Coraline e a procura pela excelência

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Coraline é uma garota que acaba de se mudar para uma casa nova com os pais, o local é enorme, mas sua família é dona apenas de uma parte. A casa é muito antiga, e sofreu algumas reformas ao longo dos anos e foi dividida em apartamentos. Os outros apartamentos também estão ocupados, e Coraline conhecerá cada um de seus vizinhos.

Há algo de especial na nova casa, além de seus vizinhos mais peculiares, a casa também é um pouco estranha, mas sem dúvida uma das portas da casa é a mais inusitada, pois estar apenas de frente para uma parede de tijolos.  Bem, a explicação mais óbvia é que quando originalmente havia apenas uma porta, a porta era uma passagem entre um cômodo e outro da casa, mas com a reforma, uma parede foi levantada para separar os cômodos. Agora, do outro lado da parede de tijolos estão os apartamentos adjacentes, o único ainda vago. Mas será que esta explicação é verdadeira?

Os pais de Coraline na maioria do tempo estão muito ocupados e têm pouco tempo de qualidade para vivenciar junto a sua filha. A menina não possui irmãos. Para passar o tempo, ela gosta de vivenciar atividades que esteja ligada a explorar, constituindo se como uma garota que é curiosa. Assim possui gosto por explorar novos ambientes, sendo algo que a deixa muito alegre. Ela passa horas explorando a natureza, no entanto uma tarde chuvosa estraga sua atividade preferida de ser realizada ao ar livre, e ela não tem escolha a não ser continuar suas aventuras dentro de casa.

Coraline se sente frustrada no seu relacionamento com seus pais, não correspondendo as suas fantasias não correspondem às suas fantasias inconscientes de pais idealizados do mundo interior. Coraline tem que lidar com a frustração, a falta de liberdade e a raiva causadas pela insensibilidade e ressentimento desses pais, bem como as partes de sua vida deixadas para trás pela mudança, como amigos, escola e palco. Em que estágio de desenvolvimento ela se encontra: Coraline está entrando na puberdade e passando pelos conflitos típicos dessa fase. Essa transição gerou muita dor em Caroline. Entre suas observações, Klein (1932) observou que na adolescência, a ansiedade e as manifestações afetivas são mais intensas do que no período latente, constituindo um ressurgimento das descargas de ansiedade.

O relacionamento de Coraline com os pais, principalmente com sua mãe, o objeto que a frustra, é bem separada. Assim o ego se torna frágil, pois também pode ser separado ao passo pela busca da gratificação, podendo ser também ser a elaboração dos seus desejos pulsionais.

A porta que estava na casa que não dava para lugar nenhum a intrigava, mas até então era apenas mais uma porta antiga.  E sentido se só, curiosa e com instintos aguçados, a garota resolveu olhar novamente para a porta, pegou a chave que sua mãe guardava e a abriu. Para sua surpresa, a parede de tijolos sumiu, como se nunca tivesse existido. Uma exploradora como Coraline não podia perder a chance de vasculhar o apartamento ao lado, então ela se escondeu no corredor escuro à sua frente. Aos poucos, a garota notou algo familiar no ar e, ao sair do corredor ela percebeu que estava na sua casa, no mesmo local que estava antes de abrir a porta.

Coraline se sentia bastante confusa, aquela não era sua casa.  No entanto, ela ouviu a voz de sua mãe na cozinha preparando alimento, porém era estranho, pois sua mãe não costumava cozinhar. Assim quando ela adentrou na cozinha, ela conseguiu compreender. Essa não é a sua casa. Essa não é sua mãe. Essa é sua outra casa, e a mulher na sua frente é sua outra mãe. Depois outro pai. Porém não existia outra Coraline.  Sua outra mãe e seu outro pai tinham grandes botões pretos costurados nos locais dos olhos, o que era horrível. Eles tentam mostrar que, desde que ela os aceites e permita que outra mãe costure botões pretos em seu rosto também, eles podem ser uma família feliz com tudo o que a jovem sempre quis. Coraline sai para explorar, tudo se parece com seu mundo real, e os outros vizinhos, e mesmo que não pareçam reais, ela entende que são outra versão deles.

Nesse outro mundo, Coraline tem tudo que sempre desejou. Ela possui os pais ideal, sendo tudo permitido por eles, sua outra mãe é quase perfeita, ela faz comida gostosa, ama Coraline, brinca com ela, e o mais importante tem tempo para ela. Seus outros pais a levam para dormir, sua outra vida parece ser perfeita, nesse novo mundo tudo é oposto, revelando seu desejo em modelar seu país de acordo com suas expectativas.

Todo o local é muito estranho, como se fosse uma réplica do mundo real, com algumas partes inacabadas. Apesar dos esforços de seus outros pais para agradá-la, Coraline queria voltar para sua casa. Tornou-se muito difícil porque seus outros pais estavam relutantes em perdê-la.

A sua outra mãe procura convencer a Coraline a ficar com eles, no entanto tinha uma condição de deixar costurar botões em seus olhos. Assim Coraline entende que nesse mundo perfeito, não era o que ela esperava, pois se ceder a vontade de sua outra mãe poderia perder a noção da realidade. Sua outra mãe agora transparece que é um mostro, aprisionado seu país verdadeiro. Coraline estava muito apavorada, e cada momento naquele lugar aterrorizante a deixava com muito medo, mas foi preciso muita coragem para enfrentar o perigo à frente.

Coraline era uma garota corajosa e conseguiu salvar seus pais, e percebeu que o seu objeto de desejo ideal não poderia ser correspondido, e que era normal as pessoas possuírem falhas, pois sua família assim como ela não poderiam ser perfeitos.

FICHA TÉCNICA

Título Original: Coraline

Autores: Neil Gaiman

Editora: Intrinseca

Páginas: 148

Ano: 2002

 

REFERÊNCIAS

KLEIN, M. “A Importância da Formação de Símbolos no Desenvolvimento do Ego”. In: Amor Culpa e reparação e Outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. 1930.

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Compêndio da Psicanálise: considerações sobre a obra não finalizada de Freud

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O Compêndio da Psicanálise foi iniciado por Freud em 1938 e não finalizado devido a sua morte. A partir desses escritos, realizaremos considerações sobre os três primeiros capítulos do livro.

