Biopoder e Biopolítica: formas de dominação das intensidades humanas

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Fonte: avalen89.wordpress.com

À luz dos textos “A gênese da biopolítica: vida nua e estado de exceção”, “Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo” e “A inclusão educacional como estratégia biopolítica”, cujo referencial se encontra abaixo, foi elaborado um ensaio que relaciona os temas, de modo a propiciar uma compreensão da tese central dos autores.

O filósofo francês Michel Foucault foi o criador dos termos de biopoder e biopolítica, que são conceitos que procuram explicar historicamente como funciona a influência a qual a população é submetida por seu soberano (governo). Foucault dá inicio a sua tese explicando como o ser humano desde o seu nascimento tem uma necessidade de proteção por uma forma de autoridade, e essas autoridades eram as detentoras do poder sobre a vida e morte de seus subordinados (PAVIANI, 2014). Deste modo a partir do desenvolvimento da sociedade e das alterações ocorridas nas sociedades surge o biopoder, que ao invés de ter o poder sobre a vida, detém o poder sobre a forma de vida, sobre a qualidade de vida, que também irá de certo modo determinar quem irá morrer, e quem irá viver.

Paviani (2014) trás a visão deste tema em vários contextos, sobretudo sob a forma do fascismo e de sistemas totalitários, e também no sistema educacional.

2Fonte: www.upf.edu

 

Foucault e o Conceito de Biopolitica

Conforme os três textos analisados, compreende-se que a questão da Biopolítica abordada pelo filósofo Foucault vem de uma subjetivação da cultura patriarcal que tem como base um sistema onde os pais, maridos, homens, pessoas que eram figuras de poder dominavam e detinham o poder sobre a vida e morte de seus submissos. Haja vista que conforme Paviani (2014), “a relação entre vida e política constitui o tecido social que sustenta as demais relações humanas com a natureza, a sociedade, a ciência, a tecnologia, o saber e o poder”. Fica claro nessa afirmação que a autoridade ou figura de poder que esteja em vigor em uma comunidade irá determinar o modo com o tecido social e as relações serão estabelecidas.

A vida e morte dos indivíduos na sociedade dependem do soberano e do ordenamento social. Como diz Foucault o soberano pode matar por isso ele exerce seu direito sobre a vida. Esse tipo de poder sobre a vida das pessoas é designado por Foucault e Agamben de biopolítica (PAVIANI, 2014).

Assim a Biopolítica se trata do modo com que as autoridades lidam com a questão da vida e morte dos indivíduos em uma sociedade, sendo estes os responsáveis pela organização social, saúde, educação, infraestrutura, natalidade da população, violência, e questões sociais em geral que afetarão diretamente a comunidade. A partir deste entendimento básico do tema tratado por Foucault, entende-se que as três obras que embasaram este ensaio está relacionado ao tema da biopolítica e suas variantes tratadas pelos autores.

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Fonte: thefunambulist.net

No texto “A gênese da biopolítica: vida nua e estada de exceção”, de Jayme Paviani, fala-se do conceito de biopolítica e de como esse conceito surgiu, quais implicações levaram a este entendimento. Assim o autor em várias de suas obras trata de um estudo histórico da biopolítica em diferentes épocas. “Foucault na obra ‘Em defesa da sociedade’ analisa o poder da soberania e o poder sobre a vida, o homem-corpo e o homem-espécie, a aplicação das normas […]” (PAVIANI, 2014, p. 69). Nesses estudos o autor aborda tanto o século XVII onde o soberano detinha o poder sobre a vida, e já no século XIX o poder é o responsável não pela vida, mas sim pelo deixar morrer (PAVIANI, 2014).

Foucault procura refletir não somente o que é o ser humano, mas sim como a política influencia na subjetivação. Para isso Paviani aborda tanto conceitos de Platão, Aristóteles para refletir sobre os modos de ver o processo de política e vida em sociedade, assim como faz um comparativo entre estes pensamentos e os de Agamben, que faz uso de ideias de Foucault. Sendo que Foucault e Agamben refletem sobre o estado de totalitarismo, nazismo e fascismo.

No segundo texto “Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo”, o tema biopolítica ainda é o foco. Foucault notou que nos sistemas totalitários de governo o poder estava não somente na mão de um soberano como era comum até o momento, mas era dividido entre a população de modo que uma maioria da população tinha um poder sobre uma minoria (RAGO; VEIGA, 2009).


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Fonte: Biopolitics and Biopower: a Music Video (https://www.youtube.com/watch?v=ZdHfMPUxA_s)

Foucault procurou entender esse processo analisando como as formas de poder conseguiram disseminar na população seus ideais e crenças fascistas, stalinista e nazista. Assim ele não analisou profundamente esse processo, seu ideal era somente compreender as formas de poder, de modo que através de suas reflexões dispersas sobre o assunto, tirou como conclusão e conselho que a associação entre fascismo e vida não devia ser seguido, de modo a se evitar uma vida fascista. Segundo a visão deste autor os sistemas totalitários vigentes na época eram manifestações exasperadas de poder, uma doença do poder, que ele dizia que não voltaria a acontecer da mesma forma que já ocorreu porem informa que as formas de totalitarismo do século XX, podem repercutir no século XXI, assim como o século anterior foi influenciado pelo século XIX (RAGO; VEIGA, 2009).

Explica-se como o autor chegou ao conceito de biopolítica e biopoder, através da percepção do poder disciplinador e normatizador, que vinha a administrar a vida e o corpo da população; assim como os dispositivos da sexualidade, todos esses dispositivos procuravam normatizar a conduta da espécie. Conforme Rago e Veiga (2009), “o que se produz por meio da atuação específica do biopoder não é mais apenas o indivíduo dócil e útil, mas é a própria gestão calculada da vida do corpo social”. Sendo assim observa-se uma mudança no lócus do modo de poder após o surgimento do biopoder; onde antes o poder do soberano era o de morte e vida, “[…]agora, era o próprio direito de matar que se encontrava subordinado ao interesse em fazer viver mais e melhor, isso é, em estimular e controlar as condições de vida da população” (RAGO; VEIGA, 2009). Isto fez com que se pudesse impor a violência, a escolha de quem vai viver melhor ou pior.

Foucault descobriu que tal cuidado da vida trouxe consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, visto que é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Assim, a partir do momento em que a ação do soberano foi a de fazer viver, isso é, a de estimular o crescimento da vida e não apenas a de impor a morte, as guerras se tornaram mais sangrentas e os extermínios se multiplicaram dentro e fora da nação […]. (RAGO; VEIGA, 2009, p.41).

Foucault, a partir de toda essa reflexão sobre os sistemas totalitários, observou que esses sistemas de biopoder se utilizavam do preconceito para exterminar minorias de forma a conscientizar para a sobrevivência de um dado grupo, sendo necessário que certas populações sejam contidas (na formação do que depois viria a ser chamado de “lixo humano”). Ele informa sobre o perigo do fascismo na contemporaneidade, pois ele vem disfarçado entre os sistemas liberais e neoliberais.

A preservação da qualidade de vida de uns está fundada na impossibilidade da vida de outros muitos, de modo que biopolítica e tanto política continuam a remeter-se mutuamente. Eis aí alguns dos vetores de disseminação do novo fascismo, que poderíamos denominar como o fascismo viral, que atua por contaminação endêmica, espalhando-se silenciosamente pelo planeta como enfermidade crônica que precisa ser continuamente combatida (RAGO; VEIGA, 2009, p.50).

Portanto o biopoder continua se aplicando de modo conveniente com o contexto social vigente, não mais de forma clara como foi no século XX, e não mais como no fascismo ou em outro sistema totalitário.

4Fonte: www.politicaltheology.com

O último texto, e não menos importante, também fala do biopoder, e da biopolítica aplicada na educação, onde esta se torna uma ferramenta muito poderosa para o governo, pois conforme Elí e Ramos (2013) “ela subjetiva para regular, vigiar e, na sequência, normalizar”. Ou seja, a escola se tornou um local potencial para a normatização de um sistema biopolítico, potencializando a capacidade das forças de dominação exercer o controle sobre toda a massa.

