanta questões sociais e culturais pertinentes e reflexivas ainda na atualidade. No presente texto será abordado o primeiro da trilogia, que conta a história de Xixo, um bosquímano do deserto Kalahari, chefe de sua tribo, que ainda não tinha contato com o resto do mundo. A tribo mantem sua sobrevivência graças aos seus conhecimentos sobre a natureza, caça e coleta. Xixo logo enfrentará uma dura escolha, agindo de modo a proteger sua tribo, tal como suas crenças.

Fonte: http://migre.me/vFt1m

O filme inicia mostrando o cotidiano da tribo dos bosquímanos, que até então, está tudo dentro da normalidade para eles. Eis que Xixo avista um pássaro estranho no céu, que voa sem precisar bater as asas. Esse “pássaro”, na verdade, era um avião. O piloto está a tomar um refrigerante, cuja marca é conhecida mundialmente e é um dos maiores representantes do capitalismo (logo, se perceberá a genialidade do filme em usar esse símbolo). Então, o piloto joga a garrafa da Coca-Cola no deserto, vindo essa a cair perto de Xixo.

O bosquímano concebe aquele objeto estranho como um presente dos deuses (é um povo politeísta), pois, até o momento, tudo que ele e sua tribo recebiam dos deuses eram coisas boas, para ajudá-los, assim como a chuva. Isso porque os deuses amavam muito eles. Logo, aquele objeto torna-se atração na tribo, cumprindo funções que atendiam as necessidades de todos.

Fonte: http://migre.me/vFt1U

Porém, o presente dos deuses logo mostra sua real face: causar discórdia no grupo. É importante ressaltar que a tribo não possui leis, os pais não castigam seus filhos, sendo todos ali livres para agir como queiram, não há o conceito de posse, tudo é de todos, não havendo brigas e disputas por nada. A paz reina entre eles. Mas a presença da garrafa muda isso, pois, “de repente, todos precisavam dela o tempo todo. Algo que nunca haviam tido, tornara-se indispensável” (narração do filme). Assim, os integrantes da tribo, que nunca haviam brigado antes, agora encontram-se em grande querela e violência uns com os outros, disputando pelo objeto mandado pelos deuses.

Xixo percebe que tudo isso está ocorrendo devido ao objeto, que agora passa a ser chamado por eles de coisa má. Depois de enterrar o objeto distante da tribo e ele retornar para lá (uma hiena o desenterra e uma das crianças da tribo o encontra), Xixo imagina que os deuses não querem a coisa má de volta, sendo responsabilidade dele levá-la ao fim do mundo para não causar mais problemas. Conversando com os membros da tribo, eles lhe dizem que o fim do mundo deve ser muito longe, então, sem entender por que os deuses mandaram a coisa má e por que não a queriam de volta, Xixo embarca em uma jornada cheia de novidades, um mundo diferente do que ele conhecia, tudo para dar fim ao objeto causador de discórdia.

Fonte: http://migre.me/vFt29

Fazendo parte de uma tribo que sobrevive com o que a natureza oferece e que a única visão de mundo que possuem é o campo desértico do Kalahari, Xixo, em sua jornada, se depara com “animais” nunca vistos por ele (carros de homens que estavam ali em missão, inclusive, esses homens também lhe eram estranhos, devido a sua palidez).

Mas a pior desventura ocorrida com Xixo se deve ao fato de, por um mal entendido, principalmente linguístico e cultural, ele ter sido preso. Com fome, Xixo avista um rebanho de cabras e tenta abater uma. Como não conhece nada das regras sociais, ele não entende que a cabra não é para todos, que é posse de alguém. Assim, é levado para o mais desconhecido mundo, sem árvores, sem animais, sem deserto, sem sua tribo e o pior, sem sua liberdade, apenas uma vasta solidão e um vazio angustiante guardados entre quatro paredes, onde ele se recusa até mesmo a se alimentar, pois nem isso seguia os padrões ao qual ele estava acostumado.

Fonte: http://migre.me/vFt30

A poucas milhas dali, há uma cidade, onde o povo é denominado como civilizado. É um povo que, segundo o narrador do filme, recusou-se a adaptar-se ao seu meio, então, adaptou o meio ao seu modo, construindo cidades, estradas, veículos, máquinas e redes elétricas para realizar seus projetos racionais. O problema é que o homem civilizado não soube quando parar, e o meio ao qual ele adaptou a si tornou-se complicado, tendo o homem que adaptar-se e readaptar-se constantemente ao meio criado por ele para conseguir sobreviver.

Fonte: http://migre.me/vFt3v

Até então, várias reflexões já se tornam possíveis com o filme. São visíveis dois tipos de sociedade, uma que deixou a naturalidade original do mundo guiar seu modo de viver e outra que recusou isso. Podem ser levantadas questões acerca do capitalismo, desenvolvimento tecnológico, individualismo e como tais vêm influenciando a vida da maioria dos indivíduos.

Na sociedade dita como civilizada, percebe-se que aquilo que não é natural ao meio torna-se algo perigoso para ela, causando brigas, cansaço e mal estar nas pessoas. Fazendo uma correlação com a biologia, pode-se dizer que o meio/mundo é o corpo humano, aquilo que não é natural a ele são os invasores ou corpos estranhos ao organismo, e as brigas e o mal estar são os mecanismos de defesa que o organismo utiliza para expulsar o que não pertence a sua ordem.

Ou seja, percebe-se que as atividades que o homem civilizado passou a executar passaram a causar consequências negativas em suas vidas, como, por exemplo, ele ter que passar horas a fio trabalhando ou estudando como máquinas, esquecendo-se muitas vezes de sua humanidade, de suas relações, de aproveitar melhor o seu tempo, etc. Como reflexo disso, o filme mostra os bosquímanos, que seguem a ordem natural das coisas, sendo interpelados pela garrafa da Coca-Cola. Eis que ocorre uma mesclagem dos aspectos da sociedade civilizada e dos bosquímanos, de modo a enfatizar como a primeira influencia negativamente na segunda.

O objetivo do presente não é criticar o desenvolvimento tecnológico/industrial que o homem alcançou. Longe disso. Até por que é notável grandes avanços e descobertas que se deram graças a esse desenvolvimento. O problema está no fato de, como já foi dito, o homem não saber quando parar e não saber administrar aquilo que ele produz. Dessa forma, enxurradas de produtos são desenvolvidos, talvez sem haver real necessidade, e a humanidade se encontra em um mar de opções e acaba caindo em desespero frenético para obter, obter, obter, consumir, consumir, consumir, trocar, trocar, trocar.

