O Homem Não é uma Máquina!

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Comumente ouvimos frases como “Homem que é homem é forte’’, “Faça isso igual um homem”, “Faltou um homem para colocar ordem aqui” e por último uma das frases mais famosas “Homem não chora”, conceitos como este externalizados através da fala se tornaram regras extensamente difundidas na sociedade, indicando que o homem deve seguir um padrão de comportamento estando sua conduta pré-definida em conceitos culturais que a sociedade criou.

Apesar de essas referências terem evoluído ao longo do tempo, diversas culturas ainda seguem estritamente a regra que diferencia o comportamento de homens e mulheres pelo conceito da racionalidade e emoção. Dessa forma, infelizmente, homens e mulheres ainda são educados de forma diferente. Como resultado, muitos homens têm dificuldade em expressar sentimentos e emoções.

Santos (2015) acrescenta que a sociedade confere maior emoção às mulheres e maior racionalidade aos homens. Ao analisar a dicotomia entre racionalidade e emoção relacionada à identidade de gênero, enfatizou que expressões de determinadas emoções, como medo e vulnerabilidade, estão mais fortemente associadas às mulheres. Em vez disso, emoções como raiva ou agressão estão associadas aos homens. De uma perspectiva de tipologia emocional potencialmente relacionada ao gênero, espera-se que as mulheres experimentem uma variedade de emoções consideradas mais positivas, enquanto os homens as emoções negativas.

Fonte: encr.pw/NMDWu

Ao mesmo tempo, essa lógica binária tem efeitos colaterais para todos, com algumas pessoas ou grupos sociais defendendo a lógica da sensibilidade feminina e da racionalidade masculina. Portanto, é importante enfatizar que os homens têm sentimentos e que também são racionais. No entanto, ambos os sexos são ensinados a processar sentimentos por meio de regras sociais. Ou seja, os métodos de lidar com tais sentimentos geralmente são aprendidos por homens e mulheres com base nas consequências de tais atitudes para aqueles que ousam tentar.

Garcia et.al (2019) aponta que a masculinidade ainda é atrelada à cultura machista patriarcal.  Assim, as condutas desta cultura, impõe as regras da forma que um homem deve agir, dando a entender que ele é capaz de realizar todas as coisas sem passar por nenhum tipo de sofrimento. E aquele que requer um acolhimento de uma escuta, a sociedade não o deixa ter, transformando-o e exigindo que este seja uma máquina indestrutível, que não admite que entre em contato com suas emoções, com suas dores e com seus limites.

Pode não ser novidade pensar que porque sempre (embora menos hoje), muitos meninos são punidos e envergonhados socialmente por demonstrarem aquilo que sentem. Penalizar a demonstração de sentimentos de um homem pode ocasionar comportamentos evitativos relacionados à expressão de suas emoções, o que pode ocasionar sofrimento psíquico entre outras consequências.

É indiscutível que a polarização de gênero é ruim para todos. É fato que as mulheres são prejudicadas e estigmatizadas. Ao mesmo tempo, porém, a rigidez que a sociedade impõe aos papéis masculinos não abre espaço para que os homens expressem plenamente seus sentimentos e emoções.

Como resultado, eles se sentem culpados e punidos socialmente quando expressam seus sentimentos. Por esse motivo, é mais comum que os homens apresentem níveis mais elevados de estresse e sofram de transtornos relacionados à ansiedade, dificuldades nos relacionamentos sociais e românticos.

Em conformidade com Silva (2021), ao analisar índices relacionados à saúde mental, é identificado que há uma prevalência de transtornos mentais em mulheres, no entanto é observado que homens têm mais tendências suicidas que as mulheres, estando outros tipos de transtornos ligados. Uma causa associada a este fenómeno pode estar ligada a tendência que o homem possui em atrelar doença a fraqueza, além de possuírem maior dificuldade em expor suas ansiedades e sentimentos de tristeza.

Fonte: l1nq.com/V5sVT

Somos todos seres humanos independentemente do gênero e, em muitos casos, somos castrados e limitados por dogmas socialmente construídos. Portanto, não faz sentido distinguir entre comportamento masculino e feminino, especialmente quando se trata da expressão de sentimentos e emoções.

Assim, é importante estar ciente de que muitas vezes um amigo, colega de trabalho, namorado ou marido pode estar em grande desespero emocional. Muitos deles sofrem e escondem seus sentimentos por causa de habilidades comportamentais subdesenvolvidas. Além disso, pode até explicar o comportamento suicida de muitos homens que vivenciaram algum fracasso ou foram estigmatizados socialmente ao falar sobre suas emoções e não podem arcar com tal punição pública. Desse modo, é compreensível que os homens tenham mais dificuldade em se expressar. Talvez isso mostre a necessidade de mais troca e desconstrução de regras socialmente impostas.

REFERÊNCIAS

SANTOS, Luís Homens e expressão emocional e afetiva: vozes de desconforto associadas a uma herança instituída, Revista Ciências Sociais, São Paulo, v 40, n.1,p 1-14, Setembro de 2015, acessado em 11 março de 2022. URL: http://journals.openedition.org/configuracoes/2593.

GARCIA, L. H. C.; CARDOSO, N. DE O. BERNARDI, C. M. C. DO N. Autocuidado e Adoecimento dos Homens: Uma Revisão Integrativa Nacional. Revista Psicologia e Saúde, v. 11, n. 3, p. 19-33, 9 out. 2019.

Silva, Rafael Pereira e Melo, Eduardo Alves Masculinidades e sofrimento mental: do cuidado singular ao enfrentamento do machismo. Ciência & Saúde Coletiva [online]. v. 26, n. 10 [Acessado 11 Março 2022], pp. 4613-4622. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-812320212610.10612021>. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-812320212610.10612021.

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O espaço do negro no mercado de trabalho

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É comum as pessoas usarem a seguinte frase: “somos todos iguais e todos temos as mesmas oportunidades.” Depende de como e de que lado você está fazendo esta análise. Vamos refletir um pouco mais sobre a questão do negro no mercado de trabalho e academicamente. Essa é uma discussão necessária. Nós, negros, precisamos ter nossa história validada e dita por nós. Esse é o lugar de fala do negro. Em alguns processos seletivos de empresas, há códigos que a empresa cria, por exemplo, um código de inscrição para indicar uma pessoa negra, pois pode ser que o cliente que deseja aquele novo colaborador não queira uma pessoa negra no seu local de trabalho.

Temos também outras descrições, como Cabelo Black ou não liso, nariz largo, lábios mais grossos, tonalidade de pele mais escura. Alguns podem perguntar: “Será que essa pessoa será uma boa recepcionista ou uma boa gerente de contratos para lidar com nossos clientes de outras empresas?”

Incrível essa pergunta e a colocação. Infelizmente, sinto em informar que é o que mais acontece no mercado de trabalho no Brasil. Pessoas são simplesmente julgadas por sua tonalidade de pele, por seu cabelo e seu tipo físico. Neste caso, falo de pessoas negras. Dessa dita “minoria” (em ocupação e mobilidade social), mas que na verdade é a maioria da população brasileira. Vai entender, não é?

Eu faço questão de conversar sobre isso. Critica-se a cota para negros em universidades. Podemos falar do Conceito da Equidade Aristotélica “Implica tratar desigualmente os desiguais para promover a efetiva igualdade” para falarmos de oportunidades. Mas para pensarmos em igualdade, precisamos investir em saúde, educação, saneamento básico e políticas públicas que realmente aconteçam. Isso só irá acontecer realmente se for de interesse da outra parte que é dita “maioria”.

 Hoje, há um movimento em que os negros estão realmente utilizando suas vozes para ter espaço de fala e contar a sua história como não foi contata nos livros de história, pois negro era mercadoria, escravo e ainda considerado preguiçoso. Ou seja, não tinha identidade. Quando vemos pessoas negras atingindo um lugar de gerência, diretoria, destaque, dizem que é sorte ou que teve um bom padrinho ou usam isso para afirmar que as oportunidades são iguais para todos. 

O pesquisador Milton Santos dizia o seguinte: “Nossos corpos falam”. Nosso corpo está tão ligado a imagem do negro preguiçoso (dito na época da escravidão) que não quer nada com nada. Constroem-se ainda mais estereótipos que os livros de história dizem por aí que a sociedade, como um todo, não coloca o negro em outro local. Apenas como inferior. Isso é algo sério, pois é passado por gerações. Estamos na luta incessante de desconstruir isso. Mas ainda vemos muita resistência, por parte de empresas, pessoas, grupos de classes sociais, escolas, salão de beleza, lojas e muitos outros.

O negro sofre psicologicamente com essas negativas. É um fato que vivemos na sociedade. Se está na hora de mudar? Mais que nunca essa é a hora. Por isso não deixem que a ideia de que o seu corpo fala por você e não o seu conteúdo, seja maior. Por isso, saiba que no caminho de todos nós há pedras, mas no nosso há pregos, cacos de vidros e o racismo. Se podemos? Sim. Por isso, que acredito que “Eu sou, porque nós somos.”

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Princesas Disney – O Amor como estatuto privilegiado no universo feminino

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Mesmo sabendo do risco que é recorrer à arte para ilustrar uma produção de texto, não se deve recuar diante do desejo de apostar na incursão por essa via. Articular cinema e psicanálise não seria diferente. O cinema, enquanto expressão cultural de determinadas culturas, é reflexo dessas, que por sua vez, é afetada por esse, inclusive se tornando, na maioria das vezes, um método eficaz de influenciar os sujeitos.

Diante disso, as personagens das princesas – levadas dos contos de fadas para o cinema por Walt Disney –, possibilitam reflexionar sobre o que é ser mulher a partir de estereótipos que são construídos na infância, numa “explosão terapêutica do inconsciente” (BENJAMIN, 1994, p. 190).

Muitos dos clássicos da Disney foram investidos em protagonistas femininas, sendo refletidos neles a mudança do papel da mulher na sociedade, de acordo com a época em que eram produzidos, em criação, não obstante, de estereótipos. Segundo o dicionário Michaelis, estereótipo  é uma “imagem mental padronizada, tida coletivamente por um grupo, refletindo uma opinião demasiadamente simplificada, atitude afetiva ou juízo incriterioso a respeito de uma situação, acontecimento, pessoa, raça, classe ou grupo social”.