Dispositivo de segurança que utiliza a sedução como uma estratégia e adquire caráter irreversível na Contemporaneidade. Adianto que esse dispositivo de segurança se torna fundamental para que, posteriormente, possamos perceber a inclusão como uma estratégia biopolítica de fluxo habilidade (T, RAMOS, 2013, p. 30).

A partir dos conceitos aqui abordados, compreende-se que os textos se relacionam quanto ao conceito criado por Foucault, filósofo e psicólogo que se dedicou ao estudo da estrutura do poder, sendo ele um autor que buscava compreender de que modo esses conteúdos de poder eram exercidos, e como era subjetivado na população. Cada autor abordou a ideia de Foucault a partir de diferentes processos, porém usando o mesmo ponto de partida, o biopoder e a biopolítica.

 

Referências 

DUARTE, André. Foucault e as novas figuras da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: VEIGA, Alfredo; RAGO, Margareth. Para uma vida não-fascista. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 35-50.

PAVIANI, Jayme. A gênese da biopolítica: vida nua e estado de exceção. In: PAVIANI, Jayme. Uma Introdução a Filosofia. Caxias do Sul: Educs, 2014. p. 01-301.

RECH, Tatiana Luiza. A inclusão educacional como estratégia biopolítica. In: T, Eli; RAMOS, Rejane. Inclusão e biopolítica. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

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O que Budismo e Cristianismo têm de diferente, pela análise de Lubac e Usarski

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Um dos maiores estudiosos contemporâneos da aproximação entre o Budismo e o Cristianismo, o francês Henri de Lubac parte do pressuposto de que há um núcleo central entre estas duas tradições. Desta forma, apresenta o conceito de piedade que, nas duas expressões, acabam por tentar tirar o homem de suas projeções egóicas. E a piedade, neste contexto, de acordo com o francês, pode ser definida, dentre outras coisas, como “amar ao próximo como a si mesmo”, ainda que a importância do “eu” seja diminuída na abordagem oriental, ao ponto de tornar-se (esse “eu”) quase que insignificante. Haveria, portanto, um ideal contemplativo no sentido último da piedade. No Budismo, este ideal se expressa, sobretudo, no Caminho do Bodisatva (Bodi = mente, Satva = compaixão: ser de mente compassiva), que é aquele que renuncia ao Nirvana (ou ao Reino de Deus, como exemplifica Buddadhasa) até que todos os seres tenham alcançado a libertação/salvação.

Nas práticas contemplativas cristãs e budistas, lembra Lubac, a piedade ganha um novo sentido na medida em que, pela prática espiritual, o agente (que realiza a piedade) não é influenciado por fatores meramente emocionais e, portanto, é possível manter um estado de serenidade em que o colocar-se no lugar do outro, sofrer com o outro transcende e ganha um sentido ampliado. No entanto, esta abordagem causou confusão nos historiadores ocidentais, diz Lubac.

Habiendo visto bien que la piedad budista no se ocupa de los casos particulares y que no debe confundirse en modo alguno com lós movimientos de uma fácil sensibilidad, han considerado demasiado rápidamente su carácter general como un signo de universalidad; de esa forma han olvidado que entre ló general y ló universal existe aún toda la diferencia que hallamos entre ló abstracto y ló concreto […]. (LUBAC, 2006, pág. 52)

Lubac lembra que a piedade tem três sentidos para o Budismo Mahayana¹, sendo a sattvalambana karuna, a dharmalambana karuna e a analambana karuna. Na sattvalambana karuna a piedade é focada para os seres que sofrem, de modo particular. Ela é uma manifestação incompleta pois ainda leva em conta uma realidade fenomênica, aquela visível aos olhos, apresentada pelo ser que sofre. No caso da dharmalambana karuna há um avanço na percepção de inseparatividade entre aquele que se apieda daquele que é objeto de piedade. Portanto, como nesta fase se superou o sentido de dualidade, o que fica é apenas as sensações dolorosas por si mesmas (já que o “eu” que sente tal sensação é visto como um conjunto de agregados, e não como um ente intrínseco e imutável). “Pero este es todavia um conocimiento aproximado, porque lãs sensaciones dolorosas no existen pó sí ni em si. Este segundo tipo de piedad implica aún um tipo de avidya (desconocimiento)” (Lubac, pág. 56). Por fim, a analambana karuna se refere a piedade pura, aquela que não tem um objeto. Ela ocorre não por as criaturas, não para remediar os sofrimentos, mas sim de um modo totalmente gratuito, pelo puro amor da piedade. Assim, “una virtud resulta tanto más alta cuanto más pura sea […]. [Allí entonces] habria la piedad perfecta, ideal” (idem, pág. 57).

Tanto no Budismo quanto no Cristianismo a piedade é um fator de valor universal, mas para o primeiro ela não pode ter caráter antropomórfico, sob o risco de perder importância. “Incluso aquel que se sacrificara a favor de todos lós seres, sin preferências particulares” (idem, pág. 54). Este sentido de piedade, destaca-se, se assemelha ao amor indiscriminado de Cristo, que considerava todos como parte de sua família, independente dos laços consanguíneos. À frente, São Paulo ampliaria esta visão ao estabelecer a mensagem cristã como de caráter universal e com forte ideal de justiça, não restrita a um único povo ou região, com um apelo que, num olhar mais aguçado, estende a visão cristã, lembra Lubac.

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O Budismo é uma religião não-teísta

Passado este primeiro momento, é necessário debruçar-se sobre o conceito de amor “com” e “sem” Deus. Para o Cristianismo, de acordo com Lubac, o Mandamento do amor do homem por Deus tem as mesmas bases do amor de Deus pelos homens. Amar ao próximo, então, estaria ancorado no amor a Deus, já que Ele também ama e se expressa no próximo, “porque el hombre há sido creado a imagen de Dios” (idem, pág. 54). Assim, através da imagem divina que se expande pela criação, o homem participa, com efeito, da eternidade de Deus. Desta forma, a vida eterna inclui, também, o conceito de amor ao próximo – e amar ao próximo é amar a si mesmo. “La Fe y la esperanza pasarán, para ceder su lugar a la vida y a la posesión; pero la caridade no passará nunca” (idem, pág. 55).

No Budismo, no entanto, pela falta de enfoque ontológico, toda prática caridosa e todo altruísmo levam à liberação dos desejos, e há uma negação de qualquer abordagem eternalista. A caridade e a piedade, portanto, “es uma virtud provisional. Dicho de outra forma, esa caridad forma todavia parte de ló que lós budistas llaman ‘el orden mundana’. Por médio de ella no puede definirse, em modo alguno, el ser – o el no-ser – supremo” (idem, pág. 55). Vale ressaltar que o Buda considera o amor como uma forma de redenção do coração, no entanto

este amor no toma su sentido de los esfuerzos que hace aquel que ama, a fin de reafirmar y de sostener el valor del que es amado, sino de lós esfurzos dirigidos hacia la aniquilación y supresión de la realidad y del modo de ser de aquel ama […]. (LUBAC, 2006, pág. 56)

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O Budismo, sobretudo o tantrayana, concebe a existência de deidades; na imagem, Mahakala

Sobre a questão de deidades no Budismo, ou mesmo em relação à existência de algo que transcende a realidade, numa referência teísta (obviamente, um teísmo sem traços antropomórficos), Lubac destaca a doutrina Yogacara, dentro do Budismo Mahayana (escritos e comunidades posteriores às primeiras comunidades budistas), que se divide em duas teorias. De um lado, a abordagem Yogacara diz que há budas que atraem os seres até eles, envolvendo-os até que (os seres) amadureçam ao ponto de despertar, de alcançar a budeidade.

