Discursos desconexos de crise em Estamira

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O Documentário

No ano de 2000, o diretor e fotógrafo Marcos Prado se dedicava havia seis anos a documentar em fotos o cotidiano do aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Lá encontrou a senhora Estamira Gomes de Souza e resolveu então fotografá-la, ela concordou, mas com uma condição, ele teria que conversar com ela depois. Marcos Prado cumpriu o combinado e ficou encantado com o discurso desconexo, diferente, que ora fazia sentido, ora não fazia sentido algum. Eles ficaram próximos. Então, em uma de suas conversas, após Estamira desvendar que ele tinha a missão de revelar a verdade dela, Marcos decide fazer o documentário: ESTAMIRA, lançado em 2006, que retrata a vida dessa senhora (JUHAS; THIAGO, 2011).

O documentário participou do festival de Cinema do Rio de Janeiro, em setembro de 2004. Desde esta data o filme começou a aparecer com frequência na imprensa. Em 28 de julho de 2006, o documentário estreou no circuito de cinemas do Rio de Janeiro e São Paulo tendo presença nos jornais até 2007, ano de lançamento da película em formato de DVD. Foram quatro anos de filmagem, três Natais registrados, ou seja, muitas idas ao lixão (CARVALHO, 2010).

A Biografia

Nas palavras de Estamira:

“A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não”.

Segundo Szabô et al (2013), Dona Estamira narra sua história de 62 anos de vida, sendo que 20 deles foram vividos no aterro sanitário. Os filhos ajudam a construir a sofrida e inóspita trajetória da mãe. Hernani, Carolina e Maria Rita contam a respeito do passado, da convivência e da percepção a respeito do quadro clínico da mãe. Estamira ficou sob os cuidados de sua mãe e do avô após o falecimento do pai, sua mãe sofria de transtornos mentais e o avô além de abusar dela sexualmente, a levou para um bordel, quando tinha apenas 12 anos de idade, ficou lá por cinco anos, até conhecer o seu primeiro marido, com quem teve o primeiro filho.

O casamento não durou muito, pois o marido era mulherengo e agressivo. E passado algum tempo depois, Estamira conhece seu segundo marido. Após casar-se novamente com um emigrante italiano, tem um segundo filho.  Confessa que amava o companheiro, porém o relacionamento também era conflituoso. O novo marido insistia em internar sua sogra em um hospício, Estamira relutou bastante, mas acabou cedendo e sua genitora foi para o Hospital Psiquiátrico Pedro II.

O relacionamento fracassou por motivos comuns ao casamento anterior. Estamira é expulsa da casa do italiano e então, recomeça sua vida no Jardim Gramacho e é de lá que retira o sustento da família. Assim que se instalou ali, foi buscar a mãe no sanatório psiquiátrico, que era famoso até meados da década de 80, pelos maus tratos a seus pacientes (SZABÔ et al, 2013).

Carolina conta do recomeço no lixão depois da separação dos pais, disse que a rotina de Estamira como catadora era muito desgastante, chegando a dormir várias noites na rua ao relento, aquela realidade insalubre descontentava os filhos que convenceram a mãe de procurar um novo emprego. No novo trabalho tudo parecia favorável até que um certo dia, voltando de uma confraternização da firma, foi estuprada no caminho. E outro episódio de violência sexual aconteceu próximo a sua casa. Mais ou menos nessa época que Estamira começa a apresentar distúrbios psíquicos (CARVALHO, 2010).

Ela reage de forma muito negativa quando o assunto é Deus ou Jesus Cristo, manifesta crises de raiva, euforia e delírios de grandeza. Até se coloca como superior a Deus, nos seus delírios, mas nem sempre foi assim, segundo a filha Carolina a mãe era uma mulher religiosa antes dos distúrbios mentais e acreditava que todo aquele sofrimento pelo qual estava passando era uma provação divina (CARVALHO, 2010).

