Considerações sobre a avaliação psicológica em serviços públicos de Saúde Mental

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“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas,
mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”

Carl Gustav Jung

Muito se tem falado sobre a importância de se fazer uma avaliação psicológica de qualidade, que não limite o cliente em um diagnóstico fechado, mas que trate de um estado de ser, compreendendo que o homem em sua totalidade (biopsicossocial e espiritual) é mutável.

Esse movimento, em busca de um olhar mais reflexivo na saúde mental não é, nem nunca foi exclusivo da psicologia. No Brasil, esse movimento ganhou força principalmente com o movimento sanitarista, ainda na década de 1980. Entre outras medidas, o movimento buscava uma visão holística e mais humanizada para o sofrimento mental, rompendo com a lógica estigmatizante e segregadora que a medicina – aqui mais especificamente a psiquiatria – cunhava sobre a loucura até aquele momento.

Em resposta positiva a esses movimentos de resistência, instauram-se no país as políticas antimanicomiais e de assistência em saúde mental.  Partindo de uma lógica biopsicossocial, são criados e instituídos, após a reforma sanitarista, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Estes serviços nascem como um enfrentamento ao modelo de tratamento dos manicômios, visando à inclusão social dos usuários do serviço de saúde mental, com o desafio de provocar na sociedade a quebra de paradigmas referentes à loucura e ao sofrimento mental, que dura até hoje.

A luta não é nova, e estes movimentos tem uma longa história de resistência ao modelo de tratamento psiquiátrico. Contudo, o que se vê na atualidade, é a equipe multiprofissional dos CAPS’s (ou boa parte deles) está totalmente dependente e vinculada ao saber médico, sem nenhuma autonomia. Claro, por uma série de razões, talvez – e principalmente – pelo fato de a própria equipe não conseguir trabalhar articulada com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), seguindo um modelo linear.

Ao optar por um modelo hierarquizado, eles acabam elegendo automaticamente o médico como o nível mais alto dessa pirâmide, sem nem se questionar o motivo. Essa medida é contrária ao o movimento sanitarista buscava no seu princípio na instituição das politicas públicas de saúde no Brasil.

Hoje, os CAPS’s, como estratégia interventiva implantada, enfrentam o desafio de promover a reinserção social de seus usuários. E, se isso não acontece, é porque o trabalho social está deixando a desejar. Sobre esse tópico, existem diversas teorias e posicionamentos, tanto contra quanto a favor dos Centros. Entretanto, um ponto é consenso geral: Não é a comunidade quem não está pronta para lidar com os usuários de serviços de saúde mental, mas o próprio serviço que se fecha para a comunidade impedindo essa comunicação, função para a qual ele (o serviço) fora instituído. A situação se agrava ao se constatar que a própria família destes usuários não tem a assistência e/ou orientação devida. Claro, há exceções.

A psicologia, nesse contexto, encontra-se em um dilema: dar conta da alta demanda dos CAPS’s, traçando um Plano Terapêutico Singular (PTS), mas que – ao mesmo tempo – contemple de forma coletiva a todos os usuários do serviço.

Um dos principais desafios dos técnicos do serviço é trabalhar com um diagnóstico muitas vezes mal elaborado e feito há décadas atrás. O profissional acaba deixando de lado o que já é sabido por todos: o ser humano é mutável! Não se trata de desvalorizar a vida pregressa do usuário, mas sim, de buscar novas formas de reabilitação e ressignificação do sofrimento para o sujeito dentro do seu contexto atual.

O que se pretende aqui, não é desconsiderar o diagnóstico médico, nem menosprezar o saber das outras ciências, mas, considerando que a avaliação psicológica é um processo contínuo (CUNHA, 2000), o psicólogo deve se atentar para o fato que a atenção àquele usuário também sofrerá mudanças, inerentes à sua permanência (ou não) dentro do serviço.

A avaliação psicológica, portanto, diz do processo de SER humano assim bem como da qualidade do estabelecimento de suas relações (consigo e com o meio). Ao se construir, de forma interdisciplinar, o PTS de um usuário, deve-se considerar que o sujeito, ao longo do seu desenvolvimento, passa por constantes transformações de ordem biológica, psicológica, social etc.

Dentro dos serviços de saúde mental, o mais comum é que o diagnóstico inicial seja o responsável pelo modo de tratamento do cliente por toda sua trajetória dentro da RAPS. Esse diagnóstico torna-se para o cliente o seu cartão de boas vindas, e muitas vezes seu único meio de relacionar com a equipe de saúde (e vice-versa). Toda e qualquer ação deste passa a ser justificada pelo diagnóstico.

Ao utilizar a rede, ele carrega consigo um rótulo que precede sua própria chegada ao serviço, um quadro de sinais e sintomas para com o qual o profissional é, desde a vida acadêmica, preparado para lidar. E a partir daquele laudo, toda e qualquer ação do cliente é entendida e justificada pelo seu diagnóstico. Os perigos dessa prática institucionalizada está na não ressocialização do sujeito, e na segregação do saber.

Como resultado dessa prática – muito comum – a própria família do usuário, que não sabe lidar com aquele diagnóstico, pela falta de orientação, acaba tomando medidas desesperadas, desumanas. Por vezes,chegando a colocar osujeito que está emsofrimento mental sobre cárcere privado, ou até mesmo acorrentado. Nessas medidas drásticas, e desumanas, a família pensa estar fazendo o melhor para seu ente, privando este do convívio social efamiliar. É consenso comum de que esta é uma prática errada, reprovável e criminosa, mas a família pensa estar fazendo o melhor para o sujeito, defendendo que é por amor.

Medidas diferenciadas, tanto na avaliação psicológica como noenfrentamento e na reinserção social dos portadores de transtorno devem nascer ainda na formação acadêmica dos profissionais que atuarão na saúde mental. Outra medida eficaz pode ser uma especialização na área, preconizando atendimento e atenção tanto aos usuários dos serviços como a seus familiares.

Todavia, o profissional deve ter o mínimo de interesse em atuar nessa área e com esse público particular. Uma formação específica, com desejo de realmente executar essa função, pode ser o diferencial na atenção e na promoção de saúde mental.

Referência:

CUNHA, Jurema Alcides. Psicodiagnóstico-V. Porto Alegre: Artmed, 2000.

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O uso de tecnologias psicossociais na atenção à crise

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O (En)Cena conversou com a Psicóloga Marinês Santos de Oliveira (CRP03/06586), sobre o Programa de Atenção Domiciliar a Crises de Pacientes Psicóticos Graves (PADAC), uma estratégia em Saúde Mental implantada em Salvador – BA que compreende três eixos principais: saúde mental, atenção domiciliar e pacientes psicóticos graves.

Foto: Arquivo Pessoal

O projeto que visa capacitar os alunos de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) a lidar com a saúde mental pautando-se nos princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, é resultado do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental (LEV) em parceria com o Centro de Atenção Psicossocial Osvaldo Camargo em Salvador – BA.

(En)Cena – Olá, relata para nós como nasceu o PADAC?

Marinês Oliveira –. O PADAC começou em agosto de 2008, concebido como projeto de estágio docente-assistencial, coordenado pelo psicólogo e professor Marcus Vinicius de Oliveira Silva, da Universidade Federal da Bahia, junto ao Centro de Atenção Psicossocial Oswaldo Camargo. Um projeto que tem tudo a ver com os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, uma vez que ele dialoga com os princípios e diretrizes do SUS.  Sabemos que a crise é um momento delicado para o paciente, para a família, que se torna complexa também para muitos serviços. Neste contexto é pensado o Programa de Atenção Domiciliar à Crise (PADAC).