No primeiro capítulo, o Aparelho Psíquico, somos apresentados à uma introdução que faz menção à metapsicologia e à justificação do inconsciente, conteúdos presentes no livro Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) que servem de embasamento para os estudos da personalidade sob uma perspectiva psicanalítica. O aparelho psíquico diz respeito ao id, ego e superego. A mais antiga dessas instâncias é o ego, aquele que serve como intermediário entre o id e superego, herdado e estabelecido desde nossa infância.

Em algum momento no desenvolvimento, essa instância se transforma e então se estabelece uma nova, o id, que é o mediador entre o ego e o mundo externo. Vale ressaltar que essa transformação se deu diante da recepção de estímulos e a proteção contra eles e aí reside umas das primeiras funções do id, que é a de autoconservação. Ele experimenta desprazer quando alguma tensão não é solucionada e prazer quando encontra evasão à essa tensão. Quando existe este desprazer, ele pode sinalizá-lo como medo motivado pelo perigo sentido na situação. Como características da autoconservação podemos citar a fuga, adaptação, armazenamento de experiências e a modificação do mundo exterior ao seu favor, o que vem a ser atividade.

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Para a introdução do superego no aparelho psíquico, Freud se utiliza da teoria econômica de distribuição da energia psíquica. Durante o desenvolvimento na dependência dos pais, se cria no indivíduo uma nova instância em que “essa influência parental tem continuidade” (FREUD, 2015, p. 50). Por sua vez, ela diverge do id e lida com suas demandas, do ego e da realidade, conciliando essas forças. No superego estarão presentes os discursos da família, da cultura, da sociedade, educadores e seus substitutos. Assim como afirma Freud, existem influências do passado presentes no ego e no superego, que apesar de sua diferença elementar, compartilham, no ego: de algo herdado e no superego de um passado que lhe é introduzido pela família e os demais.

Em Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) muito é falado sobre as pulsões do eu e do objeto, bem como a dinâmica dessas e seus deslocamentos. No segundo capítulo, a Teoria dos Impulsos, sintetiza essas duas pulsões como aquelas presentes em eros, que é a pulsão de vida, de criação, autoconservação e o seu contrário é a pulsão de morte, também conhecida como tânatos, que busca o estado inorgânico das coisas. À energia presente em eros, se dá o nome de libido, que cumpre o papel de neutralizar as tendências destrutivas existentes no id-ego e que podem ter destinos variados, como vimos no livro citado anteriormente, que poderá 1) fazer com que o afeto continue no todo ou em parte, 2) se transformar e tornar-se angustia ou 3) ser suprimido. Ainda sobre a libido, devemos ressaltar a sua mobilidade e fixação. Na primeira, existe uma função desejada do dinamismo da libido, em que passa de um objeto para o outro e na segunda um estado que pode perdurar por toda a vida e que leva à um empobrecimento psíquico.

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No terceiro capítulo, o Desenvolvimento da Função Sexual, aponta-se que há quatro fases, a oral, anal, fálica e genital. Primeiramente, é falado sobre o escândalo que a psicanálise causou em sua época quando formulou que a sexualidade está presente desde a infância e influencia os indivíduos de forma pontual, mas procura esclarecer que a genitalidade é diferente de sexualidade e que na vida sexual o ganho de prazer existente num primeiro momento nada tem a ver com reprodução.

O primeiro órgão que faz solicitações libidinosas é a boca, que busca satisfação biológica e que aspira pelo ganho de prazer. Por esta razão, se faz sexual. Neste capítulo, Freud adentra na questão edípica de que na mulher falta o pênis e que o processo de finalização do édipo não se dá como no menino, pois ela se percebe sem o falo e vive uma frustração, se distanciando por algum tempo da vida sexual. Esta teoria teve contribuições posteriores e novas perspectivas através dos estudos psicodinâmicos.

As três primeiras fases não acontecem quando uma finaliza, mas se justapõem e uma se acrescenta à outra. A organização completa se dá na fase genital, em que alguns processos são finalizados com sucesso e outros são recalcados, salientando que nem sempre essa organização se dá de forma impecável. A construção desse pensamento finaliza-se na importância de estudar esses fenômenos pelo ponto de vista dinâmico e econômico e que a etiologia das perturbações deve ser estudadas no primeiro período de vida do indivíduo.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Compêndio da Psicanálise. Porto Alegre: L&PM, 2015.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Aladim, os jogos de poder e o processo de iniciação da Alma

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Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Aladim é um filme de 2019, adaptado do desenho animado Aladdin, de 1992, e baseado no conto árabe As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. O conto Aladim na verdade só se uniu as Mil e uma noites a partir do século XVIII, anteriormente ele não fazia parte da narrativa do livro.

No conto o jovem Aladim é descrito como um adolescente que se recusa a aprender o ofício do pai, que é alfaiate, sendo descrito por sua mãe como imaturo, “esquecido que não é mais criança”. O nome Aladim pode significar em árabe a “nobreza da fé”. Ou ser advindo da mistura de Alá e Djin (gênio ou daimon).

Djin ou Jinn, significa gênio na religião muçulmana, e era uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o divino e humano. Estava além do bem e do mal, e rege o destino de alguém ou de um lugar.

Ele é um espírito guardião designado para cada pessoa ao nascer. Portanto, o gênio é concebido como um ente espiritual ou imaterial, muito próximo do ser humano, e que sobre ele exerce uma forte, cotidiana e decisiva influência. Sendo ele o responsável pelo cumprimento do destino de cada ser humano. Ou seja, Aladim é o herói que liberta o espírito divino preso na lamparina. Libertar o gênio não é um processo fácil, é o processo da individuação que exige disciplina e coragem.

Fonte: encurtador.com.br/fgwO7

No filme Aladim é um órfão pobre e ladrão, que vive em Agrabah. Ele é chamado de “rato de rua” e seu amigo é um macaco que o acompanha em suas aventuras. Mas antes de adentrar a história mesmo, é importante comentarmos sobre um simbolismo muito importante: o da lâmpada mágica.