Segundo Carvalho (2010), o filho Hernani já contou com a ajuda do padrasto italiano para levar a mãe do aterro imobilizada, em busca de uma internação, em algum hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, essa atitude a deixou revoltada e inconformada. O filho é protestante e diz que evita a mãe porque ela blasfema contra religiões e principalmente contra a dele. Evita também por ela ser “clinicamente completamente louca”. Também coloca que “espiritualmente falando ela tem influências demoníacas”. Ele confessa o desgaste da relação e se diz cansado, o que justifica o distanciamento dos dois. Já Carolina não concorda com as internações e prefere as coisas do jeito que estão sem a necessidade da mãe ser amarrada e dopada.

Conforme Sousa (2007), Estamira não mede as palavras e sua indignação vem à tona, acompanhada de delírios, que por sua vez tem a coerência e a lucidez de abarcar os valores falidos de nossa sociedade, uma verdadeira denúncia social de nosso tempo. Um exemplo tem haver com a burocratização do saber referindo-se aos doutores, como: “copiadores de receita”. Questiona, portanto, os automatismos das prescrições e expõe uma falta de originalidade nos atendimentos do serviço de saúde mental, a maneira ainda preponderante de enxergar o quadro clínico do paciente pautado no modelo médico, ou seja, isolando a singularidade do sujeito.

Outra problemática levantada pela protagonista é o consumismo exacerbado de nossa cultura, ela se refere ao lixo dizendo: “Isso aqui é um depósito de restos. Às vezes é só resto. E às vezes vem também descuido. Resto e descuido”. O homem se apega ao desnecessário e precisa frequentemente recorrer à compra numa ilusória busca de prazer, que é imediato e que não preenche as lacunas existenciais pendentes, dessa forma, o desperdício é inevitável, até porque há uma constante substituição, ou seja, é um ciclo vicioso.

O documentário e a personagem problematizam o desamparo humano, seja ele, biológico, familiar, também social, econômico e político. E Estamira não só vivencia todos os dias esse descaso, como aproveita a oportunidade de ser ouvida para estampar sua revolta, mostra o que faz-se questão de ser ignorado, esquecido, deixado de lado. Mostra que além dos rótulos ela tem identidade própria, ela tem sentimentos, história, sabedoria e traumas. (JUHAS; THIAGO, 2011).

Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o fio condutor de toda a narrativa do documentário, e revela o quanto o poder narrar e expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos” (SOUSA, 2007, p.52).

Estamira morre no dia 28 de julho de 2011, no Hospital Miguel Couto, Rio de Janeiro, mais uma vez negligenciada, vítima do caos da Saúde Publica precária de nosso País. Faleceu em decorrência de uma septicemia (infecção generalizada).

Relação entre o documentário e o tema crise

Os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial) e CERSAMs (Centros de referência de Saúde Mental) são os então “serviços de atenção à crise” que propõem outra intervenção que não a asilar/hospitalocêntrica preponderante antes da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, houve uma reformulação da assistência em Saúde Mental. (FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2008).  Mas será que depois dessa reformulação o sujeito que sofre psiquicamente tem o suporte que necessita? Sente-se acolhido? Reconhece aquele espaço como um apoio, o qual pode confiar?

No documentário o que fica claro pela personagem é uma contundente crítica ao atendimento prestado pelo serviço, como mencionado anteriormente, refere-se aos médicos como “copiadores de receita”, não compreende a rapidez com que se chega a um quadro clínico, numa breve conversa, e como logo uma medicação universal é prescrita, sem o cuidado de pensar se aquela seria a melhor opção para o seu caso em específico.

De acordo com Ferigato; Campos e Ballarin (2008), a medicação não pode ser vista como a única e suficiente solução para o paciente, no que tange o rebaixamento da sintomatologia, mas de ser ministrada no intuito de estabelecer condição de relação diferente entre paciente e seu problema, equipe e meio ambiente.