(En)Cena – Quando foi o início do projeto?

Marinês Oliveira – Na verdade, o PADAC, é posterior a um outro projeto docente-assistencial, também coordenado pelo professor Marcus: o Programa de Intensificação de Cuidados (PIC), que funcionou entre 2004 e 2008, vinculado a um dos hospitais psiquiátricos da rede estadual em Salvador, com 40 leitos e serviços de emergência e atendimento ambulatorial. Na época, o município ainda não contava com a rede de CAPS. O PIC teve duração de quatro anos e meio, capacitando ao todo 115 estagiários, para o trabalho em saúde mental, utilizando o domicilio, o acompanhamento terapêutico, a oferta de suporte psicossocial as famílias como tecnologias de cuidado. Deste modo, 37 pacientes com históricos de repetidas internações, com uma carreira manicomial cronificada, após este período tornaram-se estabilizados, com vínculos mais fortalecidos e uma rede de cuidado mais ampla através do matriciamento, melhorando significativamente a qualidade de vida destes sujeitos. Após o término do PIC, o PADAC é apresentado, agora em parceria com um serviço substitutivo, todavia pautado também em um ponto nevrálgico e de grande desafio da rede de saúde mental: a crise. Tem suas atividades finalizadas em agosto de 2013.

(En)Cena – Em Salvador há muitos casos como este?

Marinês Oliveira –  Em Salvador, o cuidado ampliado em saúde mental ainda está em construção. Todavia, percebe-se que a cultura da internação, a cultura manicomial ainda é forte. Tínhamos uma quantidade significativa de hospitais psiquiátricos que foram fechados sem pensar na construção da rede substitutiva de cuidado a estes sujeitos, com o destino desses internos, muito menos com suas famílias. E, neste contexto, a família é um ponto também importante que precisamos problematizar. Ao longo da história da loucura sempre esteve afastada do cuidado desse sujeito. Outrora, ela foi vista como a gênese da doença mental. De repente, vem uma reforma, que propõe: “A partir de agora a família também vai cuidar desse sujeito”. Sim, mas há algum tempo atrás a família não era afastada? Quais são os dispositivos que essa família tem agora para cuidar desse sujeito?

(En)Cena – O estado, se eximindo do seu papel, quis depositar na família toda a responsabilidade para com o cuidado com o sujeito em sofrimento mental?

Marinês Oliveira – Neste ponto a família é colocada em dois polos: ou ela “é culpada e responsável por esse sujeito, ou ela é culpada e irresponsável”, como aponta algumas discussões neste campo. Outra questão que tem se apresentado como problematizadora é a sobrecarga familiar. É interessante como as reuniões familiares e o termo família sobrecarregada estão bem presentes nos serviços E a gente pensa: não é quenão possuam importante lugar, todaviase a família sofre, cansa, é preciso problematizar qual é a oferta de cuidado que está sendo oferecido a ela. Quais são os dispositivos de cuidado que a reforma psiquiátrica dispões aos familiares? Quais os lugares e dispositivos de cuidados ofertados e direcionados as famílias nos serviços? Por outro lado, ainda há de se pensar que quando eu só digo, e repito, e carrego o tempo todo este jargão da família sobrecarregada,como fica o sujeito portador de transtorno mental que compõe este núcleo, que faz esta escuta de sobrecarga neste contexto, que é apontado na família como o que produz um “peso” seja emocional, financeiro ou físico?

(En)Cena – Os Serviços de Atenção Psicossocial de hoje também estão sobrecarregados?

Marinês Oliveira – Ainda temos uma rede escassa, fragilizada e, muitas vezes, mal gerida. A gente precisa pensar como essa rede está sendo criada e, principalmente, fortalecida. Como esta rede se articula com outras redes, com os campos de convivência e de existência destes usuários. Quais as verdadeiras histórias destes sujeitos, que com certeza fogem as que estão nos prontuários.Que história é essa de ela ser substitutiva, e mesmo assim, produzir modelos de atenção institucionalizado, de continuar fora da comunidade, do território. A gente produziu instituições de cuidado substitutivo e desinstitucionalizante, mas ela ainda manda o usuário em crise para o hospital. Ela ainda gera horários e lógicas das instituições totais. Não estou generalizando, mas estou fazendo uns recortes do que desponta de ruim, das mazelas de cuidado no campo da atenção psicossocial.

(En)Cena – A medicação entra como estratégia de intervenção? Você concorda com o uso de medicamentos no atendimento à crise?

Marinês Oliveira –  Não dá para falarmos com “ingenuidade”. Quando se fala em crise, a gente pensa só os sintomas e aí, pensa-se logo em medicar. Mas se compreendermos a crise como uma dificuldade da relação do sujeito com o mundo, e até consigo mesmo, a medicação vai entrar em outro contraponto, como estratégia para diminuir os sintomas, a ansiedade, a angústia, a “voz que eu não estou suportando ouvir” etc, a medicação tem sua importância, o excesso dela que não! Agora, cuidar da crise não é somente a supressão do sintoma, é muito além. É pensar nos vínculos, na qualidade de vida do sujeito, nas suas contratualidades sociais…

(En)Cena – O PADAC busca essa compreensão da crise, como algo relacional?

Marinês Oliveira – Sim. O projeto pensa a crise como fator relacional, para pensar na questão do suporte psicossocial eno modo como o profissional vai mediar essas relações. É preciso ver a questão do cuidado, do apoio, dos aspectos sociais desse sujeito… Nosso projeto surge nesse cenário.

 (En)Cena – Como era desenvolvido o trabalho dentro do CAPS?

Marinês Oliveira – Fizemos busca ativa de alguns casos. Alguns deles estavam realmente em crise e, quando ele está em crise, geralmente o sujeito se afasta do convívio social e do CAPS. Aqui precisamos contextualizar dois tipos de crise: a do sujeito para fora, gritando, esbravejando. E, a crise para dentro, aquela na qual o sujeito se isola do mundo, e fica recluso, em silêncio. Outra frente de atuação no Programa eram as tardes de supervisão, com estudos dirigidos e reuniões com a equipe do CAPS. Quando o sujeito então sai da crise era matriciado novamente no CAPS ou em outro dispositivo de cuidado da rede.

(En)Cena – Como era feito esse acompanhamento terapêutico do sujeito em crise?

Marinês Oliveira – O sujeito era encaminhado aos estagiários pela equipe do CAPS, no momento da reunião técnica, no qual frequentávamos também para a discussão dos casos. Entravámos em contato com a família e marcávamos o atendimento domiciliar. A partir deste momento, em dupla, o trabalho da construção do vínculo, da oferta do suporte psicossocial a família, da intensificação do cuidado, da escuta qualificada e da presença orientada adentrava a casa dos sujeitos e seu entorno social. O domicilio como tecnologia de cuidado. Todavia, isto significava, muitas vezes, uma visita, duas, três por semana a depender da demanda, ou, toda semana, por muitos meses para o sujeito querer apenas nos ver ou nos deixar chegar na porta, na sala. Um exercício de delicadeza diário, de sutileza. Sem contar as grandes vulnerabilidades sociais existentes nos bairros, nas casas, que muitos residiam.

(En)Cena – Esse processo de acompanhamento e construção do vínculo acontecia com naturalidade, ou houve intercursos?

