Sonhos: a interpretação causalista redutiva freudiana

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Os primórdios da psicanálise têm seu gérmen a partir do momento em que Freud entra em contato com a escola de hipnotismo francesa (JUNG, 2013c). Ali, através da hipnose, ele experimenta diretamente a presença e influência do inconsciente na personalidade. Por razões de efetividade terapêutica, mais tarde, junto de Josef Breuer, eles abandonam a prática hipnótica, e passam a usar como prática terapêutica exclusivamente a associação livre. É consolidado assim o método psicanalítico.

Jean Martin Charcot fazendo uma demonstração da hipnose em uma mulher histérica.                                      Fonte: encurtador.com.br/cgJR0

A via para o inconsciente agora se dava através de uma forma interpretativa do discurso, a partir da análise de sintomas e repetições, de forma que o paciente era, ao contrário do método hipnótico, agente participante do seu processo terapêutico. Faltava, porém, uma via direta de diálogo com o inconsciente, sem o filtro da consciência. É nesse contexto então, que se dá a grande descoberta de Freud: o sonho como a via régia para o inconsciente, publicando assim em 1900 a obra “A interpretação dos sonhos”. “[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida” (FREUD, 2018, contracapa).

Primeira edição da obra “Die Traumdeutung” (1900), traduzido para “A interpretação do sonhos”             Fonte: encurtador.com.br/iwEU0

A partir de 1907, Carl Gustav Jung dá início ao seu contato com Freud, que dura até 1913, período de parceria e coparticipação em descobertas psicanalíticas. É embasado na noção psicanalítica, que se inicia o conhecimento de Jung sobre o sonho. Mais tarde, ele a coloca como parte integrante de sua compreensão sobre a fenomenologia do sonho, a nomeando de perspectiva causalista (JUNG, 2013a).

Sigmund Freud (parte inferior esquerda) e Carl G. Jung (parte inferior direita) na mesma foto durante visita aos Estados Unidos em 1909. Fonte: encurtador.com.br/dUY36

Nessa teoria do sonho, ele é compreendido como produto de uma complicada conexão de fenômenos psíquicos, uma obra que tem seus motivos, advindos de cadeias prévias de associações, sempre referindo-se a algo anterior, um passado psíquico, e possui, portanto, um significado. Esse método baseia-se em um procedimento redutivo, exclusivamente causal, que decompõe o sonho nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base (JUNG, 2014). Ante a obscuridade e confusão que se apresenta o sonho como o lembramos, dá-se o nome de conteúdo manifesto. Ele seria a fachada pelo qual se esconde a verdadeira ideia do sonho, o conteúdo latente (FREUD, 2018).

O “sonho manifesto”, isto é, o sonho tal como nos lembramos dele, segundo Freud, é como a fachada de uma casa: à primeira vista nada revela de seu interior, que fica oculto por detrás da chamada censura do sonho. Permitindo-se que a pessoa fale sobre os detalhes de seu sonho – obedecidas determinadas regras técnicas – vemos que as ideias que lhe ocorrem seguem todas uma mesma direção, concentrando-se em torno de um assunto específico, de significado pessoal. Inicialmente, essas ideias assumem um sentido que se dissimulava por trás do enredo do sonho. […] Esse complexo específico de pensamentos em que se concentram todos os fios do sonho é o conflito procurado, que se apresenta numa variação condicionada pelas circunstâncias (JUNG, 2014, § 21).

A forma toda especial que adquirirá o conteúdo manifesto do sonho corresponde a disposição psíquica do indivíduo, ou seja, sua individualidade. Nosso estado de espírito no presente depende de nossa história, e, por isso, os elementos de valores, na diversidade de cada pessoa, são os determinantes da constelação psíquica. Acontecimentos que provocam fortes reações de sentimento são de grande importância para o desenvolvimento psíquico posterior. Essas recordações, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações mais ou menos extensos, que Jung (2013c) dá o nome de “complexos ideoafetivos”.

São, portanto, as associações consteladas pelos complexos que dão forma para o conteúdo manifesto do sonho, e é através dele que se pode fazer o caminho contrário para compreender seu conteúdo latente. Nesse método interpretativo, se volta ao passado para reconstituir certas experiências anteriores, a partir da manifestação de determinados motivos oníricos. Esse percurso é de utilidade em contexto terapêutico por abrir a possibilidade da conscientização de conteúdos inconscientes, ou de revelar fatos que o paciente não queria contar.

Se alguém sonha, por exemplo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber o que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si pareça suficientemente precisa. Com efeito, há qualquer coisa que ignoramos, e é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa à qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira posterior e o expulsou de casa como um sujeito imprestável. A superfície lustrosa desta mesa está ali, diante de seus olhos, como o símbolo de uma inutilidade catastrófica tanto no estado de vigília, como nos sonhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa” (JUNG, 2013a, § 539).

Fonte: encurtador.com.br/cnrzW

Os elementos do conteúdo manifesto, em relação ao conteúdo latente, apresentam-se não só de forma difusa e distorcida, como também uma espécie de resumo de um conglomerado de conteúdos psíquicos inconscientes. Em um único sonho, a partir de uma reflexão sobre o mesmo, é possível obter uma infinidade de observações, percepções e associações subjacentes, de forma que todas façam sentido. Esses, revelam os pensamentos oníricos, que são processos correntes na dinâmica psíquica, uma espécie de pauta inconsciente levantada e eliciada pelos processos vivenciados em vigília. São produtos da constelação psíquica do dia a dia. 

Segundo Freud (2018), essa multiplicidade se dá devido o trabalho de condensação realizado pela elaboração onírica, um processo em que se incute uma diversa cadeia de significantes em um único sonho. Portanto, da mesma forma que um sonho pode se ligar a mais de um fato, um objeto do sonho pode condensar e se referir a mais do que apenas um elemento. Um bom exemplo é quando no sonho, nos deparamos com uma pessoa que se parece com alguém que conhecemos, mas ao mesmo tempo nos lembra outra pessoa.

Fonte: encurtador.com.br/bxAG4

Outro processo comum e importante do sonho é o deslocamento. Aqui, o pensamento onírico é encoberto por uma espécie de disfarce. “[…] seu conteúdo é ordenado em torno de elementos centrais diferentes dos pensamentos oníricos […] ou seja, arrancado do contexto e, dessa maneira, transformado em algo estranho” (FREUD, 2018, p. 328). 

Esse mecanismo do sonho contribui com o processo de censura do conteúdo latente, pois encobre seu significado. A citação usada acima é um ótimo exemplo. A mesa de pinho, como conteúdo manifesto, é um deslocamento do real conteúdo latente: a recusa de auxílio financeiro e expulsão de casa realizada pelo seu pai, que no momento se sentava à mesa de pinho.

Fonte: encurtador.com.br/nuGP8

Freud (2018) em sua teoria interpretativa, postula uma regra geral que se aplicaria ao sentido de todo sonho: ele representa a realização de um desejo reprimido. Todo o processo de censura realizado pelo contudo manifesto – que segundo ele, acontece no processo do acordar – seria justamente para mascarar aquilo que há de recalcado pela consciência. Mesmo os sonhos de angústia seriam distorções devido à defesa contra um desejo que, para a consciência, é insuportável assumir. Para o autor portanto, o sonho teria duas etapas: a realização da fantasia desejante e, após isso, sua censura, que só permite que uma ideia se manifeste quando está tão deformada que o sonhador não a consegue reconhecer, graças a isso, a informação se torna tolerável para consciência.

