O mito da mulher guerreira: uma análise da canção ‘’estou nervosa’’ filme Encanto

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Mais uma canção do filme Encanto (DISNEY, 2021), Como já vimos, o filme é rico em metáforas e reflexões, nos fazendo perceber que animação não é só coisa de criança. De fato é um verdadeiro encanto. Dessa vez vamos falar sobre a canção  ‘’Estou nervosa’’ no original ‘’surface pressure’’. Produzida por Lin- Manuel Miranda.

 

 

Antes de falar sobre a canção, cabe entendermos  um pouco da personagem Luísa, a qual  é marcada pelo arquétipo da mulher guerreira, tanto em sua aparência alta, com grandes músculos,  como o dom que ela recebeu da casita; força física. E é  através desse dom, que ela usa de estratégias e artifícios para ajudar as pessoas. 

fonte:http://encurtador.com.br/rtAZ4

As sociedades antigas e medievais, encontraram na transmissão dos mitos a forma de perpetuar, seus medos, anseios, verdades, e fantasias (DETIENNE,1992). O mito por trás da mulher  guerreira nos mostra que para tal  titulação uma mulher deve ser justa, disciplinada, corajosa, intrigante e competente, alguém que faz de tudo para atingir metas, e coloca o bem maior dos outros acima do seu. As mulheres guerreiras dos mitos e histórias, sempre causaram sentimentos contraditórios nos homens, ao qual desenvolveram um certo fascínio por elas, devido as suas habilidades no manejo de armas, e no campo de batalha, sendo vista com temor, ao mesmo tempo em que sua feminilidade desata e desafia a coragem e honra masculina. 

 A mulher guerreira, sempre muito forte mas ao mesmo tempo feminina, perpetua o imaginário de homens até hoje, alguém que consegue suportar tudo e ao mesmo tempo trazer a satisfação necessária. ‘’E, desta feita, a mitologia vai se adaptando e modificando ao longo dos tempos, pois “em cada imagem que cria e inventa, a mitologia se metamorfoseia e seu saber se desloca: ela toma a forma efêmera do espaço que habitou um dia.” (DETIENNE, 1992, p. 226)

Percebemos na canção  um desabafo de Luisa, frente ao seu papel ao revelar a sua sobrinha o quanto anda sobrecarregada dos diferentes afazeres em prol da vila e da família, mas que até então faz sem reclamar ou questionar.

fonte: http://encurtador.com.br/aexDU

Descartes (1596- 1650) na sua perspectiva do dualismo substancial, nos diz que somos constituídos de uma coisa extensa, o ccorpo, e uma coisa pensante; a mente, que vivem em constante interação e que formam um todo único.  Ele ainda aponta que quando estamos em uma emoção, significa  que possuímos um conhecimento intuitivo, direto, subjetivo não apenas sobre o que ocorre na mente, mas também no corpo. ‘’Cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante.’’ Descartes (1973a, p. 242).

Luisa é movida por esse misto de sentimentos ao mesmo tempo que se dispõe da audácia de querer combater,  da compaixão de querer ajudar, é cercada por um medo que enfraquece seus poderes e incita a fugir, mas ela não pode, pois quem iria fazer suas atividades? quem conseguiria estar no seu lugar? a pressão é tão grande que percebemos a ansiedade surgindo em seu desabafo. 

‘’ a pressão

é tanta por aqui-qui

que já me estressou, uou

e a pressão faz tic, tic, tic

meu limite chegou,uou, oh ,oh ‘’

Assim como Luisa, muitas mulheres compartilham dessa ansiedade, e sentem que já chegaram aos seus limites por  tantas cobranças e afazeres. As ditas ‘’mulheres guerreiras’’, não querem mais ”guerrear’’. Uma matéria  do buzzfeed intitulada: ‘’Precisamos parar de romantizar o termo “mulher guerreira” (Sofia Riccardi) Nos trouxe relatos de algumas mulheres, que estão cansadas de serem tratadas assim. Materia completa: http://encurtador.com.br/wHIPX

fonte:encurtador.com.br/wHIPX

Um paralelo entre esses desabafos e a canção, é a sobrecarga de afazeres, sociais, familiares e pessoais, a conciliação de tantas coisas chega a parecer impossível.  ‘’Se antes a “mulher perfeita” era a que cuidava bem do lar e da família, hoje ela precisa se destacar profissionalmente sem descuidar das questões anteriores e, ainda, ter um corpo modelo.’’( MORAES 2012, p.4).

Pesquisas feitas demonstram que mulheres são mais afetadas pelo estresse e esgotamento profissional, do que os homens. A  justificativa para isso são as inúmeras cobranças entre: trabalho, casa,filhos, saúde, conjugue, autocuidado. Essas mulheres são marcadas por um cansaço, falta de energia, desmotivação, desinteresse, irritação, mudanças de humor repentino, redução na concentração, esquecimento, desânimo, sentimento de fracasso e uma baixa autoestima. 