Marinês Oliveira – Todos os intercursos que você imaginar (risos).A clínica no território é isto, não se sustenta aqui padrões formais e rígidos da clínica convencional… é outro setting terapêutico… são outros modos de operar! E daí, acontece de tudo, todavia a presença orientada, regida por uma ética e uma técnica produz instrumentos de intervenções preciosos. Então, a gente tem caso de estagiário que ficava no meio da rua falando com o sujeito, o povo passando e olhando aquela cena sem nada entender, e a resposta dele era a fumaça do cigarro pela fresta da janela até que um dia ele desce e vai até a rua falar com elas…

 (En)Cena – Quais foram as principais dificuldades na execução do projeto PADAC quando implantado e seus resultados?

Marinês Oliveira – A gente começa com a quase ou total falta de conhecimentos dos estagiários acerca da psicose. Uma outra limitação foi a distância da abordagem técnico-teórica da instituição e dos estagiários. Quanto aos resultados, ao final do programa, em agosto de 2013,tivemos 60 famílias e 70 pacientes em crise atendidos e 38 estudantes de Psicologia aptos ao trabalho em saúde mental. Quanto aos usuários, através do cuidado no domicilio, foi possível fortalecer os vínculos, orientar a família e o entorno a lidar com os sintomas expressos dos sujeitos, ampliação do suporte familiar e social, destensionamentos das relações deflagradoras da crise paciente-família-comunidade. Em 2013, o PADAC foi escolhido pelo Laboratório de Inovações em Atenção Domiciliar como uma das dez melhores experiências em Atenção Domiciliar no Brasil e a única em Saúde Mental.

 (En)Cena – No PADAC, como o domicilio é visto como lugar de cuidado?

O domicilio, como tecnologia, é posto como lócus de cuidado e produção de autonomia dos sujeitos, visto como o espaço dos amores e desamores, dos tensionamentos e também da lugar de produzir e fortalecer novas relações. É proposto aqui um cuidado que transponha as práticas institucionalizadas, de forma a contribuir para a produção da integralidade e da continuidade deste cuidado ofertado ao sujeito.

(En)Cena – Você consegue se lembrar de um caso marcante que teve influência significativa na sua vida e formação acadêmica?

Marinês Oliveira – Todos os casos tem um aprendizado… seja meu, seja dos colegas… o senhor que não sai de casa há mais de 25 anos, me faz pensar que há um crise para dentro que, muitas vezes, nem chega ao serviço, talvez por não “incomodar” tanto como “a crise para fora”, e depois de tantas e tantas semanas ele sobe a ladeira, e ver a rua, e a vida do lado de fora novamente… a moça que se embrulha dos pés à cabeça,no começo dos encontros com os estagiários, sentados ali no seu quarto toda semana por duas horas ou mais, sem uma palavra, um som que vai se desembrulhando a ponto de no final do trabalho sugerir o último passeio pelo bairro, o “homem do lixo” e suas negociações com as minhas colegas para a intervenção da Limpeza Urbana, a senhorinha descabelada no CAPS que a todos assustavam, sentada tempos depois na calçada do serviço contando suas peraltices quando moça no Rio de Janeiro, o moço que vai ensinar as estagiárias frescobol na praia… o moço passado para a equipe por quebrar tudo em casa, sentado ali na sala ouvindo Biquíni Cavadão e todas suas elucubrações acerca do Raul Seixas e Renato Russo e seus projetos de futebol americano para Salvador… Como dizem por ai. “Furos nos muros dos manicômios”. Não há como não ser significativo para a vida pessoal e profissional.

(En)Cena –  Como o PADAC se relaciona com o SUS?

Marinês Oliveira – Atravésdo suporte psicossocial que ofertamos para esse sujeito em seu domicilio, possibilitamos a construção e fortalecimento da rede, a territorialização e integralidade do cuidado e a efetivação da clínica ampliada. Há um trabalho que é ao mesmo tempo substitutivo e desinstitucionalizante e de base comunitária. A gente vai a casa do sujeito. Lá tem: o pai; a mãe; o irmão; a cunhada; a sobrinha; a vizinha etc, A residência, o entorno social é habitada por múltiplas transferências. A transferência não é só entre o sujeito e o profissional, mas entre o profissional e toda a comunidade.

(En)Cena – Analisando os resultados positivos do PIC e do PADAC, você acha que faltam mais políticas voltadas para a saúde mental no Brasil?

Marinês Oliveira – Muita coisa está sendo feita, mas ainda está tudo muito aquém de como poderia ser. É preciso garantir não somente a implantação da RAPS, mas o fortalecimento da rede; o trabalho territorial em saúde mental; a geração de renda dos usuários dos serviços; o vínculo de trabalho, a formação e educação permanente dos profissionais das mais diversas instituições em saúde mental; serviços verdadeiramente substitutivos e desinstitucionalizantes; E, a formação dos estudantes em saúde mental. Deste modo, o PIC e o PADAC propõem uma possibilidade de construção de formas de manejos vinculares, intervenção e cuidado em saúde mental, principalmente, a pacientes em crise, bem como a formação docente assistencial.

(En)Cena – Obrigado por sua contribuição Marinês. Para encerrar: Quem tiver interesse em conhecer o PIC ou o PADAC, como deve fazer para obter informações?

Marinês Oliveira – Temos uma revista chamada “INTENSA-EXTENSA – Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos” referente ao trabalho executado no PIC, disponível na internet. Quanto ao PADAC, estão construindo uma publicação. Mas, no site da OPAS, temos a exposição do trabalho realizado pelo PADAC, acesso:http://apsredes.org/site2013/atencao-domiciliar/


Transcrição: Isadora Santana Fernandes

Edição: Hudson Eygo

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Renato Di Renzo – TAMTAM na arte, inclusão e humanização

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O poder transformador da arte é capaz de projetos simples e renovadores. Habilidades que, por vezes são tidas como secundárias em cada indivíduo, têm força para modificar realidades coletivas em novos mundos.

Renato Di Renzo tem paixão por esse conceito: qualidade de vida para todos sem restrições.  Arte educador e pedagogo, é um dos idealizadores e presidente da Associação Projeto TAMTAM, de Santos – SP. Sociedade inclusiva e diversa permeia a proposta de trabalho e de vida de Renato que há 25 anos começou o trabalho no Projeto.

Foto: Adriano Marinho Ribeiro

Com início em 1989, o TAMTAM surgiu com uma intervenção pública municipal na extinta Casa de Saúde Anchieta, em Santos. O objetivo da ação era humanizar o espaço em nome da dignidade humana. Ricardo relata que os pacientes da Casa eram extremamente maltratados, malcuidados. Havia 180 leitos para mais de 600 pessoas. Não havia atendimento decente. O eletrochoque punitivo era seguidamente utilizado por qualquer pessoa, sem motivo. Muitos morriam. “Era discabível”, conta. Então, há 25 anos, houve uma grande injeção para a luta antimanicomial: “o TAMTAM foi um arranque na história da saúde”, conclui Di Renzo.

“Viemos para resgatar o homem enquanto desejo de voltar a viver na sociedade, família, trabalho. Enfim, a viver loucamente junto com os outros loucos da cidade”

O projeto articulou o que todos os loucos, de todas as áreas e estilos, sempre almejaram: começou dentro do hospício mas foi além das grades físicas e sociais que cercam esse universo.  O projeto, como explica Renato, é um eco na sociedade. Não há trabalhos somente com pacientes diretos, diagnosticados com determinadas especificidades. TAMTAM trabalha com o quê esses agentes provocam em outras pessoas. Então, “estamos formando redes”.