A lâmpada é uma figura presente em contos e lendas. Ela é um instrumento de iluminação associada ao ser humano, que contém em si o fogo do interno. Como lamparina ou lâmpada é transitória e o fogo dessa iluminação pode se extinguir, sendo necessário o tempo todo ser aceso. Ou seja, o ser humano precisa de tempos em tempos reacender o fogo da espiritualidade em si, pois enquanto matéria, somos levados a nos manter inconscientes e em nossa zona de conforto.

O fogo e o gênio são acionados quando nos esforçamos e decidimos adentrar em nosso interior. A lâmpada é na verdade uma lamparina semelhante àquelas utilizadas na iluminação doméstica.

Na Grécia antiga o culto da deusa Héstia, deusa representada pelo fogo, era feito em seu templo e em casa, por meio do fogo que deveria ser mantido aceso sempre. As sacerdotisas dos templos tinham que estar sempre atentas para que esse fogo não se apagasse.

Fonte: encurtador.com.br/aJOS4

Héstia também estava presente em cultos domésticos. A importância de Héstia é encontrada em rituais, simbolizada pelo fogo. Para que uma casa se tornasse um lar, a presença de Héstia era solicitada.

Ou seja, o fogo do espírito deve estar presente em nosso recôndito mais íntimo, no nosso lar interno. O fogo do espírito, ou seja, o conhecimento além da simples matéria, o fogo da essência divina (do Self) deve estar sempre presente no nosso cotidiano.

Aladim no filme é inquieto, está em busca de algo que o tire da rotina e não se preocupa em encontrar uma profissão e ganhar seu dinheiro. É tido como irresponsável e infantil. Porém, estamos falando de um herói. E como herói é necessário que olhemos para ele não como um ser humano comum, mas como uma imagem arquetípica.

O herói não necessariamente é aquele que luta e mata os monstros, dragões e bruxas. Ele muitas vezes pode se apresentar como um bobo, ou como alguém com caráter duvidoso (o anti-herói).

Fonte: encurtador.com.br/cdKL5

Como ladrão, Aladim apresenta características do deus Hermes. Hermes é o deus grego da inteligência, astúcia, magia, divinação, viagens, estradas e dos ladrões. Além de ser um guia de almas. Era o único deus capaz de transitar nos três mundos: deuses, humanos e dos mortos. Se tornando o mensageiro dos deuses. Mas o principal atributo de Hermes é a alquimia. Deus alquímico, transformador e guia da alma humana.

A alquimia representa a mais profunda transformação humana. É o processo de individuação projetado na transformação da matéria sem valor em algo valoroso. Podemos, portanto, observar Aladim como essa matéria bruta que irá se transformar em algo valioso.

Aladim tem como amigo um macaco, um animal que está muito próximo do ser humano. Para os Astecas e Maias o macaco estaria ligado às artes e à sabedoria. No hinduísmo havia um deus macaco chamado Hanuman. Ele era cultuado como uma encarnação do deus Shiva, que encarnou com a missão de ajudar um rei a derrotar um demônio. Hanuman representa a natureza instintiva do ser humano e a sua origem animal, que pode ser transformada e transmutada para o encontro com o divino.

Simboliza também a mente humana, que pula como um macaco para um lado e para o outro, de galho em galho, sem foco. Ao desejarmos tudo o que vemos nossa mente se atrapalha e se distrai nos tirando do que é essencial. Uma clara armadilha do ego humano. Hanuman transcende as paixões do ego e os sentidos e simboliza a disciplina da mente.

Fonte: encurtador.com.br/qtyZ9

No filme, Aladim parece não ter foco. Ele mesmo pula como macaco e vive distraído. Porém, seu macaco mostra a virtude do foco que acaba sendo essencial em diversos momentos cruciais, sendo um deles o encontro com a lâmpada mágica.

Aladim é escolhido então pelo vilão Jafar para ir buscar a lâmpada em uma caverna, pois esse possui as qualidades necessárias para poder entrar e sair vivo. O rapaz vai ao deserto com Jafar, confiante, e ele entra nessa gruta. Mas antes é avisado de que lá ele encontraria muitas jóias e tesouros, mas que não deveria tocar em nada. Ele deveria focar em encontrar uma lâmpada antiga e trazer para Jafar.

A entrada na caverna, ou descida, é um tema comum nos contos e jornadas heroicas. Trata-se de um mergulho do herói em si mesmo para buscar algo de valioso. Psiquê desce ao mundo de Hades para buscar a beleza de Perséfone, Orfeu para buscar sua amada, Héracles desce para pedir o cachorro Cérbero emprestado. Odisseu e Enéias também descem.

Descer exige coragem para enfrentar suas imperfeições, seus pesadelos. Deve-se ter foco para isso, pois é fácil se perder neste processo. Trata-se de um grande teste e de um processo de purificação para que o herói seja apto e digno de encontrar o tesouro e ser realizado.

Fonte: encurtador.com.br/azAIS

Cada vez que um ser desce ao submundo e enfrenta a provação, ele se despoja de um ou vários aspectos impuros de seu interior. Ele se purifica de aspectos egóicos e infantis para que possa retornar, ascendendo sua consciência. Trata-se da verdadeira iniciação, a da alma.

A descida de Aladim é a de se despojar dos desejos egóicos e focar no desejo do espírito (a lâmpada), que irá guiá-lo ao seu destino. Para isso só alguém puro (não necessariamente perfeito), ou seja, alguém que não tem pretensões egóicas, que se entrega a jornada sem imaginar qual será o resultado.

Após Aladim retornar da gruta, Jafar pede a ele que entregue a lamparina. Mas Jafar o engana e ele fica preso na gruta. No entanto, a lamparina também fica com ele. Ao friccionar a lâmpada suja, aparece então o gênio. Aquele que irá satisfazer seus desejos e será seu daimon. O gênio lhe concede três desejos, e ele então pede que seja tirado de lá.

Aladim antes de conhecer o gênio havia conhecido a filha do sultão. Ela diz a ele que é a empregada da princesa e ele se apaixona. Após saírem  da caverna, Aladim usa seu desejo de se tornar um príncipe para impressionar Jasmine (sem saber quem ela de fato é).