Assim, da mulher perfeita da década de 30 do século passado, da menina maltratada pela madrasta – Branca de Neve — que conhece seu “príncipe” e casa-se com ele, da menina –Cinderela – que sonha em casar e viver feliz para sempre, da menina curiosa – Aurora – que toca no objeto proibido e adormece a espera do beijo encantado –  ao filme A Pequena Sereia, lançado em 1989, há um caminho esquadrinhado.

Ariel, traz-nos algo inusitado: ela não é apenas uma sereia, ela é diferente por ser retratada como um “ser desejante”. Ela desejava algo diferente da vida que vivia, pois, achava sua vida monótona e rotineira. Assim, ela é apontada como rebelde, insubordinada e cabeça dura.

As princesas Disney, nascidas em 1937, sofreram várias transformações no decorrer desses 76 anos, porém, um ponto em comum pode ser apontado para praticamente todas elas: o amor sendo alçado a um lugar privilegiado no universo feminino. Trazemos, em confirmação, o cantar de Ariel em determinado lugar do citado filme: “Eu não sei bem como explicar que alguma coisa vai começar, só sei dizer, que a você vou pertencer.” (grifo meu)

 “Vocacionada” para o amor, Ariel renuncia a seu Eu para aderir ao Outro amado, tanto que ela deixa de ser sereia para se tornar humana, denunciando, por consequência, sua relação de identificação/dependência com o outro masculino por quem se apaixona, em detrimento de si mesma.

Outras produções da Disney, continuamente, descortinam o feminino em personagens que povoam o imaginário das meninas e mulheres de todas as idades. Como não lembrar das “esquisitices” daBela? Uma menina com mania de leitura, que inclusive foi capaz de enxergar a beleza da Fera porque conseguiu ir além dos padrões estipulados pelo contexto em que estava inserida. Temos também a princesa Jasmine, a garota que lutou para poder ter mais independência, que enfrentou o pai para que ele não escolhesse seus pretendentes. Outra personagem que marcou as aventuras da Disney foi Pocahontas que encarou com altivez o abismo existente entre seu próprio mundo e o mundo de quem ama.

E que menina não sonhou em ser corajosa como Mulan? Ela que assumiu o lugar do pai na guerra e é tida como a maior mulher guerreira da China. Seguindo as narrativas da Disney temos Tiana, a primeira princesa negra da Disney, ela que, com vínculos empregatícios, precisou se sustentar a partir do uso da sua força de trabalho. Como as mulheres modernas, tinha dupla jornada. Rapunzelque num processo doloroso de autoconhecimento foi em busca de seu lugar no mundo.

Diferenças a parte, eis que surge Merida, ela que nos faz pensar que pode sim ser uma princesa diferente. Aventureira, nunca gostou de pentear os cabelos, nem de roupas coladas ao corpo e que muito menos ficava suspirando a espera do  príncipe encantado. Sua diversão era cavalgar, escalar, ser livre. Em Frozen, último filme da Disney, temos a história de duas irmãs, Elsa e Anna. Anna é engraçada, sonhadora, inteligente e espera o seu príncipe encantado. Já Elsa (a irmã mais velha) nasceu com um dom especial e teve que enfrentar seus medos e aprender a lidar com o diferente.

Diante dessas narrativas, uma questão pode ser levantada: haveria uma relação intrínseca entre o amor e o feminino? Para respondê-la, faz-se necessário um brevíssimo percurso histórico, onde a proximidade desta relação se fez presente, servindo, dessa maneira, de ponto de ancoragem.

Muitos já devem ter lido ou ouvido falar do Banquete, obra de Platão, escrita no século IV a.C. Nela, os amigos de Agáton, reunidos por ocasião de um de seus sucessos teatrais, celebram sucessivamente o amor, cabendo a cada um deles fazer um discurso sobre o amor. Depois de Fedro, do orador Pausânias, do médico Erixímaco e dos poetas Aristófanes e Agáton, chega à vez do discurso de Sócrates, que pouco fala, fazendo falar, em seu lugar, Diotima, uma mulher estrangeira, dizendo dela ter aprendido o que sabia sobre o amor.

É curioso que numa obra, onde a predominância de personagens masculinos faz-se presente, Sócrates invoca uma mulher para falar do mito do nascimento do amor, ainda mais se pensarmos que também foram as mulheres que possibilitaram a criação da Psicanálise. Um ponto de vista a se tirar dessa obra de Platão é que, ao tentar falar do amor estou arriscando a reduzir, ou melhor, a dizer qualquer coisa, pois, quando se fala do amor, não se sabe do que se fala e quanto mais se fala dele, menos se sabe a seu respeito. Portanto, o filósofo, ao lançar mão do mito, aborda o indescritível real, algo que não pode ser obtido no plano do saber.

O mito do nascimento do amor, contado através da boca de Diotima, mostra-nos que é, justamente, no momento em que Poros dormia, momento em que não sabia de nada, visto que estava embriagado, é que o amor foi gerado, ou seja, a concepção do amor só foi possível porque Penia desejou ter um filho de Poros. Penia, a Pobreza, não tem nada a oferecer; Poros, o Recurso, ao contrário. Penia só tem para dar a sua falta, surgindo, em estudioso do pensamento freudiano, uma das definições do amor como “dar o que não se tem” (LACAN, 1992, p. 124)

Sócrates, ao passar a palavra a Diotima, talvez estivesse invocando, como disse Lacan, a mulher que está nele. Diotima, mulher, do lado do ser e não do ter masculino, esclarece sobre o belo, dizendo que ele não se relaciona com o ter, mas com o ser.

Renomada psicanalista será explícita ao referenciar o ser e sua relação com o feminino. Ela chama-nos a atenção para a importância que o amor assume para a mulher, precisamente, como tentativa de superação do não ter pela via do ser, buscando no amor uma identificação, não apenas como sujeito, mas, principalmente, como mulher. Ela escreve: “(…) a questão do ser, do extremismo do ser, prima sobre o ter à medida que na posição feminina o sujeito, ao estar não-todo inscrito na função fálica, busca se identificar através do amor de um outro.” (SOLER, 1995, p. 150)

Mesmo com séculos a separar estas duas obras, vemos a relação amor e feminino surgindo como ponto comum em ambas. Assim, numa obra escrita no século IV a.C., já surge a descrição da mulher numa situação de dependência do amor, ou seja, Penia supondo que Poros tem o que lhe falta, busca se identificar com o Recurso do qual se vê e sente privada em sua Pobreza.

Se, em época tão remota, a mulher já se encontrava numa situação de dependência do amor, não significa que ela tivesse voz e vez de reinvindicá-lo, tanto que Penia utiliza-se de um artifício, um tanto quanto “escuso” para se engravidar de Poros, em sinalização de certo desencontro que irá sempre marcar a relação homem–mulher.

Agora daremos um salto no tempo, isto é, da Antiguidade para o século XIX, época que trouxe em seu bojo certo puritanismo em relação às mulheres. Em tal época, a literatura foi rica de personagens femininos, em indicação de que a questão do feminino surgia no cenário social para ficar e, por ironia, autores homens escrevendo e retratando sobre o universo feminino1

Desta forma, a modernidade foi um momento em que a perspectiva de vida das mulheres sofreu grandes transformações e, neste cenário, a Psicanálise é criada por Freud. A sua genialidade, ao ouvir a queixa das histéricas, foi perceber que o sintoma surge para poder dar conta de um descontentamento frente a uma posição feminina insatisfatória.

Chegamos, abruptamente, aos séculos XX e XXI e, uma pergunta precisa ser posta: o que mudou?Se a modernidade preconizou o amor romântico, os ideais deste amor romântico naufragaram; o que não significa, todavia, que o amor naufragou.

Todavia, percebe-se hoje que a mulher vem adotando, perigosamente, o discurso do senhor, como na dialética senhor x escravo2. Contudo, ao se apropriar de um discurso pronto, que não é o seu, acaba por provocar o des-encontro dela consigo mesma, que é de uma outra dimensão que lhe aparece como insuportável.

No percurso da obra de Freud, desde as primeiras cartas a Fliess até seus textos inacabados, percebe-se uma tentativa de esclarecer a questão do feminino, utilizando-se, para tanto, de abordagens diferentes na elaboração de um conceito, apontando a dificuldade de tornar-se mulher, visto que não se nasce mulher.

Desde muito cedo aparece em Freud uma queixa quanto à obscuridade que envolvia a vida sexual das mulheres, a ponto de escrever, nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), que a vida sexual dos homens podia ser estudada em melhores condições “(…) cuja vida amorosa é a única a ter-se tornado acessível à investigação, enquanto a da mulher, (…) permanece envolta numa obscuridade ainda impenetrável.” (FREUD, 1996, p. 143)

Nos anos subsequentes, sempre que havia oportunidade, este “obscurantismo” era apontado e, muitos anos depois, em seu trabalho A questão da análise leiga (1926), ainda fazia questão de frisá-lo, numa frase que ficou famosa:

Sabemos menos acerca da vida sexual de meninas do que de meninos. Mas não é preciso envergonharmo-nos dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas é um ‘continente negro’ para a Psicologia. (FREUD, 1996, p. 205)

Como conseqüência dessa alusão, ao “continente negro”, Freud foi conduzido, muitas vezes, a presumir que a sexualidade das mulheres podia ser tomada como análoga à dos homens, o que o levou a muitos “desvios” ao longo de sua obra. Porém, mediante leituras de suas obras, percebemos que o “tornar-se” mulher não pode ser concebido a priori, mas a posteriori, surgindo, daí, o caráter problemático do feminino.

Para Lacan, o que a mulher busca, ao se perceber não representada, “despossuída” de uma identidade, é obter um signo que a funde numa feminilidade reconhecida. Deste modo, seria o amor este signo? Seguindo este caminho, do amor (fenômeno) enquanto signo (que remete para algo diferente de si mesmo), não seria esta uma das razões do amor possuir esse estatuto privilegiado no universo feminino?

Assim, sob o signo da falta, da falta de uma identidade propriamente feminina, o amor entra como um mediador, mediando a dor que é da ordem do insuportável.

Notas:

1 Dentre os grandes autores e seus marcantes personagens femininos desta época citamos: Conde Tolstoi (Anna Karenina), Gustave Flaubert (Madame Bovary), Honoré de Balzac (A mulher de trinta anos), Machado de Assis (Dom Casmurro) etc.