[…] cada decisão de uma intervenção farmacológica deve estar incluída dentro de uma estratégia geral que tem em seu centro o projeto terapêutico singular do usuário e não a simples eliminação dos sintomas. Caso contrário, da mesma forma que os psicotrópicos podem representar um importante meio de trabalho e de comunicação dentro e fora da instituição, facilitando a relação entre o paciente e a vida, quando mal administrado, podem também representar o maior obstáculo desta mesma relação. (SARACENO et al., 2001, apud FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2008, p. 39)

Agressões conjugais, estupros, traições, miséria e outros, segundo Portella, Bueno e Nardi, (2001 apud CARVALHO, 2010) são possíveis estressores ambientais causadores de distúrbios mentais. Porém estes fatores ambientais psicossociais devem pressionar uma vulnerabilidade específica, como genes ou hereditariedade. O filme traz estes dois fatores – hereditariedade e ambiente.

A crise, elucida Ferigato; Campos e Ballarin (2008) pode emergir de uma situação imprevisível, por exemplo a morte, ou previsível como gravidez e envelhecimento. “Nesta perspectiva o adoecimento é entendido como uma forma de adaptação e de reação do sujeito frente aos estímulos internos ou externos ao organismo” (p. 24).

O documentário proporciona um espaço de escuta a Estamira e dessa forma ela aproveita a oportunidade para jogar para fora tudo que a muito tempo se acumulava. Segundo Carvalho (2010), mesmo em um lugar tão insalubre e fétido, Dona Estamira encontra formas de driblar uma realidade aparentemente intolerável, ela se distrai e interage com os colegas de trabalho e naquele lugar ela se vê livre dos preconceitos que seus distúrbios e a própria sociedade lhes traz.

REFERÊNCIAS:

CARVALHO, H. E. Loucura no Cinema e no Jornal: olhar da divulgação científica com análise fílmica e de repercussão do documentário Estamira na mídia impressa brasileira. 2010. 76 f. Monografia (Especialização em Divulgação da Ciência, da Tecnologia e da Saúde) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010.

FERIGATO, Sabrina; CAMPOS, Rosana Teresa Onoko; BALLARIN, Maria Luisa GS. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, v. 6, n. 1, 2008.

JUHAS, Thiago Robles; SANTOS, Niraldo de Oliveira. Ainda em cartaz, “Estamira”: A Psicanálise nas telas do Cinema. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte ,  n. 36, p. 157-164, dez.  2011 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372011000300015&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em  09  maio  2016.

RICARDO VILLELA (Rio de Janeiro) (Ed.). Morre Estamira: personagem-título de premiado documentário brasileiro. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/07/morre-estamira-personagem-titulo-de-premiado-documentario-brasileiro.html>. Acesso em: 10 maio 2016.

SOUSA, Edson Luiz André de. Função: Estamira. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte ,  n. 30, p. 51-55, ago.  2007 .   Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372007000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  09  maio  2016.

SZABÔ, Alexandre ET al. VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE. ISSN: 1982-5544, 2013, Curitiba. OS DELÍRIOS DE ESTAMIRA: DA INVISIBILIDADE À EXCLUSÃO SOCIAL. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética – NEB. Faculdades Pequeno Príncipe. Curitiba, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

ESTAMIRA

Diretor: Marcos Padro
Elenco: Estamira
Pais: Brasil
Ano: 2006
Classificação: Livre

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Marcos Prado: um olhar clínico sob as lentes fotográficas

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Nascido no Rio de Janeiro, RJ, em 1961, Marcos Prado é fotógrafo documentarista, produtor, diretor e roteirista de grande renome no Brasil. Sua formação iniciou com os estudos de fotografia no Brooks Institute of Photography de Santa Bárbara, nos Estados Unidos. E em seu retorno às terras brasileiras trabalho para a revista Trip (1987-1892) como fotojornalista, que lhe rendeu a Série Free Tibet (COLEÇÃO PIRELLI, s/d, s/p). 

