O uso de tecnologias psicossociais na atenção à crise

O (En)Cena conversou com a Psicóloga Marinês Santos de Oliveira (CRP03/06586), sobre o Programa de Atenção Domiciliar a Crises de Pacientes Psicóticos Graves (PADAC), uma estratégia em Saúde Mental implantada em Salvador – BA que compreende três eixos principais: saúde mental, atenção domiciliar e pacientes psicóticos graves.

Foto: Arquivo Pessoal

O projeto que visa capacitar os alunos de Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) a lidar com a saúde mental pautando-se nos princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica, é resultado do Laboratório de Estudos Vinculares e Saúde Mental (LEV) em parceria com o Centro de Atenção Psicossocial Osvaldo Camargo em Salvador – BA.

(En)Cena – Olá, relata para nós como nasceu o PADAC?

Marinês Oliveira –. O PADAC começou em agosto de 2008, concebido como projeto de estágio docente-assistencial, coordenado pelo psicólogo e professor Marcus Vinicius de Oliveira Silva, da Universidade Federal da Bahia, junto ao Centro de Atenção Psicossocial Oswaldo Camargo. Um projeto que tem tudo a ver com os princípios da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, uma vez que ele dialoga com os princípios e diretrizes do SUS.  Sabemos que a crise é um momento delicado para o paciente, para a família, que se torna complexa também para muitos serviços. Neste contexto é pensado o Programa de Atenção Domiciliar à Crise (PADAC).

(En)Cena – Quando foi o início do projeto?

Marinês Oliveira – Na verdade, o PADAC, é posterior a um outro projeto docente-assistencial, também coordenado pelo professor Marcus: o Programa de Intensificação de Cuidados (PIC), que funcionou entre 2004 e 2008, vinculado a um dos hospitais psiquiátricos da rede estadual em Salvador, com 40 leitos e serviços de emergência e atendimento ambulatorial. Na época, o município ainda não contava com a rede de CAPS. O PIC teve duração de quatro anos e meio, capacitando ao todo 115 estagiários, para o trabalho em saúde mental, utilizando o domicilio, o acompanhamento terapêutico, a oferta de suporte psicossocial as famílias como tecnologias de cuidado. Deste modo, 37 pacientes com históricos de repetidas internações, com uma carreira manicomial cronificada, após este período tornaram-se estabilizados, com vínculos mais fortalecidos e uma rede de cuidado mais ampla através do matriciamento, melhorando significativamente a qualidade de vida destes sujeitos. Após o término do PIC, o PADAC é apresentado, agora em parceria com um serviço substitutivo, todavia pautado também em um ponto nevrálgico e de grande desafio da rede de saúde mental: a crise. Tem suas atividades finalizadas em agosto de 2013.

(En)Cena – Em Salvador há muitos casos como este?

Marinês Oliveira –  Em Salvador, o cuidado ampliado em saúde mental ainda está em construção. Todavia, percebe-se que a cultura da internação, a cultura manicomial ainda é forte. Tínhamos uma quantidade significativa de hospitais psiquiátricos que foram fechados sem pensar na construção da rede substitutiva de cuidado a estes sujeitos, com o destino desses internos, muito menos com suas famílias. E, neste contexto, a família é um ponto também importante que precisamos problematizar. Ao longo da história da loucura sempre esteve afastada do cuidado desse sujeito. Outrora, ela foi vista como a gênese da doença mental. De repente, vem uma reforma, que propõe: “A partir de agora a família também vai cuidar desse sujeito”. Sim, mas há algum tempo atrás a família não era afastada? Quais são os dispositivos que essa família tem agora para cuidar desse sujeito?

(En)Cena – O estado, se eximindo do seu papel, quis depositar na família toda a responsabilidade para com o cuidado com o sujeito em sofrimento mental?

Marinês Oliveira – Neste ponto a família é colocada em dois polos: ou ela “é culpada e responsável por esse sujeito, ou ela é culpada e irresponsável”, como aponta algumas discussões neste campo. Outra questão que tem se apresentado como problematizadora é a sobrecarga familiar. É interessante como as reuniões familiares e o termo família sobrecarregada estão bem presentes nos serviços E a gente pensa: não é quenão possuam importante lugar, todaviase a família sofre, cansa, é preciso problematizar qual é a oferta de cuidado que está sendo oferecido a ela. Quais são os dispositivos de cuidado que a reforma psiquiátrica dispões aos familiares? Quais os lugares e dispositivos de cuidados ofertados e direcionados as famílias nos serviços? Por outro lado, ainda há de se pensar que quando eu só digo, e repito, e carrego o tempo todo este jargão da família sobrecarregada,como fica o sujeito portador de transtorno mental que compõe este núcleo, que faz esta escuta de sobrecarga neste contexto, que é apontado na família como o que produz um “peso” seja emocional, financeiro ou físico?