E essa é uma das principais características do que Zygmunt Bauman (2000) chama de modernidade líquida, em livro de mesmo nome. Líquida por que tudo é fluido, tudo se esvai, assim como a água. A era do consumo exacerbado gerou indivíduos ansiosos, desejosos do imediatismo e da possibilidade de trocar produtos (quando não relacionamentos) que já não lhe satisfazem por outro melhor.

O individualismo passa a substituir relacionamentos substanciais. As pessoas passam a enxergar somente o “próprio umbigo” e a conceber os outros como meros coadjuvantes da existência humana, em que cada um se sente como sendo o principal protagonista (Adam Curtis, 2002).

Fonte: http://migre.me/vFt43

Levando isso em conta, retoma-se a história de Xixo que, em sua visão simplória da vida,  no momento antes de ser preso, é levado a julgamento e entra na sala sorrindo para as pessoas. Porém, ninguém retribui. No decorrer do filme, oberserva-se várias vezes essa atitude de Xixo, tão simples e bonita, mas tão escassa atualmente. Observa-se, também, ele ajudando pessoas que encontra ao longo de seu caminho, deixando por momentos a própria tarefa a qual ele se responsabilizou.

Talvez essa gentileza nos abraçaria comumente se o homem zelasse mais por sua humanidade e natureza e não permitisse que as máquinas ocupassem o lugar das suas relações.

FICHA TÉCNICA DO FILME

OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS

Direção: Jamie Uys
Elenco: N!xau, Jamie Uys, Marius Weyers, Sandra Prinsloo;
Ano: 1980
Países: África do Sul/Botswana
Classificação: Livre

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O que Budismo e Cristianismo têm de diferente, pela análise de Lubac e Usarski

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Um dos maiores estudiosos contemporâneos da aproximação entre o Budismo e o Cristianismo, o francês Henri de Lubac parte do pressuposto de que há um núcleo central entre estas duas tradições. Desta forma, apresenta o conceito de piedade que, nas duas expressões, acabam por tentar tirar o homem de suas projeções egóicas. E a piedade, neste contexto, de acordo com o francês, pode ser definida, dentre outras coisas, como “amar ao próximo como a si mesmo”, ainda que a importância do “eu” seja diminuída na abordagem oriental, ao ponto de tornar-se (esse “eu”) quase que insignificante. Haveria, portanto, um ideal contemplativo no sentido último da piedade. No Budismo, este ideal se expressa, sobretudo, no Caminho do Bodisatva (Bodi = mente, Satva = compaixão: ser de mente compassiva), que é aquele que renuncia ao Nirvana (ou ao Reino de Deus, como exemplifica Buddadhasa) até que todos os seres tenham alcançado a libertação/salvação.

Nas práticas contemplativas cristãs e budistas, lembra Lubac, a piedade ganha um novo sentido na medida em que, pela prática espiritual, o agente (que realiza a piedade) não é influenciado por fatores meramente emocionais e, portanto, é possível manter um estado de serenidade em que o colocar-se no lugar do outro, sofrer com o outro transcende e ganha um sentido ampliado. No entanto, esta abordagem causou confusão nos historiadores ocidentais, diz Lubac.

Habiendo visto bien que la piedad budista no se ocupa de los casos particulares y que no debe confundirse en modo alguno com lós movimientos de uma fácil sensibilidad, han considerado demasiado rápidamente su carácter general como un signo de universalidad; de esa forma han olvidado que entre ló general y ló universal existe aún toda la diferencia que hallamos entre ló abstracto y ló concreto […]. (LUBAC, 2006, pág. 52)

Lubac lembra que a piedade tem três sentidos para o Budismo Mahayana¹, sendo a sattvalambana karuna, a dharmalambana karuna e a analambana karuna. Na sattvalambana karuna a piedade é focada para os seres que sofrem, de modo particular. Ela é uma manifestação incompleta pois ainda leva em conta uma realidade fenomênica, aquela visível aos olhos, apresentada pelo ser que sofre. No caso da dharmalambana karuna há um avanço na percepção de inseparatividade entre aquele que se apieda daquele que é objeto de piedade. Portanto, como nesta fase se superou o sentido de dualidade, o que fica é apenas as sensações dolorosas por si mesmas (já que o “eu” que sente tal sensação é visto como um conjunto de agregados, e não como um ente intrínseco e imutável). “Pero este es todavia um conocimiento aproximado, porque lãs sensaciones dolorosas no existen pó sí ni em si. Este segundo tipo de piedad implica aún um tipo de avidya (desconocimiento)” (Lubac, pág. 56). Por fim, a analambana karuna se refere a piedade pura, aquela que não tem um objeto. Ela ocorre não por as criaturas, não para remediar os sofrimentos, mas sim de um modo totalmente gratuito, pelo puro amor da piedade. Assim, “una virtud resulta tanto más alta cuanto más pura sea […]. [Allí entonces] habria la piedad perfecta, ideal” (idem, pág. 57).

Tanto no Budismo quanto no Cristianismo a piedade é um fator de valor universal, mas para o primeiro ela não pode ter caráter antropomórfico, sob o risco de perder importância. “Incluso aquel que se sacrificara a favor de todos lós seres, sin preferências particulares” (idem, pág. 54). Este sentido de piedade, destaca-se, se assemelha ao amor indiscriminado de Cristo, que considerava todos como parte de sua família, independente dos laços consanguíneos. À frente, São Paulo ampliaria esta visão ao estabelecer a mensagem cristã como de caráter universal e com forte ideal de justiça, não restrita a um único povo ou região, com um apelo que, num olhar mais aguçado, estende a visão cristã, lembra Lubac.

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O Budismo é uma religião não-teísta

Passado este primeiro momento, é necessário debruçar-se sobre o conceito de amor “com” e “sem” Deus. Para o Cristianismo, de acordo com Lubac, o Mandamento do amor do homem por Deus tem as mesmas bases do amor de Deus pelos homens. Amar ao próximo, então, estaria ancorado no amor a Deus, já que Ele também ama e se expressa no próximo, “porque el hombre há sido creado a imagen de Dios” (idem, pág. 54). Assim, através da imagem divina que se expande pela criação, o homem participa, com efeito, da eternidade de Deus. Desta forma, a vida eterna inclui, também, o conceito de amor ao próximo – e amar ao próximo é amar a si mesmo. “La Fe y la esperanza pasarán, para ceder su lugar a la vida y a la posesión; pero la caridade no passará nunca” (idem, pág. 55).