À esquerda: Série Free Tibet, Stupa de Samye, 1993. À direita: Série Free Tibet, Guru Rimpoche, Samye, 1993. Fonte: https://goo.gl/EqyuhD

Dentre as características marcantes do seu trabalho é perceptível o uso das cores, seus trabalhos estão, predominantemente, no Preto & Branco. Prado usas-o com o intuito de impactar, principalmente, quando se refere aos fatos já vividos; realidades que chocam, que se camuflam na invisibilidade do colorido do dia-a-dia. Nesse contexto, Almeida (2010) ressalta que:

Os fotógrafos modernos, tiveram a eles transmitido o bastão da fotografia, e nessa transmissão (tradição), receberam um modelo que foi gerado, em partes muito importantes dele, pela fotografia em Preto e Branco. Quando o fotógrafo contemporâneo produz em Preto e Branco, quando ele faz das suas fotografias digitais cópias em Preto e Branco, ele está dialogando com essa tradição histórica nascida de uma limitação tecnológica.

É neste diálogo que suas produções nos fazem entrar. A tradição e contemporaneidade se tencionam e nos incomoda. Quem disse que Os Carvoeiros, Estamira e O curumim seriam fáceis de ver, de assistir? Eles nos tiram da zona de conforto, ainda mais quando se descobre que os documentários foram realizados ao longo de muitos anos, entranhados nesses contextos marginalizados.

Estamira. Fonte: https://goo.gl/WWohde

Nessa perspectiva, a fotografia vai ao encontro da psicologia nas produções de Prado, pois o mesmo assume uma postura clínica que é argumentada, estudada e desejada por muitos psicólogos, inclusive no que se tange ao contexto brasileiro. As práticas clínicas na realidade atual, na perspectiva de Dutra (2004), devem acolher o sofrimento contido na existência humana, de forma que as experiências subjetivas e reveladoras de sentido se tornem uma forma de acessá-lo, utilizando-se do cuidado e da aprendizagem.

Frente aos documentários, Prado pratica a epoché, faz suspensão de valores sobre os personagens que captura em suas lentes. Sua intenção não é a rotulação de pessoas enraizadas na grande miséria da necessidade de trabalhar numa quase escravidão; nem de uma mulher com transtorno mental; ou de um traficante brasileiro na fila de espera da morte em outro país. Essa visão estigmatizada nós, telespectadores, já possuímos. A desconstrução dessa visão egoísta torna-se seu objetivo. O seu trabalho mostra a subjetividade dos seus personagens, seus discursos, seus pontos de vista, sua realidade nua, as dimensões sociais e históricas em que estão inseridos e todos os ensinamentos que eles podem proporcionar aos espectadores.

Os Carvoeiros. Fonte: https://goo.gl/iWCMtr

Ademais, a habilidade de acolher o sofrimento através das lentes e da atenção contribui no processo de subjetivação das pessoas documentadas, onde: “[…], o ato clínico passa, então, a representar a acolhida a essa demanda, através de um olhar que possa contemplar e alcançar a singularidade das existências, que se vão construindo nos caminhos traçados pelos desejos humanos e seus quereres, e reveladores da sua condição de ser-no-mundo”. (DUTRA, p. 385, 2004).

Capa do livro “Os Carvoeiros”. Fonte: https://goo.gl/HzMK1F

Nesse panorama, infere-se que as produções de Prado nos levam a refletir nosso fazer quanto a acadêmicos, profissionais e até mesmo seres humanos. Estamos atentos à realidade do outro, sobretudo, àqueles que estão marginalizados? Quiçá acolhendo-os?! Ou apenas estamos vivendo num prisma individualista que nos venda para que não percebamos o outro? Estas reflexões você pode respondê-las ou aguçá-las após o contato com as obras deste documentarista e retratista.

Trabalhos produzidos por Marcos Prado, segundo a Coleção Pirelli / MASP (s/d, s/p):

Mostras Individuais

1992 – Os Carvoeiros, Fundação Progresso, Rio de Janeiro

1994 – Espaço Cultural Banco Nacional, Rio de Janeiro

1995 – Free Tibet, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

2005 – Jardim Gramacho, Casa França Brasil, Rio de Janeiro

Exposições Coletivas

1994 – 1ª. Bienal Internacional de Fotografia Cidade de Curitiba

1993 – Fotografia Brasileira Contemporânea: anos 80 a 90, 1º. Mês Internacional da Fotografia, Sesc Pompéia, São Paulo