Fonte: encurtador.com.br/fozRX

Ele se transforma em um príncipe com muitas riquezas, mas não impressiona a moça. Ela deseja mais do que apenas riquezas e o seu pretendente precisa estar à altura de sua nobreza, não externa, mas interna. Jasmine, do ponto de vista do herói, pode ser a anima que desafia o homem a encontrar o seu valor. A olhar para dentro de si e não apenas para fora.

Mas Jafar descobre a verdadeira identidade do príncipe e o joga no mar. No entanto, o gênio o salva. Temendo que Jasmine descubra sua identidade e a presença do gênio, ele se recusa a libertá-lo, sucumbindo á sua sombra, que é o poder.

Além disso, o sultão, pai de Jasmine, está velho e cansado e sucumbe ao poder de seu aspecto sombrio, simbolizado por Jafar.

O reino também não possui uma rainha, ou seja, o aspecto feminino não está presente na consciência coletiva. Quando esse aspecto está reprimido há um endurecimento dos sentimentos e uma instalação de seu oposto, o poder!

As leis são embrutecidas e não há lugar para o lado humano. Vemos isso em uma cena que Jasmine permite que uma criança roube uma maçã e sendo então condenada a perder a mão.

Lei é lei apenas, não se faz nada pelo simples fato de amar alguém. E é esse o grande ensinamento de Jasmine. Ela simplesmente ama Aladim, e está disposta a quebrar as regras por amor.

“Você confia em mim?”
Fonte: encurtador.com.br/uyBF5

A princesa também tem de lutar com o preconceito contra seu gênero. Ela luta para que seus subordinados aceitem as ordens dela, pois quem dita as ordens é Jafar, o tirano ambicioso colocado pelo próprio rei como comandante. Além disso, ela só terá o poder de “se livrar” de Jafar quando for rainha, o que só acontece com o casamento. Isso mostra que até certo momento, em nossa sociedade, a mulher só tem valor com o casamento. De forma velada, isso perdura até hoje.

Outro aspecto do filme que é muito interessante, é a relação de Aladim com o gênio. Ao logo do filme, o gênio deixa de ser apenas aquele que satisfaz os pedidos do herói para se tornar um protetor e guia. Aladim passa a ouvi-lo e ao final o liberta da prisão.

Libertar o gênio significa libertar o divino para que possa ocupar o mundo. Enquanto está na lâmpada ele se mantém preso à ganância do ego.

Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Quando temos um dom, esse dom não é apenas para a nossa satisfação momentânea e do ego, mas para que possamos servir a humanidade através dele, uma vez que o dom veio pelo divino, pelo inconsciente.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

 

Aladdin

Diretor: Guy Ritchie
Elenco:Will Smith, Mena Massoud, Naomi Scott
Gênero: Aventura, Fantasia
País: EUA
Ano: 2019

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Amadurecimento e “dissolução do ego”: aproximações entre a Psicologia Analítica e a Filosofia Oriental

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É possível renunciar à hegemonia do Ego, dando espaço para que outros componentes e estruturas da psique – até então inconscientes, mas tão importantes quanto o Ego – possam se manifestar

Depois que o Ocidente entrou em contato com as filosofias e religiões orientais, e com a crescente popularização desses conhecimentos, tornou-se bastante comum ouvirmos dizer que é preciso “abandonar o Ego” ou que é necessário que “o Ego seja dissolvido”. Do ponto de vista da Psicologia, essa concepção não está completamente errada, mas há algumas considerações que precisam ser feitas, de forma a evitarmos perigosos mal entendidos e compreendermos exatamente a que se referem esses termos. Para tanto, precisamos olhar para o processo de estruturação e consolidação dessa instância em nossa psique, sua função e importância, para depois podermos compreender o que significa essa “dissolução”.

De forma geral, o desenvolvimento e amadurecimento do Ego se dá a partir de três níveis (ou estágios) sucessivos e distintos entre si: um primeiro estágio de indiferenciação psíquica, um segundo estágio onde há o surgimento e estruturação do Ego e um terceiro estágio onde deve haver a tal “dissolução”, que é, na verdade, a subordinação do Ego à uma realidade maior, o Self, também chamado por Jung de Si-mesmo.

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No momento em que nascemos e, mais ou menos, nos dois anos seguintes, a estrutura da psique ainda não está organizada. Não há um Ego, o que significa que não há ainda um senso de identidade, individualidade e existência. Estamos em identificação com a realidade inconsciente, ou seja, somos inconscientes: não há diferenciação entre nós e aquilo que nos rodeia, entre mundo interno e mundo externo. Vivemos a vida ao sabor dos instintos e dos impulsos psíquicos básicos e reagimos a partir deles. Quando somos confrontados por dificuldades nessa fase, sentidas por nós como insuperáveis e que impedem a manifestação desses mesmos impulsos e instintos, costumamos reagir com violência e descontrole emocional. É o tipo de comportamento característico das crianças pequenas e, também, de certos transtornos em indivíduos adultos, cuja estruturação egóica foi comprometida em algum ponto e medida durante essa fase do desenvolvimento. 

Em seguida, para que possamos dar conta das demandas da realidade objetiva, a psique inicia um processo de diferenciação dos seus componentes, através da organização de uma personalidade individual. O Ego vai emergindo lentamente da totalidade inconsciente, estruturando-se como centro da Consciência. Ele, então, torna-se o principal organizador das atividades psíquicas, entre elas o pensamento, o sentimento, a percepção, a intuição, a linguagem e a memória. Os desejos e impulsos instintivos se subordinam a ele, ficando sob o controle consciente. Surge o senso de Eu: nos reconhecemos como uma individualidade separada e começamos a sentir necessidade de nos afirmar e impor no mundo. É, portanto, uma fase bastante marcada pelo autocentramento e, também, pelo individualismo e competitividade, pelos medos e apegos, pelas inibições e restrições e pelos sentimentos de superioridade ou inferioridade, entre outros, pois o Ego percebe-se como algo separado de todo o resto. Quando enfrentamos alguma dificuldade, quando somos frustrados na satisfação dos nossos desejos, costumamos culpar fatores externos, o destino ou os outros, atitude considerada bastante normal para os padrões da nossa cultura. 