2 André Vergez & Denis Huisman (1988, p. 280) esclarecem que para Hegel o senhor não é senhor “em-si”, mas por meio de uma mediação, isto é, uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos que depende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e fruição para o senhor.

Referências:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura.Obras Escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1994.  V.1

DICIONÁRIO MICHAELIS. Estereótipo. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/. Acesso: 10 dez. 2013.

FREUD, Sigmund (1901-1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  V. VII.

___ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.  Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. VII.

___ (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIV.

___ (1920). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Rio de Janeiro: Imago, 1996.  V. XVIII.

___ (1923). O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.

___ (1923). A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.

___ (1925). Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX.

____ (1925-1926). Inibições, sintomas e ansiedade.Rio de Janeiro: Imago, 1996.  V. XX.

____ (1926). A questão da análise leiga.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XX.

___ (1929-1930). O mal-estar na civilização.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI.

___ (1931). Sexualidade feminina.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXI.

____ (1932-1933). Conferência XXXIII:Feminilidade.Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XXII.

LACAN, Jacques. A transferência.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O Seminário, livro 8)

PLATÃO. Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2003. pp. 93-166

SOLER, Colette. Variáveis do fim da análise. São Paulo: Papirus, 1995.

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Anna e Elsa: tempestades de gelo, descobertas e diferenças

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“Minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes
ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

Clarice Lispector

As princesas da Disney são definidas a partir de uma série de códigos ideológicos e estéticos. Esses códigos são necessários para a criação de uma identidade que tenha potencial para configurar um perfil que mereça ser amado, copiado e seguido. Com isso, pode-se estabelecer toda uma cultura em torno dos pares de opostos: bem e mal, beleza e horror, amor e ódio, perdão e vingança.

A heroína Disney é reconhecida quando ela fica em uma varanda com os cabelos ao vento, quando canta na floresta, ou quando ela deseja ter aquilo que está além do seu alcance. Embora os detalhes tenham sido atualizados, revisados e reformulados em conformidade com a ideologia contemporânea, a essência da fórmula das princesas da Disney manteve-se intacta. Como Walt Disney disse uma vez: nós sempre vamos torcer pela “Cinderela e seu Príncipe”.[1]

Mas, será que essa fórmula manteve-se realmente intacta? Já houve uma tentativa de “globalização” das princesas ao mostrá-las em diferentes etnias, cores ou classes sociais. Mas ainda persistia a ideia de que a figura do príncipe era necessária para formar “o conto de fadas” ideal. Até que o paradigma do “viveram felizes para sempre com um príncipe” foi quebrado emMerida, a princesa ruiva e rebelde. Em Frozen, novas nuances são apresentadas nessa fórmula. Tais nuances trazem à tona diferentes aspectos da personalidade das princesas.

O filme Frozen é “levemente” baseado em uma história do dinamarquês Hans Christian Andersen, “A Rainha da Neve”, publicada pela primeira vez em 1845. Nessa história, um anão do mal cria um espelho encantado capaz de transformar (para pior) as pessoas que o mirassem. Mas, um dia, o espelho é quebrado e seus estilhaços se espalham pelo mundo, disseminando ainda mais seu poder de destruição. Se um estilhaço do espelho atingisse o coração de alguém, essa pessoa se tornaria fria. Se atingisse os olhos, ela só enxergaria o pior nos outros.

O aspecto do conto de Andersen que foi usado como inspiração tem relação com a metáfora do gelo. Mas, em Frozen, o mal e o horror não vêm apenas do frio e da neve, mas do preconceito e do medo diante do “diferente”.

Frozen nos apresenta a história de duas irmãs, Anna e Elsa. A mais velha (Elsa) nasceu com um dom especial, é capaz de criar gelo e neve. Sem compreender o dom que possui, usa-o na maior parte do tempo para provocar os risos da irmã mais nova. Mas, um dia, o gelo que fez da Elsa uma criança “diferente” quase provocou a morte de sua irmã, o que resultou na decisão dos pais de separá-las e, de certa forma, esconder Elsa (e seus dons incompreensíveis) do resto do mundo.

Pouco tempo depois, as meninas ficaram órfãs. Elsa permaneceu presa em seu quarto, separada da irmã, tentando assimilar que tipo de monstro carregava consigo que tornava-a um perigo para os outros. Os pais das meninas, na tentativa de fazer um bem a ambas, foram os responsáveis por criar as maiores barreiras à felicidade das filhas. Não entender algo é totalmente compreensível, temer o desconhecido também o é. Mas o grande problema é quando se faz disso um fardo e uma dor para o outro, sendo que a causa, muitas vezes, reside em seu próprio medo, na sua incapacidade em lidar com o diferente, com aquilo que saiu dos padrões que convencionalmente compõe o conceito de “normalidade”.

“Medo e preconceito. O medo do diferente é o pai do preconceito, que por sua vez abre feridas na alma. Porém nos ensinaram que temos de ser iguais, inclusão geral. Então, para não sermos diferentes, portanto objetos de suspeita ou rejeição clara, mentimos uma igualdade impossível. Melhor seria entender, cultivar e afirmar nossas diferenças – não como fator de ódio, mas de um espaço de crescimento natural de todos para um melhor convívio.” [2]

Elsa e Anna foram vítimas (ainda que de maneiras distintas) desse estranho medo do diferente. E o isolamento no qual viviam contribuiu para o sentido que elas erigiram em torno das coisas e das poucas pessoas que estavam próximas.  “A solidão produz uma hipersensibilidade a estímulos mínimos e uma tendência para interpretar erroneamente ou exagerar a intenção dos outros, considerando as pessoas hostis ou afetuosas em demasia” [3]. Assim, enquanto Anna se transformou em uma sonhadora à espera do amor de um príncipe e de uma vida repleta por todas as diversões que lhes foram negadas na infância, Elsa permaneceu presa à ideia de que precisava controlar o mal que carregava consigo, logo tinha que neutralizar parte do que era.

A cada momento, a figura de um príncipe altivo e destemido que fazia parte dos sonhos de Anna parecia se afastar ou tornar-se incongruente com a sua realidade. Na festa de coroação de Elsa, quando finalmente as irmãs se encontram novamente, vemos que toda a afobação da Anna por encontrar o “amor de sua vida” na verdade parecia ser mais uma fantasia criada para suportar a solidão. As irmãs que antes eram tão cúmplices, agora pareciam temer uma a outra. Mas, havia algo no encontro que mostrava que o abismo não era assim tão profundo, alguns traumas não têm força suficiente para destruir a essência das relações, apenas modifica-as em certos aspectos.

Anna tem características mais similares às últimas princesas Disney. É nítida a sua semelhança com a Rapunzel. Ela é engraçada, sonhadora, inteligente e, principalmente, faz uma linha “gente como a gente”, acorda desgrenhada e com baba num canto da boca. Na mesma velocidade que Anna pensou estar apaixonada por um príncipe numa espécie de “amor à primeira vista”, logo entendeu nas entrelinhas que aquilo era uma causa secundária em seu caminho. Seu objetivo era encontrar a irmã, aproximar-se dela, entender a diferença tão profunda que as afastava e que dava ao reino aquele aspecto desolador e frio. 

“Seja a boa garota que você sempre teve que ser.
Oculte, não sinta.”

Depois que ocorre o descontrole emocional de Elsa e seus poderes vem à tona trazendo um inverno profundo em todo o reino, tem-se o início do momento que, de fato, diferencia essa princesa de todas as outras das histórias Disney. Mais do que dilemas sobre príncipes, madrastas e reinos, a complexidade que existe em torno da personalidade de Elsa encontra-se nas questões éticas e nas relações de significados e sentidos que a constituem, ou seja, é no seu mundo interior que ocorre a transformação. Elsa deseja o mal do reino e, por isso, o pune com um inverno avassalador? Cansou de ser “a boa garota”, de ser controlada, de ter que se esconder para não perturbar a paz dos outros (esses outros que são tão diferentes dela) e resolveu criar seu código de conduta em seu próprio universo?

“E os medos que uma vez me controlaram
não podem mais me alcançar”

Até então, as princesas Disney, modernas ou tradicionais, aventureiras ou dóceis, engraçadas ou inventivas, ainda não tinham atravessado a ilusória linha entre o bem e o mal. Elsa, como todos nós, tem o mal e o bem nela. Para as pessoas do reino, é uma aberração. Para seus pais, era uma incógnita e, em alguns aspectos, um problema. Para sua irmã, a melhor lembrança de alegria na infância. Para si mesma, talvez fosse apenas uma mulher cansada de uma existência nas sombras.  Elsa não “precisava” de uma transformação, esse não é o verbo correto, na verdade, tudo nela “exigia” isso. Nessa história, não cabia a figura da madrasta má, da bruxa disfarçada de boa velhinha. Elsa carregava em si um pouco desses e de outros arquétipos, assim podia ser a feiticeira temida ou a princesa encantada.

“É tempo de ver o que posso fazer
Para testar os limites e progredir
Sem certo, sem errado, sem regras para mim
Estou livre!”

Com o musical “Let it Go!”, acompanhamos a transformação de Elsa. O momento em que ela aceita sua magia é uma forma de aceitação de quem ela é de fato. E isso provoca uma mudança inclusive visual. As roupas mais pudicas da jovem rainha de um reino que a trata como uma aberração deram lugar às roupas sensuais da “Rainha do Gelo”. Se o mundo não a aceitou, ela resolveu criar seu próprio mundo e nele é soberana.  Com um vestido esvoaçante, cabelo de comercial de shampoo, pernas de fora, jeito e atitude de diva, eis que nasce a primeira Princesa Disney Sensual. E o mundo não acabou.

Em seu reino de isolamento, que é comum em vítimas de preconceito, Elsa pensou ter encontrado o esconderijo ideal. Mas assim como a “boa menina” do início tenha sido apenas uma máscara que outras pessoas lhe colaram à face, a diva da solidão também era um disfarce que ela construiu para sobreviver. Esses disfarces funcionam como artifícios emocionais que erigimos na esperança de sobrevivermos às tempestades que se formam em nosso universo particular. Sair do seu reino de gelo era voltar a um mundo em que a vulnerabilidade, a insegurança e o medo se fariam presentes. Mas não há relação humana isenta desses conceitos.