1994 – Documentaristas Contemporâneos Brasileiros, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro

1998 – Criança de Fibra, Museu da Imagem e do Som, São Paulo

2000 – Brasil em branco e preto: 50 fotografias da Coleção do MAM, Museu de Arte Moderna de São Paulo

Publicações:

Os carvoeiros. [s.i]: [s.n.], 1999

Jardim Gramacho. Rio de Janeiro: Argumento/Fosfertil, 2005

 

Referências

ALMEIDA, Ivan de. (2010). O Paradoxo da Fotografia Digital em Preto e Branco Parte 1 – A estética PB, origem e características. Disponível em: <https://fotografiaempalavras.wordpress.com/2010/11/02/o-paradoxo-da-fotografia-digital-em-preto-e-branco-parte-1/>. Acesso em 27 de maio de 2017.

Coleção Pirelli / MASP de Fotografia. Marcos Prado. Disponível em: <http://www.colecaopirellimasp.art.br/autores/88/obra/308>. Acesso em 09 de março de 2017.

DUTRA, Elza. Considerações sobre as significações da psicologia clínica na contemporaneidade. Estudos de Psicologia, v. 9, n. 2, p. 381-387, 2004.

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Estamirize-se! (Estamira e Esquizoanálise)

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1, 2 Intervenção no real radar…

Cheiro forte, restos, descuidos, Sol agredindo uma pele envelhecida, inúmeras armadilhas, risos descontidos, brados ao trovão(rá), neologismos, música

Produzir uma torção nos aforismos de uma conjunção de linhas desviantes de forças chamada Estamira Gomes de Sousa.

Desfigurar uma imagem e produzir um duplo completamente dessemelhante, decerto aquém da multiplicidade de cores que circulam esta singular existência

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Retirado de: cadaumtemasua.com.br

Bradando sua inquestionável onisciência, Estamira experimentou jogar mentiras na cara daqueles que produzem silenciamento ao que ultrapassa a curva da razão: espertos-ao-contrário!

Ela não é comum (a não ser o seu formato-carne, sanguíneo, par), ela é Estamira, a visão de cada um!

Ela não “foi”, pois a morte é o começo de tudo! Ela “é” e sempre “será”, pois existe/existirá como força de afirmação esquizopoiética de existências que não se prostram diante dos microfascismos de uma máquina capitalística de produção de trocadilos

Trocadilos como manifestação de toda forma de aprisionamento, subjugação, controle e violência (Trocadilo-homem, trocadilo-religião, trocadilo-ciência)

Sua lúcida loucura agenciou a criação da onipotência de uma mulher que tinha tudo para esgueirar-se numa vida sofrida, calada, negada, anulada

Torceu suas certezas e produziu linhas de fuga que a permitiram suportar uma realidade devastada por diversos trocadilos

Apontou o controle remoto que ordena os corpos, coadunando nas entrelinhas com as palavras de Artaud ao declarar guerra aos órgãos

Povoada por diversos astros positivos, fez-se a beira do mundo, posto que está em todos os lugares, sobretudo no que vai além da borda, o que trans-borda: o além dos além (lugar onde nossa razão nos impede de ir)

Sua fala é eminentemente política, pois seu delírio poético produz desvios nas verdades sobre DEUS, o homem, a Psiquiatria, a loucura, o lixo, sobre você no que concerne a resistência dos biopoderes produzidos em diversas línguas e nos atravessam cotidianamente

Num eloquente agenciamento coletivo de enunciação, de d’enunciação da opressão e violência, do status quo e das verdades absolutas, devolte tratos antes tragados a contragosto!

Estamira sentiu na pele os manicômios, físicos e mentais que atravessam os médicos-deuses, os remédios-dopantes e até a família.

Estamira desafia DEUS para resistir ao revir do seu devir reativo.

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Retirado de: menos1lixo.virgula.uol.com.br

Exclama o potencial microrrevolucionário do devir minoritário, quebrando molaridades e zombando das falas instituídas.

“A doutora passou remédio pra raiva” Risos!