No entanto, esse modo de operar vai gerando uma carga cada vez maior de sofrimento, de modo que o Ego vai sendo conduzido para o próximo estágio do desenvolvimento. Agora, ele precisa começar a perceber suas verdadeiras dimensões e capacidades e a se experimentar, não mais como o centro da totalidade da psique e do mundo, mas apenas como uma pequena parte deles. É a fase do reconhecimento e subordinação ao Self, a realidade psíquica maior, que abrange tanto o consciente quanto o inconsciente, à qual o Ego deve se submeter e estar à serviço. É a hora de abrir espaço para que tudo aquilo que somos se manifeste, para que seja compreendido, assimilado e integrado.

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Nesse estágio, começamos a perceber as dificuldades como verdadeiras oportunidades de crescimento. Procuramos encontrar as causas e as explicações para as restrições sentidas em nosso mundo interior, assumindo a responsabilidade pelos nossos problemas. E, na mesma medida em que o Ego – e suas imposições – vão gradualmente diminuindo de tamanho, vão também diminuindo nossos sentimentos de medo, inibição e limitação, dando lugar à sentimentos de aceitação, compreensão, cooperação, solidariedade, humildade, desapego, transcendência. Entramos para a fase da sabedoria e individuação, o caminho de nos tornarmos quem realmente somos.

Isso é o que muitas das antigas tradições orientais querem dizer quando falam do “abandono”, “morte” ou “dissolução” do Ego. Não que ele deva desaparecer, até porque isso significaria regredir ao estágio anterior a ele – identificar-se novamente com a totalidade inconsciente, ser dominado pelos instintos e impulsos psíquicos básicos, perdendo contato com a razão e a realidade objetiva – o que só acontece na insanidade. O que se propõe é que possamos chegar a um determinado nível de desenvolvimento em que seja possível “abrir mão” da sua hegemonia, dando espaço para que outros componentes e estruturas da psique – até então inconscientes, mas tão importantes quanto o Ego – possam se manifestar, contribuindo para nos tornarmos cada vez mais íntegros e em harmonia com a realidade interna e externa.

“Tudo acontece como se o ego não tivesse sido produzido pela natureza para seguir ilimitadamente os seus próprios impulsos arbitrários, e sim para ajudar a realizar, verdadeiramente, a totalidade da psique”, como disse Marie Louise Von Franz, principal colaboradora do Jung, em “O Homem e seus Símbolos”.

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O surgimento da clínica psicanalítica

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É sabido que clínica remete a características médicas e por isto as raízes do modelo biomédico são bem marcantes, mas esta dinâmica muda a partir da Psicanálise

A palavra Clínica é de origem grega –kline– que significa leito, ou seja, é a prática médica a beira do leito, um conceito totalmente biomédico. No entanto, outros autores conceituaram a atividade clínica visando o biopsicossocial. Canguilhem (1995, p. 16) afirma que a atividade clínica “[…] é uma técnica ou uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita”.

É sabido que clínica remete a características médicas e por isto as raízes do modelo biomédico são bem marcantes. Procedimentos como escutar, observar, hipotetizar e diagnosticar provam tais raízes. Tanto que a clínica psicanalítica foi construída e dissipada por um médico, Sigmund Freud, que teve interesse em estudar diversos fenômenos que influenciavam no adoecimento do sujeito.

Freud iniciou sua carreira profissional na neurologia, realizando pesquisas em Viena, no laboratório de Ernst Brücke. Em seguida, no ano de 1882, foi trabalhar no setor de psiquiatria do Hospital Geral de Viena, adquirindo grande experiência técnica e prática com a psicopatologias. Sigmund passou um período em Paris, trabalhando com o neurologista Jean Martin Charcot, no Hospital Salpêtrière. Pouco tempo depois retornou a Viena, abriu um consultório particular e passou a atender doenças nervosas. Desta forma, mulheres histéricas chegaram até ele, sendo um marco importantíssimo e que abriria porta para uma nova ciência, a Psicologia. (Zimerman, 1999).

Fonte: encurtador.com.br/eBGJZ

Freud passou a ter interesse por doenças vistas como intratáveis por alguns médicos da época, o que lhe possibilitou a iniciar pesquisas sobre a histeria, estendendo-se a outras patologias e questões culturais. Sigmund conceituou o inconsciente, e hipotetizou que algumas patologias poderiam ter cura através da tomada de consciência. Logo, passou a estudar manifestações através de experiências traumática dos sujeitos, estas que eram recalcadas, de forma inconsciente. Com o objetivo de romper o recalcamento trazendo a consciência, e para isto passou a fazer uso do hipnotismo, técnica que aprendeu durante a experiência que teve com Charcot (Freud, 1913).

Em 1880 Freud conheceu Josef Breuer e teve a oportunidade de adquirir experiência sobre hipnose, que era aplicada em doentes nervosos, no laboratório de Bücke. A histeria deixou de ser classificada orgânica – “doença do útero” –  e passou a ser classificada como doença psíquica – “doença nervosa sem lesão anatômica apreciável” (Ferreira e Motta, 2014).  Freud intensificou sua investigação na histeria, afim de descobrir suas possíveis causas etiológicas, chegando a neurose, que chamou de “modificação patológica funcional”, tendo a vida sexual do sujeito como a etiologia do problema (Freud, 1896a).

No decorrer de seus estudos, Freud começou a desacreditar da hipnose, já que esta técnica não trazia resultados permanentes e nem sempre era bem-sucedida, sendo importante um bom vínculo entre médico e paciente (Freud, 1924).  A partir de então, Sigmund passou a fazer uso da escuta terapêutica, que é uma técnica muito importante para que se tenha um atendimento clínico eficaz.

Freud: além da alma. Fonte: encurtador.com.br/lyzSW

Os pacientes eram convidados a se acomodarem em um divã, e Freud ficava atrás do paciente, desta forma o paciente poderia falar o que viesse a mente, sem vê-lo, ou preso a algum tipo de campo visual e sem julgamento moral (Freud, 1904). Este método chama-se “associação-livre”, e partir dele tornou-se necessário a elaboração de uma técnica de interpretação das falas dos pacientes, de conteúdos latentes, isto por que a resistência impedia que o conteúdo viesse a consciência (Freud, 1913).