Tais fantasias se referem a desejos de caráter sexual (FREUD, 1997) que, por demais incompatíveis com a moral do ego, não podem tornar-se conscientes, devido a uma força contraria que se opõe a elas pela consciência: o recalque. A consciência mantém esses conteúdos inconscientes, e isso é sentido durante o processo de análise como resistência, manifestação da força que provocou e mantém o recalque. Para a psicanálise, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente (FREUD, 2011). 

Fonte: encurtador.com.br/cnDNY

Sendo o inconsciente, para Freud, um conglomerado de conteúdos recalcados devido sua incompatibilidade para com a consciência. É compreensível que ele postule os sonhos como mera manifestação destes. Já Jung não o considera de forma tão redutiva:

De acordo com a ideia original de Freud, o inconsciente é uma espécie de recipiente, ou porão, para material reprimido, desejos infantis e coisas do gênero. Contudo o inconsciente é bem mais do que isso: ele é, simplesmente, a base, a condição preliminar da consciência.  Representa a função inconsciente do psiquismo. É a vida psíquica antes, durante e depois da tomada de consciência. Como a criança recém-nascida, que chega ao mundo com o cérebro pronto e altamente desenvolvido, e cuja diferenciação foi formada pela experiência acumulada dos seus antepassados, no decorrer de séculos e séculos sem conta. Assim também a psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes à psique ancestral (JUNG, 2013b, § 61).

Fonte: Jung (2009)

Sendo suas considerações sobre o inconsciente diferentes das de Freud, também suas perspectivas sobre os sonhos se diferenciam das dele. Melhor dizendo: as concepções de Jung sobre o inconsciente e, logo, sobre os sonhos, consideram os conhecimentos freudianos como componentes da psicologia analítica, e uma etapa do processo de análise. Ou seja, a fenomenologia psíquica do sonho – bem como de todo o inconsciente – para a psicologia analítica, não se reduz à lógica causal, onde se dá um porque para um fenômeno, isso compõe uma parte de sua totalidade, ou melhor, um lado.

Dentre vários motivos, Jung busca outras perspectivas para o fenômeno psíquico pelo fato de a psicologia prestar contas àquele que sofre psicologicamente. Para este, nem sempre a conscientização de conteúdos inconscientes resolve seu problema. A partir desse ponto, os sonhos interpretados pelo método causal apenas continuariam a trazer as mesmas informações já sabidas. Não seria uma grande novidade, pois as causas anteriores se reduzem às bases do sujeito, que são sempre as mesmas. 

É necessário compreender também o que o inconsciente e o sonho estão querendo dizer com tal situação, o que ele informa sobre o que pode ser feito. Com isso, entende-se o produto psíquico do ponto de vista de sua finalidade, e o sentido que tende o atual processo psíquico (JUNG, 2014). Não à toa, Carl Jung é um teórico da Individuação.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 736p. Tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tânia Rivera, ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza.

FREUD, Sigmund; SALOMÃO, Jayme. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição ‘Livros do Brasil’, 1997.

FREUD, Sigmund. Obras completes, volume 16:  O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Tradução de Paulo César de Souza.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1). 

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (Obras Comp). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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Autoconhecimento e inconsciente: uma perspectiva junguiana

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A psique naturalmente já tem sua dinâmica homeostática. Porém, vivemos comprimidos entre a primitividade e a massificação. De um lado, temos o ser primitivo, que, reinante há não muito tempo, configura a maior parte da história humana, com sua identificação com a psique coletiva e a inebriante participação mística (JUNG, 2015a). Do outro, a cultura, que massifica o sujeito, o condiciona a ser mera peça do estado, com o desenvolvimento unilateral de suas capacidades para desempenhar estritamente uma única função (Id., 2013c, 2015b)

Devido a isso, o indivíduo pena para desenvolver e manter seu senso de individualidade, e é exatamente isso que ele deve fazer para ter uma boa convivência com sua psique. Para tanto, ele necessita de “uma valorização psicológica objetiva das diferenças individuais ou qualquer objetificação científica dos processos psicológicos individuais” (Id., 2015b, § 9), ou seja, autoconhecimento. Este não se refere apenas à personalidade consciente do eu, e sim também tudo aquilo que necessariamente passa despercebido de sua atenção, ou seja, é inconsciente (Id., 2013c).

Um bom grau de reflexão autocrítica já ajuda nesse processo, bem como a observância do que os outros podem pensar sobre você. De forma saudável, este último pode, além de nos fazer enxergar aquilo que não vemos, também oferecer atenção às nossas próprias projeções sombrias – aquilo que, não suportando manter conosco, delegamos inadvertidamente ao outro.

“[…] não se deve esquecer a seguinte regra: o inconsciente de uma pessoa se projeta sobre outra pessoa, isto é, aquilo que alguém não vê em si mesmo, passa a censurar no outro. Este princípio tem uma validade geral tão impressionante que seria bom se todos, antes de criticar os outros, se sentassem e ponderassem cuidadosamente se a carapuça que querem enfiar na cabeça do outro não é aquela que se ajusta perfeitamente a eles” (Id., 2013b, § 39).

Outra forma saudável é observar os próprios padrões de repetição, que tendem a se perpetuar enquanto o indivíduo não toma consciência deles. Jung, em sua célebre frase diz: “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isso de destino” (Id., 1948/1970, § 126). A consciência é uma instituição de adaptação e orientação, e, portanto, necessita permanecer nos ditames do previsivelmente conhecido o quanto for possível. O inconsciente, clamando por uma vivência mais ampla que abarque a totalidade da existência da psique, produz um movimento de compensação da atitude consciente.

Fonte: encurtador.com.br/hxNQR

“A compensação inconsciente de um estado neurótico da consciência contém todos os elementos que, quando conscientes, isto é, quando compreendidos e integrados como realidades na consciência, são capazes de corrigir eficaz e salutarmente a unilateralidade da consciência” (Id., 2014, § 187).

Em geral, como continua a dizer o autor, a consciência ignora tais efeitos, e com isso o fenômeno da compensação se passa inconsciente, sem efeito imediato. Porém, ao longo do tempo, à medida que não se dá atenção à compensação, o inconsciente produz um efeito indireto: “a oposição inconsciente, numa constante infração, vai arranjando sintomas e situações, que finalmente se contrapõem sem cessar às intenções conscientes” (Ibid., § 187).

A via régia de informações para o inconsciente, é quando a consciência se desliga. Aqui o sujeito por alguns momentos interage com figuras fantásticas, revive cenas traumáticas, realiza seus desejos mais profundos. Enfim, ele entra em contato com o processo de homeostase mais natural da psique: o sonho. Aqui, ele irá se manifestar, em sua maioria, como uma compensação da atitude consciente (Id., 2011). Dando atenção às vivencias oníricas, o sujeito pode experimentar processos de desenvolvimento satisfatórios.

Outra forma, que é justamente a pedra angular de todo desenvolvimento teórico junguiano, é a análise. Na presença de um profissional, o sujeito conta toda sua vivência e expõe sua subjetividade, criando uma relação dialética com o terapeuta (Id., 2013a). Este, se esforça para entender e interpretar todo o conteúdo falado, na tentativa de ajudar o cliente a perceber a influência do inconsciente em sua vida, de forma que, futuramente, ele possa se auto monitorar.