Num transbordo “além dos além“, povoado de forças desconhecidas, vive a atualização das virtualidades reais num imaginário que tem, existe e é!

Delirar para Estamira talvez seja inventar o esquecimento, experimentar o intempestivo presente no Transbordo-do-Fora, o qual nós seres humanos comuns não temos condições, em virtude da nossa insana razão

É preciso experimentar a lúcida loucura de Estamira para subverter a homogeneização do retorno do mesmo, da cela do passado, do fato, feito, fadado ao fim da vida

Estamirizar é diferir, divergir, esfregar nas caras a existência e permanência de um trocadilo que é o próprio microfascismo que está em nós

Estamira não é uma mulher, Estamira é uma força!

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Ninguém pode viver sem Estamira

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Eu quero compartilhar com vocês a minha visão do mundo, das coisas”
Estamira

Estamira é uma falecida senhora brasileira que viveu por 70 anos.  Sua trajetória de vida foi retratada no documentário “ESTAMIRA” dirigido pelo fotógrafo Marcos Prado que também dirigiu “Os Carvoeiros” e produziu o filme “Ônibus 174”. Existe uma temática que é transversal nesses três filmes de Marcos Prado: pessoas em condições de vida extremas, imersas numa sociedade que, há tempos, exporta, cada vez mais, o senso de justiça e importa, cada vez mais, a desigualdade social e a exploração do homem pelo homem.

No documentário “Os Carvoeiros” Prado retrata a vida de famílias do interior do Brasil, em especial dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Pará, na produção de carvão vegetal que alimenta multinacionais do aço e de automóveis. Retrata o regime de trabalho dessas pessoas e nos mostra que a escravidão é uma prática que atravessa sociedade até os dias de hoje, mesmo nos países que possuem leis de abolição à escravidão, como o Brasil.

Marcos Prado parece querer dar voz às pessoas do dia-a-dia, pessoas cujas vozes não se ouvem, anônimas da sociedade. Ele busca retratar as condições de vida dos milhares de anônimos brasileiros, desde os explorados em sua força de trabalho até aqueles que, em meio às dificuldades de viver, praticam seqüestros, de forma desesperada, como foi no episódio do Ônibus 174. Ou seja, Prado trata em seus documentários, da injustiça, da exclusão, das desigualdades sociais com a tentativa de retratar o ponto de vista das pessoas que se submetem-são submetidas à injustiça, à exclusão e às desigualdades sociais.

O mesmo ocorre à Estamira. Marcos busca essa senhora, em seus 63 anos, e lhe oferece um meio de falar de suas condições de vida, aliás, um meio de viver, nas telas, as condições de vida que vivia há mais de 20 anos. E Estamira diz que sim, que tem algo a falar para o mundo. Ao longo do documentário, ela, no poder do microfone, tece sua concepção de vida e seu ponto de vista acerca do homem. “Assim falou Estamira” é um link do sítio oficial do documentário onde se encontram frases de Estamira. É interessante notar a relação que o sítio quer fazer com o filósofo Nietsche, autor de “Assim falou Zaratustra”. E isso se deve simplesmente pelo fato de Estamira praticar, ao longo das gravações do documentário, de pensamento filosofia, tecendo críticas pertinentes, atuais e ácidas quando à sociedade que a circunda. Estamira foi uma filósofa.

Vivendo e trabalhando no Aterro Sanitário Jardim Gramacho, a desconfiança e decepção com o homem são imanentes em seu viver, transbordam em suas falas, em seu pensamento, em seu andar, em seu habitat e na relação com a família. “Eu transbordei de raiva… transbordei de ficar invisível… com tanta hipocrisia, com tanta mentira, com tanta perversidade, com tanto trocadilo.”