No Budismo, no entanto, pela falta de enfoque ontológico, toda prática caridosa e todo altruísmo levam à liberação dos desejos, e há uma negação de qualquer abordagem eternalista. A caridade e a piedade, portanto, “es uma virtud provisional. Dicho de outra forma, esa caridad forma todavia parte de ló que lós budistas llaman ‘el orden mundana’. Por médio de ella no puede definirse, em modo alguno, el ser – o el no-ser – supremo” (idem, pág. 55). Vale ressaltar que o Buda considera o amor como uma forma de redenção do coração, no entanto

este amor no toma su sentido de los esfuerzos que hace aquel que ama, a fin de reafirmar y de sostener el valor del que es amado, sino de lós esfurzos dirigidos hacia la aniquilación y supresión de la realidad y del modo de ser de aquel ama […]. (LUBAC, 2006, pág. 56)

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O Budismo, sobretudo o tantrayana, concebe a existência de deidades; na imagem, Mahakala

Sobre a questão de deidades no Budismo, ou mesmo em relação à existência de algo que transcende a realidade, numa referência teísta (obviamente, um teísmo sem traços antropomórficos), Lubac destaca a doutrina Yogacara, dentro do Budismo Mahayana (escritos e comunidades posteriores às primeiras comunidades budistas), que se divide em duas teorias. De um lado, a abordagem Yogacara diz que há budas que atraem os seres até eles, envolvendo-os até que (os seres) amadureçam ao ponto de despertar, de alcançar a budeidade.

Por otra parte, añaden que, sin esperar El cumprimiento de esa ‘maduración’, lós budas ofrecen a los seres un pregusto de la felicidad suprema, manifestándose a ellos a través de su sambhogakaya¹. Pero em realidad estas dos teorias no recuerdan em nada al Dios Cristiano dela caridade. (LUBAC, 2006, pág. 58)

A primeira teoria, de acordo com Lubac, lembra o deus da concepção aristotélica, imutável e sem amor, para o qual convergem todos os seres movidos pelo desejo (de se reconectar). No entanto, o francês lembra que na própria concepção de Asanga, um dos doutos das doutrinas budistas mahayana, a existência dos budas e de todos os outros seres (sencientes ou não) surge a partir de relações interdependentes, não havendo, portanto, um único ponto de partida, mas um conjunto destes. Desta forma, ante uma “multitud de lós seres que, sin ninguna causa (sin ningún Dios que lês impulse), van avanzando hacia la maduración completa, en todos lós lugares, de todas las formas” (idem, pág. 58). Ou seja, mesmo se se levar em conta que há uma influência dos budas sobre os seres sencientes, estes budas, por si próprios, não têm existência separada. São aspectos da budeidade impessoal e insubstancial que absorve a todos em um único dharmakaya².

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A segunda teoria, de acordo com Lubac, evoca a divindade contida na filosofia spinozana, para quem Deus é tido como único motivo da existência de tudo o que existe. Desta forma, Deus é substância única, sendo que nenhuma outra realidade pode existir fora d’Ele, e a partir d’Ele surgem todos os outros elementos. Assim, a essência de Deus implica a sua própria existência. Desta forma, em Lubac

En la raiz de la caridad ha de haber necesariamente independencia. Si los budas no se contentan com su dharmakaya, en el cual están unificados, si se manifiestan a los bodisatvas por mediación de sus sambhogakaya, esto significa que están interesados en ello. (LUBAC, 2006, pág. 59)

Passada esta observação inicial, sobre algumas das características principais da cristandade, que é o amor ilimitado a Deus, ao próximo (como expressão de Deus) e a si mesmo (dentro de certos limites, para evitar cair na armadilha da autopistis e respeitando a centelha divina que há em cada criatura), Lubac lembra que a concepção budista para “amor” se assemelha ao “amor ao próximo” dos cristãos. Para tanto, cita outro douto das doutrinas budistas, Shantideva³, que defendia que todos os seres são semelhantes aos budas, na medida em que possuem uma parcela das virtudes de um Buda. “Esta parcela insigne está presente em las criaturas; en virtud de esta presencia, las criaturas deben ser honradas” (idem, pág. 59).

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Superando mal-entendidos

Lubac diz que, depois de destrinchar a conceituação do amor, própria do Cristianismo, e procurando estabelecer os pontos de contato com o Budismo, há alguns aspectos defendidos por vários historiadores que merecem especial atenção. O francês lembra que no decorrer dos últimos 200 anos

no resulta em modo alguno sorprendente que los historiadores hayan descubierto que muchos textos cristianos se relacionan com otros budistas, a medida que estos han sido más conocidos. A veces se han sugerido acercamientos sorpredentes, que parecen obligarnos a plantear la hipótesis de que existen lazos reales entre las dos religiones. (LUBAC, 2006, pág. 105)

Os principais pontos que marcam as aproximações são calcados em algumas indagações importantes, como a necessidade de supor ter existido uma relação histórica entre as duas concepções – através do elo comum entre elas, o helenismo4 –, além do pressuposto de que o lastro doutrinário comum pode ter sido decorrente de um movimento do espírito humano que se pulverizou por todo o planeta, mais ou menos num mesmo período, numa série de processos análogos. Além disso, é questionado se no atual momento de conhecimento advindo de pesquisas de toda ordem, as relações entre a Índia e o Mediterrâneo atingiram tal estágio de influência mútua. “Si hubiera que admitir una influencia, habría que perguntarse todavía en qué sentido se ha dado” (idem, pág. 106).

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Budismo e Cristianismo provavelmente se cruzaram no antigo mundo helênico

Lubac (2006) lembra que a Europa tem pressa para compreender este processo, sobretudo porque o que se entende por Ocidente, na realidade, começa no Irã, região que abrigou um entreposto de diferentes tradições, que acabaria por resultar nas grandes religiões que sobreviveram até a contemporaneidade. Além disso, há ressonâncias neoplatônicas (assim como houve no Cristianismo) nos escritos de Asanga5, grande influente da doutrina budista. Outro detalhe é a presença da cosmologia helenista na Índia através dos mistérios de Mitra6, sendo que movimentos como o Amidismo7 budista do extremo oriente pode ter sofrido alguma influência desta abordagem (assim como alguns historiadores também atribuem essa mesma influência sob o Cristianismo). A grande questão levantada por Lubac é saber se foi o helenismo quem influenciou o Budismo ou vice-versa, ou ainda se houve uma influência recíproca entre estas tradições.