Na história de Anna e Elsa também é apresentado, ao final, que o ato de amor, longe de ser somente uma viagem narcisista à procura de um reflexo, de um “semelhante”, pode ser um ato de altruísmo, de doação. É esse amor que transforma as irmãs e, com elas, todo o reino.

Referências:

Filme – Ficha Técnica:

Título: Frozen – Uma Aventura Congelante

Direção: Chris Buck, Jennifer Lee

Roteiro: Chris Buck, Jennifer Lee, Shane Morris

Gênero: Animação

Ano: 2013

Artigos e Sites:

[1] http://wildhunt.org/2013/12/disneys-frozen-a-tale-of-two-princesses.html#sthash.BbC6NyKi.dpuf

[2] LUFT, Lya. Múltipla escolha / Lya Luft. – Rio de Janeiro: Record, 2010. 189p.

[3] PERLMAN, D., & PEPLAU, L.A. (1981). Toward a social psychology of loneliness. In S. Duck & R. Gilmour (Eds.), Personal relationships 3: Personal relationships in disorder (pp. 31-55). London: Academic Press. [Reprinted in B. Earn & S. Towson (Eds.), Readings in social psychology. Peterborough, Canada: Broadview Press].

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Merida – Uma Princesa Diferente?

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Uma princesa não rabisca, não gargalha, não enche a boca, acorda cedo,
tem compaixão, é paciente, cautelosa, limpa [….] e acima de tudo,
uma princesa busca ser perfeita!”

Rainha Elinor – Brave, 2012

Os contos de fadas têm marcado o imaginário social sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade. Trazemos coladas a nossas existências nítidas representações destas histórias de reis, rainhas, aventuras e disputas entre o bem e o mal, assim como o ideal do ‘Felizes para Sempre’. Estas narrativas (que nem sempre trazem fadas em seus enredos) eram originalmente destinadas ao entretenimento dos adultos e, portanto, nas versões originais apresentavam elementos de violência e sexualidade explícitos. Gradualmente estes contos foram se transformando em histórias infantis, sendo cortados os aspectos mais agressivos e sublinhados os ensinamentos morais (MEREGE, 2010).

Com o advento Disney os contos ganham dimensões globalizadas e ainda mais suavizadas com relação a violência expressa nos originais. Ao mesmo tempo, há um reforço no estereótipo de bruxas, fadas, reis, rainhas, madrastas, príncipes e princesas. Steinberg (1997) aborda os modos de construção de ideologia presentes nas versões Disney dos contos de fadas.

Versões estas que hoje estão gravadas em nossa subjetividade, talhadas na lógica da cultura ocidental capitalista, e que consideramos como clássicas. Alguém imagina uma Branca de Neve diferente daquela da animação lançada em 1937? Ou uma Bela Adormecida distinta da linda figura esguia de longos cabelos loiros e olhos claros? Uma a uma as princesas dos contos de fadas foram sendo capturadas neste movimento docilizante. E com elas os arquétipos do feminino.

Quem nunca sonhou em ser princesa? Ser salva dos perigos pelo príncipe (de preferência encantado) e viver feliz para sempre? Em nossa cultura, atravessada por discursos psicologizantes, encontramos inclusive, um best-seller que fala deste modo produtor de subjetividade: ‘Complexo de Cinderela’. Neste livro, lançado em 1981, a autora Colette Dowling discorre sobre a necessidade feminina da busca do príncipe, aquele homem forte que vai tomar conta de nós, mulheres frágeis, e nos aliviar do fardo da responsabilização por nossas vidas e escolhas. O livro foi um sucesso internacional, apontando o eco que esta teoria encontra em nossa civilização.

Incrível pensar que o desejo é este mesmo, ser princesa e não ser rainha. Lembro da minha infância, de brincar com uma prima e todas as vezes entrarmos em conflito quando era necessário definir os papéis de princesa e rainha. Será que já se apresenta aqui o ideal da juventude? A rainha é mais poderosa, mas ainda assim queremos ser princesas. Talvez porque à Rainha estejam associadas as exigências do poder, as responsabilidades e deveres deste lugar de soberana.

Com estes aspectos presentes, a presente escrita pretende discutir a personagem Merida, da animação Brave1, traduzido para o português como Valente. Uma princesa construída no/para o nosso tempo, mas ainda com muito do que nosso imaginário deposita nesta figura.

Na fala da Rainha Elinor, na abertura do texto, a descrição, ou melhor, a prescrição do que é uma princesa. Me remete à música ‘Ciranda da Bailarina’, de Chico Buarque:

Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Verruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
(…)”

É a imagem de uma mulher irreal, de um ser irreal. E contudo, estas alegorias continuam atravessando o imaginário, na busca da perfeição da princesa-bailarina asséptica.

Mas quem disse que as princesas são ou devem ser criaturas doces, meigas, lindas e prendadas? Seria possível pensar uma princesa diferente?

A imagem da princesa donzela, que vive sua vida a espera do príncipe encantado não se ajusta tão bem a contemporaneidade. Vivemos um tempo que exige da mulher um papel complexo, ao mesmo tempo de docilidade e pró-atividade. Neste sentido, o movimento de composição de princesas menos débeis e histórias com mulheres protagonistas fortes constitui-se como necessidade.

A personagem principal deste filme é uma linda princesa (como são todas). Mas esta é, pelo menos em parte, uma princesa diferente. Ela é questionadora, não gosta de pentear os cabelos, de roupas que impeçam os movimentos do corpo e muito menos está sonhando com o príncipe encantado. Ela gosta de arco e flecha, de cavalgar, de escalar, de comer e de ser livre.

Merida tem 16 anos e incríveis cabelos ruivos de cachos rebeldes. O cenário é a Escócia, em um tempo não determinado. Um tempo de reis e rainhas, de batalhas épicas e de magia. Seu pai é o alegre e expansivo Rei Fergus. Incentivador do espírito aventureiro da filha, a presenteia no aniversário de 5 anos, com um conjunto de arco e flecha.

Sua mãe, Rainha Elinor, é a disciplina em pessoa, sendo a verdadeira responsável pelo governo do Reino. A Mãe-Rainha, que uma vez também foi princesa, tenta por todos os meios, moldar Merida para que esta tenha o comportamento esperado e correto para uma princesa.

O destino de Merida está pré-determinado. Ela deve se casar com o primogênito de um dos clãs do reino. Essa é a tradição, e como tal, deve ser seguida imperativamente, sob pena de haver uma guerra entre os diferentes grupos, o que desagregaria o território.

Merida tem seu futuro estabelecido pelo lugar que ocupa: “Eu sou a princesa, sou o exemplo. Tenho deveres, expectativas, reponsabilidades para o dia que me tornarei como minha mãe.” Nesta fala está expressa a demanda que pesa sobre a personagem, como mulher e princesa, mas também como futura governante.

Interessante ver como o lugar da mulher é representado nesta animação. Temos uma princesa valente e uma rainha governante.

O rei, o masculino, é mostrado como força física, e só. Um tanto superficial, trazendo, ao mesmo tempo, toda a questão da aventura e da diversão. Parece haver uma identificação da princesa com este mundo de ousadia e irresponsabilidade, mostrado no filme como um espaço masculino.

Diferente de outros enredos como este, de conto de fadas, nossa figura central apresenta um compromisso com seu desejo. Não anseia por um outro que irá lhe completar, mas por ser inteira e autentica. Também difere de outras tramas em que a princesa deve se sacrificar em nome de uma causa maior, como Pocahontas.

A princesa não quer casar, aliás não quer nem mesmo ter este título de nobreza, que lhe impõe restrições e responsabilidades. A recusa em aceitar o destino de um casamento arranjado, conveniente e/ou adequado, não é uma novidade nas animações ‘estilo princesas’. Encontram-se frente a esta circunstância, por exemplo: Jasmine, Ariel, Bela e Fiona. Contudo, diferente de outras, esta princesa não termina casada ou apaixonada. O questionamento e discordância de Merida não é com o casamento arranjado, mas com o próprio casamento, associado a ideia de falta de liberdade.

Uma das questões especiais do filme, do ponto de vista da virada na representação do feminino, é quando Merida se candidata para disputar por ela mesma, pelo direito de não se casar (ou de se manter fiel a seu desejo), no torneio em que seria decidido seu futuro marido. E ela vence.

Deste fato resulta a ruptura maior entre Mãe e filha. Rompimento simbolicamente representado por um corte em uma tapeçaria que retrata a família, dividindo as figuras materna e filial.

A Mãe-Rainha acusa Merida de ter embaraçado o reino. Ao que Merida retruca que apenas seguiu as regras. E está certa. Encontrou a brecha na instituição tradição. Como em um movimento de arte marcial utilizou a energia do próprio adversário para reverte a seu favor. Escolhe como esporte para o torneio, aquilo no que ela é melhor, o arco e flecha. E como primogênita que é, tem direito à participar da disputa.

Acompanhamos ao longo do desenvolvimento do enredo uma disputa entre Mãe-Rainha e Filha-Princesa. Aqui temos outra diferenciação de Valente. A presença de duas mulheres fortes como protagonistas, que mesmo em conflito não deixam de se querer bem. São mulheres com concepções diferentes sobre a vida e com dificuldades de comunicação.

Bonita a passagem da história em que mãe e filha, em cenas separadas expressam o desejo de que a outra apenas lhe escutasse. Muito significativo, mostrando a dificuldade de comunicação entre mãe e filha, típica da adolescência.

A disputa leva Merida a querer que sua mãe fosse diferente, lhe entendesse e respeita-se sua maneira de ser. Porém, como diz o ditado popular: “Cuidado com o que você deseja, você pode acabar conseguindo”.

Levada pelos fogos fátuos, as ‘luzes mágicas’, até uma bruxa, Merida pede um feitiço que mude sua Mãe e, assim, mude também o seu destino. Estas ‘luzes mágicas’ aparecem na vida de Merida em diferentes momentos, guiando para caminhos e lugares que modificam sua existência. Como se o desejo de potência, estivesse expresso nesta luz, em um fluxo-vida.

Mas o desejo de Merida parece levar a um ‘castigo’, embora a bruxa não seja má, apenas ‘atrapalhada’. A Mãe realmente muda, não de opinião, mas de espécie. Se transforma em uma ursa. Aqui tem início a jornada de mãe e filha rumo a ultrapassagem de suas visões de mundo.