Ao longo dessa história, atendimentos diversos foram realizados nas áreas de saúde mental, prevenção às doenças, educação, acesso a arte e cultura, diversidade e inclusão social. O Projeto lida com formas de expressão que, de acordo com o arte educador, trazem benefícios físicos e psíquicos. “Você dizer, de alguma forma ,o que te incomoda, é terapêutico”, afirma. Dentre as atividades já realizadas pelo grupo, Renato sempre (se) afirmou no conceito de que o trabalho na educação e na saúde são uma aposta ‘no outro’ e por vocação. Esse argumento explica a perseverança do trabalho no TAMTAM.

As pessoas entendem ‘comunidade’ como “morar em determinado bairro”. Isso é diminuir o conceito que ela representa.

Atualmente, o projeto atende diretamente cerca de 200 pessoas. Além deles, o TAMTAM auxilia a família de cada paciente e lida com todos os universos do sujeito. Humanismo, inclusão e diversidade são trabalhados fora do universo ‘clínica’, inseridos no dia-a-dia e vivência diária. Explicam que é “um trabalho calcado na troca, na cumplicidade e no brilho outrora escondido/apagado em diversas pessoas”.

Muitas pacientes do TAMTAM são chatos, dizem. Di Renzo explica esse julgamento pelos resultados já obtidos. Os trabalhos, oficinas e cursos desenvolveram e potencializaram habilidades por meio de uma formação muito mais ampliada, que incluía as atividades da ONG. Os pacientes são chatos porque são politizados, buscam argumentos, discutem e são cidadãos ativos.

O projeto promove ações inclusivas em áreas do conhecimento que vão de dança à reciclagem e o desafio do manejo nas mais diversas áreas é nítido. Renato Di Renzo tem resposta instantânea para a provocação: todo projeto pode acontecer. A questão é: como vai acontecer.

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Diario das Forcas

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Por Narubia Werreriá
Iny (Karajá) da Ilha do bananal, representante indígena e estudante de Direito da UFT.

E você que se coMOVE com minhas palavras, leia meu pedido,
Assine com seu nome, precisamos nos ajudar!

 

ASSINE A PETIÇÃO

 

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Que tal uma Semana Nacional de Humanização em 2014?

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Completados em 2013 uma década de existência, a Política Nacional de Humanização – PNH, tem muitos resultados positivos a comemorar. A afirmação é do coordenador nacional da PNH, Gustavo Nunes de Oliveira, em entrevista para o (En)Cena, que destaca a formação dos trabalhadores e dos gestores com alguns dos principais avanços.

Gustavo Oliveira em entrevista para o portal (En)Cena.

“Avaliamos também que ampliamos interlocuções importantes com os gestores municipais, estaduais, com os Conselhos Municipais e Estaduais e também com os gerentes, que são os profissionais que têm cargos de gestão nos vários níveis de gestão do SUS [Sistema Único de Saúde]. Além disso, abrimos uma interlocução importante com o trabalhador, acumulamos inclusive com a produção em parceria do Ministério [da Saúde], do SUS e dos trabalhadores com a política de promoção de saúde do trabalhador, além disso avaliamos que a interlocução com o usuário, com os movimentos sociais, ainda precisa ser aquecida e ter um investimento mais claro por parte da PNH”, pontuou Gustavo.

Há cerca de dois anos a coordenação vem realizando as avaliações em torno da PNH, o que possibilitou ter em mãos os dados sobre as ações em várias regiões.

(En)Cena – Entre as estratégias da PNH está a realização dos Seminários Regionais. Qual o foco destes eventos?

Gustavo Oliveira – A  gente colocou como um dos eixos de todos esses seminários a questão da participação do usuário, a fim de conseguirmos construir alguns coletivos parceiros da humanização e alguns indicativos sobre os caminhos, deliberações e estratégias que poderíamos trazer e agregar no campo do trabalho na política nos territórios e no próprio Ministério da Saúde, para ampliar essa interface com o usuário. A discussão desse encontro aqui do Norte [Manaus – AM] já foi bastante madura. A roda que eu participei teve, inclusive, a participação cidadã e dos movimentos sociais como tema. Conseguimos abrir um diálogo entre trabalhador, gestor e usuário para a gente pensar estratégias para construir movimentos de interfaces mais fortes com usuários de movimentos sociais. Eu acho que nesse encontro a gente conseguiu efetivar melhor uma questão que já vínhamos perseguindo em dois anos, ensaiamos no macro encontro regional do Nordeste, conseguimos incluir mais ações no seminário do Sudeste, e eu acho que aqui já se configurou um cenário de participação concreta com encaminhamentos.

(En)Cena – Após as avaliações nestes últimos dois anos, voltadas para os dez anos da PNH, você acha que os trabalhadores estão desgastados, um pouco cansados ou desestimulados?

Gustavo Oliveira – Eu acho que a gente está num movimento histórico, num período, numa época em que se está dando um valor exacerbado à dimensão gerencial da resolução dos problemas do SUS. O SUS tem questões de gestão muito importantes, então, assim, para resolver a peregrinação dos usuários nos vários serviços, temos grandes desafios de gestão. Para resolver a dificuldade da relação entre equipes, de capacidades instaladas e demandas ou necessidades dos usuários, que levam muitas vezes à superlotação, dificuldade de organização das demandas e oferta dos serviços, isso sobrecarrega os trabalhadores, então esses são somente alguns dos grandes desafios de gestão. Mas o SUS, em sua construção, não se resume aos desafios de gestão e aí quando a gente trabalha com saúde e passa a considerar o desafio da relação social entre trabalhador e usuário, entre gestor e trabalhador como uma relação de uma sociabilidade mais democrática e colaborativa, na linha de entender a saúde como direito, e a “lógica imediatista” resume isso a um problema gerencial ou de capacitação… eu acho que estamos equivocados.

Gustavo Oliveira durante entrevista na abertura  do Seminário Norte de Humanização. Foto: Michel Rodrigues

(En)Cena – O problema é pontual?

Gustavo Oliveira – Nós temos problemas grandes, gargalos de informação, grandes dificuldades de qualificação técnica, mas também temos grandes dificuldades de sociabilidade. Não é um trabalhador do SUS que tem dificuldade de lidar com o usuário que faz discriminação, que faz racismo ou violência institucional, pois também o gestor faz com o trabalhador, também o usuário faz com o trabalhador e faz com o gestor, porque essa é uma questão que está na sociedade, não é uma questão específica do trabalhador de saúde. Então se tratarmos esses fenômenos simplesmente como uma questão de qualidade ou uma questão de organização gerencial, estaremos resumindo um problema que é social, da sociedade brasileira, a uma questão de ordenamento instrumental. Então eu acho que necessitamos tomar cuidado na hora de acolher a queixa do trabalhador que está adoecido, sobrecarregado, que vivencia uma relação de trabalho complicada, para não confundir isso com uma questão só no nível da falta de capacidade, do ponto de vista técnico, de competência, ou só do nível de ser uma vítima do sistema em termos organizacionais. Tem uma questão de sociabilidade que precisamos tratar. Percebo que  quando trabalhamos para criar espaços onde trabalhadores, gestores e usuários possam dialogar estamos tratando disso, avançando na sociabilidade, também para se chegar à planos de ação e intervenção que, de fato, possa discutir questões gerenciais, discutir as questões sociais relacionais, discutir as questões técnicas, de competência e discutir as questões de cidadania e de corresponsabilidade, e nesse caldo todo a gente possa conseguir constituir processos de mudanças efetivos.

(En)Cena – Em seu discurso, durante a abertura do Seminário Norte de Humanização, em Manaus – AM, você disse que estamos aqui para nos emanciparmos. Como é isso?