Por otra parte, añaden que, sin esperar El cumprimiento de esa ‘maduración’, lós budas ofrecen a los seres un pregusto de la felicidad suprema, manifestándose a ellos a través de su sambhogakaya¹. Pero em realidad estas dos teorias no recuerdan em nada al Dios Cristiano dela caridade. (LUBAC, 2006, pág. 58)

A primeira teoria, de acordo com Lubac, lembra o deus da concepção aristotélica, imutável e sem amor, para o qual convergem todos os seres movidos pelo desejo (de se reconectar). No entanto, o francês lembra que na própria concepção de Asanga, um dos doutos das doutrinas budistas mahayana, a existência dos budas e de todos os outros seres (sencientes ou não) surge a partir de relações interdependentes, não havendo, portanto, um único ponto de partida, mas um conjunto destes. Desta forma, ante uma “multitud de lós seres que, sin ninguna causa (sin ningún Dios que lês impulse), van avanzando hacia la maduración completa, en todos lós lugares, de todas las formas” (idem, pág. 58). Ou seja, mesmo se se levar em conta que há uma influência dos budas sobre os seres sencientes, estes budas, por si próprios, não têm existência separada. São aspectos da budeidade impessoal e insubstancial que absorve a todos em um único dharmakaya².

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A segunda teoria, de acordo com Lubac, evoca a divindade contida na filosofia spinozana, para quem Deus é tido como único motivo da existência de tudo o que existe. Desta forma, Deus é substância única, sendo que nenhuma outra realidade pode existir fora d’Ele, e a partir d’Ele surgem todos os outros elementos. Assim, a essência de Deus implica a sua própria existência. Desta forma, em Lubac

En la raiz de la caridad ha de haber necesariamente independencia. Si los budas no se contentan com su dharmakaya, en el cual están unificados, si se manifiestan a los bodisatvas por mediación de sus sambhogakaya, esto significa que están interesados en ello. (LUBAC, 2006, pág. 59)

Passada esta observação inicial, sobre algumas das características principais da cristandade, que é o amor ilimitado a Deus, ao próximo (como expressão de Deus) e a si mesmo (dentro de certos limites, para evitar cair na armadilha da autopistis e respeitando a centelha divina que há em cada criatura), Lubac lembra que a concepção budista para “amor” se assemelha ao “amor ao próximo” dos cristãos. Para tanto, cita outro douto das doutrinas budistas, Shantideva³, que defendia que todos os seres são semelhantes aos budas, na medida em que possuem uma parcela das virtudes de um Buda. “Esta parcela insigne está presente em las criaturas; en virtud de esta presencia, las criaturas deben ser honradas” (idem, pág. 59).

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Superando mal-entendidos

Lubac diz que, depois de destrinchar a conceituação do amor, própria do Cristianismo, e procurando estabelecer os pontos de contato com o Budismo, há alguns aspectos defendidos por vários historiadores que merecem especial atenção. O francês lembra que no decorrer dos últimos 200 anos

no resulta em modo alguno sorprendente que los historiadores hayan descubierto que muchos textos cristianos se relacionan com otros budistas, a medida que estos han sido más conocidos. A veces se han sugerido acercamientos sorpredentes, que parecen obligarnos a plantear la hipótesis de que existen lazos reales entre las dos religiones. (LUBAC, 2006, pág. 105)

Os principais pontos que marcam as aproximações são calcados em algumas indagações importantes, como a necessidade de supor ter existido uma relação histórica entre as duas concepções – através do elo comum entre elas, o helenismo4 –, além do pressuposto de que o lastro doutrinário comum pode ter sido decorrente de um movimento do espírito humano que se pulverizou por todo o planeta, mais ou menos num mesmo período, numa série de processos análogos. Além disso, é questionado se no atual momento de conhecimento advindo de pesquisas de toda ordem, as relações entre a Índia e o Mediterrâneo atingiram tal estágio de influência mútua. “Si hubiera que admitir una influencia, habría que perguntarse todavía en qué sentido se ha dado” (idem, pág. 106).

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Budismo e Cristianismo provavelmente se cruzaram no antigo mundo helênico

Lubac (2006) lembra que a Europa tem pressa para compreender este processo, sobretudo porque o que se entende por Ocidente, na realidade, começa no Irã, região que abrigou um entreposto de diferentes tradições, que acabaria por resultar nas grandes religiões que sobreviveram até a contemporaneidade. Além disso, há ressonâncias neoplatônicas (assim como houve no Cristianismo) nos escritos de Asanga5, grande influente da doutrina budista. Outro detalhe é a presença da cosmologia helenista na Índia através dos mistérios de Mitra6, sendo que movimentos como o Amidismo7 budista do extremo oriente pode ter sofrido alguma influência desta abordagem (assim como alguns historiadores também atribuem essa mesma influência sob o Cristianismo). A grande questão levantada por Lubac é saber se foi o helenismo quem influenciou o Budismo ou vice-versa, ou ainda se houve uma influência recíproca entre estas tradições.

Especificamente sobre a possível influência hindu na formação do pensamento neo-platônico, Lubac prefere não entrar nesta seara, pois a existência de uma colônia budista em Alexandria é algo que, até o momento, ainda não se conseguiu provar totalmente. O que se sabe, a partir da análise dos escritos da época, é que os alexandrinos tiveram um conhecimento menos deturpado dos temas budistas, em relação às outras regiões pertencentes ao antigo Império Romano, o que sugere que aquela sociedade, de alguma forma, teve um contato mais próximo com o Dharma de Buda.

Lubac (2006) diz que são legítimos os estudos e comparações dos escritos de Orígenes8 de Alexandria que geraram estreitas aproximações tanto com o conceito de “manifestação de Deus em Fílon9” quanto com a exegese mais universalmente aceita do sutra budista Parinibbana-sutta. De acordo com Lubac, a ideia de Orígenes de universalidade na redenção de Cristo, além da eficácia sem limites do sangue derramado na cruz e, por fim, uma visão particular em relação os diferentes estados do Logos, aproxima-se sobremaneira da visão budista dos corpos de Buda, mas que de maneira alguma as duas versões podem ser consideradas idênticas.

Em Orígenes um dos pontos analisados é o de que o Logos assume diversos estados (corpos) – inclusive a forma angelical – para não apenas dirigir-se aos homens, mas a todas as criaturas. Para reforçar este aspecto, Lubac cita um dos comentários de Orígenes aos escritos de São Mateus:

Si tú puedes contemplar al Logos que ha vuelto a su primer estado, después que se há hecho carne y después que se ha hecho todos los tipos de cosas para los hombres, habiéndose hecho para ellos aquello de ló que cada uno de ellos tenía necesidad, a fin de ganarlos a todos; si tú puedes contemplarle después que ha vuelto a esse estado em El que él era em el principio junto a Dios… etc. (LUBAC, 2006, pág. 110)

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Haveria uma analogia, de acordo com Lubac, entre este escrito – só para citar um deles -, e o pano de fundo tanto do gnosticismo quanto do Budismo. O francês diz que os textos oferecem uma ideia comum que aponta para uma “economia” nas manifestações divinas, “economia” que os budistas aplicaram, por sua parte, às manifestações de Buda. Assim, “Cristo es ángel entre los ángeles, como Buda es Bodisatva entre los bodisatvas y dios entre los dioses” (idem, pág. 115). No entanto, mais a fundo, alerta Lubac, existem diferenças entre a encarnação do Logus cristão com o conceito de nirmanakaya (corpo de aparência – físico – dos seres puros) presente no Parinibbana-sutta. Da mesma forma, a transfiguração de Cristo, que é comparada ao sambhogakaya, pode ter aproximações apenas sob um aspecto, o da sutileza envolvida no processo, que transcende a expectativa do que se espera de uma manifestação física. No entanto, a insubstancialidade do sambhogakaya se opõe ao idealismo contigo na concepção cristã, lembra Lubac.