Com a Mãe-Rainha-Ursa tendo que se refugiar na floresta, as coisas se alteram. Quem detém o conhecimento para a sobrevivência é Merida. É a Menina-Princesa-Aventureira quem cuida e ensina a mãe o que comer e como se comportar. As duas estabelecem um vínculo de cumplicidade. Funcionam melhor juntas, são complementares na busca de uma solução para a situação tanto da Mãe-Ursa, como da Princesa-Não Casadoura.

O recurso ao feitiço está em consertar o vínculo dilacerado. Está é a receita da bruxa. Mas o que isso significa? A tapeçaria deve ter seu corte costurado e assim ser unida novamente. Linda metáfora, aquilo que foi rompido não volta a ser igual jamais. Traz em si as marcas do cindido e da costura. Mas é mais do que isso, mais do que o conserto objetivo da coisa. O que deve ser alinhavado é o vínculo afetivo. Uma costura das diferenças geracionais, uma costura da união do diferente. Algo que pode ser integrado em suas singularidades sem que se torne uno. A tapeçaria, a costura da vida, o novo e o antigo, as tradições e as revoluções.

Neste processo Merida assume um lugar de protagonista, até porque lhe é permitido pela ausência por parte da mãe-ursa, deste espaço de poder. Mostra-se uma ótima mediadora do conflito entre os clãs e abre espaço para a mudança nas tradições. Permitindo que a força vital da inovação escora por esta brecha e transversalize o destino.

Outro contraste apresentado por Brave é a ausência de um vilão. Não temos uma bruxa malvada, uma madrasta invejosa ou um dragão furioso. Temos um urso, que de fato é um antepassado enfeitiçado. Mas este personagem, assim como a lenda desta transformação são apenas um pano de fundo e não o argumento central. A trama em evidencia é de fato a relação Mãe e filha e a construção do porvir.

O destino foi deslocado, tomou outro rumo, não como se imaginava, mas pelo desenrolar da vida. Mãe e filha mudaram, aprenderam a reconhecer na outra uma parceira, com defeitos e qualidades. Merida amadureceu e Elinor entendeu que não precisa estar no controle de tudo. Não deixaram de ser princesa e rainha, mas transmutaram suas visões de mundo.

Uma princesa diferente? Sim. Ainda temos um caminho a percorrer, mas há esperança. Merida – ruiva despenteada, menina arqueira, sem príncipe encantado, sem casamento ao final. Princesa aventureira, com capacidade política, mulher real, que constrói seu caminho no aprendizado, mantendo-se fiel a seu desejo.

Notas:

1 Filme lançado em 2012, sendo o primeiro conto de fadas resultante da parceria  entre a Walt Disney Pictures e a Pixar Animation Studios.

2 Sobre este tema ver Steinberg, 1997.

Referências:

BRAVE. Direção Brenda Chapmane Mark Andrews. Produção Pixar Animation Studios. Estados Unidos: 2012. Distribuição Walt Disney Pictures. BluRay, (93 min.), colorido.

BUARQUE, Chico e LOBO, Edú. Ciranda da Bailarina. In: Buarque, Chico e Lobo, Edú.O Grande Circo Místico(CD). Brasil:  Universal, 2005.

DOWLING, Collete. Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fadas: origens história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010.

STEINBERG, Shirley R.. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de e SANTOS, Edmilson Santos dos (Orgs.).Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997.

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Tiana: a magia e a realidade da quebra de preconceitos

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A Princesa e O Sapo, a produção norte-americana dos estúdios Walt Disney, lançada em 2009, conta a história de uma moça negra que vive na Nova Orleans dos anos 1920, nos Estados Unidos, e representa a mais contemporânea das histórias das princesas em termos de animação. Tiana é a única princesa que tem vínculos empregatícios e precisa se sustentar a partir do uso da sua força de trabalho, mostrando em parte como se deu a inserção da mulher negra no mundo do trabalho – antes mesmo que a mulher branca pudesse ser inserida nesse. Tiana faz dupla jornada e não é de verdade uma princesa, mas se torna uma quando encontra o príncipe.

Ainda que exista uma leve referência para nós brasileiros, poucos sabem que essa região dos EUA era no final do século XIX o grande mercado negreiro americano, sendo um dos últimos estados onde a abolição da escravatura aconteceu no país, e a história de Tiana ilustra o cotidiano de muitas moças da época, cumprindo longas jornadas de trabalho para poder levar uma vida minimamente confortável. Mais um caso aqui de mulher que precisa se resgatar por si mesma, uma vez que o príncipe é imperfeito e muito mais humano do que a maioria dos personagens que costumamos ver nos contos de fada. Ao invés de salvar Tiana, o príncipe de seu conto a coloca em diversas situações complicadas, como por exemplo, transformá-la em sapo e quase arruinar a possibilidade de que ela consiga seu restaurante.

O filme vai se desenvolvendo a partir da história da família de Tiana, em que sua mãe trabalha assim como o seu pai. Nesse primeiro momento da trama, já se percebe o contraste com a realidade da Charlotte, a “princesinha do papai”. Depois de algum tempo vemos uma Tiana crescida e que se torna endurecida pelo trabalho, uma moça que passa tanto tempo em atividade que não tem tempo para o lazer ou amigos, sempre em contraste com Charlotte, jovem rica e mimada, cuja maior preocupação é conseguir conquistar um príncipe.

Enquanto isso, Tiana tem tempo apenas para “se focar” em realizar seus sonhos: abrir um restaurante glamouroso e de sucesso.

Em outras palavras, sua personagem tem sonhos de construir um patrimônio seu e de ser bem-sucedida a partir de seu próprio trabalho. O príncipe pouco ou nada tem a ver com isso, e é assim que ele permanece na história, sem financeiramente contribuir para a abertura do restaurante, e se caracteriza como um personagem que tem defeitos, sentimentos e sonhos.

O casal não se apaixona à primeira vista, e o príncipe busca relações por interesse, pedindo um beijo à Tiana para que ele volte à forma humana, e em troca promete a ela dinheiro para o seu restaurante.

O filme mostra como a relação entre os dois vai se construindo, e como ambos, Tiana e o príncipe, precisam rever seus valores de felicidade para que possam se engajar em uma relação amorosa. Nesse aspecto, o amor aparece também como parte da magia responsável pela transformação da vida das pessoas.

O amor e a magia são sempre elementos essenciais dos contos de fada, histórias essas que no último século começaram a ser predominantemente feito para meninas, mostrando mulheres frágeis e que necessitam de alguém que as resgate dos apuros que sua condição feminina as colocou.  Contudo, alguns dos filmes de princesas produzidos na última década trazem não só o amor e a magia como elementos para que seus personagens se salvem das adversidades exteriores, mas a determinação e a ação concreta para que se salvem de si mesmos.

Surpreendida por um príncipe que não esperava, Tiana se depara com um homem atrapalhado, infantil e confuso, e que em consequência a coloca em diversas situações que a convida a entrar em ação.

Novas possibilidades de relacionamento também se descortinam com as tramas, e agora a mulher aparece constituindo e se constituindo nessa relação de outra forma, sendo também autora dos destinos desse relacionamento e de suas vidas. A princesa Tiana escolhe os rumos de sua vida, e ao invés de ser escolhida prioritariamente por sua aparência ou por predileção do destino, o é por suas características e pela maneira como se coloca no mundo.

Contudo, se por um lado vemos uma nova representação de mulher, forte, ativa, determinada e que usa esses recursos em detrimento da magia, o que vemos é a extensão dos valores do self-mademan também para as protagonistas de contos de fada: uma mulher que faz e não só acontece. Especialmente em A Princesa e o Sapo, que ao não explorar a questão racial – que é essencialmente social – com uma visão social e crítica sobre as consequências do racismo na vida das mulheres negras, tenta apresentar uma solução para superar a discriminação pela via do individual: Tiana é a típica mulher que precisa ir e fazer ela mesma, apresentando o sujeito do ideário neoliberal em que cada um deve estar por si.

Tiana é uma princesa que rompe com o ideário da típica princesa: é negra. Representando o que as mulheres já fazem e os dramas que vivem há décadas, os novos filmes trazem mulheres que precisam não só cuidar de seus homens, filhos e famílias, mas também de si, em duplas, triplas ou sabe-se-lá quantas jornadas. O que se pode dizer, ao final, é que a história contada através de Tiana traz novos valores nas telas que já são antigos conhecidos de todas nós mulheres da modernidade.

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Mulan – a ruptura de estereótipos e a polissemia feminina

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Tsiektsiek e novamente tsiektsiek,
Mulan tece, de frente para a porta.
Você só ouve os suspiros da filha…
Perguntam o que está em seu coração,
perguntam o que está em sua mente.
Ninguém está no coração da filha,
ninguém está na mente da filha.

(Balada de Mulan – anônimo – sec.Vd.C)

Provavelmente está esclarecido ao público que a proposta dessa série, intitulada “Princesas: estereótipos e o universo feminino” é o de discutir como os contos de fada, que engendram o universo infantil feminino, influenciam a internalização subjetiva no que se refere às relações humanas, principalmente as conjugais. De forma genérica, poderíamos analisar sobre como a empresa produtora dos filmes de princesas embute valores em seus enredos, compondo e transformando os processos subjetivos das pessoas através de sua influência midiática, porém não analisamos com tanto afinco ou crítica sobre como a mídia nos compõe em particular.

Em meio a isso não esqueçamos que até pouco tempo não existia no universo de princesas da Disney qualquer uma que fosse negra, assim como não havia aquela que no final da história não casasse, ou com isso não sonhasse. São inúmeras as questões passíveis de análises. Não é minha pretensão nesse texto rebuscar acordos e desacordos sócio-políticos entre a Walt Disney Company e governos (capitalistas, comunistas, ou o que seja), mas acho interessante, até mesmo como escudo contra a alienação midiática, que saibamos os contextos de surgimento dos filmes e desenhos, e os oportunismos nas entrelinhas, como sugere Averbach (2003):

É importante mencionar que os valores que se apresentam nos filmes da Disney vão mudando conforme a evolução das novas sociedades. Isto se pode observar de forma clara desde o filme de Branca de Neve, onde a mulher representava o papel típico de dona de casa. Por outro lado, com as novas produções, se pode observar uma evolução dentro dos filmes, onde as protagonistas como Bela, Mulan, Ariel, Jasmine, entre outras, desempenham papéis distintos, desafiando a sociedade tradicional. Essa mudança se dá em consequência de que o papel que as mulheres vem desempenhando na sociedade vem mudando. A nova geração de princesas, como é considerada por muitos, busca promover um ambiente de justiça, igualdade, reconhecimento e sobretudo de mostrar que são completamente capazes de defenderem-se. Estes são valores que muitos dos pais ocidentais desejam que suas filhas pequenas cultivem, para que elas tenham uma mente mais aberta ao mundo de hoje (Averbach, 2003).