Especificamente sobre a possível influência hindu na formação do pensamento neo-platônico, Lubac prefere não entrar nesta seara, pois a existência de uma colônia budista em Alexandria é algo que, até o momento, ainda não se conseguiu provar totalmente. O que se sabe, a partir da análise dos escritos da época, é que os alexandrinos tiveram um conhecimento menos deturpado dos temas budistas, em relação às outras regiões pertencentes ao antigo Império Romano, o que sugere que aquela sociedade, de alguma forma, teve um contato mais próximo com o Dharma de Buda.

Lubac (2006) diz que são legítimos os estudos e comparações dos escritos de Orígenes8 de Alexandria que geraram estreitas aproximações tanto com o conceito de “manifestação de Deus em Fílon9” quanto com a exegese mais universalmente aceita do sutra budista Parinibbana-sutta. De acordo com Lubac, a ideia de Orígenes de universalidade na redenção de Cristo, além da eficácia sem limites do sangue derramado na cruz e, por fim, uma visão particular em relação os diferentes estados do Logos, aproxima-se sobremaneira da visão budista dos corpos de Buda, mas que de maneira alguma as duas versões podem ser consideradas idênticas.

Em Orígenes um dos pontos analisados é o de que o Logos assume diversos estados (corpos) – inclusive a forma angelical – para não apenas dirigir-se aos homens, mas a todas as criaturas. Para reforçar este aspecto, Lubac cita um dos comentários de Orígenes aos escritos de São Mateus:

Si tú puedes contemplar al Logos que ha vuelto a su primer estado, después que se há hecho carne y después que se ha hecho todos los tipos de cosas para los hombres, habiéndose hecho para ellos aquello de ló que cada uno de ellos tenía necesidad, a fin de ganarlos a todos; si tú puedes contemplarle después que ha vuelto a esse estado em El que él era em el principio junto a Dios… etc. (LUBAC, 2006, pág. 110)

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Haveria uma analogia, de acordo com Lubac, entre este escrito – só para citar um deles -, e o pano de fundo tanto do gnosticismo quanto do Budismo. O francês diz que os textos oferecem uma ideia comum que aponta para uma “economia” nas manifestações divinas, “economia” que os budistas aplicaram, por sua parte, às manifestações de Buda. Assim, “Cristo es ángel entre los ángeles, como Buda es Bodisatva entre los bodisatvas y dios entre los dioses” (idem, pág. 115). No entanto, mais a fundo, alerta Lubac, existem diferenças entre a encarnação do Logus cristão com o conceito de nirmanakaya (corpo de aparência – físico – dos seres puros) presente no Parinibbana-sutta. Da mesma forma, a transfiguração de Cristo, que é comparada ao sambhogakaya, pode ter aproximações apenas sob um aspecto, o da sutileza envolvida no processo, que transcende a expectativa do que se espera de uma manifestação física. No entanto, a insubstancialidade do sambhogakaya se opõe ao idealismo contigo na concepção cristã, lembra Lubac.

 

Naturalização e desnaturalização

Por fim, Lubac (2006) diz que não se pode negar que budistas e cristãos encontraram elementos comuns para a elaboração de seus símbolos. E estas semelhanças ocorrem no campo da linguagem, do discurso e das sucessivas tentativas de aproximação, e talvez a mais sólida destas aproximações é a herança genealogicamente semelhante (estruturalmente falando), em que ambos partem de arcabouços doutrinários muito antigos – no caso do Budismo, uma continuação dos Vedas, no caso do Cristianismo, uma “atualização” do Antigo Testamento – que, em certo sentido, representaram rupturas. Mas as aproximações ocorreriam apenas em análises simbólicas desta ordem, e não nos detalhes doutrinais. Ou seja, enquanto que para os budistas a espiritualidade se recobre de colorações espirituais naturistas, “todo ensayo de interpretaión naturista sería, en su caso, totalmente desnaturalizador” para o Cristianismo (idem, pág. 90). O homem, portanto, na sua tentativa de reconexão com o Sagrado, aponta para um caminho de transcendência. Mais do que isso, no Budismo a salvação vem do conhecimento que o homem descobre por si próprio, com auto-poder e, desta forma, tem a capacidade mental e emocional para cessar os aparecimentos futuros (encarnações futuras). No Cristianismo, no entanto, a “árvore do conhecimento” brota de Deus, é a árvore da vida eterna, da fonte de toda a vida, expressa pelos sacramentos da igreja.

Desta forma, Lubac (2006) parece querer apresentar um antídoto para toda tentativa de generalizações apressadas entre as aproximações das duas tradições ora estudadas. No coração de ambas as religiões, em que pese uma semelhança simbólica – de caráter histórico -, doutrinariamente há diferenças no sentido de caridade/compaixão e na abordagem que defende igualdade entre a transfiguração de Cristo e o conceito dos corpos de Buda.

Já Frank Usarski (2009) aponta um problema central, a questão de Deus, como um dos fatores preponderantes que diferenciam as doutrinas cristã e budista. Uma vez que o Budismo rejeita a ideia de que há um Deus a partir do qual todo o restante surge – ele defende a gênese condicionada12 -, a investigação começa a partir do suposto problema da teologia cristã que detém

um modelo que pretende explicar a existência do cosmo físico ou das forças nele existentes, [e ainda assim] precisa recorrer a uma concepção teísta. Também escapa à lógica budista a necessidade de postular uma “causa primeira” da qual dependem todos os demais aspectos da existência. (USARSKI, 2009, pág. 254)

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Além disso, destaca Usarski (idem), pela interpretação geral cristã, Deus é criador e senhor de um universo produzido ex nihilo (a partir do nada). Há, portanto, uma visão dualista do mundo, sendo o conceito de Deus totalmente transcendente e “completamente outro” em relação à criação.

O fato de a Bíblia atribuir a Deus o poder de interferir nesse mundo não muda a ideia de separação da existência em duas esferas, uma vez que as intervenções divinas que culminaram com a encarnação de Deus em Jesus Cristo são de caráter escatológico e não ontológico – elas, portanto, não questionam o dualismo cosmológico. (USARSKI, 2009, pág. 254)

Este tipo de abordagem é visto com reservas pelo Budismo de forma geral, e pelo Theravada13 em particular. Isso porque o Buda estaria essencialmente interessado na concepção psicológico-antrológica da existência, e as eventuais “consequências soteriológicas”. No entanto, sempre que questionado sobre assuntos de ordem metafísica, dava de ombros ou ficava em silêncio, ou ainda dizia claramente que considerava tais discussões inócuas, irrelevantes. No entanto, essa posição – de negação dos aspectos ontológicos no Budismo – não demorou muito tempo. O próprio surgimento do movimento mahayana é, segundo Usarski, uma resposta a esta questão. Isso teria ficado claro quando os budistas apresentaram a o conceito dos três corpos do Buda (ou Trikaya). Sobre este tema e a tentativa de aproximá-lo a alguns dogmas cristãos, Masao Abe – um dos principais expoentes da escola de Kyoto – dedicou boa parte da sua vida.