Gustavo Oliveira – Então, eu quis trazer um pouco, ou melhor, sair um pouco do paradigma só da inclusão. A gente acostumou muito a falar da questão da inclusão e a questão da inclusão perpassa por um pressuposto de que é sempre bom incluir. Mas é bom incluir no que? E incluir no SUS significa ampliar acessos, significa ampliar acessos às diferenças, então significa que o sistema de saúde possa ser compatível com os vários modos de vida. Tem de ser compatível ao modo de vida do heterossexual, do homossexual, do transexual, do índio, do negro, do branco, do modo de vida das pessoas em geral que podem constituir outras singularidades. É disso, para mim, que se trata a questão da inclusão. Agora incluir também significa que a gente possa pensar em outras possibilidades de organização do próprio sistema para que a gente não faça uma inclusão no sentido de constituir dependência ou de simplesmente constituir uma relação de consumo. Então, assim, “incluir à camadas da sociedade”, no SUS, não significa só dar acesso à bens e tecnologias de saúde e ao consumo desses bens e tecnologias, mas significa também incluir em uma posição política, nesse sentido emancipatório, no sentido de uma construção coletiva desse bem social, dessa conquista social, que é o SUS.

(En)Cena – Você está tranquilo e satisfeito com as discussões ocorridas no Seminário?

Gustavo OIiveira – Tranquilo não, porque a gente sai com muitas questões e muitas demandas de trabalho. Eu saio engajado. Acho que conseguimos dar um passo importante. Eu acho que esse seminário aqueceu as Redes na Região Norte e temos boas perspectivas para que essas Redes continuem e se aqueçam ainda mais e a gente tenha uma grande mobilização para o Seminário Nacional. Agora, isso vai demandar muito trabalho daqui até o segundo semestre (2013), não só de preparar, mas da gente fazer mesmo essa construção de maneira coletiva, e como a Região Norte já tem em si uma dimensão continental, onde a comunicação é difícil, estamos apostando muito na conexão entre os pequenos coletivos, como os coletivos nas cidades, dos trabalhadores que estão nos serviços, dos usuários que estão nesses serviços para que possam se conectar e a gente possa constituir com isso uma grande rede. Agora a preocupação é como a gente faz para analisar tudo isso, o problema é conseguir fazer um grande movimento que dê expressão nacional para a pauta da humanização. Que tal uma Semana Nacional de Humanização em Saúde em 2014?


Gustavo Oliveira no encerramento do Seminário Norte de Humanização. Foto: Michel Rodrigues

(En)Cena – Você ficou surpreso com o resultado desse evento, com a participação, com a forma como se deu essa organização?

Gustavo Oliveira – Tivemos encontros de coordenações, encontros de apoiadores, mas o seminário mais amplo, com vários segmentos e várias parcerias e forças em torno dessa pauta é o primeiro. Eu saio em parte surpreso, mas é uma surpresa boa de confirmar que aqui na Região Norte há um engajamento todo especial das pessoas, que estão dispostas a viajar e passar horas viajando para chegar aqui no centro de Manaus e fazer esse movimento. Eu continuo positivamente surpreso porque apesar das dificuldades a gente consegue muito engajamento na Região Norte. Agora, eu também esperava que a gente conseguisse, porque o coletivo daqui é muito forte, o coletivo de consultores está muito bem organizado, muito engajado e muito conectado às várias forças do território. Para mim é também uma confirmação de que a gente tem feito algumas estratégias, algumas propostas que tem tido efetividade. Há 5 anos tinha pouquíssimo movimento da humanização aqui no território do Norte. Aí com o trabalho da Terezinha, com o trabalho da Patrícia, com o trabalho do Jamison, da Alexsandra, agora a Rosário, o César, o Victor que já esteve nesse coletivo, eles foram constituindo uma rede bastante ampla e diversificada e isso está mostrando resultado nesse seminário.

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Mito de Sísifo ou dos trabalhadores de saúde mental

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Camus (2004), em sua obra intitulada O Mito de Sísifo, compara o absurdo da vida do homem com a situação de Sísifo, um personagem da mitologia grega, que é condenado a repetir sempre a mesma tarefa. Ocorre que Sísifo desafia os deuses e, quando capturado, sofre uma pesada punição: para toda a eternidade, terá de empurrar uma pedra de uma montanha, que rolaria para baixo, sendo condenado novamente a começar tudo de novo, tornando vão todo o seu esforço, transportando eternamente seu triste fardo.

 

 

Assim Camus (2004) vê em Sísifo o ser que vive a vida ao máximo, que odeia a morte e é condenado a uma tarefa sem sentido, como o herói absurdo. Não obstante, reconhecendo a falta de sentido, Sísifo continua executando sua tarefa diária. Esse mito, no entanto, só é trágico porque seu herói é consciente.

Camus (2004) apresenta o mito, para propor uma metáfora sobre a vida humana, particularmente em relação ao trabalhador contemporâneo, que executa as mesmas tarefas diariamente, sendo que esse destino não seria menos absurdo. Nesse caso, contudo, só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente.

Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição e pensa nela durante a descida. A clarividência, que deveria ser o seu tormento, consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Por algum motivo, os deuses pensavam que não haveria castigo pior que o trabalho inútil e sem esperança. Assim, tomar consciência do caráter insensato dessa agitação, da inutilidade de tantos sofrimentos, é descobrir o absurdo da condição humana, e talvez, se poderia dizer, do trabalho humano repleto de sofrimento; não aquele descrito por Dejours, como parte de uma “normalidade sofrente”, mas aquele caracterizado por ser árduo, duro, contínuo, cansativo.

Um dos pontos mais destrutivos para a saúde mental é o fato de que o trabalho por perder o seu significado vai sendo desinvestido de afeto, o que altera a relação do trabalhador com importante pilar de reconhecimento social. No serviço público, muitas vezes, é a partir dessas questões que surge o descomprometimento, resultado de um processo contínuo de falta de reonhecimento horizontal e/ou hierárquico, perda de autonomia e de desejo,acarretando perda de valor e sentido no próprio trabalho que realiza.

Ocorre que tais características assemelham-se às que os profissionais da área da saúde mental executam, por possuírem uma rotina permeada pelo tolhimento do próprio significado do trabalho, em que apenas ‘rolam pedras’, reproduzindo, assim, rotinas instituídas que, muitas vezes, já caducaram, não fazem sentido; ou ainda por assistirem à degradação dos pacientes, e ao seu retorno, cada vez mais frequente, questões que acabam por transformar o processo de trabalho dos profissionais em um trabalho sem significado e sem fim, com resultados cada vez menos visíveis.

Para elucidar tais afirmações, pretende-se apresentar alguns relatos de trabalhadores de saúde mental que elucidam a dureza do real do trabalho marcado pela loucura e pela esfera pública. Os dados foram obtidos a partir de pesquisa de dissertação (Magnus, 2009) realizada com trabalhadores de um hospital psiquiátrico público e que buscou compreender as implicações do processo de trabalho, em relação à subjetividade dos seus trabalhadores. Através da pré-pesquisa e dos encontros realizados com o grupo de profissionais que atuavam em unidades de internação de pacientes agudos, cujo perfil se modificou para usuários de drogas, mais especificamente, decrack foi possível perceber que estes trabalhadores se encontravam em um espaço do “entre”, ou seja, em um espaço de transição, que trouxe implicações importantes no processo de trabalho e de saúde.

Constata-se a falta de autonomia dos gestores da instituição que serve de desestímulo a todos.

U: Tu tenta até onde dá, mas também não tem muitos funcionários. A gente teve um retorno com colegas, a gente chamou, conversou (rede solidária) […] o que iria ajudar era mais funcionários, mas não depende de nós nem da direção […]

Os trabalhadores relatam que a sua entrada no hospital foi marcada pelo desconhecimento. O que delineia a dinâmica de trabalho na instituição.