Diante das histórias de princesas da Disney é impossível não recorrer à literatura que trata da instituição do casamento, uma vez que é essa a temática basilar da maioria dos roteiros. Embora a história originária da personagem Mulan não aborde o tema do casamento, a versão adaptada e, portanto, circulante e conhecida, o aborda. Nos contos de fadas e princesas, os finais felizes sempre se apresentam através da cena do matrimônio. É curioso como não é relatada ou mostrada a vida do casal após união simbólica do casamento. Desse fato, várias questões – creio que já abordadas em outros textos da série – surgem, como, por exemplo, a associação que é feita entre ideal de felicidade e casamento clássico, entre homem e mulher.

A personagem escolhida por mim foi a Mulan. Poderia, sem muitos esforços, me ancorar à temática do matrimônio para dizer sobre a sua história, embora acredite que nos textos de outras princesas tal tema esteja mais relevado.

Ademais, escolhi falar de Mulan porque através de aspectos de sua história consigo introduzir ideias sobre o feminismo e as transformações dos estereótipos com o passar dos tempos.

Para tanto, precisamos primeiramente entender que um estereótipo pode ser. Segundo Barzabal & Hernández (2005) é um conjunto de traços típicos os quais se supõem inerentes aos membros de um grupo. Tais traços são transmitidos por meio da repetição de normas de comportamentos, e assimilados e construídos a partir dessa repetição.Trata-se de uma ideia pré-concebida a respeito de algo. Tal ideia pode ser reforçada ou enfraquecida. Isso depende de como ela se desenvolve e comunica com outras ideias, pré-concebidas ou não.Diante do mundo midiático, estereótipos convertidos em modelos a seguir estão em disparate como criadores de valores e formadores de subjetividades.

De acordo com Gómez (2005), o modelo de realidade proposto pela mídia está pleno de papéis estereotipados, que são internalizados e assumidos de maneira inconsciente pelos espectadores, já que tais papéis não são algo real e sim ideal, o que facilita a assimilação. Gómez (2005) defende que os estereótipos são os responsáveis por atraírem audiências massivas, sendo essa a sua maior utilidade. Outrossim, podem ser compreendidos por crianças, como é o caso das histórias de princesas.

Segundo Alafita et.al. (2012), “(…) a realidade criada pela mídia pode ir se incorporando desde a tenra idade nos esquemas cognitivos e emocionais, assim como nos esquemas de pensamentos e comportamento”. Segundo os autores, o desenvolvimento do processo de socialização se dá através da empatia, que envolve a forma como as crianças percebem os entornos da história, internalizam suas normas, seus valores, e as propostas de condutas sociais, como num recado que sucintamente diz “se você se comportar como a princesa do filme, você será feliz”.

A formação de um estereótipo depende de aspectos como: cenários, apetrechos, comportamentos, conversas, sonhos, fantasias etc.

Mediante estas informações, podemos lançar uma primeira indagação: quais os estereótipos proeminentes da história de Mulan?

Adianto a vocês que a história do filmeé baseada na e antecedida pela “Balada de Mulan.” Reza a lenda que a história de Hua Mulan é verídica e aconteceu na China antiga do século 5 d.C. A Balada, escrita nessa época, é a fonte de toda a história, embora tenha tomado diversas vertentes no decorrer dos anos em que foi contada e repassada entre as gerações. Configura-se como o primeiro poema chinês a abordar a igualdade de gêneros (tema ainda polêmico no país asiático). Além da história de Mulan, há o boato de que o primeiro conto de Cinderela seja de origem chinesa, (com algumas peculiares diferenças), o que também nos faz refletir a respeito da repercussão da cultura e folclore orientais pelo mundo.

Não analiso a história de Mulan como um proeminente de estereótipos. Pelo contrário, acredito que sua história traga vários e fortes aspectos que rompem com estereótipos caducos.

Muitos são os aspectos divergentes entre a Balada de Mulan e a história mostrada nos filmes da Disney. Tentarei, no decorrer do texto, apresentar algumas destas diferenças, adiantando que a maior e mais significativa delas é a de que na Balada, a personagem Mulan não se casa. Classificaria este ponto como a primeira ruptura com o estereótipo do casamento (embora a personagem se case ao fim do segundo filme).

Lembremos que a história de Mulan foi adotada pela Walt Disney em 1998, quando virou filme de animação, fazendo dessa personagem mais uma princesa do reino do entretenimento, imaginação e fantasia. Em 2005 foi lançada a segunda versão de sua história através do filme Mulan 2, que possui um roteiro completamente independente da Balada originária. Na versão original, Mulan é tida como a maior mulher guerreira da China.

Na época em que o filme sobre Mulan foi lançado, o mundo (principalmente a parte ocidental dele) rodava junto à disseminação dos movimentos feministas. Segundo a história do feminismo no mundo, há três momentos distintos e marcantes. O primeiro deles é datado entre o século XIX e o início do XX, onde a luta voltava-se aos direitos trabalhistas e educacionais das mulheres; o segundo momento, datado entre as décadas de 1960 a 1980, é marcado pela luta pelos direitos legais e culturais da mulher na sociedade e o terceiro momento, datado entre o final dos anos de 1980 até o início do novo milênio, é marcado pela continuação da luta anterior, onde as mulheres buscavam o fortalecimento do que já havia sido conquistado e a conquista do que ainda não havia. É em meio a esse terceiro momento que os filmes de Mulan são lançados, ou seja, é em meio a um momento onde a mulher foi incorporando novos papéis na sociedade em que vivia, assumindo-se cada vez mais como o ser polissêmico que é.

Voltando à história de Mulan, conta o enredo que estando a antiga China em guerra, o imperador decide convocar um membro de cada família para lutar contra a invasão dos bárbaros. O pai de Mulan, já idoso e debilitado, é convocado para a guerra, mas sua filha decide tomar seu lugar, se disfarçando de homem.

Segundo a Balada, a batalha entre os chineses e os nômades se estendeu por doze anos e Mulanfoi se destacando ao passar desses anos por suas estratégias de batalha, chegando a ocupar o posto máximo de general, recebido mesmo após todos saberem que se tratava de uma mulher. No entanto, Mulan recusou tal posto para voltar para casa. Ainda pela história original, Mulan tem uma irmã mais velha e um irmão mais novo, que ainda é criança. No filme, Mulan é filha única.

O que mais difere Mulan (principalmente no primeiro filme) de outras princesas da Disney, ou melhor, das princesas mais clássicas, como Branca de Neve, por exemplo (que é a primeira da casa), é o próprio estereótipo de princesa. Poderíamos nos perguntar quais os diversos aspectos fazem de uma mulher uma princesa que nenhum deles seria tão mais bem adequado do que aquele que fala de uma princesa como uma mulher ou menina, ou menina-mulher, que precisa de proteção. Estereótipo tradicional sobre a mulher (ou  subjetivação feminina): “a mulher é um ser dependente”, discurso já batido com o termo “sexo frágil”. Assim como esse termo já está batido, o que a história de Mulan traz é uma segunda ruptura, nesse caso, com a conceituação do que uma princesa é ou pode ser. Percebemos não só em Mulan, mas nas mais recentes princesas da Disney, as mudanças do corporal feminino. Em Mulan, vemos alguém de postura salutar e imponível, esguia e ereta. Vemos o comportamento corporal de alguém que é forte e independente. De alguém que fala e argumenta.

Em Mulan, é ela quem é forte e protege. É ela quem salva todo um país. É pela história dela que a mulher concretiza sua emancipação em contextos sociais, culturais, políticos e históricos e é (também) através dela que o estereótipo de princesa vem mudando, principalmente a partir da tentativa de igualdade das identidades de gênero. No filme, Mulan é tão guerreira, inteligente e corajosa quanto seu marido. Através de sua história vê-se um afastamento com a ideia de submissão feminina e uma proximidade com a construção de novas subjetividades, feminina e masculina.

Se nos dispuséssemos a analisar mais profundamente a história de Mulan com relação à história da mulher na China, estaríamos a falar de uma crítica aguda e de cunho extremamente feminista ao sistema atrasado e excludente a que a mulher chinesa era submetida. Na história das mulheres na China, há partes tidas como vergonhosas e até humilhantes, a começar pela questa~o tradicional (que prevaleceu por muito tempo) dos pés pequenos, onde, na infância, os dedos dos pe´s das meninas eram quebrados e enrolados dos 4 aos 12 anos para que estas não conseguissem percorrer grandes distâncias para fugirem de seus proprietários (pais e maridos). Essa situaça~o so´ foi abolida em meados das décadas de 40 e 50. Além disso, a agência casamenteira chinesa, que adornava as mulheres como modelos de vitrines para que assim fossem escolhidas pelos homens, ajudou a manter o estereotipo de mulher-produto, tema amplamente mostrado nos filmes Mulan I e II.

Para nós ocidentais – os ditos modernos, que tanto falam de igualdade de gênero e afins – é cômodo tecer críticas do que está lá distante e nos é estranho, mas não esqueçamos que a análise do feminino, do que é essa identidade de gênero ou mesmo o que é o “tornar-se mulher”, requer sempre uma referência ao contexto a que pertence, que é o que lhe dá sentido e significado. Mulan nos apresenta uma faceta do feminino. Uma faceta que rompe algumas tradições, mas ao conservar outras nutre sua própria identidade.

A partir da personagem de Mulan nos é introduzido aspectos que em outro momento se transformam em estereótipos. Tais aspectos se apresentam por uma personagem (mulher) que tem desejo e o realiza, que não “se submete à” e “concorda com”, ao contrário, ela concilia, articula, escuta, discute, debate, concede, pede e se impõe circunstancialmente dentro do seu direito de falar, ser ouvida e também ouvir o que lhe falam.