(En)Cena – Os Serviços de Atenção Psicossocial de hoje também estão sobrecarregados?

Marinês Oliveira – Ainda temos uma rede escassa, fragilizada e, muitas vezes, mal gerida. A gente precisa pensar como essa rede está sendo criada e, principalmente, fortalecida. Como esta rede se articula com outras redes, com os campos de convivência e de existência destes usuários. Quais as verdadeiras histórias destes sujeitos, que com certeza fogem as que estão nos prontuários.Que história é essa de ela ser substitutiva, e mesmo assim, produzir modelos de atenção institucionalizado, de continuar fora da comunidade, do território. A gente produziu instituições de cuidado substitutivo e desinstitucionalizante, mas ela ainda manda o usuário em crise para o hospital. Ela ainda gera horários e lógicas das instituições totais. Não estou generalizando, mas estou fazendo uns recortes do que desponta de ruim, das mazelas de cuidado no campo da atenção psicossocial.

(En)Cena – A medicação entra como estratégia de intervenção? Você concorda com o uso de medicamentos no atendimento à crise?

Marinês Oliveira –  Não dá para falarmos com “ingenuidade”. Quando se fala em crise, a gente pensa só os sintomas e aí, pensa-se logo em medicar. Mas se compreendermos a crise como uma dificuldade da relação do sujeito com o mundo, e até consigo mesmo, a medicação vai entrar em outro contraponto, como estratégia para diminuir os sintomas, a ansiedade, a angústia, a “voz que eu não estou suportando ouvir” etc, a medicação tem sua importância, o excesso dela que não! Agora, cuidar da crise não é somente a supressão do sintoma, é muito além. É pensar nos vínculos, na qualidade de vida do sujeito, nas suas contratualidades sociais…

(En)Cena – O PADAC busca essa compreensão da crise, como algo relacional?

Marinês Oliveira – Sim. O projeto pensa a crise como fator relacional, para pensar na questão do suporte psicossocial eno modo como o profissional vai mediar essas relações. É preciso ver a questão do cuidado, do apoio, dos aspectos sociais desse sujeito… Nosso projeto surge nesse cenário.

 (En)Cena – Como era desenvolvido o trabalho dentro do CAPS?

Marinês Oliveira – Fizemos busca ativa de alguns casos. Alguns deles estavam realmente em crise e, quando ele está em crise, geralmente o sujeito se afasta do convívio social e do CAPS. Aqui precisamos contextualizar dois tipos de crise: a do sujeito para fora, gritando, esbravejando. E, a crise para dentro, aquela na qual o sujeito se isola do mundo, e fica recluso, em silêncio. Outra frente de atuação no Programa eram as tardes de supervisão, com estudos dirigidos e reuniões com a equipe do CAPS. Quando o sujeito então sai da crise era matriciado novamente no CAPS ou em outro dispositivo de cuidado da rede.

(En)Cena – Como era feito esse acompanhamento terapêutico do sujeito em crise?

Marinês Oliveira – O sujeito era encaminhado aos estagiários pela equipe do CAPS, no momento da reunião técnica, no qual frequentávamos também para a discussão dos casos. Entravámos em contato com a família e marcávamos o atendimento domiciliar. A partir deste momento, em dupla, o trabalho da construção do vínculo, da oferta do suporte psicossocial a família, da intensificação do cuidado, da escuta qualificada e da presença orientada adentrava a casa dos sujeitos e seu entorno social. O domicilio como tecnologia de cuidado. Todavia, isto significava, muitas vezes, uma visita, duas, três por semana a depender da demanda, ou, toda semana, por muitos meses para o sujeito querer apenas nos ver ou nos deixar chegar na porta, na sala. Um exercício de delicadeza diário, de sutileza. Sem contar as grandes vulnerabilidades sociais existentes nos bairros, nas casas, que muitos residiam.

(En)Cena – Esse processo de acompanhamento e construção do vínculo acontecia com naturalidade, ou houve intercursos?

Marinês Oliveira – Todos os intercursos que você imaginar (risos).A clínica no território é isto, não se sustenta aqui padrões formais e rígidos da clínica convencional… é outro setting terapêutico… são outros modos de operar! E daí, acontece de tudo, todavia a presença orientada, regida por uma ética e uma técnica produz instrumentos de intervenções preciosos. Então, a gente tem caso de estagiário que ficava no meio da rua falando com o sujeito, o povo passando e olhando aquela cena sem nada entender, e a resposta dele era a fumaça do cigarro pela fresta da janela até que um dia ele desce e vai até a rua falar com elas…

 (En)Cena – Quais foram as principais dificuldades na execução do projeto PADAC quando implantado e seus resultados?