V: […] As pessoas quando passam no concurso não sabem que é para trabalhar aqui […] é para onde tem necessidade, muitas quando sabem acabam até desistindo.

V: […] Olha uma coisa te digo, para trabalhar aqui tem que gostar muito, porque o salário não é bom, a gente chama de gorjeta. As condições de trabalho são ruins. Eu não sabia como era isso aqui.

Descrevem o quanto foi assustador e deprimente se deparar, quando ingressaram na instituição, com as patologias dos pacientes por não possuírem experiência prévia.

U: […] foi um pouco assustador porque disseram que eu trabalharia com crianças e adolescentes que eu já tinha experiência, mas quando cheguei a coordenadora me disse que não.

S: Eu nunca tinha trabalhado com este tipo de paciente, mas fui. Daí quando entrei fui direto trabalhar na enfermaria…era deprimente. Os pacientes ficavam sem roupa […]

U: Quando tu passa no concurso e vêm para cá, não têm treinamento, não ensinam como agir em caso de surto, socorro. Tu entra como se tivesse muita experiência.

Z: Eu quase não agüentei no estágio probatório (primeiros seis meses), até adoeci , fui à coordenadora e tive apoio. Ela viu que eu estava no limite, daí fiz rodízio nas unidades.

Quanto às condições de trabalho no hospital, fica evidente o sucateamento dos recursos, o que faz com que em muitas situações os trabalhadores contem apenas com a sorte na resolução dos problemas.

S: Quando trabalhei na ala masculina tivemos sorte, ligamos para o médico e ele desceu correndo (caso de parada cardíaca). Mas as máscaras não se adaptavam ao massageador, dois enfermeiros massagearam (manualmente) e conseguiram ainda bem que poucos pacientes viram […].

U: É um desgaste físico e mental.

S: Nós temos que ter um carro de parada cardíaca. Estamos batalhando e ainda não conseguimos […].

U: Se só agora é que trocaram as lâmpadas da unidade […] depois de 7 anos queimadas […].

Segundo os trabalhadores, os enfrentamentos das situações que estão alicerçadas na proteção política, são improdutivos, pois só geram retaliações e desgastes profissionais e pessoais.

U: Não dá para peitar. A questão é que muita gente questiona porque não se enfrenta […] Ela (colega) tem as costas quentes. Te manda para Itapuã (Hospital Colônia Itapuã em Viamão). Vai peitar para quê? Vai peitar, mas por questões políticas, tu vai para a geladeira, freezer, incinerador […] Quanto menos falar melhor.

Z: […] se tu vai peitar, tu fica marcada. Isso não vai mudar porque as pessoas têm costas quentes. Tem coisas de manejo com pacientes, de inadequação total. Eles (colegas) pipocam em vários setores e depois vão para outras instituições. Te choca ainda, mas não muda […].

Um fator agravante em relação ao novo perfil dos pacientes atendidos nas unidades é o desconhecimento e/ou registro por parte dos trabalhadores de casos bem sucedidos em relação a usuários pesados de crack, o que também não se encontra em referências científicas sobre adição a drogas.

A grande mudança que ocorreu em relação ao perfil dos pacientes internados nas unidades, descaracterizou a patologia ou o sofrimento mental para, em sua maioria, usuários de  crack. Outra questão significativa foi em relação à diminuição da faixa etária, pois os pacientes que se apresentam ao serviço são bem mais jovens do que costumavam ser.

V: E só o que a gente tem agora é usuário de crack.

Y: Nossa população está repleta de gurizada, antes não era assim […] Inverteu, agora a regra é internar novo, a exceção são os mais velhos.

T: É em função das drogas, do crack.

U: A gente tá atendendo muita “craqueirinha” (usuária de crack) […] Mas os plantadores do interior também estão usando bastante droga […].

Os fracassos repetitivos em relação à continuidade do tratamento, após a agudização, fazem com que os profissionais assistam à degradação física e psicológica dos pacientes. Essa realidade está bem presente no discurso dos trabalhadores:

U: […] às vezes tu vê uma guria bonita que se perdeu. A gente aposta, tu conversa, passa a fissura, elas ficam bem conscientes. Daqui a três ou quatro meses estão de volta, cada volta é pior, voltam das recaídas mais enfraquecidas. Tu vê na equipe […] o psiquiatra que não aposta, que desacredita […] e como é que tu vai atender desacreditando na capacidade de inserção?

Z: Eu também pensava em trabalhar com crianças porque a gente ainda pode modificar alguma coisa, alterar o padrão, daí o prognóstico é melhor, tu vê acontecer. Sou um pouco impaciente, de querer ver outras coisas.

A questão do retorno sistemático dos pacientes, em função do crack, torna o trabalho sem fim, semelhante ao Mito de Sísifo, repetitivo e interminável, uma vez que o produto final fica cada vez menos palpável.

Y: […] Tu vê que eles (pacientes) saem, mas voltam depois de três, quatro meses. O uso de drogas e uma rede de apoio e tratamento que não se sustentam, no meu entender, são as causas dos retornos sistemáticos, o nosso trabalho nunca acaba […].

O trabalho em saúde mental coloca em xeque a questão do poder e do saber no cotidiano do trabalho nas unidades. Quando esse saber/poder é colocado em funcionamento, o paciente perde a sua verdade internalizada, ou seja, perde a possibilidade de exercitar o seu desejo.

Entender que o paciente poderá ter desejos que diferem dos da equipe provoca frustrações, mas também gera algumas reflexões.

U: […] são limitações do desejo deles também. Tem pacientes que desejam ficar na rua, não adianta, tem que trabalhar em cima da realidade da pessoa, muitas vezes o paciente quer viver na rua, fazer o quê? […]

A questão do individualismo associado à desesperança e a forma pela qual o trabalho está organizado acaba por enfraquecer a força do grupo, desmobilizando e despotencializando possíveis conquistas para os trabalhadores.

Nardi (2006) aponta para um individualismo social que se sobrepõe à solidariedade. Trata-se de um individualismo solitário, que vem permeando a sociedade de um modo difuso, que assume expressões especiais no mundo do trabalho. Conforme marca a fala a seguir.

Y: […] Não adianta tu lutar […] a gente fica de bode (expiatório) […] não melhora nada, ninguém ajuda. A gente viu que não vai melhorar mesmo.

E: É, não vai ter muita melhora […].

A frustração acaba por conduzir ainda mais as relações para o âmbito individual.

Y: Eu desisti […] Tu querer unir é utopia. Quando tu bota muita energia, tu bota afeto […].

T: […] Tu investe afeto e depois se decepciona. Tu tenta melhorar, mas a coisa morre […] agora faço só o meu trabalho […].

X: […] a falta de união entre as categorias então […] é bem diferente dos médicos […] Eu acho que é falta de motivação […] agora só quero fazer o arroz com feijão bem temperadinhos, não me importo mais muito com o resto.

Ocorre que no hospital o sofrimento é banalizado, em todas as direções, de forma a ser aceito pelos trabalhadores como inerente à sua própria atividade no campo da saúde mental. O que acarreta uma postura mais passiva diante da possibilidade de mudança em relação ao seu sofrimento, ao dos colegas e dos pacientes.

Percebe-se que o sofrimento está muito presente no cotidiano de trabalho e, também, na história da instituição.

V: […] às vezes a gente sai tonta daqui. Quando fogem (pacientes) sobra para todo mundo, e isto ocorre normalmente. Às vezes elas brigam entre elas.