Dessa forma, se desenvolve um contato com a própria subjetividade, de modo a diminuir as barreiras que se interpõem entre consciência e inconsciente. Nesse constante contato, o indivíduo começa se relacionar, através de sonhos e percepções visuais, com figuras imagéticas do inconsciente, sua linguagem por excelência (Id., 2015b).

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (Obras Completas).

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. (OC 10/3). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petropolis, Rj: Vozes, 2015. (OC 7/2). Tradução de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. 8. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. (OC 10/1). Tradução de Maria Sá Cavalcante.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Petrópolis, Rj: Vozes, 2011. (OC 12). Tradução Maria Luiza Appy, Margaret Makray, Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva; revisão literária Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy; revisão Técnica, Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

JUNG, Carl Gustav. AION: Researches into the Phenomenology of the Self. CW 9. Princeton: Princeton University Press, 1948/1970

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O inconsciente na perspectiva junguiana

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[…] quanto mais se enriquece a experiência, tanto mais se aprofunda também a convicção de que a função da inconsciência possui, na vida da psique, uma importância de que, por enquanto, talvez só tenhamos uma pálida ideia. Foi justamente a experiência analítica que descobriu, de modo cada vez mais claro, as influências do inconsciente sobre a vida consciente da alma – influências cuja exigência e significado a experiência havia ignorado até aqui. Em meu modo de ver, que se fundamenta em anos de experiência e em inumeráveis pesquisas, a significação da inconsciência para a atividade geral da psique é talvez tão grande quanto a da consciência (JUNG, 2013a, § 491).

No campo das psicodinâmicas e psicologias profundas, o conceito de inconsciente sempre tem lugar central nas suas estruturações teóricas. Porém, cada uma delas dá significados e dimensões distintas para o termo, sendo muito importante entender e diferenciá-los.

Na psicologia analítica, o inconsciente, ao contrário de outras teorias como a psicanálise, não se limita apenas a restos de lembranças de uma vida esquecida. Ele é também onde reside a gênese da vida humana, o ponto de partida do funcionamento do primitivo, que é anterior à própria consciência , onde nasce a criação de tudo que ainda há de emergir(Id., 2015b). No inconsciente, segundo Jung (2015a), residem também todos os padrões de comportamento, sedimentados ao longo dos milênios da vivência histórica humana, e acabam, por isso, sendo os verdadeiros balizadores de seus hábitos, recebendo o nome de padrões arquetípicos. Em resumo, ele é a totalidade de todos os fenômenos psíquicos em que se ausenta a qualidade da consciência (Id., 2013).

“[…] o inconsciente não representa apenas um apêndice “subconsciente”, ou até mesmo um mero depósito de lixo da consciência, mas um sistema psíquico amplamente autônomo capaz de compensar funcionalmente, por um lado, os desvios da consciência e, por outro, corrigi-la de seus desvios e unilateralidades, às vezes violentamente” (Id., 2016a, § 229).

Portanto, para a funcionalidade da consciência, são necessárias condições para a existência de uma vida inconsciente. É desta que flui toda a energia que torna viável o funcionamento da personalidade (Id., 2015c), e sem um processo de “homeostase” entre essas duas instâncias, a consciência perece carecida de vida. Toda a sorte de neuroses, psicoses e sintomas somáticos se dão por uma disfuncionalidade entre consciência e inconsciente.

Jung (2013, 2015c) separa conceitualmente o inconsciente entre pessoal e coletivo, e define o primeiro como o receptáculo de todas as lembranças perdidas, repressões mais ou menos intencionais de pensamentos e impressões incômodas, evocações dolorosas e todos aqueles conteúdos que ainda são muito débeis para se tornarem conscientes, ou seja, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência.

“Mas afora esses, no inconsciente encontramos também as qualidades que não foram adquiridas individualmente, mas são herdadas, ou seja, os instintos enquanto impulsos destinados a produzir ações que resultam de uma necessidade interior, sem uma motivação consciente. Devemos incluir também as formas a priori, inatas, de intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão que são determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos. Da mesma maneira como os instintos impelem o homem a adotar uma forma de existência especificamente humana, assim também os arquétipos forçam a percepção e a intuição a assumirem determinados padrões especificamente humanos. Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo” (Id., 2013, § 270)

Fonte: Jung (2009)

A forma que o inconsciente se vale para manter o equilíbrio psíquico é a compensação (Id., 2015d). Aquilo que falta à consciência em relação à totalidade da psique, é exercida pelo inconsciente, abrindo brechas na continuidade da consciência e na relação com o corpo em uma frequência não tão remota como se pensa:

“Mesmo se julgo (e outros comigo) apropriada a minha atitude, o inconsciente pode, por assim dizer, ser “de outra opinião”. […] o inconsciente é inteiramente capaz de provocar toda espécie de distúrbios desagradáveis, através de atos falhos, muitas vezes plenos de consequências, ou sintomas neuróticos. Estas perturbações provêm de um desencontro entre “consciente” e “inconsciente”. Normalmente, deveria haver a harmonia, mas, na realidade, ela ocorre muito poucas vezes, o que dá origem a uma multidão imprevisível de inconvenientes psicógenos, que vão de acidentes e doenças graves até os inocentes lapsus linguae.” (Id., 2013, § 546)

Ao final, o próprio funcionamento consciente corrente, depende de um processo de elaboração inconsciente. Por isso, o bom funcionamento psíquico necessita da constante colaboração entre essas duas instâncias.

“Quando se faz um discurso, a próxima frase já vem sendo preparada durante a fala da anterior, mas esta preparação é em grande parte inconsciente. Se o inconsciente não colaborar e retiver a próxima frase, ficamos empacados. Queremos mencionar um nome ou um conceito já em voga, mas ele simplesmente não vem. O inconsciente não o fornece. […] É dessa forma que dependemos da boa vontade do nosso inconsciente” (Id., 2015a, § 541).

A compreensão da influência do inconsciente na consciência, passa necessariamente pela relação entre os complexos e essas duas instâncias. O objeto que reside no inconsciente pessoal, e que se incute na consciência, é propriamente o complexo. Resumidamente, estando em um status de repressão e inconsciência devido a sua aversividade, e não tendo lugar de vazão, os complexos acumulam sua energia específica (libido), advindas dos seus respectivos instintos e imagens. Estando carregados, eles ativam o inconsciente, dando-lhe maior autonomia até o ponto dos complexos resvalarem rumo à consciência, se exprimindo em forma de fantasias, impulsos, atos falhos, lapsus linguae e até mesmo em estados de possessão. Para maiores informações sobre eles, visitar o texto: A estruturação da consciência e os complexos

A fim de harmonizar a relação entre essas duas instâncias, a psique conta com um mecanismo natural, que coloca a consciência em contato com os conteúdos inconscientes. Os sonhos confrontam o eu, através de imagens e situações, a uma complementação da atitude consciente. Segundo Jung (2014), eles são em sua maioria de natureza compensatória: “[…] sempre acentuam o outro lado, a fim de conservar o equilíbrio da alma” (§ 170). Portanto, “Sempre é útil perguntar, quando se interpreta clinicamente um sonho: que atitude consciente é compensada pelo sonho?” (Id., 2012a, § 330).