Se, por um lado, isso foi encarado como algo bem-sucedido do ponto de vista budista, por outro Abe a seus colegas foram acusados de tentar reformular a ideia de um Deus monoteísta a partir das categorias mahayanistas, em detrimento da autenticidade dos ensinamentos cristãos centrais. […] A doutrina dos três corpos é uma teoria budológica, segundo a qual a última realidade não-substancial e impessoal (dharmakaya) se manifesta em dois planos “concretos”. Esses dois planos correspondem aos Budas sutis, com seus corpos de glória (samboghakaya), e ao Buda histórico, cuja forma corporal “grosseira” é denominada de nirmanakaya. […] Nesse sentido, o plano de nirmanakaya é associado a Cristo, enquanto o Deus monoteísta cristão é colocado em analogia ao plano de samboghakaya. (USARSKI, 2009, pág. 255)

Usarski (2009) lembra que a primeira grande dificuldade desta abordagem – como já se viu em Lubac – é que para um budista esta analogia pode soar de forma não-problemática, mas “corre o risco de ser classificado, do ponto de vista cristão, como uma espécie de blasfêmia” (Idem, pág. 257). Além disso, segundo Usarski, a teoria de Abe revelou que a Teologia cristã até então não tinha sido pensada até as últimas consequências.

De acordo com uma leitura mais construtiva da obra de Abe, pode-se dizer que o filósofo da escola de Kyoto tentou melhorar a imagem teologicamente deficitária do Cristianismo. Para esse fim, praticamente realizou concessões teológicas a ambos os lados, sugerindo que tanto a concepção mahayanista, impessoal-monista da vacuidade (sunyata) quanto a ideia cristã refletem as respectivas construções básicas da outra religião. (USARSKI, 2009, pág. 257)

Por fim, sunyata é praticamente apresentada por Abe como uma espécie de “causa primeira” que se esvazia constantemente, num frenético movimento dialético em que a existência passa a oscilar entre dois estados (o vazio gerado pelo próprio vazio). “Com isso, a concepção monista-ontológica da unidade de samsara14 e nirvana torna-se um ‘princípio da criação’” (idem, pág. 258). Desta forma, a partir das contribuições de Abe, há uma aproximação tangível entre a teologia budista e a cristã.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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Aproximações e distanciamentos: além da insubstancialidade

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De acordo com Joaquim Monteiro (2015), até bem pouco tempo a Filosofia da Religião se calcava, basicamente, em problemáticas que tinham como base a dinâmica das construções argumentativas em torno do teísmo, seja na tentativa de corroborá-lo, seja na tentativa de desenvolver um arcabouço de conhecimentos que gira em torno de conceitos como “essências, substâncias e Verdade” (MONTEIRO, 2015, pág. 3), que invariavelmente tenderiam a convergir para a questão da existência (ou inexistência) de Deus. Assim, elas [as tendências] teriam desenvolvido um quadro temático

extremamente limitado na medida em que consideram o teísmo como a questão central e a essência auto evidente da religião. A meu ver, este posicionamento das tendências dominantes da filosofia da religião acaba limitando-se à reconstrução de algumas temáticas tradicionais, obstaculizando desta forma um questionamento mais radical a respeito do que constitui a essência das religiões. (MONTEIRO, 2015, pág. 3)

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Joaquim Monteiro diz que não há dúvidas de que “a filosofia precisa interessar-se pelas asserções de verdade das religiões” (idem, pág. 4), mas que as perspectivas e problematizações levantadas neste âmbito teriam que levar em conta as principais configurações antagônicas – históricas e/ou contemporâneas – para que se evite cair numa postura limitante, numa polarização entre o teísmo e o materialismo mecanicista. Haveria, portanto, outras matizes para delinear tal diálogo. Monteiro lembra que o Budismo, por exemplo, não se enquadraria em nenhuma destas duas vertentes. Para ele,

o discernimento da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de categorias como os “agregados” […] exclui de forma radical a perspectiva teísta, mas ao mesmo tempo, a distinção clara presente na filosofia budista entre os “dharmas da mente” e os “dharmas da forma”, assim como a resoluta negação de que os “dharmas da mente” possam se extinguir naturalmente constitui-se como uma clara recusa de qualquer perspectiva de um materialismo mecanicista. (MONTEIRO, 2015, pág. 4)

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O monge trapista Thomas Merton estabeleceu profícuo diálogo com os budistas

As implicações primeiras desta constatação, de acordo com Monteiro, é a de que “na medida em que uma das religiões mundiais explicita um ponto de vista crítico em relação tanto ao teísmo quanto ao naturalismo esse ponto de vista não pode ser ignorado por uma filosofia da religião” (idem, pág. 5). Com isso, sendo o Cristianismo – e todas as suas vertentes filosóficas – a maior expressão atual do teísmo, e embora as tendências da Filosofia da Religião tenham atingido elevados patamares de rigor e sofisticação “através dos procedimentos da filosofia analítica” (idem, pág. 3), elas precisam de contraposições filosóficas radicais para que possam levar algumas questões até as suas últimas consequências. Desta forma,

Uma interrogação radical a respeito da essência da religião não pode ignorar de forma alguma que o pensamento budista representa o contraponto filosófico mais forte ao ponto de vista dos monoteísmos. Uma filosofia da religião que ignore esta realidade do Budismo como o mais forte e mais sistemático contraponto ao teísmo entre as religiões mundiais está fracassando de forma essencial em sua interrogação sobre a essência da religião por mais rigorosos que possam ser os seus instrumentos lógico-semânticos.  (MONTEIRO, 2015, págs. 4 e 5)

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Monges cristãos visitam comunidade budista (tibetanos) no Nordeste da Índia

Joaquim Monteiro diz, no entanto, que “não é fácil pensar o vínculo necessário existente entre a filosofia e a religião em meio ao pensamento budista” (idem, pág. 5).  Isso porque, no cerne do Budismo, pressupõe-se “uma passagem da ignorância para a sabedoria mediada pelo ensinamento do Buddha” (idem, pág. 5). Por esta ótica, o exercício da filosofia se dá “como um processo de auto conhecimento e de auto transformação” (idem, pág. 5). E embora essa definição possa parecer vaga, é importante destacar aqui que a filosofia budista “não só pressupõe um conjunto de conceitos articulados de forma clara e rigorosa, como possui também uma história do desenvolvimento de suas temáticas” (idem, pág. 5).