X: O 1º ECT (eletroconvulsoterapia) que a gente assiste a gente nunca esquece. É muito chocante […]. Botam pano na boca […]quando a gente sai daqui quer um vento no rosto […] imagina no lugar do paciente […].

V: Às vezes eu xingo todo mundo, eu viajo..meus filhos acham horrível (o trabalho) […].

U: […] Quanto ao sofrimento, a gente não vê o nosso só o do paciente. Vi uma residente que se desorganizou, a idéia dela era uma e quase surtou porque viu que na prática não era assim, que a rede não dá conta e começou a acreditar no hospital.

V: É, realmente se tu não tiver muita vontade de trabalhar, tu não vem, porque motivo não falta. Quando chega o horário de ir embora quero sair logo, no outro dia volto, mas naquela hora o que eu mais quero é sair.

Para penetrar no campo da relação trabalho-saúde mental, é necessário considerar as “relações sociais” e articular um modelo de funcionamento psíquico que não seja o ocupado apenas pela normalidade, mas, também, pela loucura. Entendendo assim que a dita normalidade dos comportamentos não implica em ausência de sofrimento. Vale lembrar, ainda, que o sofrimento não exclui o prazer, o que assinala uma lógica de coabitação, entre esses elementos, transformando o trabalho em um campo ainda mais complexo.

Mas como afirma Dejours (1999), os trabalhadores são as pessoas mais indicadas para encontrar as soluções e oferecer sugestões para transformar a organização do trabalho. Pois se estes conseguirem entender melhor os dados da situação em que enfrentam, eles mesmos terão ideias, a partir dos coletivos de como transformar a organização do trabalho. E essa é a grande aposta no sentido de gerar mudanças que sejam realmente efetivas e produtoras de significado, que permitam produzir saúde mental aos próprios servidores e pacientes.

Para finalizar, vale lembrar de que é na possibilidade de deslocar os constrangimentos, os limites do real por estratégias, pela mobilização da inteligência, que a saúde e o prazer podem ser conquistados, mesmo que de forma instável. Pois, como afirma Dejours (2008), saúde e prazer estão sempre por serem conquistados, nunca são definitivamente adquiridos. Esta deve ser uma conquista de todos os trabalhadores, mas de forma particular e especial, dos profissionais de saúde mental: que parem de rolar apenas pedras e que possam construirenfim saúde.

 

Referências:

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo. Lisboa, livros do Brasil, 2004.

DEJOURS, Christophe. Conferências Brasileiras: Identidade, Reconhecimento e Transgressão no Trabalho. São Paulo: Fundap, 1999.

______; MOLINIER, Pascal. O trabalho como enigma. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. Christophe Dejours: Da Psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz. Brasília: Paralelo, 2008.

MAGNUS, Cláudia de Negreiros. Sob o peso dos grilhões: um estudo sobre a Psicodinâmica do Trabalho em um Hospital psiquiátrico Público. 2009. 275 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e Institucional) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul [2009].

NARDI, Henrique C. Ética, Trabalho e Subjetividade. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

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A epidemia de doenças mentais

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Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.

Mas a novela Machadiana – publicada pela primeira vez em 1882 – nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.

Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud – considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas – dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.

É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.


Nota: texto originalmente publicado em:
http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2012/02/epidemia-de-doencas-mentais.html

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Vivenciando a Saúde Mental

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“Saúde mental é poder amar e trabalhar;
amar no sentido incondicional que o verbo exige
e trabalhar no sentido de criar, sendo ao mesmo tempo
útil e produtivo.”
(Freud)

A minha ideia aqui, é relatar um pouquinho o que o campo da Saúde Mental produziu em mim quando comecei a ter contato com isso, em um estágio acadêmico do 5° ano de Psicologia, realizado em um CAPS III, no interior de São Paulo.

Iniciei minhas idas ao campo no final do mês de Março de 2012, a princípio era muito difícil estar ali, pois eu ainda não me sentia integrada naquela instituição e não tinha conhecimento de seu funcionamento, da equipe em geral e dos usuários. Apesar de eu me interessar muito pela Saúde Mental e ter desejado durante tempos participar deste projeto de estágio, o novo, o inusitado, me preencheu de medos e expectativas.

A partir das sensações que vivenciei na entrada do estágio – estágio não apenas na ideia de “estagiar” em determinada instituição, mas na perspectiva de que eu estava iniciando uma nova fase, carregando algo em mãos, e deveria aprender lidar com o imprevisto – eu pude enxergar, ou melhor, sentir que tudo estava sendo diferente do que eu imaginei que poderia ser. Então, eu abri meus poros para o contato a quem necessitava de amparo, abandonei a ideia de que ali o louco poderia ser um objeto para o meu benefício de aprendizagem acadêmica e o encarei enquanto pessoa, e pensando em práticas de cuidado.

Foi me ficando claro que conviver com a Loucura é uma experiência singular, que nos capacita confrontar com as nossas próprias experiências da loucura. Se impedirmos que o outro fale sobre sua verdade, impedimos ainda que nossa escuta se exerça a partir do lugar de sujeito que somos. Sobre isto, Cruz (1992, p.19) discorre:

[…] Reconhecer que o “doente mental” é um sujeito que deseja e que “sabe” sobre a verdade de seu desejo e de seu sofrimento, saber possível numa relação de fala/escuta que possa produzir novos sentidos para sua historia, que possa criar novos caminhos em seu circuito pulsional, novos territórios existenciais, reconhecer isto é renunciar à onipotência, ainda que ilusória, do lugar do provedor, do são, daquele que sabe. Mas antes de mais nada, é se confrontar com a própria condição de sujeito cindido, de sujeito confrontado tragicamente com suas próprias experiências da loucura.

Cabe mencionar que conversar com alguém que está “dissociado” pode ser muito interessante e muito complicado, não se pode pensar que não existe sentido em frases que parecem ser sem sentido, às vezes esse sentido vem codificado, está além do campo de significados. O que me remete a uma frase de Oury em “Itinerários de formação” a qual diz que “a pessoa, mesmo dissociada, permanece uma pessoa com seu próprio nome. Temos sempre assunto para qualquer um que tem um nome”.

Conforme a frequência no estágio foi aumentando, fui conseguindo me sentir menos insegura, e sempre busquei me manter próxima dos usuários, oferecendo minha escuta, já que não era difícil de notar que essas pessoas em sofrimento psíquico apresentavam uma enorme necessidade de falar.

Será somente numa relação de fala/escuta, na relação com um outro que, ao escutar, possa servir como suporte transferencial que o sujeito – o “paciente” – poderá produzir novos sentidos para sua história e para o seu sintoma. Isto significa lançar-se, portanto, numa “aventura” sem garantias de cura, num processo de colocação em movimento de circuitos libidinais cristalizados, repetitivos, processo que implica na existência de pelo menos dois sujeitos desejantes. (CRUZ, 1992, p. 19)

Muitas vezes senti medo de me perder em minhas ações, medo de fazer alguma coisa errada e de não estar fazendo nada, pois acabei me deparando com pessoas que mexem comigo e fazem eu me identificar, acabava conversando por simples satisfação, e foi um trabalho eu me conter, não deixar que a minha escuta ficasse só na passividade, mas com cautela tentei produzir sentido. Sobre essa produção de sentido, é importante mencionar o que ensina Ribeiro (2005), que se refere à loucura não enquanto doença a ser curada, mas enquanto uma “produção de sentidos que deve ganhar no âmbito do sujeito, existência subjetiva e territorial, contorno, amarrações que viabilizam uma localização – inscrição – desse ser no mundo em que vive […] (p.37)”.