Fonte: Jung (2009)

Se o indivíduo nega isso, a consciência se enrijece com sua função principal em um invólucro hiper resistente contra as influências do inconsciente. Com concepções petrificadas, ele acaba por deflagrar uma oposição aberta em relação ao inconsciente (Id., 2015d). Tal atitude gera uma repressão da libido, que segundo Jung (2016b), aumenta a impulsividade, ativando possibilidades tendenciosas a excessos e aberrações de toda sorte. Também comprime a consciência a uma vida extremamente estreitada pela neurose, que pode, possivelmente, até mesmo fragmentá-la com o manancial de fantasias inconscientes, no caso da psicose. “[…] onde quer que o inconsciente domine, aí se encontra também a não-liberdade, e até mesmo a obsessão” (Id., 2012b, § 141).

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica: escritos diversos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015a. (OC 18/1). Tradução de Edgar Orth; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012a. (OC. 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Estudos alquímicos. Petropolis, Rj: Vozes, 2016a. (OC 13). Tradução de Dora Mariana R. Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy; Edição digital.

JUNG, Carl Gustav. Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015b. (OC 14/2). Colaboração de Marie-Louise von Franz; tradução Valdemar do Amaral; revisão literária Orlando dos Reis; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015c. (OC 7/2). Tradução de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012b. 160 p. (OC 11/1). Tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petropolis, Rj: Vozes, 2016b. (OC 5). Tradução de Eva Stern ; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015d. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

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A estruturação da consciência a partir dos complexos

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O modelo teórico desenvolvido por Carl Gustav Jung, um dos grandes nomes da psicologia, se organiza através da observação empírica e clínica do funcionamento humano. A partir do tratamento de doentes mentais no Burghölzli, um hospital psiquiátrico em Zurique, na Suíça, e testagens em pessoas saudáveis, Jung passou a investigar a continuidade do funcionamento psíquico. Através do “Estudos Diagnósticos de Associação” (JUNG, 1995), ele dá um grande passo em sua pesquisa.

No intuito de compreender as leis que regem o curso associativo da consciência, Jung (1995) fez experimentos onde oferecia palavras-estímulo aos testados, que deveriam responder no menor tempo possível a primeira palavra que lhe vinham à mente ao recebê-la, a fim de compreender quais são as leis que regem as oscilações associativas dentro dos limites da pessoa normal. Nesse ínterim, pôde-se perceber que, quando as palavras-estímulo se relacionavam a pontos que pudessem evocar situações pessoais vividas, elas geravam uma perturbação no: tempo de resposta; ligação lógica entre palavra-estímulo e resposta; e a recordação posterior da resposta dada àquela palavra-estímulo.

Tal experimento revelou que, nesses breves momentos, existe uma perturbação da atividade consciente por um fator psíquico que, por vezes, pode passar despercebido pelo sujeito testado. É um breve assalto da consciência por outro fator da psique, que carrega reações afetivo-emocionais de situações outrora vivenciadas, e que estão, atualmente, afastadas da atenção consciente.

Jung deu a esses fatores o nome de complexos, que são a base do funcionamento psíquico individual. Segundo ele, a psique é composta por esses núcleos de carga afetivo-emocionais, que têm relativa identidade, dada sua autonomia em relação à consciencia. Eles se formam a partir de dois componentes: uma experiência, um fato vivido que está causalmente vinculado ao ambiente; e “de uma condição imanente de caráter individual de natureza disposicional” (Id, 2013a, § 18).

“Todas as vezes que uma palavra estímulo toca em alguma coisa ligada ao complexo escondido, a consciência do eu é alterada ou mesmo substituída por uma resposta originária do referido complexo. É como se o complexo fosse um ser autônomo, capaz de perturbar as intenções do eu. Na realidade, os complexos se comportam como personalidade secundárias ou parciais, dotadas de vida espiritual autônoma” (Id., 2012, § 21).

A própria instituição do eu (ou Ego) é também um complexo, tornando-se a centralidade da psique consciente, que tem seu gérmen no período da primeira infância, e vai se estruturando à medida que o indivíduo amadurece.

“Ocorre certa mudança logo que a criança começa a desenvolver a consciência do próprio “eu”; o que fica documentado exteriormente, entre outras coisas, por começar ela a dizer “eu”. Normalmente ocorre essa mudança entre três e cinco anos de idade, mas pode dar-se também antes. A partir desse momento, podemos dizer que já existe uma psique individual” (Id., 2013d, § 107).

O Eu vem a se configurar como um fator complexo, com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam, constituindo-se como o centro do campo da consciência. Sendo ele o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa, não há conteúdo consciente que antes não se tenha apresentado ao sujeito (Id, 2013c).

Já outros complexos, provêm normalmente de certos acontecimentos ou impressões que causaram sofrimento ou dor (Id., 2013d). Eles são como centros de gravidade, que tendem a atrair a atenção da consciência quando sua atenção passa perto de sua órbita de significantes, memórias e afetos, influenciando seu funcionamento. Tal disposição se afigura como um céu estrelado, cheio de pontos que, no seu conjunto, formam a totalidade da psique. Não à toa, quando se está sobre a influência de um complexo, diz-se que este foi constelado.

“Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade. Esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria” (Id., 2013b, § 198).

Visto que o Eu é a centralidade da consciência, Jung (2013d) observa que verifica-se nela a atitude tendenciosa de evitar até mesmo a simples possibilidade de recordar-se de objetos aversivos, devida a razão convincente de que sua recordação é penosa e dolorosa. Isso causa um afastamento sistemático desses conteúdos do centro gravitacional do Eu, resvalando-os para fora da consciência, e logo, para o inconsciente.

É aqui que adentramos o reino do não observável, do desconhecido, do não-eu. No inconsciente pessoal, encontra-se todo o pano de fundo do funcionamento psíquico, todas as sólidas bases que estruturam a viabilidade da consciência. Além disso, é onde reside toda incompatibilidade que tornaria inviável a coesão da personalidade do eu. Todas as memórias traumáticas, potencialidades não exercidas e instintos primitivos residem aí, e estão em constante inter-relação com a consciência. Para mais informações, visitar o texto: O inconsciente na perspectiva junguiana

“O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência” (Id., 2014, § 103).

Referências:

JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. 14. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 99 p. (OC 8/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl Gustav. Aion – estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 383 p. (OC 9/2). Tradução de Dom Mateus Ramalho.

JUNG, Carl Gustav. Estudos experimentais. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995. (OC 2). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

JUNG, Carl G.. O desenvolvimento da Personalidade. 14. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 236 p. (OC 17). Tradução de Frei Valdemar do Amaral; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Editora Vozes Limitada, 2012.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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Abzû, um mergulho no inconsciente

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O mergulho

Tudo começa em um plano sequência, a câmera passeia pela superfície de um oceano cristalino e depois mergulha. Alguns cardumes de peixes são visíveis, de cores deslumbrantes e formas extravagantes, a água primeiramente clara quase como o céu vai tomando uma tonalidade azul marinha profunda e a as formas de vida ficando cada vez mais diversificadas e maiores; lulas, golfinhos, orcas. Por fim a água fica escura como o céu noturno, e aqui, apenas a luminescência das criaturas abissais ressalta aos olhos, em conjunto elas brilham como um céu estrelado. Então a câmera retorna a superfície, fitando um ser humanoide, boiando desacordado e com traje de mergulho.