 

Naturalização e desnaturalização

Por fim, Lubac (2006) diz que não se pode negar que budistas e cristãos encontraram elementos comuns para a elaboração de seus símbolos. E estas semelhanças ocorrem no campo da linguagem, do discurso e das sucessivas tentativas de aproximação, e talvez a mais sólida destas aproximações é a herança genealogicamente semelhante (estruturalmente falando), em que ambos partem de arcabouços doutrinários muito antigos – no caso do Budismo, uma continuação dos Vedas, no caso do Cristianismo, uma “atualização” do Antigo Testamento – que, em certo sentido, representaram rupturas. Mas as aproximações ocorreriam apenas em análises simbólicas desta ordem, e não nos detalhes doutrinais. Ou seja, enquanto que para os budistas a espiritualidade se recobre de colorações espirituais naturistas, “todo ensayo de interpretaión naturista sería, en su caso, totalmente desnaturalizador” para o Cristianismo (idem, pág. 90). O homem, portanto, na sua tentativa de reconexão com o Sagrado, aponta para um caminho de transcendência. Mais do que isso, no Budismo a salvação vem do conhecimento que o homem descobre por si próprio, com auto-poder e, desta forma, tem a capacidade mental e emocional para cessar os aparecimentos futuros (encarnações futuras). No Cristianismo, no entanto, a “árvore do conhecimento” brota de Deus, é a árvore da vida eterna, da fonte de toda a vida, expressa pelos sacramentos da igreja.

Desta forma, Lubac (2006) parece querer apresentar um antídoto para toda tentativa de generalizações apressadas entre as aproximações das duas tradições ora estudadas. No coração de ambas as religiões, em que pese uma semelhança simbólica – de caráter histórico -, doutrinariamente há diferenças no sentido de caridade/compaixão e na abordagem que defende igualdade entre a transfiguração de Cristo e o conceito dos corpos de Buda.

Já Frank Usarski (2009) aponta um problema central, a questão de Deus, como um dos fatores preponderantes que diferenciam as doutrinas cristã e budista. Uma vez que o Budismo rejeita a ideia de que há um Deus a partir do qual todo o restante surge – ele defende a gênese condicionada12 -, a investigação começa a partir do suposto problema da teologia cristã que detém

um modelo que pretende explicar a existência do cosmo físico ou das forças nele existentes, [e ainda assim] precisa recorrer a uma concepção teísta. Também escapa à lógica budista a necessidade de postular uma “causa primeira” da qual dependem todos os demais aspectos da existência. (USARSKI, 2009, pág. 254)

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Além disso, destaca Usarski (idem), pela interpretação geral cristã, Deus é criador e senhor de um universo produzido ex nihilo (a partir do nada). Há, portanto, uma visão dualista do mundo, sendo o conceito de Deus totalmente transcendente e “completamente outro” em relação à criação.

O fato de a Bíblia atribuir a Deus o poder de interferir nesse mundo não muda a ideia de separação da existência em duas esferas, uma vez que as intervenções divinas que culminaram com a encarnação de Deus em Jesus Cristo são de caráter escatológico e não ontológico – elas, portanto, não questionam o dualismo cosmológico. (USARSKI, 2009, pág. 254)

Este tipo de abordagem é visto com reservas pelo Budismo de forma geral, e pelo Theravada13 em particular. Isso porque o Buda estaria essencialmente interessado na concepção psicológico-antrológica da existência, e as eventuais “consequências soteriológicas”. No entanto, sempre que questionado sobre assuntos de ordem metafísica, dava de ombros ou ficava em silêncio, ou ainda dizia claramente que considerava tais discussões inócuas, irrelevantes. No entanto, essa posição – de negação dos aspectos ontológicos no Budismo – não demorou muito tempo. O próprio surgimento do movimento mahayana é, segundo Usarski, uma resposta a esta questão. Isso teria ficado claro quando os budistas apresentaram a o conceito dos três corpos do Buda (ou Trikaya). Sobre este tema e a tentativa de aproximá-lo a alguns dogmas cristãos, Masao Abe – um dos principais expoentes da escola de Kyoto – dedicou boa parte da sua vida.

Se, por um lado, isso foi encarado como algo bem-sucedido do ponto de vista budista, por outro Abe a seus colegas foram acusados de tentar reformular a ideia de um Deus monoteísta a partir das categorias mahayanistas, em detrimento da autenticidade dos ensinamentos cristãos centrais. […] A doutrina dos três corpos é uma teoria budológica, segundo a qual a última realidade não-substancial e impessoal (dharmakaya) se manifesta em dois planos “concretos”. Esses dois planos correspondem aos Budas sutis, com seus corpos de glória (samboghakaya), e ao Buda histórico, cuja forma corporal “grosseira” é denominada de nirmanakaya. […] Nesse sentido, o plano de nirmanakaya é associado a Cristo, enquanto o Deus monoteísta cristão é colocado em analogia ao plano de samboghakaya. (USARSKI, 2009, pág. 255)

Usarski (2009) lembra que a primeira grande dificuldade desta abordagem – como já se viu em Lubac – é que para um budista esta analogia pode soar de forma não-problemática, mas “corre o risco de ser classificado, do ponto de vista cristão, como uma espécie de blasfêmia” (Idem, pág. 257). Além disso, segundo Usarski, a teoria de Abe revelou que a Teologia cristã até então não tinha sido pensada até as últimas consequências.

De acordo com uma leitura mais construtiva da obra de Abe, pode-se dizer que o filósofo da escola de Kyoto tentou melhorar a imagem teologicamente deficitária do Cristianismo. Para esse fim, praticamente realizou concessões teológicas a ambos os lados, sugerindo que tanto a concepção mahayanista, impessoal-monista da vacuidade (sunyata) quanto a ideia cristã refletem as respectivas construções básicas da outra religião. (USARSKI, 2009, pág. 257)

Por fim, sunyata é praticamente apresentada por Abe como uma espécie de “causa primeira” que se esvazia constantemente, num frenético movimento dialético em que a existência passa a oscilar entre dois estados (o vazio gerado pelo próprio vazio). “Com isso, a concepção monista-ontológica da unidade de samsara14 e nirvana torna-se um ‘princípio da criação’” (idem, pág. 258). Desta forma, a partir das contribuições de Abe, há uma aproximação tangível entre a teologia budista e a cristã.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

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NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

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XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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Eckhart é um elo com o Oriente

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“E digo mais, que todo sofrimento provém do amor àquilo de que a perda me privou. Portanto, se a perda de coisas exteriores me faz sofrer, eis aí um indício seguro de que tenho amor às coisas exteriores e, por conseguinte, de que na verdade eu amo o sofrimento e o desconsolo. Com efeito, que há de estranhável em que eu me depare com o sofrimento se amo e busco o sofrimento e o desconsolo? O meu coração e o meu amor apropriam à criatura o Ser-Bom que é propriedade de Deus. Volto-me para a criatura, fonte natural de desconsolo, e viro as costas a Deus, fonte de toda consolação. E acho estranho que entre a sofrer e a sentir-me triste. Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual.”

MESTRE ECKHART (1260-1328), EM “O LIVRO DA DIVINA CONSOLAÇÃO”.

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Na imanência, o homem é co-partífice da totalidade

Por sua abordagem que, em alguma medida, coloca em xeque a visão clássica que se tem da transcendência, Eckhart muitas vezes foi mal interpretado e chegou a ser investigado pela Inquisição. Em Le Goff apud Guerizoli, “Eckhart é fundamentalmente um místico que, como tal, na crescente dissociação entre razão e fé que teria marcado o panorama intelectual dos séculos XIII e XIV, faz uma clara opção por esta em detrimento daquela”, no que seria (de forma indireta) uma explícita aproximação com a abordagem contida no Budismo, notadamente em sua vertente japonesa (Zen), que rechaça o uso do intelectualismo (ou mesmo da razão) como mecanismo de compreensão do mundo. “Aliás, pelo contrário, o excesso de informação [por parte do praticante budista] e a tendência deste de querer demonstrar que sabe, acaba por lhe afastar de um entendimento que é essencialmente decorrente da prática e dos anos de experiência [meditativa]” (CHALEGRE, 2015).