Aterro sanitário Jardim Gramacho. Foto: Marcos Prado

Para Estamira, o homem que explora outro homem (a exploração em todas as suas formas: econômica, sexual, afetiva etc.) é trocadilo. “Trocadilo é Deus ao contrário!” E mesmo que trocadilo seja outras coisas para ela, é também sinônimo de “amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, canalha, indigno, incompetente…”, pois “o trocadilo fez de uma tal maneira, que quanto menos as pessoas têm, mais eles menosprezam, mais eles jogam fora, quanto menos eles têm!…”

Suas falas são auto-referenciais, aliás, o seu sistema filosófico de concepção de mundo é auto-referencial. “Eu Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso.” A meu ver, de outra maneira talvez não poderia ser, pois todas as referências que teve na vida a traíram: seus esposos a traíram, os cientistas mataram sua mãe num hospital psiquiátrico, seu filho e neto insistem em catequizá-la, mesmo depois de Deus a ter traído. Sobre deus, Estamira fala: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!” 

Estamira gesticula e diz sua concepção de mundo: “Tudo que é imaginário, tem, existe, é.”. Foto: Marcos Prado

O mundo de traição em que Estamira viveu não poderia, em minha concepção, ser-lhe a principal referência de sentido e de produção de vida… a ideia de solidariedade, de sentido de vida e de inteligência não cabem num sistema referencial embasado na traição. A meu ver, a auto-referência como fundamento do mundo é a única relação em que ela pôde identificar vida depois de ter perdido a fé em seu próprio Criador. E a ciência vai chamar isso de psicose, de esquizofrenia, de narcisismo, de projeção, de formação reativa, de delírio, de discurso desconexo – Ah, não dá!!!

Estamira, a meu ver, possui a chave para o maior mal da humanidade, maior que a própria morte: tem a chave para a solidão – suporta a solidão como poucos; está no mundo, está no universo, sozinha – não vive em função de discursos, não vive em função de ninguém. Vive na Terra, pega-lhe uma carona e cuida dela transformando o lixo utilidades. “A Terra disse, ela falava, agora que ela já tá morta, ela disse que então ela não seria testemunha de nada. Olha o quê que aconteceu com ela. Eu fiquei de mal com ela uma porção de tempo, e falei pra ela que até que ela provasse o contrário. Ela me provou o contrário, a Terra. Ela me provou o contrário porque ela é indefesa. A Terra é indefesa.”

Estamira, em conversa numa língua desconhecida pelo homem trocadilo. Foto: Marcos Prado

É contra a exploração que ela passa a explorar, não as pessoas, mas o Aterro Sanitário Jardim Gramacho. É do lixo e no lixo que ela passa a viver. É no lixo, com todo o seu mal-cheiro e possibilidades de doenças, que ela encontra seu habitat, suas referências pessoais, amigos e colegas, seu trabalho, sua educação, seu lazer, sua vida. É naqueles que reconhecem a própria responsabilidade do próprio lixo que ela se reconhece. E quem assim não o faz é hipócrita. Por isso não só vive com o objetivo de transformar o lixo material, mas também ao lixo abstrato, à hipocrisia. Ela mesma diz: “A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não.”

Estamira denuncia a ciência como já o fizeram Boaventura de Souza Santos e outros autores críticos do epistemicídio. Revela a classe dos copiadores e dos dopantes, independente se a burocracia acadêmica e da sociedade formalizada pelos contratos aceita sua fala ou a divulga como formadora de opiniões. Tão pouco Estamira procura tal reconhecimento.

Enfim, Estamira se apresenta no documentário de Marcos Prado e nos vínculos que deixou após sua morte. Ela foi uma mulher que morreu aos 70 anos, no dia 28 de agosto de 2011, por conta de uma infecção que se generalizou na espera de seu atendimento no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade do rio de Janeiro. E é, hoje, uma personagem que se destacou pela forma brilhante de fazer de sua vida um fluxo de transformação, disruptivo, denunciante, instituinte.

Saiba mais:

FICHA TÉCNICA DO FILME

ESTAMIRA

Diretor: Marcos Prado
Produção: Marcos Prado, José Padilha
Roteiro: Marcos Prado
Fotografia: Marcos Prado
Trilha Sonora: Décio Rocha
Duração: 127 min.
Ano: 2004
País: Brasil
Gênero: Documentário
Cor: Preto e Branco
Distribuidora: Não definida
Classificação: 10 anos

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