 

Fonte: encurtador.com.br/cpF14

 

A aventura começa aqui em Abzû, um jogo indie em terceira pessoa produzido pelo estúdio 505 Games e lançado em 2 de agosto de 2016. O pano de fundo aqui é um oceano vasto e belo, você controla um personagem sem nome, que por conveniência textual será nomeado de Mergulhador. Ele começa sua aventura na superfície, sem memória, e sem conhecimento de causa de sua situação e vai entrando em contato com a natureza e ajudando a restaurar os ambientes à medida que passa por eles enquanto mergulha cada vez mais profundamente nesse oceano misterioso.

De maneira semelhante a outros jogos do gênero, em Abzû o jogador deve guiar o personagem em uma narrativa contada através de gestos, ações e de imagens simbólicas interpretativas. O Mergulhador logo descobre ruínas antigas submersas, estas que contêm desenhos semelhantes a hieróglifos e imagens com narrativas acerca do povo que as deixou, e também contém uma verdade simbólica bem nítida: a água e o ambiente marinho, além de suas criaturas mais majestosas eram venerados por aquele povo.

Fonte: encurtador.com.br/sAS37

 

A simbologia da Água

A ideia dos quatro elementos componentes da vida e do universo vem de diversas cosmogonias distintas. A concepção de um universo feito dos quatro elementos pode ser encontrada em praticamente todas as narrativas mitológicas ancestrais, onde de uma massa caótica ou um mar de caos, surgem os seres divinos responsáveis por reger cada um dos elementos (CHEVALIER, 2020). 

 

Fontes: encurtador.com.br/yKU47

 

O ponto principal na ambientação e estética do jogo é o oceano em que o Mergulhador está inserido. A vastidão das águas e das espécies de animais aquáticos contidas nele é absurda e a narrativa te leva sempre para baixo. Para o ponto mais profundo; passando por correntes marítimas nas profundezas que sempre o levam mais e mais profundamente e essa atitude tem metáforas muito claras na linguagem simbólica do inconsciente. No trecho a seguir, Carl Gustav Jung fala sobre a imagética da água no sonho de um de seus pacientes.

A mãe do paciente derrama água de uma bacia para outra. (Somente no 28° sonho o paciente se lembra de que essa bacia era da irmã.) Esta ação é realizada com a maior solenidade; seu significado é de importância para o mundo circunstante. Depois, o sonhador é rejeitado pelo pai. Defrontamo-nos aqui de novo com o tema da troca (v. sonho 1). Uma coisa é colocada em lugar de outra. O “pai” é eliminado e então começa a ação da “mãe”. Assim como o primeiro representa a consciência coletiva, o espírito tradicional, a mãe figura o inconsciente coletivo, a fonte da água da vida (JUNG, 2018, p. 79)

A analogia então se dá no mergulho, que indica profundeza, que se conecta com o Inconsciente Coletivo, a fonte da água da vida. Em linguagem alquímica, os sentimentos frios que inundam a psique para se contrapor o fogo quente da raiva, do ódio. No próprio ato do choro isso fica evidente, a maneira como uma pessoa parece estar se esvaziando e desaguando suas tristezas ao chorar. O conceito da água, de maneira simbólica, para os pesquisadores modernos segue praticamente inalterado.

A água, fonte e origem da vida, está ligada ao princípio feminino e materno. Nos mitos de criação ela está associada ao caos, ao estado amorfo do universo antes de existir. Segundo o catolicismo, a água é o veículo de expressão do Espírito Santo, motivo pelo qual ela é empregada no batismo. Há também um aspecto lúgubre para a água: ela abriga monstros e, em quantidade, provoca calamidades. Na psicologia do inconsciente, a água turva, escura, com as suas profundezas insondáveis, está ligada ao inconsciente (…). (FERNANDES, 2013, p.1139)

Dessa maneira, é simples observar a jornada do Mergulhador como uma busca por um reencontro, tanto com a natureza, à medida que ele ajuda os ecossistemas ao seu redor a se recomporem, quanto com os sentimentos e as memórias escondidas dentro de si. O fato de se encontrar desacordado e aparentar desconhecimento de tudo ao seu redor no início da aventura não vem sem propósito; além de um recurso de roteiro, para fazer o jogador descobrir as coisas juntamente ao protagonista, também representa essa necessidade do mesmo de mergulhar cada vez mais no desconhecido para reaprender e se reconectar consigo mesmo, e descobrir uma verdade que pode ser meio amarga quando revelada.

Fonte: https://imgur.com/ogsaykt

 

As Lições de Abzû

Na trama que decorre, é logo evidenciado que ali, em harmonia com os seres aquáticos e com a fauna e flora daquele ambiente, vivia uma sociedade pacífica. O Mergulhador logo descobre que ele é parte da calamidade que veio a destruir o balanço delicado daquele lugar, matando e destruindo tudo ao seu redor, pois sua natureza é a mesma das máquinas que encontrou ao longo de sua jornada.

Esses seres vieram e mudaram todo o balanço ecológico daquela região e caçaram os antigos seres marinhos que eram venerados pelo povo antigo. Ao longo da trama o Mergulhador se depara com um Tubarão Branco que o acompanha em sua jornada, primeiramente parecendo um antagonista, pois sua aparência é ameaçadora, mas logo mais se descobre que na verdade ele parece fugir do mesmo, pois reconhecia nele as máquinas que destruíram seu habitat.

 

Fonte: encurtador.com.br/gk235

 

O protagonista também aprende ao longo de sua jornada a desfazer o mal causado pelos antagonistas e a reestruturar biomas marinhos inteiros, deixando a cargo do jogar imaginar a origem dessas habilidades. Seria ele um catalogador de vida marinha arrependido? Um androide que se rebelou? As perguntas são várias e são deixadas em aberto, mantendo um mistério charmoso na história.

O Tubarão branco e o antagonismo entre eles, alegoriza bem a relação da natureza em sua forma mais grandiosa e agressiva – os tubarões brancos estão entre os maiores predadores dos Oceanos – que foge de medo do ser humano, pois ao colocar em outra perspectiva é o jogador que persegue o Tubarão o jogo inteiro.

 

Fonte: encurtador.com.br/bhqQX

 

Na trama do jogo fica claro além de um paralelo com o inconsciente no simbolismo do mergulho a metáfora da jornada do protagonista restabelecendo a vida como um contraponto a destruição ambiental causada pelo ser humano nos oceanos. Chega a ser tocante notar que uma máquina precisa descer às profundezas do inconsciente para se reconectar com suas emoções e desfazer uma destruição catastrófica e milenar, enquanto a humanidade segue sentada em suas poltronas enquanto os oceanos são destruídos; juntamente a os outros biomas. 

Fonte: encurtador.com.br/nyAR8

 

Referências

CHEVALIER, Jean et al.. Dicionário de símbolos. Editora José Olympio; 35ª edição. 2020.

FERNANDES, Ermelinda Ganem; DE SÁ, José Felipe Rodriguez; GANSOHR, Matheus. Aterradora transcendência? Uma análise simbólica do Bafomé de Éliphas Lévi. Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 11, n. 31, p. 1129-1149, 2013.