Assim, a partir da associação livre, os pacientes falavam de modo espontâneo, de forma a abster-se de reflexões conscientes. Em seguida Freud interpretava alguns conteúdos, isto porque muitas coisas ditas faziam parte do que era esquecido, em forma de alusões. (Freud, 1924). Baseado em estudos, Freud hipotetizou que o material recalcado está relacionado a conteúdos de satisfação proibida. Logo, os sintomas são substitutos de tais desejos de satisfação, que normalmente vai contra a moral social e religiosa do sujeito (Freud, 1924).

É importante ressaltar que ao avançar em suas pesquisas, Freud afirmou que determinados aspectos e fenômenos, de um indivíduo, se respaldam em vivências desde a tenra infância e de como tal sujeito simboliza e significa no momento atual em que vive. Dessa forma Freud (1940/2014) conceituou a constituição da nossa psique humana, e denominou três instâncias: Id, Ego e Superego.

Fonte: encurtador.com.br/kqTUV

Segundo Freud o id é constituído por um conjunto de conteúdos de natureza pulsional e de ordem inconsciente, funcionando como uma reserva inconsciente dos desejos e impulsos de origem genética, com o intuito de preservar e propagar a vida. Parte dos conteúdos do id são hereditário e inato, assim como podem ser adquiridos e recalcados. Do ponto de vista “econômico”, o id é que opera o ego e o superego, pois é a fonte e o reservatório de toda a energia psíquica do indivíduo. Do ponto de vista “dinâmico”, o id interage tanto com a realidade exterior (ego), como com a introjetada (superego).  Do ponto de vista “funcional”, o id é procura resposta imediata pelo prazer, logo é regido por ele e tem a função de descarregar as funções biológicas.

O ego é o resultado da capacidade de diferenciação do real e do imaginário. Sendo parte consciente e parte pré-consciente.  Como sua capacidade de diferenciação incube diferenciação, seu objetivo é ajusta-se ao ambiente. De modo a solucionar conflitos entre o organismo e a realidade. Assim, o ego tem o papel de mediar o id e o mundo exterior, assim como lidar com o superego e suas memórias e necessidades físicas corporais. É como viver em um duelo, em que por um lado é pressionado pelos desejos insaciáveis do id e por outro pela repressão severa do superego, assim como as ameaças de ordem social do mundo exterior.

Fonte: encurtador.com.br/ceB24

O superego é o órgão psíquico da repressão, e se desenvolve a partir do ego, em um período situado entre a infância e o início da adolescência, em que Freud conceitua como período de latência. Isto por que de acordo com o psicanalista, é neste período que a personalidade moral e social é formada. Logo, o superego atua como uma espécie de juiz, que julga o certo e o errado. Desta forma é estabelecida uma censura de impulsos que a sociedade, a cultura e a religião proíbem ao id. O que impede o sujeito de satisfazer plenamente seus desejos e instintos.

Diante do exposto é possível ver que Freud saiu da postura de ´´dono do saber“, passando a escutar seus pacientes, e descobriu que apesar de o sujeito sofrer por algo que não sabe, o saber está contido em seus discursos de associações livres. Logo, é importante destacar que a construção da clínica psicanalítica foi dissipada por Freud, decorrente de sua experiência clínica, ao dar importância a etiologias psicológicas, e para isto formulou métodos clínicos como o de a associação livre, escuta flutuante, transferência e interpretações.

Fonte: encurtador.com.br/mnF14

Dessa forma, na visão psicanalítica, o ser humano é visto como “sujeito”, pois detém consciência de seu processo histórico, capaz de fazer reflexões sobre o espaço-tempo vivido, assim como se reconhecer e ser o protagonista de sua própria narrativa.

Referências

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FREUD, Sigmund. O ego e o id. Londres, Inglaterra, Imago, 1927.

FREUD, Sigmund. Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. Tradução de Pedro Heliodoro Tavares.

FREUD, S. (1940 [1938]). Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados: edição bilíngue. Obras Incompletas de Sigmund Freud. V. 3. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

ZIMERMAN, David. E. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre, Artmed, 1999.

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Toda a sua História: somos capazes de lidar com nossas memórias?

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Black Mirror, uma série britânica criada por Charlie Brooker, traz a cada nova temporada reflexões sobre avanços da sociedade moderna e seus efeitos no cotidiano dos sujeitos mostrando um futuro não muito longínquo.

Buscando uma visão não tão distante do ponto no qual nos encontramos pela diversidade tecnológica que dispomos, o terceiro episódio da primeira temporada, traz uma amostra de tais tecnologias expondo um implante chamado “Grão”, usado na intenção de possibilitar o controle total de memórias a cada um de seus usuários, permitindo-os a reprodução das mesmas através de seus olhos, ou até a projeção em televisões.

Fonte: https://goo.gl/TZqi4r

Fazendo uma analogia visando o contexto da literatura brasileira, a história de Liam e Fi, pode ser observada com os mesmos olhos de Dom Casmurro, uma obra de Machado de Assis, publicada em 1899, na qual toda a trama se desenvolve a partir do questionamento “Capitu traiu ou não Bentinho?”, trazendo certo suspense para o enredo.

Liam (TobyKebbel) é um advogado em emergência, que dá início ao episódio em uma entrevista de emprego. Casado com Fi (Jodie Whittaker), Liam começa a desconfiar da esposa após um encontro de antigos amigos no qual nota certa tensão entre ela e Jonas (Tom Cullen), comportamentos estranhos e determinada omissão de informações por parte de ambos. Obcecado por descobrir qual o tipo de relacionamento existente entre os dois, Liam começa a repassar incansáveis vezes suas memórias sobre a noite passada e confronta sua esposa de uma maneira incessante.

Freud em 1895 postula reflexões sobre os chamados mecanismos de defesa, pelos quais o Ego frente às exigências das demais instâncias psíquicas, Id e Superego, se manifesta de forma a proteger o sujeito de conteúdos que para si sejam potenciais vias de adoecimento. O recalcamento, um dos mais antigos mecanismos, tem como função principal a eliminação de partes inteiras da vida afetiva e relacional profunda do indivíduo. Bergeret (2006) define o recalcamento como um processo ativo, destinado a guardar fora da consciência as representações inaceitáveis para a pessoa.