Marinês Oliveira – A gente começa com a quase ou total falta de conhecimentos dos estagiários acerca da psicose. Uma outra limitação foi a distância da abordagem técnico-teórica da instituição e dos estagiários. Quanto aos resultados, ao final do programa, em agosto de 2013,tivemos 60 famílias e 70 pacientes em crise atendidos e 38 estudantes de Psicologia aptos ao trabalho em saúde mental. Quanto aos usuários, através do cuidado no domicilio, foi possível fortalecer os vínculos, orientar a família e o entorno a lidar com os sintomas expressos dos sujeitos, ampliação do suporte familiar e social, destensionamentos das relações deflagradoras da crise paciente-família-comunidade. Em 2013, o PADAC foi escolhido pelo Laboratório de Inovações em Atenção Domiciliar como uma das dez melhores experiências em Atenção Domiciliar no Brasil e a única em Saúde Mental.

 (En)Cena – No PADAC, como o domicilio é visto como lugar de cuidado?

O domicilio, como tecnologia, é posto como lócus de cuidado e produção de autonomia dos sujeitos, visto como o espaço dos amores e desamores, dos tensionamentos e também da lugar de produzir e fortalecer novas relações. É proposto aqui um cuidado que transponha as práticas institucionalizadas, de forma a contribuir para a produção da integralidade e da continuidade deste cuidado ofertado ao sujeito.

(En)Cena – Você consegue se lembrar de um caso marcante que teve influência significativa na sua vida e formação acadêmica?

Marinês Oliveira – Todos os casos tem um aprendizado… seja meu, seja dos colegas… o senhor que não sai de casa há mais de 25 anos, me faz pensar que há um crise para dentro que, muitas vezes, nem chega ao serviço, talvez por não “incomodar” tanto como “a crise para fora”, e depois de tantas e tantas semanas ele sobe a ladeira, e ver a rua, e a vida do lado de fora novamente… a moça que se embrulha dos pés à cabeça,no começo dos encontros com os estagiários, sentados ali no seu quarto toda semana por duas horas ou mais, sem uma palavra, um som que vai se desembrulhando a ponto de no final do trabalho sugerir o último passeio pelo bairro, o “homem do lixo” e suas negociações com as minhas colegas para a intervenção da Limpeza Urbana, a senhorinha descabelada no CAPS que a todos assustavam, sentada tempos depois na calçada do serviço contando suas peraltices quando moça no Rio de Janeiro, o moço que vai ensinar as estagiárias frescobol na praia… o moço passado para a equipe por quebrar tudo em casa, sentado ali na sala ouvindo Biquíni Cavadão e todas suas elucubrações acerca do Raul Seixas e Renato Russo e seus projetos de futebol americano para Salvador… Como dizem por ai. “Furos nos muros dos manicômios”. Não há como não ser significativo para a vida pessoal e profissional.

(En)Cena –  Como o PADAC se relaciona com o SUS?

Marinês Oliveira – Atravésdo suporte psicossocial que ofertamos para esse sujeito em seu domicilio, possibilitamos a construção e fortalecimento da rede, a territorialização e integralidade do cuidado e a efetivação da clínica ampliada. Há um trabalho que é ao mesmo tempo substitutivo e desinstitucionalizante e de base comunitária. A gente vai a casa do sujeito. Lá tem: o pai; a mãe; o irmão; a cunhada; a sobrinha; a vizinha etc, A residência, o entorno social é habitada por múltiplas transferências. A transferência não é só entre o sujeito e o profissional, mas entre o profissional e toda a comunidade.

(En)Cena – Analisando os resultados positivos do PIC e do PADAC, você acha que faltam mais políticas voltadas para a saúde mental no Brasil?

Marinês Oliveira – Muita coisa está sendo feita, mas ainda está tudo muito aquém de como poderia ser. É preciso garantir não somente a implantação da RAPS, mas o fortalecimento da rede; o trabalho territorial em saúde mental; a geração de renda dos usuários dos serviços; o vínculo de trabalho, a formação e educação permanente dos profissionais das mais diversas instituições em saúde mental; serviços verdadeiramente substitutivos e desinstitucionalizantes; E, a formação dos estudantes em saúde mental. Deste modo, o PIC e o PADAC propõem uma possibilidade de construção de formas de manejos vinculares, intervenção e cuidado em saúde mental, principalmente, a pacientes em crise, bem como a formação docente assistencial.

(En)Cena – Obrigado por sua contribuição Marinês. Para encerrar: Quem tiver interesse em conhecer o PIC ou o PADAC, como deve fazer para obter informações?

Marinês Oliveira – Temos uma revista chamada “INTENSA-EXTENSA – Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos” referente ao trabalho executado no PIC, disponível na internet. Quanto ao PADAC, estão construindo uma publicação. Mas, no site da OPAS, temos a exposição do trabalho realizado pelo PADAC, acesso:http://apsredes.org/site2013/atencao-domiciliar/


Transcrição: Isadora Santana Fernandes

Edição: Hudson Eygo