JUNG, Carl G. Psicologia e alquimia vol. 12. Editora Vozes Limitada, 2018.

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Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”

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“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano

Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.

Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.

(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?

Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.

Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.

Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.

Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.

Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?

Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.

Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.

O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.

Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.

Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.

Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: encurtador.com.br/adlG6

(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?

Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.

(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?

Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.

A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.

(En)Cena –  Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?

Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.

É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.

Fonte: encurtador.com.br/xCIN3

(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?

Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.

(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?

Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.

O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.

(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?

Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.

É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.

(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud  – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?

Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.

Fonte: encurtador.com.br/frvAI

(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?

Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e  assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.

(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…

Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.

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Musicoterapia e Psicanálise: conceito e aproximações

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A musicoterapia se respalda no uso científico da música de forma sistemática por um profissional qualificado e de um modo geral, objetiva por meio da música, “participar e interagir com o paciente” em atividades tanto grupais quanto individuais (QUEIROZ, 2013, p. 1535). Por sua importância e eficácia, é interessante realizar o esclarecimento de seu conceito e suas aproximações da abordagem psicológica psicanalítica, amplamente utilizada entre os profissionais clínicos da atualidade.

Ao dialogar sobre os fundamentos epistemológicos da musicoterapia, Ulkowski, Cunha e Pinheiro (2019) revisitam a história dessa prática que está presente na sociedade desde a antiguidade, sendo utilizada para fins terapêuticos. As autoras colocam que uma das principais características que diferem as práticas musicoterápicas realizadas antigamente para as que se fazem presentes nos últimos 50 anos, é a preocupação que atualmente se tem em relação a sua cientificidade, tendo em visto que o uso da música e seus efeitos na antiguidade tinha um cunho mais religioso e filosófico, como por exemplo, sua utilização para espantar maus espíritos em práticas mágicas antigas.

Foi no final do século XVIII e início do século XIX que as primeiras dissertações médicas sobre o uso da música no contexto terapêutico aconteceram, dando início a uma mudança no discurso que embasava sua prática. Percebe-se que a musicoterapia é uma área que desenvolveu-se primeiro pela prática para depois passar pelo processo de fundamentação (ULKOWSKI; CUNHA; PINHEIRO, 2019). Esse processo pode ter culminado no que Cunha (2018) vem chamar de interdisciplinaridade ou a hibridez da construção teórica musicoterapêutica, tendo em vista que essa é uma prática que perpassa diversos saberes e áreas (por exemplo, artes e saúde). Apesar desse pluralismo teórico, a autora fala sobre a necessidade de bases conceituais que “iluminem as interpretações, que levem a metodologias e resultados de estudos, que facilitem as discussões e construções explicativas. São elas que oferecem fundamentos para o entendimento de realidades” (ibid. p. 26).

Fonte: encurtador.com.br/dxyBL

Quando se fala sobre a fundamentação da musicoterapia no Brasil, Ulkowski, Cunha e Pinheiro (2019) relembram as atuações pioneiras na década de 1960 com Cecília Conde, Gabrielly de Souza Silva e Dóris de Carvalho sucedidas pelos primeiros cursos e palestras com enfoque científico em solo brasileiro. Outro importante nome foi a da educadora musical Clotilde Espínola Leinig que implantou a Especialização Lato Sensu em Musicoterapia, na Faculdade de Educação Musical do Paraná, e mostra como conceitos psicanalíticos estiveram presentes na fundamentação da musicoterapia no Brasil, tendo em vista que os livros do médico e psicanalista Rolando Benenzon (responsável pelo Modelo Benenzon de Musicoterapia, hoje conhecido como Terapia Não-Verbal) foram utilizados na implementação do curso.

Todo esse processo colaborou para que a prática da musicoterapia fosse reconhecida como uma atividade clínica regulamentada não somente no Brasil, como em diversos outros países. Formação reconhecida pelo MEC, o musicoterapeuta pode atuar nas áreas da saúde, educação, social/comunitária, entre outros, sempre estabelecendo um plano de cuidado que proporcione a promoção, prevenção e/ou reabilitação da saúde do sujeito, individualmente ou enquanto grupos (UNIÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE MUSICOTERAPIA, 2018). De acordo com a Federação Mundial de Musicoterapia (1996, p. 4):

Musicoterapia é a utilização da música e/ou seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia) por um musicoterapeuta qualificado, com um cliente ou grupo, num processo para facilitar, e promover a comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas. A Musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer funções do indivíduo para que ele/ela possa alcançar uma melhor integração intra e/ou interpessoal e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida, pela prevenção, reabilitação ou tratamento.

Fonte: encurtador.com.br/lsx05

Em outras palavras, a musicoterapia pode ser utilizada como um processo de intervenção terapêutica, a partir das experiências sonoras que tocam os sentidos do corpo como um todo. Trata-se de um fenômeno criativo que mobiliza o organismo a agir, por meio de ritmos/melodias e também a comunicar-se de forma não-verbal. Pois, entende-se que muitos indivíduos portadores de deficiência possuem limitações na fala, prejudicando a fluidez da comunicação verbal (SANTOS; ZANINI; ESPERIDIÃO, 2015).

Neste sentido, esses autores revelam que a música é um experimento que pode promover auto reflexão, conscientização e exteriorização de conteúdos inconscientes. Com isso, a relação cliente-terapeuta-música pode co-construir aspectos benéficos no desenvolvimento terapêutico.

Na busca por promover um diálogo entre a musicoterapia e a psicanálise, Ulkowski, Cunha e Pinheiro (2019) refletem sobre a importância de se ter uma teoria na qual a prática musicoterápica pudesse se amparar. Além disso, essas interlocuções ampliam o exercício da psicanálise para outros modos de atuação do terapeuta, como em situações de pessoas que apresentam “doenças regressivas”, por exemplo.

Fonte: encurtador.com.br/atL27

Even Ruud, em sua obra Caminhos da Musicoterapia (1990), apresenta a ideia de que a atividade musical tem sua origem nas primeiras etapas da vida do indivíduo, ainda quando o bebê ainda não consegue discernir os limites entre o eu e a realidade, nos primeiros períodos narcísicos da organização psicológica do ego da criança. Ulkowski, Cunha e Pinheiro (2019), ao resgatar trabalhos como os de Christine Lecourt (2011), expressam a relevância das experiências sonoras até mesmo na vida pré-natal, e como esta influência no desenvolvimento verbal e musical do indivíduo.

Retomando Ruud (1900), a autora discorre sobre como conteúdos do nosso inconsciente, como impulsos e desejos, podem ser transformados em arte, afinal tais conteúdos possuem uma carga libidinal. Tanto a atividade musical criativa quanto a passiva, exercem uma gratificação libidinal no sujeito, se analisado através da teoria da libido. Além disso, ela fala como “os elementos da música tais como ritmo, melodia, harmonia e modos também parece ter um significado psicodinâmico específico” tendo em vista que “a repetição rítmica e ênfase rítmica são meios de descarga; o ritmo estável conduz a um alívio gradativo da tensão sexual” (ibid, p. 37).