Ainda sobre este tema, vale ressaltar que

Eckhart nos deixou uma extensa obra em médio-alto-alemão onde os principais temas daquilo que, em certa medida, pode-se chamar uma doutrina da união entre criatura e criador são desenvolvidos e assumidos como parte fundamental de seu pensamento. Não obstante, ainda que possa parecer legítimo aplicar-se à obra eckhartiana o adjetivo “místico” e a Eckhart o epíteto de um autor interessado no problema da unio mystica, isso ainda não é motivo para que, de imediato, tachemos sua doutrina como antiintelectual. (GUERIZOLI, 2008, pág. 65)

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Pseudo-Dionísio: deificação do homem

Guerizoli ressalta que dentre os autores que mais influenciaram Eckhart destacam-se Orígenes, Gregório de Nissa e Pseudo-Dionísio Areopagita (no chamado neoplatonismo), e algumas das características marcantes de sua abordagem é “a ‘deificação’ do homem e sua ‘união’ – ou ‘unificação’ – com Deus, que se daria somente através do reconhecimento de sua filiação divina” (idem, pág. 66). Há de ressaltar, no entanto, que esta visão teológica, do medievo tardio, acabaria por desembocar no próprio humanismo nascente no Iluminismo. Não por menos, como destaca o professor, escritor e monge Cláudio Miklos (2015), o budismo (notadamente em sua vertente Zen), antes mesmo de ser classificado como religião, é uma espécie de humanismo, pois resgata um conjunto de preceitos cujo eixo, em alguma medida, está inserido no reconhecimento da autogestão [do homem] e da imanência.

A abordagem de Eckahrt (1999), como já destacado anteriormente, não passou incólume às tensões internas que permearam a efervescente produção intelectual da Idade Média. Ele é uma das provas, diriam alguns estudiosos, que nem todos os doutos e clérigos que compunham as fileiras das universidades cristãs eram meramente “orgânicos”. No entanto, havia um preço a ser pago pela visão “destoante” em relação à escolástica:

Através da condenação do “averroísmo latino”, a Igreja fecha as portas da universidade ao mais expressivo movimento anticlerical da alta escolástica. A consequência desse ato é o aumento, ao longo do século XIV, do fosso que separa a cultura universitária, da qual o intelectual é o representante por excelência, e a cultura laica que experimentava um grande enriquecimento com o desenvolvimento das línguas vulgares as quais, posteriormente, tornar-se-iam línguas nacionais.10 O século XIV assiste, portanto, ao crescente enclausuramento da figura do intelectual, que, segundo Le Goff, acaba formando com seus poucos pares uma “tecnocracia” cada vez mais isolada da realidade urbana, possibilitando, assim, o surgimento, a partir do século XV, de um novo tipo social letrado, solitário e atrelado preferencialmente ao poder temporal: o humanista. (Guerizoli, 2008, pág. 60)

Haveria na filosofia de Eckhart, no fundo, uma “tentativa de supor a real possibilidade de superação de todas as diferenças entre divindade e humanidade”. Um dos exemplos máximos desta teoria seria a doutrina da “existência de algo de incriado na alma, a qual entreabriria a possibilidade de reconhecer nesse “algo incriado” uma instância que fugiria à condição de ‘criatura’ e de pôr em xeque […] o próprio sentido de Deus como criador de tudo o que existe” (idem, pág. 69).

Mesmo se tecido sobre um pano de fundo teológico, o pensamento de Eckhart não se faria como descrição de uma experiência religiosa pessoal – tendo por base uma pura cognitio dei experimentalis – mas trafegaria, antes, por discussões, demonstrações e argumentos. No fundo dessa possibilidade estaria, mais uma vez, a convicção de que a revelação bíblica poderia ser descrita em argumentos racionais, de que teologia e filosofia, fé e razão, longe de se contraporem, integrar-se-iam, formando um todo compreensível”. (Guerizoli, 2008, pág. 68)

Assim, numa leitura sobre Le Goff, Guerizoli (2008) diz que, do todo, seria um equívoco entender a abordagem eckhartiana como meramente anti-intelectualista/antirracionalista, ou mesmo estritamente mística.

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Ainda na abordagem eckhartiana, em Dourado (2009), constantemente o homem se (re)posiciona em relação ao Todo e, neste movimento, o Criador não submete as criaturas ao que é basicamente seu, homogeneamente falando. Essas criaturas também não são substâncias fixas, mas a repercussão de Deus que se dá através das pluralidades. Haveria uma “plenificação” da natureza dos homens/mulheres, mesmo no movimento. Portanto, a vontade própria reposiciona-se em relação à vontade maior, numa troca incessante, ora com aspectos imanentes, ora transcendentes. Ou seja, o ser humano se relacionaria com o mundo numa perspectiva de presença e partilha, e não vê o homem como um fim em si mesmo (como aborda correntes do humanismo). Há, portanto, um fundo comum entre todas as criaturas. Na Bíblia, diz Dourado (2009), isso se apresenta no Sermão 12, quando se espera que

Ao homem que assim tivesse saído de si mesmo, de tal modo que fosse o Filho unigênito, a ele seria próprio o que é próprio ao Filho unigênito (…). Quando Deus vê que somos o Filho unigênito, ele se precipita e se lança ao nosso encontro com tanta veemência, (…) como se seu ser divino se lhe fosse  despedaçar e quisesse tornar-se  nada em si mesmo, a fim de nos revelar todo o abismo  de  sua  deidade e a plenitude do seu ser e da sua natureza; Deus se apressa para ser totalmente o nosso próprio, assim como é o seu próprio. (Sermão 12, I, pág. 102)

Eckhart (1999) ainda defende que esta dimensão do homem, na constituição mesma de sua ontologia, implica em sujeição, obediência e humildade. Em Dourado (2009), essa sujeição quer dizer, analiticamente, que todas as coisas estão sujeitas (subjectum) à uma totalidade, inclusive as coisas que não dispõe de consciência.

Todos os entes são criaturas, e por isso mais pertencem à totalidade do real, à doação integral de Deus enquanto criador, do que a si próprios. Ou seja, os entes são o que suas naturezas delimitam,  e por isso possuem algum nível de substancialidade, mas são o que são pela presença de Deus, e não pela pulsão de sua autonomia. Neste sentido, todas as criaturas são submetidas à totalidade. (DOURADO, 2012, v.6, n.2)

Na concepção budista, notadamente através da expressão da Soto Zen, não são os homens/seres que vivem a vida. É a vida que vive o ser. Em súmula, há um enfraquecimento do homem (enquanto unidade separada e autossuficiente) em detrimento da unidade. Essa visão de interdependência (do ser humano em relação à totalidade da vida) coloca os seres em total dependência de algo absoluto. Haveria, portanto, uma negação do “eu” provisório, que ora se manifesta (ou o não-eu budista). Sobre isso, Eckhart (1999) foi enfático: “As criaturas todas não têm ser, pois o seu ser depende da presença de Deus. Se Deus, apenas só por um instante, desviasse sua face das criaturas, elas seriam aniquiladas” (ECKHART, Sermão 4, I, p. 59). No entanto, parece paradoxal, mas cada criatura manteria resguardada o “criador no bojo de seu ser” (DOURADO, 2012, v.6, n.2), e assim como ocorre na concepção budista, a vida se apresenta como compartilhamento de Deus (ou do Dharma, na visão de Buddhadasa) em todas as criaturas. Assim, “as coisas são em Deus, e, por isso, ao serem, sinalizam toda a divindade” (idem).

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A anulação do ego, no Cristianismo, é uma “disposição para Deus”

Neste ínterim, a sujeição (ou aniquilamento do ego) é um mecanismo para que o ser humano (ou toda a criação, numa visão mais abrangente), ultrapasse a sua própria natureza, o que possibilita a comunhão com a totalidade. Aliás, mais que uma comunhão, como lembra Dourado, trata-se aqui de uma forma para que a totalidade possa passar.