A meu ver, o campo das temáticas da filosofia budista se define por um lado através da consolidação da “teoria dos dharmas”16 na escola Sarvãstivãda, e por outro, em função das sucessivas críticas desenvolvidas em relação a esta teoria por escolas posteriores como a Sautrântica e a Yogacãra. Nesse sentido, é possível falar não só de temáticas teóricas constitutivas da filosofia budista, como também de uma história da filosofia budista. (MONTEIRO, 2015, pág. 5)

 De acordo com Joaquim Monteiro, há uma explicação sobre a “teoria dos dharmas”, empregada num âmbito mais restrito [de estudo do Budismo], que aponta para a categorização dos “5 agregados”, das “12 entradas” e das “18 esferas”, sendo estas últimas uma tentativa de abarcar a chamada “gênese condicionada”. Esta divisão elucida uma das questões centrais para a discussão filosófica oriental, a da diferenciação entre dharma e fenômeno.

Especificamente sobre as “18 esferas”, trata-se das

6 bases sensoriais (os cinco sentidos mais a mente entendida como um processo de captação dos processos mentais imateriais), os 6 objetos (os objetos dos cinco sentidos e os eventos mentais sem referência sensorial) e as 6 consciências que surgem da interação entre as bases e os objetos. Essa categoria analítica possui dois aspectos importantes. No primeiro deles, ela inclui toda a experiência possível, mental e sensorial. Ou seja, essa categoria pressupõe a capacidade de abarcar em si a totalidade da experiência possível. Na segunda, ela pressupõe a análise das características comuns de todas as “18 esferas”, ou seja, da impermanência, da insatisfatoriedade e do vazio de ãtman comuns a todas essas “18 esferas”. Essa segunda característica nos conduz ao problema de sua relação com o mais importante objeto de negação na filosofia budista: o conceito de ãtman”. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

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Vale destacar que, ao não aceitar o conceito de ãtman, a negação se dá pela própria categorização das esferas, tendo em vista que a existência do “ãtman só poderia se dar como algo idêntico às esferas, como idêntico a alguma das esferas em particular ou como distinta de todas as esferas” (Idem, pág. 7). Desta forma, caso uma existência seja pensada pela ótica das “esferas”, como cada “uma das esferas está associada a um domínio específico da experiência, existe aí o referencial concreto de consciências auditivas, mentais ou visuais mas absolutamente nada que possa tornar-se o referencial do ãtman” (idem, pág. 7).

Desta forma, levando-se em conta que todas as esferas são “impermanentes e insatisfatórias nenhuma delas apresenta a característica do ãtman”. Já sobre a diferença entre dhama e fenômeno, Monteiro diz que a categorização pelas “18 esferas” também acaba por elucidar os contrastes.

No que diz respeito ao conceito de “fenômeno” como aquilo que aparece ou aquilo que vem à luz, em contraste com a “ideia do gato” presente no mundo platônico das ideias, o gato concreto sujeito ao nascimento e à morte como um indivíduo seria o “fenômeno”. Ou seja, conceito de gato como “fenômeno” implica em sua unidade. No entanto, o conceito das “18 esferas” decompõe essa unidade em uma multiplicidade. (MONTEIRO, 2015, pág. 7)

Desta forma, em Monteiro (2015), a aplicação do conceito de “dharma” à análise da experiência conduz necessariamente à dissolução da unidade em multiplicidade. No entanto, surge um problema ainda não resolvido e que, portanto, poderia ser alvo de novas investigações em trabalhos futuros: é possível estabelecer mediações entre o autoconhecimento e autotransformação subtendido na filosofia budista com as provocações concretas de historicidade, ética e política?. Monteiro diz que esta indagação está em aberto e que aponta para um sentido de “liberdade absoluta” e “liberdade relativa”, no arcabouço filosófico budista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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Eckhart é um elo com o Oriente

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“E digo mais, que todo sofrimento provém do amor àquilo de que a perda me privou. Portanto, se a perda de coisas exteriores me faz sofrer, eis aí um indício seguro de que tenho amor às coisas exteriores e, por conseguinte, de que na verdade eu amo o sofrimento e o desconsolo. Com efeito, que há de estranhável em que eu me depare com o sofrimento se amo e busco o sofrimento e o desconsolo? O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser-Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir-me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual.”

MESTRE ECKHART (1260-1328), EM “O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO”.

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Na imanência, o homem é co-partífice da totalidade

Por sua abordagem que, em alguma medida, coloca em xeque a visão clássica que se tem da transcendência, Eckhart muitas vezes foi mal interpretado e chegou a ser investigado pela Inquisição. Em Le Goff apud Guerizoli, “Eckhart é fundamentalmente um místico que, como tal, na crescente dissociação entre razão e fé que teria marcado o panorama intelectual dos séculos XIII e XIV, faz uma clara opção por esta em detrimento daquela”, no que seria (de forma indireta) uma explícita aproximação com a abordagem contida no Budismo, notadamente em sua vertente japonesa (Zen), que rechaça o uso do intelectualismo (ou mesmo da razão) como mecanismo de compreensão do mundo. “Aliás, pelo contrário, o excesso de informação [por parte do praticante budista] e a tendência deste de querer demonstrar que sabe, acaba por lhe afastar de um entendimento que é essencialmente decorrente da prática e dos anos de experiência [meditativa]” (CHALEGRE, 2015).