Fonte: https://goo.gl/1gKWrG

Este episódio da série em especial, traz reflexões sobre as limitações mentais do ser humano e até que ponto o total controle de seus pensamentos, emoções e memórias podem ser considerados saudáveis e sobre o possível distanciamento dessa condição no processo de saúde e doença. Liam, se torna obsessivo em relação a análise de todas as situações vividas por ele, trazendo desconforto ao mesmo de tal maneira, que todas as situações, que possivelmente para todos seriam ignoradas ou menos significativas, para Liam acabavam em pontos de intermináveis discussões. Não obstante o fato da real traição da esposa, a grande reflexão proposta aqui é sobre o uso excessivo do dispositivo, não sobre a ocasião da traição.

Os mecanismos de defesa psicanalíticos na maioria das vezes têm como função principal o alivio de tensão psíquica do ser humano, servindo como via de escape para problemas de pouca (ou maior) importância, possibilitando certa “qualidade de vida” ao sujeito em hipótese. Após incansáveis análises aos fatos ocorridos, Liam chega à conclusão de que realmente ocorrera o ato de infidelidade, entra em conflito com Fi e sai de casa deixando esposa e filha, removendo por conta própria ao final o Grão.

Levando em consideração aspectos ainda não citados, todas as pessoas que por motivos diversos não se utilizavam desta tecnologia, eram tidos como estranhos no meio social, se relacionando a posicionamentos políticos pouco convencionais, divergentes dos meios de vida vigentes. Zygmunt Bauman(2003), sociólogo polonês, trata em sua obra Modernidade Líquida sobre temas como estes, o movimento da sociedade em convergência com o avanço da tecnologia e reflexões sobre o desenvolvimento do ser humano em relação a ela. Como última reflexão, deixo este trecho do livro, que de alguma maneira reflete o que foi discutido aqui.

Fonte: https://goo.gl/TFLTAL

Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever público […] (BAUMAN, 2003).

REFERÊNCIAS:

Bergeret, J. O problema das defesas. In: Bergeret, J. …[et al.]. Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed, 2006.

Freud, Sigmund. (1915). O Recalcamento. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

 

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Fragmentado: as fantasias libidinais de Kevin

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“A identidade do sujeito é um produto das relações com os outros. Neste sentido todo indivíduo está povoado de outros grupos internos na sua história. Assim como também povoado de pessoas que o acompanham na sua solidão, em momentos de dúvidas e conflito, dor e prazer. Desta maneira estamos sempre acompanhados por um grupo de pessoas que vivem conosco permanentemente”, dizia Pichon Rivière [1].

Mas o que fazer quando se perde o controle? Quando cada uma dessas pessoas somos nós mesmos? Fragmentado, o título em português do filme “Split” (dividido) marca a volta por cima do diretor Shyamalan, explorando um roteiro dramático, onde o suspense ganha mais espaço nas viradas e nos enquadramentos fechados de uma grande angular, que intensificam o conceito de profundidade de campo dentro da história, ao desfocar todo o fundo, torna-lo distante e trazer à tona a interpretação dos atores. Dessa forma cada expressão fala mais que as palavras, cada olhar revela mais que as imagens.

Nesse ponto, torna-se até redundante algumas falas da psiquiatra de Kevin buscando explicar o que as atitudes do personagem já haviam deixado claro, como o diálogo entre suas personalidades, a manifestação de mais de um ao mesmo tempo, dentre outras tentativas didáticas de informar o público sobre aspectos do Transtorno Dissociativo de Identidade.


Hedwig, Patricia, Dennis e Barry.

O título do filme em português remete à teoria psicanalítica sobre a fragmentação do Ego, e olhando por esse lado, se Shyamalan tivesse explorado essa abordagem a partir da personagem da terapeuta a história poderia ter ficado ainda mais intrigante. Todavia, o foco ficou mais no campo neurocientífico das reações corporais dada a manifestação de cada personalidade, sendo pouco explorados os aspectos psicológicos que geraram a patologia. Mas, vamos falar sobre Kevin. Brilhantemente interpretado por James McAvoy, o rapaz possui em si 23 pessoas, ficando a 24ª em suspense por algum tempo, entre a fantasia e a realidade, dado o fato de nenhuma das pessoas da Horda (como prefere ser chamado o grupo) terem conhecido-a.

Dentre todas as identidades que habitam o corpo de Kevin, Dennis é a dominante, ao lado de Patricia, uma dama requintada, são eles os protetores das outras personagens consideradas mais frágeis, também são eles que sustentam a existência do monstro, nunca visto, mas que acreditam ter sido criado quando o pai de Kevin partiu em um trem, e que aguarda o momento certo para aparecer e proteger o grupo dos humanos, visto que ele é o ápice do aprimoramento dos mecanismos de segurança da psique de Kevin. Nesse ponto a história de Shyamalan ganha ares de X-Men, e o que é considerado patológico e anormal pela sociedade, de outro ponto de vista é apresentado como um ganho evolutivo para a proteção tanto física quanto psíquica do indivíduo, que de outra forma poderia ser destruído. Discussão abordada por Canguilhem [2].

Dennis, uma das identidades dominantes em Kevin.

Mas, voltando à discussão sobre as identidades, cada uma surge em um momento crítico da vida de Kevin com o objetivo de protegê-lo do perigo, são partes de um Ego fragmentado que nunca conseguiu se unificar. A psicanálise de Melanie Klein [3] explica que, ao nascer o Ego rudimentar do indivíduo ainda é frágil e em formação, isto posto, diante das pressões e ameaças externas, o Ego tende a se fragmentar, gerando terreno fértil para o desenvolvimento de diversas doenças psíquicas. Para Klein, o local de fixação das doenças psíquicas estaria na posição esquizoparanoide – que termina por volta do terceiro ao quarto mês de vida – e no início da posição depressiva que a segue. Sendo assim, a origem se dá a partir dos cuidados maternos, que no caso de Kevin ficam claros terem sido precários, para não dizer maus.