E a insistência no verbo ‘poder’ e não simplesmente no ‘passar’ é o seguimento de uma indicação de Mestre Eckhart, ao concluir a questão da doação de Deus: ‘Ele se doa como Deus, como ele o é  em  todos  os  seus  dons,  à  medida  que  há  disposição  em quem gostaria de recebê-lo (DOURADO, 2012, v.6, n.2).

Vale ressaltar que esta “disposição para Deus” só pode ocorrer, no Cristianismo, a partir da noção de que existe algo de caráter totalizante, que une e precede toda a existência. Campbell diz que, desta forma, para que todos os povos se redimam, para que haja a apreensão da mensagem salvífica, é necessário ter um entendimento mínimo de alguns conceitos, como temporalidade, contingência e interdependência. Ou seja, assim como ocorre no Budismo (para quem é preciso haver um aspecto mínimo de senciência para adentrar o Sagrado), no Cristianismo sob o viés eckharteano Deus apesar de ser onipotente, respeita os limites de cada criatura, que só pode reestabelecer o caminho de comunhão à medida que reconhece a fagulha divina que há em todos.

Para os budistas, quem não se reconhece como expressão do Sagrado está inebriado pela ignorância (não no sentido intelectual, mas de sutileza em relação à identificação do aspecto de co-dependência) e pela concepção de cegueira e afastamento. O “ser búdico” já o é desde sempre, mas por não reconhecer-se como tal (por não permitir a aproximação com Deus), acaba por distanciar-se de sua real natureza. Em Eckhart, quando isso ocorre (este afastamento), supõe-se que o homem vem cobrindo o seu coração de terra, criando camadas com respaldo meramente mundanos, tornando-se ele mesmo (o homem) obstáculo de sua própria vida, já que “… quando o olho está doente em si mesmo, e enfermiço, ou velado, é-lhe impossível perceber o brilho” (ECKHART, O homem nobre, O livro da divina consolação…, pág. 93). Impossível não comparar esta assertiva eckharteana à abordagem budista que compara um homem ignorante de seu aspecto divino com alguém que teve os olhos atingidos por flechas.

REFERÊNCIAS:

LUBAC, Henri de. Budismo Y Cristianismo. Salamanca – Espanha: Ediciones Sígueme, 2006;

BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

ECKHART, Mestre. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª. Edição, 1999;

GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

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MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

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Masculinidades nas malhas do biopoder – A emergência da Política de Atenção Integral à Saúde do Homem

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Inspirado em estudo dissertativo esta resenha busca problematizar1 brevemente a emergência da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), instituída no ano de 2009,onde o objeto “homem” fora delimitado como uma ‘nova’ problemática social. Enquanto estratégia biopolítica, o enunciado de que o homem não cuida de sua saúde e outros discursos sobre o corpo social masculino marcam a produção social de masculinidades inscritas na história da saúde no Brasil. Para estas problematizações, fundamentamo-nos nas ferramentas teóricas e metodológicas a partir do prisma pós-estruturalista, no pensamento de Michel Foucault, na forma como o autor desenvolveu uma análise dos discursos e da emergência dos saberes na sua articulação com mecanismos e tecnologias de poder, em especial acerca do dispositivo da medicalização.

O biopoder, conforme Foucault, (1999), não se preocupa somente com o indivíduo, mas lida com uma população que é um problema político,  biológico,  científico  e,  concomitantemente,  um  problema  de governo.  Neste sentido, a biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, afim de governar não somente os indivíduos por meio de certos conjuntos disciplinares, mas o conjunto das pessoas administradas como população.  A população será governada por meio da gestão da saúde, da higiene, alimentação, sexualidade, na medida em que se tornam preocupações políticas (REVEL,2005).

Mas seriam os homens alvo das estratégias biopolíticas somente com o advento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem? Na perspectiva foucaultiana, não seria buscar a origem linear dos fatos para explicarmos a atualidade, mas por em movimento os acontecimentos, tirando-os de seu lugar naturalizado e fixo. Neste sentido, a genealogia articula o corpo com a história. O corpo marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT 1979).

Sérgio Carrara (1998) já havia indicado que os homens eram foco da medicalização em território circunscrito como bordéis e casas de jogos, botecos. No Brasil, sabemos que antes da emergência do SUS, somente trabalhadores de carteira de trabalho assinada tinham garantidos certos direitos de acesso à saúde. O controle da força de trabalho pode ser considerado como o primeiro alvo de atenção do biopoder em relação ao masculino.

Visando contextualizar, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, instituída conforme Portaria nº 1.944, de 27 de agosto de 2009, salienta-se os princípios e diretrizes da PNAISH; parte são baseados em dados epidemiológicos, centralizando-se nos fatores de risco associados aos indicadores de morbi-mortalidade, parte por veridicções que designam o seu objeto de atenção.

Na direção dos índices de saúde, estudos como o de Wagner Figueiredo (2005) têm ressaltado a alta prevalência das doenças cardiovasculares, neoplasias malignas e violência, sobressaindo os acidentes de trânsito e os homicídios (causas externas).

A priorização da PNAISH em dirigir-se aos homens da faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade ocorre justamente pela alta prevalência de internação e de morte devido às causas externas, principalmente nas mortes causadas por homicídios. Contudo, autores como Jorge Lyra e Benedito Medrado (2009) e Sérgio Carrara (2009) salientam a incipiência da PNAISH.

A PNAISH emerge no ano de 2009, depois de diversos tensionamento pelaSociedade Brasileira de Urologia que vinha se dedicando à “causa” da saúde do homem desde 2004 e que em 2008, passa a exercer forte pressão junto a diferentes setores do governo, a parlamentares, aos conselhos de saúde (CONASS e CONASEMS) e a outras sociedades médicas, para o lançamento de uma política específica voltada à saúde do homem. Carrara (2010) explana bem esta questão; a partir de uma análise histórica, o autor questiona o contexto da Política Nacional de Saúde do Homem, apontando alguns interesses políticos, numa curiosa articulação entre especialistas médicos (no caso, os urologistas), gestores, formuladores de políticas públicas e farmacêuticos.

Os homens, com o advento da PNAISH, são investidos enquanto objeto de medicalização com vistas a também serem consumidores deste mercado biomédico. Então quais são as linhas de força, os interesses em jogo, as estratégias biopolíticas dirigidas ao corpo masculino?

Além dos índices de adoecimento e morte, determinadas veridicões sustentam a emergência da PNAISH em seu documento oficial. Estes discursos que reduz o masculino a determinadas configurações identitárias ainda são utilizados com vigor por sociedades médicas ou mesmo pela maioria dos gestores e profissionais que não tiveram um contato maior com a atual gestão da saúde do homem. São as afirmativas abaixo: “Os homens não sabem se cuidar.” “As mulheres cuidam dos homens.” “Os homens acessam os serviços de emergência quando a doença já está instalada, causando ônus à saúde pública.” Percebe-se que, o objeto desta política de saúde não é algo dado, mas se constitui como efeito num campo de verdades. Os jogos de verdade, não se referem mais a uma prática coercitiva, mas a uma prática de auto-formação do sujeito na contemporaneidade. Para Foucault (2006), a relação saber-poder seria mais um instrumento que permitiria analisar o problema das relações entre sujeitos e jogos de verdades.

Se o governo da conduta, que veremos no subitem que segue, pauta-se pela invenção de critérios do que deve ser o sujeito, ligando-o, marcando-o e identificando-o a um modelo de ser sujeito, são as relações de poder-saber que tornam possíveis a invenção desses critérios, a sua materialidade (por meio de técnicas, procedimentos e práticas), seu sucesso ou mesmo a resistência a eles (MEDEIROS, 2008).