Ainda sobre este tema, vale ressaltar que

Eckhart nos deixou uma extensa obra em médio-alto-alemão onde os principais temas daquilo que, em certa medida, pode-se chamar uma doutrina da união entre criatura e criador são desenvolvidos e assumidos como parte fundamental de seu pensamento. Não obstante, ainda que possa parecer legítimo aplicar-se à obra eckhartiana o adjetivo “místico” e a Eckhart o epíteto de um autor interessado no problema da unio mystica, isso ainda não é motivo para que, de imediato, tachemos sua doutrina como antiintelectual. (GUERIZOLI, 2008, pág. 65)

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Pseudo-Dionísio: deificação do homem

Guerizoli ressalta que dentre os autores que mais influenciaram Eckhart destacam-se Orígenes, Gregório de Nissa e Pseudo-Dionísio Areopagita (no chamado neoplatonismo), e algumas das características marcantes de sua abordagem é “a ‘deificação’ do homem e sua ‘união’ – ou ‘unificação’ – com Deus, que se daria somente através do reconhecimento de sua filiação divina” (idem, pág. 66). Há de ressaltar, no entanto, que esta visão teológica, do medievo tardio, acabaria por desembocar no próprio humanismo nascente no Iluminismo. Não por menos, como destaca o professor, escritor e monge Cláudio Miklos (2015), o budismo (notadamente em sua vertente Zen), antes mesmo de ser classificado como religião, é uma espécie de humanismo, pois resgata um conjunto de preceitos cujo eixo, em alguma medida, está inserido no reconhecimento da autogestão [do homem] e da imanência.

A abordagem de Eckahrt (1999), como já destacado anteriormente, não passou incólume às tensões internas que permearam a efervescente produção intelectual da Idade Média. Ele é uma das provas, diriam alguns estudiosos, que nem todos os doutos e clérigos que compunham as fileiras das universidades cristãs eram meramente “orgânicos”. No entanto, havia um preço a ser pago pela visão “destoante” em relação à escolástica:

Através da condenação do “averroísmo latino”, a Igreja fecha as portas da universidade ao mais expressivo movimento anticlerical da alta escolástica. A consequência desse ato é o aumento, ao longo do século XIV, do fosso que separa a cultura universitária, da qual o intelectual é o representante por excelência, e a cultura laica que experimentava um grande enriquecimento com o desenvolvimento das línguas vulgares as quais, posteriormente, tornar-se-iam línguas nacionais.10 O século XIV assiste, portanto, ao crescente enclausuramento da figura do intelectual, que, segundo Le Goff, acaba formando com seus poucos pares uma “tecnocracia” cada vez mais isolada da realidade urbana, possibilitando, assim, o surgimento, a partir do século XV, de um novo tipo social letrado, solitário e atrelado preferencialmente ao poder temporal: o humanista. (Guerizoli, 2008, pág. 60)

Haveria na filosofia de Eckhart, no fundo, uma “tentativa de supor a real possibilidade de superação de todas as diferenças entre divindade e humanidade”. Um dos exemplos máximos desta teoria seria a doutrina da “existência de algo de incriado na alma, a qual entreabriria a possibilidade de reconhecer nesse “algo incriado” uma instância que fugiria à condição de ‘criatura’ e de pôr em xeque […] o próprio sentido de Deus como criador de tudo o que existe” (idem, pág. 69).

Mesmo se tecido sobre um pano de fundo teológico, o pensamento de Eckhart não se faria como descrição de uma experiência religiosa pessoal – tendo por base uma pura cognitio dei experimentalis – mas trafegaria, antes, por discussões, demonstrações e argumentos. No fundo dessa possibilidade estaria, mais uma vez, a convicção de que a revelação bíblica poderia ser descrita em argumentos racionais, de que teologia e filosofia, fé e razão, longe de se contraporem, integrar-se-iam, formando um todo compreensível”. (Guerizoli, 2008, pág. 68)

Assim, numa leitura sobre Le Goff, Guerizoli (2008) diz que, do todo, seria um equívoco entender a abordagem eckhartiana como meramente anti-intelectualista/antirracionalista, ou mesmo estritamente mística.

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Ainda na abordagem eckhartiana, em Dourado (2009), constantemente o homem se (re)posiciona em relação ao Todo e, neste movimento, o Criador não submete as criaturas ao que é basicamente seu, homogeneamente falando. Essas criaturas também não são substâncias fixas, mas a repercussão de Deus que se dá através das pluralidades. Haveria uma “plenificação” da natureza dos homens/mulheres, mesmo no movimento. Portanto, a vontade própria reposiciona-se em relação à vontade maior, numa troca incessante, ora com aspectos imanentes, ora transcendentes. Ou seja, o ser humano se relacionaria com o mundo numa perspectiva de presença e partilha, e não vê o homem como um fim em si mesmo (como aborda correntes do humanismo). Há, portanto, um fundo comum entre todas as criaturas. Na Bíblia, diz Dourado (2009), isso se apresenta no Sermão 12, quando se espera que

Ao homem que assim tivesse saído de si mesmo, de tal modo que fosse o Filho unigênito, a ele seria próprio o que é próprio ao Filho unigênito (…). Quando Deus vê que somos o Filho unigênito, ele se precipita e se lança ao nosso encontro com tanta veemência, (…) como se seu ser divino se lhe fosse  despedaçar e quisesse tornar-se  nada em si mesmo, a fim de nos revelar todo o abismo  de  sua  deidade e a plenitude do seu ser e da sua natureza; Deus se apressa para ser totalmente o nosso próprio, assim como é o seu próprio. (Sermão 12, I, pág. 102)

Eckhart (1999) ainda defende que esta dimensão do homem, na constituição mesma de sua ontologia, implica em sujeição, obediência e humildade. Em Dourado (2009), essa sujeição quer dizer, analiticamente, que todas as coisas estão sujeitas (subjectum) à uma totalidade, inclusive as coisas que não dispõe de consciência.

Todos os entes são criaturas, e por isso mais pertencem à totalidade do real, à doação integral de Deus enquanto criador, do que a si próprios. Ou seja, os entes são o que suas naturezas delimitam,  e por isso possuem algum nível de substancialidade, mas são o que são pela presença de Deus, e não pela pulsão de sua autonomia. Neste sentido, todas as criaturas são submetidas à totalidade. (DOURADO, 2012, v.6, n.2)

Na concepção budista, notadamente através da expressão da Soto Zen, não são os homens/seres que vivem a vida. É a vida que vive o ser. Em súmula, há um enfraquecimento do homem (enquanto unidade separada e autossuficiente) em detrimento da unidade. Essa visão de interdependência (do ser humano em relação à totalidade da vida) coloca os seres em total dependência de algo absoluto. Haveria, portanto, uma negação do “eu” provisório, que ora se manifesta (ou o não-eu budista). Sobre isso, Eckhart (1999) foi enfático: “As criaturas todas não têm ser, pois o seu ser depende da presença de Deus. Se Deus, apenas só por um instante, desviasse sua face das criaturas, elas seriam aniquiladas” (ECKHART, Sermão 4, I, p. 59). No entanto, parece paradoxal, mas cada criatura manteria resguardada o “criador no bojo de seu ser” (DOURADO, 2012, v.6, n.2), e assim como ocorre na concepção budista, a vida se apresenta como compartilhamento de Deus (ou do Dharma, na visão de Buddhadasa) em todas as criaturas. Assim, “as coisas são em Deus, e, por isso, ao serem, sinalizam toda a divindade” (idem).