Na infância que se segue, a relação entre Kevin e a mãe tem uma continuidade permeada por violência, o que favorece a fragmentação do Ego e o surgimento das diversas personalidades, uma delas é Hedwig, um garoto de nove anos assustado e que furta objetos das outras identidades para poder brincar, teme a Dennis e a Patrícia, mas confia neles e os obedece como se eles fossem o pai e a mãe que o protege das ameaças externas. Já Dennis é compulsivo por limpeza e organização, extremamente meticuloso, inteligente e forte, tem fantasias com garotas stripper, é ele o sequestrador e detentor do controle sobre o grupo, ao lado de Patrícia que, por sua vez, é uma dama requintada, elegante e também meticulosa como Dennis, se irritando até com um corte torto num sanduíche.

Patricia.

Esses dois personagens reclamam serem os mais fortes, os únicos capazes de proteger Kevin, mas que foram banidos da consciência, ficando adormecidos durante muito tempo, e agora voltaram devido às neuroses [4] de Barry, o artista, designer de moda, que ficou por 10 anos com a luz, mas teve suas angústias atualizadas mediante uma provocação sexual de duas garotas.

Não conseguindo superar a situação, a libido de Kevin retorna ao ponto de fixação de onde surgiram Denis e Patrícia trazendo-os de volta para proteger os demais das ameaçadoras garotas “impuras” que o abusaram no presente, atualizando possíveis abusos sexuais e violência vivenciados na infância. A partir desta situação entende-se o sequestro planejado das duas adolescentes, entrando a terceira no caso por acidente.

Os abusos sexuais na infância de Kevin, apesar de ficarem apenas no campo da hipótese, são evidenciados na mania de limpeza de Dennis, que busca a todo o tempo se livrar das impurezas, do pó, bem como em suas fantasias eróticas com garotas dançando nuas e, também, em sua relação com a terceira personagem sequestrada por acidente. E ainda, nas angústias de Barry, no perfeccionismo de Patrícia e na crença da eliminação das garotas impuras que, de abusadoras, passam a ser alimento sagrado para o monstro.

Este, por sua vez deseja devorar seus ventres, numa alusão à figura materna que o gerou. Este ato também remete a uma atualização do Complexo de Édipo e do mito da horda primitiva de Tótem e Tabú [5], onde, ao devorar o ventre ele tanto possui a mãe quanto destrói o pai, presente neste através da semente plantada em seu útero, o que, portanto, simboliza o devorar o próprio pai, finalmente destruindo seu opositor e se apropriando de seu falo e conquistando o poder.

REFERÊNCIAS:

[1] ALONSO, A. N. D. S., Rio de Janeiro, (2003). A importância da afetividade no relacionamento professor-aluno para o sucesso do processo ensino-aprendizagem. Disponível em: http://www.avm.edu.br/monopdf/6/ADRIANA%20NASCIMENTO%20DA%20SILVA%20ALONSO.pdf.

[2] CANGUILHEM, G., (1943,1995). O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. – 4a. Ed.- Rio de Janeiro, Forense Universitária.

[3] Klein, M. (1986b). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In M. Klein (Org.), Os progressos da psicanálise (4a. ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

CAPITÃO, Carlos Garcia; ROMARO, Rita Aparecida. Concepção Psicanalítica de Família. In: Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012.

[4] FREUD, S. (1912), Tipos de Adoecimento Neurótico. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[5] FREUD, S. (1912-1913), Tótem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos. In: Obras completas volume 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

FRAGMENTADO

Diretor: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson
País:
 EUA
Ano:
2017
Classificação:
14

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O Jardineiro Fiel: os fins justificam os meios?

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Questões éticas e morais dão a pauta no filme “O Jardineiro Fiel”, dirigido pelo cineasta Fernando Meirelles. O roteiro, baseado no o romance homônimo de John le Carré, publicado em 2001, mostra o envolvimento entre um diplomata britânico Justin Quayle (Ralph Fiennes) e uma ativista de direitos humanos Tessa (Rachel Weisz) que, após se mudarem para o Kênia, envolvem-se em um conflito de interesses econômicos, políticos e sociais de proporções internacionais.

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Tessa começa a investigar a atividade de indústrias farmacêuticas na África e buscar provas de que estão testando medicamentos ainda não liberados em comunidades africanas, tudo isso com a conivência do governo local e o envolvimento de agentes britânicos. O medicamento em questão está sendo desenvolvido para conter uma futura epidemia mundial, que provavelmente se alastrará provocada pelas próprias indústrias que a preveem e que terão o medicamento certo para conter a morte da população. Uma economia de milhões de dólares é feita ao se pular três anos de uma etapa da pesquisa e testar a fórmula diretamente em seres humanos e populações esquecidas do Kênia são o alvo ideal para agilizar os planos das corporações.

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Para conseguir provas contra o esquema das indústrias farmacêuticas e conter as mortes provocadas pelo uso do medicamento, Tessa, além de confrontar publicamente agentes do governo, mente, seduz e rouba, coloca sua própria vida em risco para salvar as populações indefesas. Para proteger seu marido ela omite informações e o engana quanto a seu trabalho, deixando que tanto ele quanto a sociedade pensem que ela o trai com seu colega de trabalho.

Tessa deixa claro, em correspondência com um primo/amigo, que “os fins justificam os meios”. Mostrando injustiças sociais e interesses econômicos que prevalecem sobre os direitos humanos, a narrativa expõe conflitos constantes de natureza ética e moral entre o bem e o mal, o certo e o errado, os limites entre o que se pode e o que se deve fazer.

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Ao afirmar que os fins justificam os meios, a personagem busca racionalizar a situação e proteger seu próprio ego de sentimentos e conflitos internos que ela não está preparada para enfrentar. Apesar de acreditar no que faz, Tessa sente-se culpada pelo modo como age e diz que não consegue se perdoar por algumas de suas atitudes frente ao marido. Aliás, a fragilidade de seu ego em meio a intensidade de seus conflitos internos é exposta desde a primeira cena do filme, onde se apresenta a mesma situação dos limites de sua consciência entre a defesa de uns e o prejuízo de outros, incluindo especialmente a si mesma entre esses outros e mostrando viver no limite entre as pulsões de vida e morte.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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O JARDINEIRO FIEL

Diretor: Fernando Meirelles
Elenco: Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Hubert Koundé, Danny Huston
Países: Alemanha, China, EUA, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte
Ano: 2005
Classificação: 14

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