O louco enquanto um indivíduo que possui voz, capaz de dizer sobre si mesmo e de produzir obra e para tratá-lo é necessário que se crie dispositivos para que ele possa ter lugar, se territorializar/desterritorializar, e estabelecer redes para garantir ou possibilitar algo que possamos chamar de vida…”Um pouco de possível, senão eu sufoco” (Deleuze).

O contato/a relação que tive com os usuários não se restringiram apenas no ambiente CAPS, tiveram momentos em que foi possível compreender a ideia de uma “clínica ampliada” com a transferência e o setting ocorrendo em diversos lugares, por exemplo, dentro da van indo para o ginásio, caminhando, no momento de um jogo de futebol etc. Souza (1999, apud Oury,1988-89; 23) cita que é importante possibilitar que “cada sujeito possa achar uma possibilidade de enganche, de interesse, mesmo parcial, sobre qualquer coisa que não era previsível…”, e ainda, sobre esses espaços informais, refere sobre a necessidade de o terapeuta ter uma escuta voltada para o novo e o imprevisível, estando atendo às possibilidades que se abrem a cada encontro, assim, a transferência aparece “como condição de possibilidade de emergência de um dizer” (Oury, 1988-89; 33).

Fundamentalmente é preciso que se enxergue o sujeito enquanto um inteiro, dentro ou fora do CAPS, sendo com práticas restritas a um setting protegido por muros, ou em qualquer outro tipo de ação. Emerich (2006, p.3) nos ajuda esplanar esta ideia quando diz que “O usuário não tem desejo ‘dentro do CAPS’ e direitos ‘fora’. Ele é atravessado constante e intermitentemente por esses vetores, ele é inteiro em todos os momentos”.

Em suma, experienciar a convivência com essas pessoas, pensar em produzir sentido e acuidade, é quase que como se lançar a uma aventura, – associando a Pelbart (1993) – desejando ter asas! Mesmo sabendo que não é possível ser anjo, resolver de imediato e viver no lugar de, mas pode-se ter disponibilidade para ouvir, para tocar, uma presença que pode às vezes suscitar um novo começo, no percorrer de diversos caminhos.

“Há infinitos modos de voar. Não é necessário escolher o de Ícaro, nem muito menos o de Santos Dumont.” (Gregório Baremblitt)

Talvez nossa modernidade tenha reduzido esses infinitos modos de voar unicamente a esses dois. Ora estamos de um lado, quando enlouquecemos, ora de outro, por exemplo, quando tratamos. É preciso muito senso estético, político, ético, clínico, demiúrgico até, para desmontar essa disjuntiva infernal. Necessitamos de muito espírito aventureiro para ir forjando asas, tanto no interior de uma instituição como fora dela, que nos permitam — a nós e a nossos pacientes — escapar a essa violência binária, que consiste em ter que optar sempre seja por um precipício abissal, seja pelo suave paraíso asséptico de uma estranha saúde, saúde sem desejo de asas nem um devir-anjo. (PELBART, 1993, p. 19)

Referências:

CRUZ, M. A. S. O Sujeito Silenciado: Uma Crítica às Práticas em “Saúde Mental”. 1992, p. 14-21

EMERICH, B. F. CAPS no Território: Cuidado onde a Vida acontece. 2006, p.1-12

OURY, J. Itinerários de Formação. Revue Pratique n.1, 1991. Tradução: Jairo Ideal Goldberg.

PELBART, P. P. Um desejo de asas. In: A nau do tempo rei. 1992

RIBEIRO, A. M. Uma reflexão psicanalítica acerca dos CAPS: alguns aspectos éticos, técnicos e políticos. Psicol. USP [online]. 2005, vol.16, n.4

SOUZA, M. O. S. Espaços informais: uma possibilidade no tratamento institucional de pacientes graves. São Paulo, 1999.

 

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Humanização dos processos de trabalho, ou seria de nós mesmos?

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Foi bem interessante o meu contato com a Política Nacional de Humanização (PNH). Antes de ter conhecimento dos seus princípios e diretrizes já almejava uma relação como ela propõe. Logo, não tive dificuldade de me apaixonar. A cada leitura esse sentimento crescia e talvez por conta disso acredito plenamente que é possível colocá-la em prática. Sempre fui otimista quanto a isso.

Tive a oportunidade de estar presente no encontro dos consultores da PNH da Região Norte em Manaus–AM, e foi um encontro mágico. Um lugar onde se evidenciou dificuldades e angústias e traçaram-se novos desafios, como o de agregar o usuário a esse movimento, “pois só é possível que a política se consolide se ouvir suas dificuldades e necessidades”1. Percebi que é preciso investir em formações, na aproximação com a universidade, incentivar e disseminar pesquisas a cerca do tema, divulgar experiências exitosas, disseminar a PNH nos processos de trabalho, conhecer a diversidade cultural da população, fomentar roda e protagonismo, buscar estratégias para levar o conhecimento da PNH para a comunidade, exercer a clínica ampliada, partir para aAÇÃO, compartilhar conhecimentos.

E mesmo com grandes desafios, o que prevaleceu foi o compromisso e a vontade de viabilizar tais mudanças. Não houve ninguém apressado para ir embora, as discussões de tão produtivas ultrapassaram o tempo previsto e todos estavam encantados com a possibilidade de fazer acontecer essas transformações, e se deixaram ficar. Nessas trocas, cada um expôs suas experiências e ouviu atento a vivência do outro. Médicos, psicólogos, biólogos, assistentes sociais, pedagogos, enfermeiros, técnicos, gestores, representantes de movimentos sociais, consultores e apoiadores da PNH, usuários e educadores populares, todos não em busca de sobrepor seu conhecimento sobre os demais, mas de enriquecer sua prática com a contribuição do outro – o respeito e humildade foram permanentes.

E a PNH que se propõe não é um modelo a ser seguido, mas um processo, uma essência que toca cada um de forma diferente e que quase sempre promove mudanças profundas. Exercer a PNH no cotidiano dos serviços é também praticá-la nas relações – “temos que combater as dicotomias criadas ao longo de nossa história, não há como separar corpo e mente, público e privado, processo de trabalho e vida fora dele”2, são componentes de nossa existência, portanto se atravessam, complementam-se e nesse movimento constituem nossa VIDA. Assim, para humanizarmos os nossos processos de trabalho, precisamos primeiro fazê-lo com nós mesmos, mudando conceitos, desconstruindo e construindo novas formas de perceber e relacionar-se com o outro. E para que esse processo aconteça, precisamos sair de nossa “ZONA DE DESCONFORTO e não de conforto, pois não é agradável onde estamos, é um lugar individualista”3 e solitário. Temos que “parar com queixumes e partirmos para a AÇÃO4 e compartilhar, agregar, dividir, “resgatar a AMOROZIDADE5, estreitar laços e promover rodas e encontros.

Ao fim desse evento, saí transformada e por isso compartilho com vocês essa experiência, com o intuito de disseminar esse movimento e que ele também lhes cause paixão. Eu me comprometo a entrar em AÇÃO e VOCÊ?

Notas:

1 Bruna La Close.  Representante do movimento GLS de Manaus.
2 Ricardo Penna. Psicólogo e consultor da PNH.
3 Ricardo Teixeira. Professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, consultor da PNH e coordenando da Rede Humaniza SUS desde 2008.
4 Roseni Pinheiro. Professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora e líder do Grupo de Pesquisa do CNPQ LAPPIS – Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde e bolsista de produtividade CNPq.
5 Reginaldo Alves. C
oordenação Geral de Apoio à Educação Popular e a Mobilização Social .

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