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A anulação do ego, no Cristianismo, é uma “disposição para Deus”

Neste ínterim, a sujeição (ou aniquilamento do ego) é um mecanismo para que o ser humano (ou toda a criação, numa visão mais abrangente), ultrapasse a sua própria natureza, o que possibilita a comunhão com a totalidade. Aliás, mais que uma comunhão, como lembra Dourado, trata-se aqui de uma forma para que a totalidade possa passar.

E a insistência no verbo ‘poder’ e não simplesmente no ‘passar’ é o seguimento de uma indicação de Mestre Eckhart, ao concluir a questão da doação de Deus: ‘Ele se doa como Deus, como ele o é  em  todos  os  seus  dons,  à  medida  que  há  disposição  em quem gostaria de recebê-lo (DOURADO, 2012, v.6, n.2).

Vale ressaltar que esta “disposição para Deus” só pode ocorrer, no Cristianismo, a partir da noção de que existe algo de caráter totalizante, que une e precede toda a existência. Campbell diz que, desta forma, para que todos os povos se redimam, para que haja a apreensão da mensagem salvífica, é necessário ter um entendimento mínimo de alguns conceitos, como temporalidade, contingência e interdependência. Ou seja, assim como ocorre no Budismo (para quem é preciso haver um aspecto mínimo de senciência para adentrar o Sagrado), no Cristianismo sob o viés eckharteano Deus apesar de ser onipotente, respeita os limites de cada criatura, que só pode reestabelecer o caminho de comunhão à medida que reconhece a fagulha divina que há em todos.

Para os budistas, quem não se reconhece como expressão do Sagrado está inebriado pela ignorância (não no sentido intelectual, mas de sutileza em relação à identificação do aspecto de co-dependência) e pela concepção de cegueira e afastamento. O “ser búdico” já o é desde sempre, mas por não reconhecer-se como tal (por não permitir a aproximação com Deus), acaba por distanciar-se de sua real natureza. Em Eckhart, quando isso ocorre (este afastamento), supõe-se que o homem vem cobrindo o seu coração de terra, criando camadas com respaldo meramente mundanos, tornando-se ele mesmo (o homem) obstáculo de sua própria vida, já que “… quando o olho está doente em si mesmo, e enfermiço, ou velado, é-lhe impossível perceber o brilho” (ECKHART, O homem nobre, O livro da divina consolação…, pág. 93). Impossível não comparar esta assertiva eckharteana à abordagem budista que compara um homem ignorante de seu aspecto divino com alguém que teve os olhos atingidos por flechas.

REFERÊNCIAS:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

WATTS, Alan. Budismo. Barcelona: Editora Kairós, 2ª. Edição, 2005;

Vaticano: Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em < http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/index_po.htm > – Acesso em 07/09/2015.

MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: Madras, 2005;

O Movimento Focolares. Disponível em < http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/grandi-religioni/ > – Acesso em 15/07/2015;

MONTEIRO, J. A. Ensaios Filosóficos, Volume XI. Disponível em < http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo%2011/JoaquimAntonioMonteiro.pdf > – Acesso em 13/09/2015;

NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

MONTEIRO, Joaquim. Budismo e Filosofia (audiolivro). São Paulo: Universidade Falada, 2009;

XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

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Oração do ser utópico

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Senhor Deus, princípio criador de todo o infinito, sei que lhe dão muitos nomes e faces, e que também por você muita desgraça ainda é feita, tornando suas lágrimas um infinito pesar. Nunca soube, entretanto, meu senhor, por que lhe chamam assim, no gênero masculino, se toda forma de vida que conheço é gestada e parida no corpo e na alma das fêmeas. Dos homens, pelo que sei, elevam-se a espada, o ódio e o desejo desenfreado de dominação.

Na ânsia de suportar tanto horror e iniquidade volto sempre meus olhos às estrelas, ao firmamento e vejo o espetáculo da vida pulsando em tonalidades infinitas de cores banhando a natureza, a cada raiar do sol, e na fria luz que emerge da gigantesca lua que desponta na manta negra do anoitecer. Nestes momentos tenho a esperança de que vale a pena continuar, apesar de tudo! Senhor ou senhora Deus – sei lá -, que a humanidade possa um dia reerguer-se da estupidez e miserabilidade histórica que entope veias e carrega o sangue de veneno, e o mundo seja finalmente gentil com os famintos, dando abrigo aos desamparados; não por compaixão, mas porque a igualdade viria a ser um princípio vívido nos corações, não mais só um pressuposto criado nas letras com nomes de socialismo ou comunismo.

Mas, ainda assim, se o for, que sejam então impregnados de autenticidade. Sei que quando esse dia chegar, nunca mais choraremos por pequenos anjos tombados em praias, afogados na ignorância, atraso, retrocesso, fundamentalismo ou qualquer outra triste denominação que se queira dar ás bestas-feras que se proclamam duplamente sapiens. As nações ricas, que assim se tornaram à custa da espoliação, pilhagem e escravidão dos povos, dormirão na paz de berços sem muralhas, hoje, erguidos para conter o êxodo de refugiados que vieram cobrar suas quotas na infalível lei da ação e reação. Senhor-Senhora, que o humano possa finalmente vasculhar os poços escuros de seu interior e encontrar o que sempre procurou, mas nunca suportou, isto é, a si mesmo.

Que o vizinho, o governante, os subalternos, os superiores, os afetos e desafetos sejam uma extensão indivisível de cada um. “Só assim ‘bombas sobre o Japão não mais serão necessárias para fazerem nascer um Japão em paz”, não haverá mais partidos corruptos, porcos ou moluscos no poder, pois nós seremos o poder e a encarnação da justiça, finalmente reconhecendo-nos como partes de um todo, cidadãos e cidadãs de um mundo mais justo. Como desejou alguém um dia, salvo engano, seu próprio filho, amaremo-nos uns aos outros como a nós mesmos… Meu senhor, minha senhora-Deus, quando esse dia chegar, “façam a festa por mim”, colham as rosas por mim, lembrem-se de mim, pois há muito já terei ido juntar-me à poeira cósmica dessa e de outras galáxias… Terei cumprido a missão de qualquer ser vivente, que é ao mesmo tempo pequena e sagrada: nascer, viver e simplesmente voltar pra casa.

Que assim seja, amém…

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