Assim vemos que, com o passar dos anos, os enredos vão se adequando à forma como as pessoas existem no mundo. Os filmes de Mulan são recentes e concernentes à toda emancipação feminina de que falamos e vemos gradualmente acontecer. Os filmes nos fazem repensar sobre os inúmeros papéis que a mulher vem desempenhando em nossa sociedade e sobre como isso vai repercutir no fortalecimento de alguns estereótipos e enfraquecimento de outros. Além disso, podemos pensar em como o “tornar-se mulher” vem sendo internalizado a partir do que mostra a mídia, em especial, nos filmes de princesas. Que princesas estão sendo criadas e quais novos adornos vem sendo usados? Pensemos.

Referências:

ALAFITA, M.; VILLASUSO, M.; RIVERA, T. Las princesas de Disney: lo que aprendem lasniñas mexicanas a través de las películas? Revista Comunicación n°10, Vol.1, año 2012, pp. 1505-1520. Disponível em: <http://www.revistacomunicacion.org/pdf/n10/mesa9/115.Las_princesas_de_Disney-lo_que_aprenden_las_ninas_mexicanas_a_traves_de_las_peliculas.pdf> (Acessado em 25/01/2014).

ANAVERBACH, Márgara. (2003) “Huellasimperiales” de Imago Mundi, Buenos Aires, pp.163-175. Disponível em: http://es.scribd.com/doc/55569918/averbach-maccarthismo  (acessado em 27/01/2014).

BARZABAL, LuisaMaría; HERNANDEZ, Antonio. (2005). “Enseñemos a  discriminar estereotipos sexistas enlatelevisión.” Comunicar: Revista científica iberoamericana de comunicación y educación, Huelva, España n°25. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2929133> (acessado em 27/01/2014).

BONILLA, José. (2005). “El cine y los valores educativos. A labúsqueda de una herramienta eficaz de formación”. Pixel-Bit Revista de Medios y Educación, Sevilla, España, n°26, pp.39-54. González Alafita, Villasuso y Rivera Revista Comunicación, Nº10, Vol.1, año 2012, PP.1505-1520. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/368/36802604.pdf  (acessado em 27/01/2014).

GÓMEZ, Bernardo (2005). “Disfunciones de la Socialización através de los Medios de Comunicación”. Razón y Palabra, n°44 (Abril – Maio 2005). Disponível em:http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n44/bgomez.html (acessado em 27/01/2014).

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Pocahontas: livre e independente em busca de seu caminho

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A animação dos Estúdios Disney, Pocahontas, de 1995, foi sua primeira animação baseada numa história real.

Lady Rebecca, nasceu Matoaka e foi apelidada Pocahontas, que significa cheia de vida ou brincalhona, na língua Algonquian, da nação Powhatan. Outras versões atribuem os significados metida ou mimada, o que pode ter levado o estúdio a chamá-la de exibida, na primeira cena em que aparece. Conta-se que ela própria escolheu o nome Rebecca, personagem bíblica conhecida por cuidar dos outros antes de si própria e, também, por sua ligação com duas nações.

Depois voltaremos à história real (ou aos pontos concordantes dessa história). Passemos à produção da Disney e o que ela nos diz do universo feminino.

Na primeira aparição da personagem ela é retratada como uma jovem de porte atlético, pele morena, altiva, coluna ereta, queixo erguido, cabelo preto, longo, solto ao vento. Ela olha para o horizonte e se lança no espaço, na queda de uma cachoeira. Ela conhece sua força e sabe do que é capaz, vai aonde o vento a leva.

A história começa em 1607 mostrando a chegada de um navio inglês ao estado da Virgínia (EUA), no qual estava John Smith, conhecido por combater índios selvagens e ajudar na busca por ouro.

Simultaneamente, a animação apresenta Pocahontas, uma adolescente livre e independente, seus amigos (incluindo seu pretendente, Kocoum) e suas dúvidas, muito próprias de quem é jovem (qual o meu caminho? O que vem para mim?).

Além disso, apresenta, de forma especial, o tratamento carinhoso e dedicado que seu pai, o chefe Wahunsenacawh, conhecido como Powhatan, lhe dispensava.

No filme, Pocahontas tem tido um sonho estranho no qual vê uma seta que gira. Para esclarecer o significado do sonho, procura pelo espírito da floresta (Vovó Willow) que lhe diz para ouvir seu coração e que a seta indicará o caminho a seguir.

Desde o desembarque os ingleses põem-se numa busca desenfreada por ouro, sem nenhuma preocupação com nada. Assim, vão devastando as florestas e escavando o chão, deixando um rastro de destruição.

Nesse vai-e-vém dos personagens, Pocahontas e John Smith se encontram e logo uma aura de encantamento os envolve, promovendo um entendimento imediato e profundo: eles se apaixonam…

E, para a surpresa de Pocahontas, John carrega consigo uma bússola!!! O sonho se transforma em realidade.

Mas apesar do amor que os envolve, Pocahontas logo constata que o seu entendimento de mundo é muito diferente do dele. O que ele chama de civilização não passa de devastação!

Ela fala para ele

“Se pensa que essa terra lhe pertence
Você tem muito ainda que aprender
Pois cada planta, pedra ou criatura
Está viva e tem alma, é um ser.”

A tragédia está anunciada. Os dois mundos são muito diferentes. Os encontros são às escondidas. O pai/líder não quer que sua tribo tenha contato com os ingleses. A amiga tem medo que ela se machuque. Os ingleses estão cada vez mais ávidos por ouro. Kocoum é um guerreiro fiel às ordens de Powhatan. O governador inglês ordena que matem os índios.

No encontro entre os dois mundos, Kocoum é morto e logo John Smith está ferido à beira da morte. Sua única saída é voltar para a Inglaterra, em busca de socorro.

Ele fala para ela “vem comigo” e ela responde “tenho que ficar”.

A plateia se assusta.

A princesa vai terminar sozinha?

Espere… ela corre acompanhando o barco…

E fica no alto do penhasco, olhando sua partida.

Pela primeira vez o final romântico não aconteceu; não houve a promessa de felizes para sempre.

Mas o que mudou? O que passou pela cabeça de Pocahontas? A verdadeira Pocahontas abandonou o seu amor?

Muitas são as versões contadas sobre Pocahontas. A que aqui será narrada foi construída a partir dos relatos concordantes do Museu Powhatan, da Enciclopédia Britânica, do Instituto Smithsonian e da Sociedade Histórica Virgínia.

Matoaka nasceu em torno de 1595 e em 1607 pediu pela vida de John Smith, quando ele caiu prisioneiro de seu pai, o chefe supremo da nação Powhatan, composta por cerca de 30 tribos.

Apelidada de Pocahontas, ela era a filha predileta dentre os doze filhos de Powhatan, como era conhecido.

Ele não só acatou o pedido da filha como permitiu que um ensinasse ao outro sobre os costumes e a língua de seus povos. Foi assim que nasceu uma grande amizade e amor filial entre a menina Pocahontas e o Capitão John Smith.

Uma trégua foi estabelecida e Pocahontas se casou em 1610 com Kocoum, como era o costume da tribo. Não há registros se tiveram filhos, mas suspeita-se que essa informação tenha sido eliminada propositalmente. Nesse ínterim John Smith sofreu um acidente e precisou retornar a Londres. Em 1613 os ingleses raptaram Pocahontas, provavelmente com o intuito de impedir que seu pai invadisse o povoado de Jamestown. Ela permaneceu prisioneira cerca de um ano, quando um produtor de fumo, John Rolfe, se apaixonou por ela e solicitou ao governador uma autorização para desposá-la.

Para que o casamento ocorresse foi imposta a condição de conversão à Pocahontas, que escolheu Rebecca como nome de batismo. Não há registros sobre seus sentimentos por John Rolfe nem por seu casamento. O casal teve um filho, Thomas.

Em 1616 Pocahontas foi levada para Londres, para ser apresentada à corte, como exemplo de que era possível a convivência entre os nativos e os ingleses. Nessa visita Pocahontas e John Smith tiveram um único encontro a sós, momento em que ela falou para ele sobre o quanto ele a decepcionou, no que dizia respeito à obtenção da paz entre os nativos e os ingleses. Durante a visita foi feita a única gravura de Pocahontas, que expõe uma figura cadavérica, podendo indicar a fragilidade de sua saúde.

 

No caminho de volta, em 1617, Pocahontas morreu de uma doença não especificada.

A animação tem um final inesperado. Nele Pocahontas abre mão do amor romântico para manter sua integridade. Mas por que nos espantamos? Desde o início ela sabe quem é, sabe seu lugar, o que lhe pertence e que é capaz de despertar admiração e amor. Ela não precisa de um homem que a faça feliz. Ela já é feliz. O susto encontra-se apenas no fato de nós, o público (principalmente o público feminino), termos passado a vida habituados a ouvir que ser feliz para sempre acontece apenas quando se está com outrem; alguém (talvez um único) que nos desperte o amor romântico.

Apesar de logo no início da película ela cantar uma canção sobre querer segurança e um homem que a ame, com o desenrolar da trama ela se depara com o abismo existente entre seu próprio mundo e o mundo de quem ama.

Mesmo John Smith carregando consigo a bússola, ao ouvir seu coração o caminho que ela escolhe é o de manter sua integridade, ainda que haja amor.

Na vida real, apesar do amor romântico não ter existido, Pocahontas amou John Smith como quem ama a vida. É o amor ágape, aquele dedicado à humanidade.

Ela tentou continuar vivendo sua vida dentro de seus costumes e dentro dos princípios de respeito à vida, mas a devastação imposta pela colonização foi maior do que suas possibilidades.

O desenho perpetuou a altivez de Pocahontas e caracterizou a mulher dos anos 1990 – o fim do sexo frágil e da ideia de que certas características como racionalidade, coragem, força de vontade fossem apenas masculinas.