A música como destino pulsional de conteúdos inconscientes por meio da sublimação, devido ao fato desta expressão ser mais aceita socialmente, também é um assunto comentado pelas autoras Ulkowski, Cunha e Pinheiro (2019), que falam sobre como a musicoterapia atua como facilitadora desse processo. Além disso, essa prática orientada pela teoria psicanalítica também diz sobre a similaridade entre a música (tal como se apresenta) e o processo primário do sujeito (se refere ao ponto de vista topológico, que seriam os elementos do inconsciente, e ao ponto de vista dinâmico, que se refere ao escoamento da energia psíquica de uma representação para a outra), bem como a escuta transferencial e o seu manejo.

Fonte: encurtador.com.br/rty59

No que se refere aos processos facilitadores da musicoterapia para a expressão de conteúdos, desejos, impulsos inconscientes, Ruud (1990) retoma os trabalhos de Wright e Priestley (1972) para falar sobre como a música pode ser um instrumento para que o indivíduo mergulhe em si mesmo, podendo alcançar o inconsciente e trazer aspectos de si mesmo como sentimentos, memórias, complexos, antes encobertos, para a consciência.  A  autora assinala que: “a música é considerada equivalente ao conteúdo manifesto do sonho e pode ser analisada e compreendida pelas mesmas técnicas que são aplicadas na interpretação do sonho e do chiste” (RUUD, 1990, p. 38). Isso porque tais conteúdos manifestados através da música conseguem burlar a censura da consciência e dar-se com menor resistência (WHEELER, 1981).

As formas de estabelecer essa ponte são infinitas: desde deixar o paciente tocar livremente um instrumento ou escolher uma música. É fato que esse processo de percepção interna, propiciada através da música, o leva ao objetivo maior que é integrar esses elementos, agora conscientizados, em sua psiquê. Trata-se de tornar consciente aquilo que estava fora de alcance, no inconsciente. Elaborar esses elementos e integrá-los. Isso leva o indivíduo a viver de forma mais satisfatória e saudável. E isso porque todo esse processo favorece também a resolução de conflitos, aumento da autoaceitação, trabalha novas técnicas para enfrentar os problemas e fortalece a estrutura do ego do sujeito (RUUD, 1990).

Christine Lecourt (1996), já citada neste artigo, é uma pesquisadora francesa, e em seu trabalho com Lapoujade (1996) discorreu sobre como a musicoterapia contribui também em outros sentidos. Elas descrevem como ela atua na compreensão da experiência musical do indivíduo, verificando possíveis presenças de psicopatologias ligadas ao som, assim como transtornos mentais. Alguns exemplos são a hiperestesia de som, diferentes níveis de surdez, alucinações, entre outros.

Fonte: encurtador.com.br/hvyT4

Outra importante profissional na área fala sobre como a música pode ser usada também na musicoterapeuta, como forma de lidar com impasses na própria prática. Márcia Cirigliano, em A Canção Âncora (2004), declara que em situações de impasse ou impotência com o seu paciente, tendo dificuldades para interagir com ele, o musicoterapeuta pode utilizar uma canção como recurso para se apoiar nela, e a partir dela estabelecer uma interação mais segura com o seu paciente. Isto é, a música não tem funcionalidade apenas para o paciente, mas também para o terapeuta que pode se ancorar nela.

Para Benenzon (2011), a música viabiliza a possibilidade de uma comunicação entre inconscientes (do musicoterapeuta para com o paciente e vice-versa), sem precisar atravessar o pré-consciente e o consciente. É isso o que ele vem chamar de contexto não-verbal. Essa ideia corrobora com a afirmação de Wheeler (1981) sobre o poder da música de burlar as censuras. Assim, para Benenzon (2011), o objetivo principal da musicoterapia é viabilizar canais de comunicação com o paciente.

Desta forma, percebe-se como o trabalho da música está para além de uma simples forma da energia básica e desejos latentes se expressarem. O ego utiliza da música (tendo em vista que é uma atividade iniciada por ele para atingir diversos objetivos) para levar-se a gratificação das necessidades particulares, como defesa contra forças diversas, para realizar funções sintetizadoras e/ou integrativas, e etc (RUUD, 1990). Assim, fica claro como a música tem um papel significativo no desenvolvimento dos seres humanos.

REFERÊNCIAS

BENENZON, Rolando. Musicoterapia: de la teoría a la práctica. 1ª edição. Madrid: Paidós, 2011.

CIRIGLIANO, Márcia. A Canção Âncora. In Revista Brasileira de Musicoterapia. ano IX, n. 7, 2004. Disponível em: http://www.revistademusicoterapia.mus.br/wp-content/uploads/2016/11/5-A-Can%C3%A7%C3%A3o-%C3%82ncora.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2020.

CUNHA, R. Conceituação em musicoterapia: temos fundamentos universais? In Anais do XIX Fórum Paranaense de Musicoterapia e III Simpósio Paranaense de Pesquisa em Musicoterapia. n. 19, p. 25-32, 2018.

LAPOUJADE, Christine; LECOURT, Edith. A Pesquisa Francesa em Musicoterapia. In Revista Brasileira de Musicoterapia. ano I, n. 1, 1996. Disponível em: http://www.revistademusicoterapia.mus.br/wp-content/uploads/2016/12/2-A-Pesquisa-Francesa-em-Musicoterapia.pdf. Acesso em: 21 de setembro de 2020.

QUEIROZ, Isabela Cristina Sousa. O autismo: aspectos gerais e um breve relato de experiência. In: CONGRESSO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 21., 2013, Pirenópolis-­go. Anais […]. João Pesso: Editora da Ufpb, 2013. p. 1530-1541. Disponível em:

ULKOWSKI, Iara Del Padre Iarema; DOS SANTOS CUNHA, Rosemyriam Ribeiro; PINHEIRO, Nadja Nara Barbosa. Da musicoterapia à musicoterapia orientada pela teoria psicanalítica: fundamentos epistemológicos. Revista InCantare, v. 10, n. 1, 2020.

UNIÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE MUSICOTERAPIA. Definição Brasileira de Musicoterapia. 2018. Disponível em: http://ubammusicoterapia.com.br/definicao-brasileira-de-musicoterapia/. Acesso em: 16 nov. 2020.

UNIÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE MUSICOTERAPIA. Revista Brasileira de Musicoterapia, p. 4, 1996.

RUUD, Even. Caminhos da Musicoterapia. São Paulo: Summus, 1990.

SANTOS; Elvira Alves dos, ZANINI; Claudia Regina de Oliveira, ESPERIDIÃO; Elizabeth. Cuidando de quem cuida: uma revisão integrativa sobre a musicoterapia como possibilidade terapêutica no cuidado ao cuidador. Revista Música Hodie. V. 15, N.2, P.273. Goiânia, 2015. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/musica/article/download/39740/20296. Acesso em 22 de setembro de 2020.

WHEELER, B. The relationship between music therapy and theories of psychotehrapy. In Music Therapy. v. 1, issue. 1, p. 9-16, 1981. Disponível em: https://academic.oup. com/musictherapy/article/1/1/9/2757052. Acesso em: 22 de setembro de 2020.

 

 

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“O farol” e a fragmentação de uma personalidade

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor Fotografia

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar.

O filme O farol (The lighthouse) conta uma história de Ephraim, que é levado a uma ilha para substituir o ajudante do faroleiro Thomas, em atividades diárias. Sendo que o acesso ao farol fica vetado a Ephraim e isso acaba despertando nele uma enorme curiosidade. O filme foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Fotografia e carrega em si muitos símbolos e referências à mitologia grega.