Assim, ao invés de reproduzir os jogos de verdades acerca dos homens, segmentarizados em identidades fixas ou na postulada dificuldade dos homens em se deixarem medicalizar, pretende-se entender porque determinadas questões tornam-se tão importantes de serem colocadas em pauta e difundidas como verdades.  Ao questionar os efeitos de verdade dos enunciados perpetuados pela PNAISH alegando que os homens não cuidam de sua saúde, que estes possuem resistência em serem examinados e medicados, buscou-se suspender estas e outras “verdades” atribuídas ao   masculino,  analisando  os  múltiplos  discursos  como produzidos historicamente.

A produção social de masculinidades infames: alguns apontamentos no campo da saúde do Brasil

No que concerne ao corpo social na história da saúde do Brasil, distintos arranjos de masculinidades foram produzidos no interior do dispositivo da medicalização2; masculinidades tanto legitimadas na vida política e social como homens infames, ou seja, corpos inúteis e danosos ao país. Ressalta-se que as masculinidades estão sempre em estado de fluidez, de deriva (SEFFNER, 2003). Apesar da importância de estudos que contemplem as interseccionalidades das hierarquias de raça, classe, sexualidade erelações de gênero, pois estas combinam formas de desigualdades na prática das relações sociais (COROSSACZ, 2009), quando a perspectiva do debate nas pesquisas sobre a saúde no Brasil tranversalizao debate sobre a generificação dos corpos em determinadas conjunturas, é o corpo feminino que costuma entrar em análise (AQUINO,2006).

A história foi escrita por homens, mas durante grande parte do século XX, a historiografia brasileira caracterizou-se por um discurso que exaltava os “grandes homens” (heróis destahistória) e julgava e desqualificava homens que eram produtos de nosso contexto social, mas que foram transformados em culpados pelo atraso do país (escravos, miscigenados, degenerados). Neste sentido. Maria de Matos (2001) questiona que eventos e personagens históricos foram invizibilizados paraseconstruir umamemóriapreponderantenopaís.

Ademais,o espaço público foi e ainda é tratado pela historiografiatradicional como espaço de construção e fortalecimento da nação, realizado preponderantemente por mentes e braços masculinos, em diversos momentos históricos. Lilia Ferreira Lobo (2008) retoma esta expressão do autor, em estudo sobre a produção social  de corpos degenerescentes no Brasil:

“Existência sinfames: sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo. (…) Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixõe salvos ou não de violência instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse, que mas punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento ou manifestaçõesde alegria.”( Lilia Ferreira Lobo,2008, p. 17)

Parafraseando Foucaul tem seu livro “Em defesa da sociedade”, questiona-se: que vidas  importaram serem vividas para a nação brasileira? Os “(…) corpos que importam”, os “sujeitos aceitos (…)”,(Louro, 2004, p.15) são aqueles que obedecem a normas  regulatórias.  Aqueles que oscilam, hesitam, inventam novos caminhos  e ousam trilhá-los são suspeitos, no limite, descartáveis, restos.

Explorando a história da saúde no Brasil, em estudo dissertativo anterior, percebemos que os homens já eram objeto de medicalização nos diversos contextos históricos. Como a medicalização dos corpos não passa apenas pela assistência à saúde dos sujeitos, nem tampouco apenas pelo campo da saúde, mas seinsere como um dispositivo de poder transversal a outros dispositivos, com o da segurança, do trabalho e dasexualidade, tomou-se então essa transversalização o desafio de análise. Desafio, no sentido de se apropriar da história sem perder o enlace com a atualidade, nem  replicar simplesmente o que os livros já contaram tantas vezes.

Neste sentido, a biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de certos conjuntos disciplinares, mas o conjunto das pessoas administradas como corpo social. A população será alvo de controle a partir de regras de da higiene, alimentação, sexualidade, na medida em que se tornam preocupações políticas. Medicina e Estado se articulam como forma de governo das populações, desse modo a medicina é uma estratégia biopolítica.

Assumir o caráter de problematização, ao  tomar  as  peculiaridades  de produção  social  das  masculinidades  no  campo  da  saúde,  é  recontar  a  história dissolvendo a veracidade naturalizadados fatos. É perceber o caráter indissociável da relação gênero, raça, classe, geraçãona construção da versão brasileira da medicina social. Desconstruir as condições de  possibilidade que permitiram a ela “firmar seus pés ”na noção de raça; o imperativo que calcará a desigualdade social na cor da pele. O racismo científico vai esquadrinhar os sujeitos potencialmente saudáveis e os potencialmente       perigosos (vagabundo, desviante sexual, criminoso, revolucionário),  bem  como  definir   a  doença  pela  sua  herança hereditária.

A medicina foi convocada a higienizar uma mão de obra pós escravidão a fim de conter toda a potencialidade do coletivo de homens que poderiam se rebelar contra o sistema político. Diversas estratégias voltaram-se a este objetivo como a repressão à ociosidade da República Velha, concomitantemente à prevenção do alcoolismo e das doenças sexualmente transmissíveis; a exaltação aotrabalhador ideal nos regimes ditatoriais e a imaterialidade das garantias trabalhistas  de uma sociedade atual onde prevalece a competição e o individualismo. Diante destes aspectos, assinalamos o quanto o dispositivo de trabalho movimentou o estudo acerca da produção social de masculinidades no campo da saúde do Brasil.

Com exceção da elite intelectual e econômica, que coloca-se afavordos imperativos políticos e sociais do Estado, a norma passa a ser o homem que circula pela  cidade  como  trabalhador.  De resto, irão  sobrar  os  homens  infames; aqueles que adquirirem seu estatuto de masculinidade infame perante a sociedade. Assim, o dispositivo do trabalho, articula a medicalização do corpo social masculino ao passo que confere sujeitos dispostos a construir uma nação. Neste sentido, nos direcionam os a oterritório masculino do trabalho e o itinerário inóspito por onde os trabalhadores transitam ao adoecerem.

Costuma-se inferir o espaço público como sendo dos homens, contudo percebemos que é necessário por em  questão que para masculinidades rejeitada em  sua circulação resta-lhes o território privado das instituições. Mas senão há instituições suficientes emt ermos de espaço e aparatos de poder designados aos corpos infames, o que resta é institucionalizar a própria circulação docorpo. E restringir o corpo ao acesso aos serviços é restringir a própria vida.

Apesar de todo estigma direcionado ao trabalhador que adoece perante as condições de trabalho e a insegurança social e econômica que o espera ao buscar o cuidado em saúde, foi no território daprisão que encontramos a materialidade da morte dos homens predominantemente negros e jovens, morte tanto orgânica como social, assim como havíamos encontrado no corpo escravo, nos moradores erua, no cabloco. O homem preso é o emblema atual dos homens marcados para não viverem, uma  tanatologia  do  corpo social masculino.

Na sequência discursiva que acompanha o homem criminoso, encontramos na PNAISH o caráter de réu atribuído aos homens.  Tanto por serem tomados como incapazes de cuidarem da própria saúde, como por serem autores das situações de violência. Deste modo, uma análise intersetorial das políticas públicas de saúde, assistência social e segurança pública enquanto estratégias biopolíticas direciona das preferencialmente aos pobres são tomadas como transversalizadoras nas produções de masculinidades objeto de preocupação social.

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Notas:

Lembrando que problematização para Foucault (2004) é o conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz com que alguma coisa entre no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento. Assim, não seria de questionarmos se os homens não cuidam de sua saúde, se estes possuem resistência em serem examinados e medicados, mas justamente entre essas e outras “verdades” atribuídas ao masculino analisarmos os múltiplos discursos como produzidos historicamente.

“(…) é isso o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. Para dizer: “eis um dispositivo”, procuro quais foram os elementos que interviram em uma racionalidade, em uma organização.” ( Foucault, 2007, p. 124)

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O Homem Elefante

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“De fato, a minha aparência é algo medonha,
mas censurar-me é censurar a Deus.
Pudesse eu recriar-me novamente,
não te decepcionaria.”

Poema de Isaac Watts com que Joseph Merrick terminava as suas cartas.