Referências:

Filme – Ficha Técnica:
Título:
Pocahontas (Original)
Direção: Mike Gabriel; Eric Goldberg
Elenco Original:
Irene Bedard; Mel Gibson
Roteiro:Carl Binder; Susannah Grant; Philip LaZebnik
Gênero: Animação
Ano: 1995

Sites

http://www.britannica.com/EBchecked/topic/465632/Pocahontas

http://www.powhatanmuseum.com/Pocahontas.html

http://www.smithsonianmag.com/history/how-much-do-we-really-know-about-pocahontas-4206184/

http://www.vahistorical.org/collections-and-resources/virginia-history-explorer/life-portrait-pocahontas

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Princesa Jasmine: entre seguir e transgredir as normas

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A princesa Jasmine é a sexta princesa dos desenhos da Walt Disney, ela surgiu com o filme do Aladdin em 1992, seguida pelos filmes O Retorno de Jafar e Aladdin e os 40 ladrões, onde se expandiu também em uma série animada de televisão e outras mídias como nos jogos de videogames, hoje facilmente acessados por crianças através da internet. Precisamos reconhecer todos esses artefatos das diferentes mídias (filmes, séries, jogos, histórias online, brinquedos) como objetos construtores de subjetividades das crianças, tanto de meninas quanto de meninos, uma vez que as construções sociais se dão em e na relação, como o gênero, por exemplo, que é construído dentro de uma hegemonia heterossexual1. Portanto, não há como aprender a ser menina, se não for delimitado o que é ser menino também, e vice versa. Mesmo que essas delimitações sejam quebradas em parte, em certa medida sempre estamos nos construindo dentro de suas normas. Afinal, a norma existe também para explicar a anormalidade. E o que é normal para uma época não necessariamente será para outra, como os comportamentos esperados para uma princesa.

Através da ascensão de um intercâmbio cultural dos anos 1990 surge a Princesa Jasmine. Essa princesa é a única com aparência árabe entre as treze princesas da Disney, o que traz nela a possibilidade do início de uma aparição dessa cultura pouco explorada até então.  Isso quebra com a hegemonia das princesas brancas, por Jasmine ser uma princesa com cor da pele parda, cabelos pretos, olhos castanhos. Marcas sociais e raciais que também podem colocar Jasmine em um lugar de menor popularidade se comparada às princesas brancas, loiras e de olhos azuis. Princesas essas que influenciaram modelos de beleza, que seguem marcados por uma busca pela branquitude2  e uniformização nas características pessoais que aderem a determinadas cores de cabelo, olhos, maquiagens.

Assim sendo, Jasmine traz consigo uma raça e uma personalidade diferente das princesas até então conhecidas, o que marca um processo de globalização e reconhecimento do Oriente, misturando as características ocidentais e orientais na mesma personagem. De um lado Jasmine usufrui do seu lugar de mulher, de sangue real e rica, podendo ter diversos pretendentes ao seu dispor e se sentindo desejada, e por outro lado ela se sente presa às regras dessa vida social. Por ser filha do sultão, uma princesa de família nobre e ter que ficar pousando para quadros, exercendo seu status, ela briga para poder ter mais independência para utilizar seus conhecimentos e principalmente para que o pai não escolha seus pretendentes.

As transgressões feitas por Jasmine nem sempre são possíveis em todo o mundo oriental. Pois, ainda acompanhamos os noticiários que trazem as violentas proibições de meninas do mundo oriental de frequentarem a escola, e que têm seus casamentos prometidos para uma família desde que nascem. Situações essas pouco conhecidas das crianças ocidentais que assistem os desenhos da Disney, pois já nasceram em uma época com garantias advindas dos movimentos feministas3 para os direitos das mulheres, simplesmente como votar e ir à escola.

Em certa medida, Jasmine quebra as regras se lançando para viver aventuras com Aladdin, pretendente por ela escolhido, onde ela utiliza de suas características de desafiar para aprender rapidamente como se defender dos perigos que passa junto de Aladdin. Jasmine é capaz de saltar e tem habilidades de combate e força física. Habilidades, até então reconhecidas como pertencentes ao gênero masculino para o universo das princesas.

Jasmine tem espírito livre, o que a coloca no lugar de uma princesa rebelde, ou seja, que transgride algumas normas. Ela não quer ficar só sorrindo e posando para as pessoas e quadros, ela conta que quer fazer algo diferente da sua vida. Fala várias línguas, tem conhecimento. Contudo, ainda protagoniza a figura de uma mulher que precisa ser reconhecida dentro da lógica de um ideal romântico, onde espera pela conquista de Aladdin, ao mesmo tempo em que se mostra sedutora e vaidosa. Dessa forma, os personagens de Jasmine e Aladdin reiteram o que normalmente é esperado para os homens e para as mulheres em uma relação heteronormativa. Contudo, sabemos que existem outras formas de se relacionar, que por vezes são vistas como patológicas, como quando um homem se mostra mais sensível do que uma mulher, ou quando esse não consegue “bancar” financeiramente essa mulher. Não por acaso, um dos pedidos de Aladdin para o Gênio da Lâmpada é de ter uma posição para impressionar Jasmine, que no conto real de Alladin tinha um nome menos comercial, de Princesa Badroulbadou.

Conforme Guacira Lopes Louro (2008) os filmes hollywoodianos foram particularmente eficientes na construção de mocinhas ingênuas e mulheres fatais, de heróis corajosos e vilões corruptos e devassos, bem como na complexidade da construção de gênero e sexualidade. As produções cinematográficas infantis de princesas não constroem somente as meninas, mas também os lugares de gênero possíveis para os meninos. As princesas da Disney ainda influenciam as crianças, e são vendidas e protagonizadas por meninas e meninos através das bonecas das princesas e das roupas delas nas brincadeiras e teatrinhos, que são formas de ensaio para a vida adulta.

Principalmente, os meninos, por vezes, ainda são proibidos de representarem uma personagem que ocupa um lugar de gênero que não é aparentemente o seu. Como no filme “Minha Vida em Cor de Rosa” de Alain Berliner (1997), as princesas e bonecas povoam a construção da subjetividade de um menino que pode estar experimentando ou até mesmo transgredindo um lugar de gênero, o que causa várias complicações sociais para ele e sua família.

Essa transgressão de passar a assumir atuações que seriam do lugar masculino como a Princesa Jasmine ocupa já é bem mais tranquilo para a nossa sociedade, por que ela está mantendo características femininas e só está utilizando de estratégias contemporâneas masculinas para dar conta de um mundo que nem sempre é justo. Ou seja, ela pode se utilizar de recursos como a força e a agilidade.

Princesas como Jasmine e príncipes como Aladdin nos auxiliam para entender como o gênero é performado, ou seja, vamos atuando dentro de uma construção de gênero já existente, e daquilo que é esperado para um corpo. Judith Butler (2003, 2005), filósofa que percorreu uma genealogia do gênero, nos convoca a pensar que nem sempre há uma conformidade entre corpo, desejo, gênero e sexualidade. E que nunca escapamos completamente às regras sociais e as imagens construídas pelas normas, uma vez que sempre somos construídos(as) por um gênero, para começar pela nomeação no feminino ou no masculino.

Portanto, essa autora nos auxilia a entender como o gênero vai atuando na definição das atividades humanas e no seu estatuto social e moral, o que figura na construção psicológica de príncipes e princesas. Da mesma forma, o gênero é uma categoria que opera na constituição das relações de poder e das hierarquias sociais, sancionando lugares, posições, privilégios e autoridade. Como o sultão que tem autoridade sobre a Princesa Jasmine, mesmo que ela transgrida algumas ordens do pai, ela ainda vivência modelos de mulher internalizados pela sua cultura, e pelo lugar da autoridade paterna.

Refletir sobre o impacto de princesas como Jasmine e sobre seus efeitos na construção da subjetividade das crianças é instigante. Aqui, traçou-se uma escolha para pensar essa princesa nas posições de sujeito articuladas com a produção das relações de gênero, atravessadas por questões étnicos/raciais. O gênero trata-sede uma categoria central no estabelecimento dos valores simbólicos, criadora de oposições binárias entre espaços, corpos e as diferentes ações humanas, onde personagens podem ser representadas, conforme Louro (2008) como sendo legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, sadias, impróprias, perigosas, fatais.

Na psicologia social e nos estudos sobre o gênero novas perspectivas como as de Judith Butler (2003, 2005) permitem um posicionamento e o pensar em diferentes possibilidades para a transformação de uma sociedade reguladora e autoritária para constituir uma forma de ação local e contextualizada, nunca androcêntrica e universal, conforme Conceição Nogueira (2008). O que confronta o pensamento grego, que condicionou a cultura ocidental e machista, em que o homem é o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher está associada ao desejo e à desordem, um ser inferior pela sua natureza. O que é colocado em jogo nas cenas protagonizadas por Jasmine.

Contudo, Jasmine nos refaz o contato nas intermediações da cultura oriental e ocidental, as duas cheias de regras e modelos para a construção da subjetividade. Não podemos negar a cultura que nos cerca, é possível transgredir somente até certo ponto. Estamos numa posição semelhante à Jasmine, em que precisamos transgredir algumas normas ao mesmo tempo em que reiterar outras, não existindo fora delas, como o que nos mantém em movimento no mundo.

Referências:

BERLINER, Alain. Ma vie em rose. [Minha vida em cor-de-rosa]. Bélgica, França, Inglaterra, 88 min, 1997.

BUTLER, J. Le genre comme performance.In Humain, inhumain: le travail critique des normes.(Entretiens).Paris: Éditions Amsterdam, 2005, p.13-42.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Cinema e Sexualidade. Educação e Realidade, v. 33, p. 81-97, 2008.

NOGUEIRA, Conceição. Análise(s) do discurso: diferentes concepções na prática de pesquisa em psicologia social. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 24, n. 2, June  2008 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722008000200014&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Feb.  2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722008000200014.

PISCITELLI, Adriana G. . Gênero: a história de um conceito. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Mortz. Racismo “à brasileira”. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

Notas:

1 Entende-se hegemonia heterossexual pelo fato da sociedade ocidental considerar o modelo de relação heteronormativa, entre homens e mulheres, feminino e masculino como hierárquica diante de outras possibilidades de relações consideradas minorias, não pelo número de pessoas, mas pela organização social, inclusive da linguagem que coloca de um lado o masculino como neutro e universal e o feminino como o outro (BUTLER, 2005).

2 Branquitude é a expressão utilizada para posicionar um lugar de como que se a raça branca fosse neutra e as outras raças de cor. Lugar esse que ocupa privilégios, da mesma forma que o masculino quando ocupa o lugar neutro na linguagem, como se o homem branco, heterossexual e de classe média representasse o todo (SCHWARCZ, 2009).

3 O Movimento Feminista possibilitou no mundo ocidental que as mulheres tivessem pelo menos 10 anos de escolaridade, e vem trabalhando pelo enfrentamento das desigualdades de gênero, mesmo este não sendo um movimento com uma ubiquidade (PISCITELLI, 2009).

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