O longa é uma linha tênue entre a realidade e a loucura, e fica em aberto para a imaginação de quem assiste. Ambos os personagens dividem o espaço da ilha, onde no início Ephraim é submisso a Thomas em uma tentativa de agradar e/ou conquistá-lo, e acaba desempenhando as funções mais pesadas. Mas com o passar do tempo essa relação se torna uma disputa de poder tendo o farol como objeto de disputa. Este símbolo na visão lacaniana é um objeto fálico, e o psicanalista francês (1999) lembra que na antiga Grécia, o falo não tinha um formato do órgão, mas tinha uma representação de desejo e poder.

No início do filme Ephraim tem uma função semelhante ao do Superego, que conforme Freud (1976) atua como um juiz, um órgão psíquico da repressão, particularmente da repressão sexual. Dessa forma, ele estabelece uma censura nos impulsos que a sociedade e a cultura interpretam como errado, impossibilitando o sujeito de se satisfazer plenamente. Então agindo de tal forma ele segue à risca o código do faroleiro, se nega a dar vazão aos seus desejos reprimidos e acaba em seus devaneios.

Já Thomas pode ser encarado como o ID, que no mesmo texto Freud afirma ter a função de descarregar as tensões biológicas e é regido pelo princípio do prazer. Nesse sentido, Thomas afirma ser o próprio código do faroleiro e que as regras que segue são as suas, dando asas aos seus desejos e pulsões, onde faz um grande consumo de bebida alcoólica e nega o acesso ao farol para o seu novo ajudante.

Além de suprimirem seus passados, os dois personagens parecem fugir o tempo todo de quem são, acabam buscando algum tipo de conforto na relação que estabelecem ali na ilha, porém ocorre o contrário, ambos começam a ter um contato com tudo àquilo que estavam negando. Em uma entrevista no site Huffpostbrasil, o diretor Robert Eggers fala sobre um homoerotismo presente no filme e que fica mais evidente na cena da dança, na qual termina em socos, como se em mais de um momento eles negassem seus desejos.

Fonte: encurtador.com.br/ghmL3

Devido a isso, desde o início o filme apresenta uma relação de dominação em que Thomas se refere a Ephraim como cachorro, mas existe um medo de ambas as partes de chegarem a quem são de verdade. Enquanto Thomas tem o prazer de enlouquecer e parece ser culpado pela morte do antigo ajudante, Ephraim diz que era lenhador e está ali fugindo de um acidente de trabalho que mais parece ter sido um assassinato, tanto que está presente em seus devaneios a presença desse colega.

O filme, por ser em preto e branco, luz e sombra, também é a representação de que nenhum indivíduo é totalmente bom ou ruim. Assim como aponta Jung (2011), a sombra é um problema de origem moral e tomar consciência dessa sombra é reconhecer aspectos obscuros da personalidade. Por isso o personagem de Pattinson fica obcecado em alcançar essa luz do farol, que poderia vir a iluminar seus aspectos sombrios que o acompanham desde o início do filme.

Fonte: encurtador.com.br/mtCD1

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar e acabam imergindo em algo que sai do controle. Assim, as defesas do Ego são rompidas aos poucos diante das provocações de um com o outro. Fora que anteriormente ele sonha que entra na água em meio a toras de madeira enquanto mantém fixo o olhar em um corpo que flutua. E é a partir desse momento, no qual o barco não vem buscá-lo, que ele rompe de vez com a realidade, onde no filme parece ser justificado pela bebedeira incessante com Thomas.

Outro momento intrigante do filme é quando Ephraim revela que seu nome também é Thomas, num jogo de projeções de mal entendidos. Isso ocorre, em certa medida, porque as personas (JUNG, 2011) vão sendo deslocadas, e determinadas atuações, sobretudo de Ephraim, começam a colapsar, numa clara demonstração, no decorrer do filme, de fragmentação da personalidade.

O filme apresenta muitas outras coisas a se analisar, como a cena em que Ephraim mata Thomas com um machado, assim como provavelmente ele pode ter matado seu ex-colega de trabalho. Podemos pensar na ilha e em todos os integrantes, inclusive os pássaros, também como parte de uma personalidade fragmentada. Isto tudo em meio a uma pessoa em busca de uma iluminação acerca de seus medos e incertezas, movimento metafórico quando, no longa, Ephraim abre o farol e é tomado por aquela luz. Uma luz que é sedutora, redentora… mas, também, perturbadora. Como o próprio filme!

FICHA TÉCNICA:

O FAROL

Título Original: The Lighthouse
Direção: Robert Eggers
Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe e Valeriia Karaman;
Gênero: Drama, Fantasia e Terror
País: EUA
 Ano: 2019

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREUD S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976.

JACOBS, Matthew. Decodificando o homoerotismo em ‘O Farol’. 2019. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/o-farol_br_5db72026e4b006d49172e589>. Acesso em: 21 jan. 2020.

LACAN J. (1999) O Seminário 5 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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Livro brinca com o imaginário e o inconsciente do leitor

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Transportar o leitor a um estágio de êxtase poético a partir de imagens enigmáticas, inusitadas e inebriantes. Essa é a proposta do livro “40 Poemas”, da poeta Alexandra Vieira de Almeida, relançado pela editora Penalux. A obra traz textos mais herméticos e oníricos, que trafegam pelo imaginário e o inconsciente.

Por considerar a leitura como uma experiência arrebatadora que leva as pessoas aos mistérios do ser e do mundo, Alexandra faz questão de enfatizar essas características em sua obra com um conteúdo poético muito rico e extenso que brinca o tempo todo com a imaginação do público. “Meus poemas são caudalosos, transbordantes, como um rio que corre de forma vertiginosa. Quero embriagar o leitor com doses de vinhos num estado de sonho e fabulação”.

Segundo a autora, o trabalho recebeu grande influência de importantes épocas da literatura, como o Simbolismo e o Surrealismo. “As maiores inspirações vieram dos poetas Rimbaud e Murilo Mendes”.

Fonte: Divulgação

Ela comenta ainda que a poesia favorita é o “O pescador e o mar”, que consta na quarta-capa do livro. “É um dos poemas que minha mãe mais gosta. Mostra toda a relação do pescador com aquilo que o rodeia em sua atividade na água”.

Para o Doutor em Literatura Comparada pela UERJ Marcelo dos Santos, os poemas da obra de Alexandra são “ruídos de uma experiência que transita entre o sonho e o rito”. Segundo Santos, os textos levam o público para uma espécie de experiência que une sonhos e devaneios, ritualizando os versos como imagens malabaristas que introduzem os momentos de beleza como no estágio originário do mito.

Fonte: Divulgação

Sobre a autora

Nascida e criada no Rio de Janeiro, Alexandra Vieira de Almeida é professora, poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta, além de ser Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Já publicou cinco livros de poesia adulta, sendo o primeiro “40 poemas” e o mais recente “A serenidade do zero”. Também tem um livro ensaístico, “Literatura, mito e identidade nacional” (2008), e um infantil, para crianças de 6 a 10 anos, “Xandrinha em: o jardim aberto” (Penalux, 2017).

 

Ficha técnica:

Título: Livro “40 Poemas”

Editora: Penalux

Tamanho: 18 cm

Páginas: 78

Preço: 36,00

Link para comprar. 

Site pessoal.

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