Joseph Merrick fotografado em 1889

Na literatura, na música, nos negócios e na ciência constantemente é apontado que a aparência física agrega valor ao indivíduo, seja na empatia natural que a beleza provoca, ou na facilidade em ser notado (em um mundo que prima pelo espetáculo). Há diversos estudos na área da Psicologia, mais especificamente em um ramo denominado Psicologia Evolutiva, que buscam explicar como algumas características humanas foram moldadas desde a evolução. Essas características tanto podem advir de elementos mais diretos, como a visão ou a audição, quanto de situações mais complexas, como estratégias para escolha de parceiros, percepção espacial etc.

Psicologia Evolutiva tenta examinar a base de determinados comportamentos, por exemplo, o porque consideramos algo belo ou tenebroso, nojento ou agradável. Por que há rostos e corpos que são mais desejáveis? Por que em dadas épocas determinados tipos físicos exerceram mais poder no que tange à atração sexual?

Em meio a essas perguntas, deparo-me com a história real de Joseph Merrick, que viveu na Inglaterra vitoriana do século XIX. Nasceu em 1862 e, por volta dos dois anos, tumores imensos começaram a crescer em seu corpo, a ponto de deixar um de seus braços imóvel, de prejudicar sua respiração, impossibilitar que dormisse deitado ou que andasse normalmente.  Joseph causava horror em quem o via, algumas pessoas tinham ânsia de vômito ao se deparar com a sua figura, outras desmaiavam. Foi considerado um monstro, uma aberração, uma abominação da natureza.

Joseph Merrick fotografado em 1888

Somente na década de 70 do século XX que a medicina entendeu (em parte) a doença que o deformou: a Síndrome de Proteus, “uma doença congênita que causa crescimento exagerado e patológico da pele com tumores subcutâneos, desenvolvimento atípico com macrodactilia e hemi-hipertrofia”.  Por ser uma doença que ocorre raramente (foram descritos cerca de 100 casos no mundo), há poucos investimentos para estudos na área.

No século XIX, participar de espetáculos em “circo de horror” sendo uma aberração usada para aguçar a curiosidade do público era tudo que restava a pessoas que sofriam, por exemplo, da síndrome de hipertricose (excesso de pelos), que fossem siameses ou tivessem qualquer outro mal que deformava sua aparência e tirava-lhe do ciclo estabelecido aos humanos. Nesse contexto, ser humano implicava parecer humano. E parecer humano não tinha relação com caráter ou consciência, mas com a aparência física determinada a partir de um padrão. Esse tipo de circo foi proibido no final do século XIX na Inglaterra, mas, de certa forma, ainda existe, só que agora novos artifícios são usados para mascarar o lucro que advém da exposição da dor e do medo.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch

Mais do que sua aparência, o caso de Joseph causou repercussão na sociedade da época porque vinha acompanhado de uma sombria revelação: a “aberração” era sensível e inteligente. Sua vida assombrada pelo preconceito, pelo medo e pelo horror não obscureceu sua humanidade. Entender que por detrás daquele aspecto assustador podia haver um ser consciente era o que mais provocava o desconforto das pessoas.

O filme de David Lynch sobre a vida de Joseph Merrick (baseado em manuscritos do Dr. Frederick Treves – “O Homem-Elefante e outras reminiscências” e, em parte, no “Estudo da Dignidade Humana”, de Ashley Montagu) traz alguns questionamentos sobre os motivos que tornam muitos de nós tão avessos ao diferente, especialmente quando essa diferença tem relação a aspectos físicos.  É possível olhar para além das deformidades físicas? Ou Joseph Merrick estaria fadado a morar no circo de horror no qual passou parte de sua vida?

Há pesquisas como a de Schaller e Duncan (2007) que levantam hipóteses sobre um “sistema imunológico comportamental”, que tenta explicar porque as pessoas tendem a sentir desconforto perante “anormalidades” profundas. Outros acreditam que existem pessoas merecedoras da maldição divina, daí o castigo de ter uma aparência abominável. No entanto, o que é mais evidente na história de Merrick, especialmente na forma como foi contada no filme do Lynch, é que a sensibilidade independe da aparência. A inteligência e a consciência que nos tornam humanos vão além daquilo que o outro vê ou daquilo que o espelho nos mostra.



Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (John Hurt e Anne Bancroft)

“Não saio tanto quanto gostaria porque as pessoas naturalmente se perturbam com a minha aparência.
As pessoas ficam assustadas com o que elas não podem entender.” (Joseph Merrick)

Merrick começou a ter uma certa dignidade em vida quando conseguiu se livrar do agente circense que o escravizava e obteve ajuda do médico Frederick Treves, do Hospital de Londres. A princípio, aqueles que o conheciam imaginavam se tratar de uma criatura com extremas deformidades físicas e com uma óbvia deficiência mental. Somente quando ele falou pela primeira vez e mostrou sua capacidade de entendimento do mundo, das pessoas, da arte e dele mesmo é que, enfim, perceberam que estavam diante de um ser humano inteligente e sensível.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (Anthony Hopkins e John Hurt)

O médico, ainda que tenha tido sentimentos nobres e uma genuína comoção perante o sofrimento de Joseph, também estava fascinado pelas descobertas que podia obter na área da medicina a partir do entendimento das causas de sua deformidade. Essa dualidade de sentimentos do médico é apresentada no filme: a angústia em entender se mesmo ele, que conhece Merrick tão bem e sabe da extensão de sua sensibilidade, é capaz de enxergá-lo além de sua aparência. Para o médico, era necessário descobrir o motivo da deformidade, pois entender a doença tira-lhe o aspecto de maldição, ainda que para a pessoa que está presa a ela, esse entendimento não muda a limitação que lhe é imposta. Joseph sonhava em um dia sair do hospital de Londres e morar em um hospital de cegos, onde pudesse encontrar uma mulher que viesse a gostar dele, apesar de sua aparência.

“Eu não sou um elefante. Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano. Eu sou um homem.” (Joseph Merrick)

Joseph morreu aos 27 anos, em 1890. Em uma tentativa de dormir como uma pessoa normal causou um deslocamento acidental do pescoço, que não suportou o peso da cabeça durante o sono. Assim, a causa oficial da morte foi asfixia.

Em 2012, após 122 anos de sua morte, voltou a ser notícia em vários meios porque foi anunciada a realização de uma análise do DNA de seus ossos com o objetivo de encontrar o diagnóstico final das causas que resultaram em sua deformação. Isso será feito a partir da verificação da existência de alterações genéticas em alguma sequência do seu genoma. Seu esqueleto é mantido preservado no Royal London Hospital, em Whitechapel. Joseph foi estudado em vida, continua sendo estudado após a morte. Descansar em paz não é um direito de todos.

A sequência final do filme de David Lynch é um daqueles momentos que silencia não apenas a voz, mas a alma. Joseph Merrick, ao final, parecia querer ao menos adormecer como um ser humano, já que acordado tinha que suportar a dualidade de duas existências, aquela que existia em sua mente, e a outra, que ele via através da face de horror de quem se deparava com a sua imagem.

Boa noite, Joseph Merrick!

http://youtu.be/z75wcxf6ZVk

Nunca, nunca! Nada morrerá.
O rio corre, o vento sopra,
as nuvens movem-se,
o coração bate.
Nada morrerá.

(Alfred Lord Tennyson)

Referências:

Filme:
Ficha Técnica
Título: O Homem Elefante / The Elephant Man
Direção: David Lynch
Elenco: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Freddie Jones…
Roteiro: Christopher De Vore, Eric Bergren, David Lynch, Frederick Treves (história original)
Ano: 1980.

Artigo:
SCHALLER, Mark; DUNCAN, Lesley A. The Behavioral Immune System – Its Evolution and Social Psychological Implications. In J. P. Forgas, M. G. Haselton, & W. von Hippel (Eds.), Evolution and the social mind: Evolutionary psychology and social cognition (pp. 293-307). New York: Psychology Press, 2007.

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