Sabemos que o stress é uma defesa natural do organismo, uma resposta fisiológica frente a agentes estressores. Quando existe a sobrecarga  dessas respostas, ocorrem consequências e danos à saúde. A sobrecarga da ‘mulher guerreira’ faz com que muitas mulheres de hoje desenvolvam o burnout e a ansiedade, pois estão tão empenhadas aos seus afazeres, que negligenciam a si mesmo. Podemos observar no trecho da canção:                                

‘’Não questiono se é pesado

O meu corpo suporta o fardo

Se me dão aço, eu piso, eu amasso

Com a força dos braços, eu faço estilhaço

Mas estou nervosa e ansiosa

Na corda bamba, sigo cautelosa

Estou nervosa

Como um herói que se cansou numa luta horrorosa’ Encanto (2021)

Essa sobrecarga ainda é marcada por julgamentos e críticas a si mesmo, quando não suportam mais e cedem a angústia, são por muitas vezes chamadas de surtadas.‘’É sempre um trabalho mental permanente, exaustivo e invisível, e portanto não reconhecido’’. Indiara leite (COMUNICA,2021)

‘Estou nervosa

Se eu não for generosa, me sinto ociosa

Não posso cansar, não posso falhar

Será que eu vou quebrar? o que me faz quebrar’’

Quanto a esse trecho da canção [..]

‘Estou nervosa, Eu fico ansiosa

Mas tento fingir ser corajosa

Estou nervosa

Ameaça é raivosa, fatal e silenciosa Encanto (2021)

Eu estou nervosa

Eu sei sou orgulhosa, a vida é perigosa

A casa vai cair, preciso agir

Eu uso a minha força, mas não sei como impedir ‘’ Encanto (2021)

 

Temos essa reflexão de Indiara Leite (COMUNICA, 2021)

” Infelizmente enquanto crianças, meninas frágeis e inocentes não sabíamos e ninguém nos disse que o mundo também é nosso por direito! Ninguém disse que a luta seria de igual para igual, ninguém dos falou de equidade e que por meritocracia conquistamos o que quer que seja, e por isso, corremos atrás do tempo, das oportunidades, das referências, do protagonismo, dos títulos e dos cargos, das migalhas e muitas vezes corremos contra outras mulheres para provar não sei o’que para não sei quem.

De acordo com a BBC (2021) especialista dizem que não existe uma única razão pela qual mulheres ficam esgotadas, mas que tem ligação com a forma com que as estruturas sociais e normais de gêneros se cruzam, ao causar desigualdades, um exemplo disso é o ambiente de trabalho.  Em geral, pesquisas ligam baixas rendas a altos níveis de estresse a uma saúde mental ruim.

No dia a dia vemos muitas mulheres como Luisa, sobrecarregadas, tendo que lidar com uma rotina exaustiva, equilibrando mil coisas, por isso precisamos repensar sobre o termo mulher guerreira, e as implicações que vem com tal ‘’estilo de vida’’.  É necessário entender que não está tudo bem, e poder proporcionar um espaço para que essas mulheres olhem para dentro de si, e se permitam sentir além dos julgamentos.  Precisamos ainda refletir e problematizar as questões de gêneros e combater o machismo tão estruturado ao qual coloca mulheres nessa posição. Ensinando as nossas garotas, que o lugar delas no mundo não é confortável, mas que lutamos para que seja, então está tudo bem sentir.

  A partir de hoje, quando você lembrar de uma mulher e pensar o quanto ela  é guerreira, pense também nas implicações que atribuem a ele esse fato e de que forma você pode ajudar, seja estendendo a mão, seja trazendo conhecimento,  de forma a tornar seus  fardos  menos pesados.

 

REFERÊNCIAS

COX, Josie.Por que mulheres sofrem mais de síndrome de burnout do que homens. BBC. 2021 Disponivel em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58869558> acesso em 06 de maio de 2022

ENCANTO. ‘’Estou nervosa’’. EUA. Disney+ 2021. 1:14.

LEITE, Indiara. Burnout nas Mulheres:sobrecarregadas para a romantização da “mulher guerreira. COMUNICA. 2021. Disponivel em <https://comunicarh.com/burnout-nas-mulheres-de-sobrecarregadas-para-a-romantizacao-da-mulher-guerreira/> acesso dem 06 de maio de 2022.

O mito da mulher guerreira: uma análise da saga de Hervör. João Pessoa: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, 2021, 258 páginas. ISBN: 978-65-00-22255-5

MORAE, E. Ser mulher na atualidade: representação discursiva da identidade feminina em quadros humorísticos de maitena. In TASSO, I., and NAVARRO, P., orgs. Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. pp. 259-285. ISBN 978-85-7628-583-0. Available from SciELO Books .  

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O mito de Sísifo e o desenho “Tom e Jerry”

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O desenho animado conhecido por Tom e Jerry criado no ano de 1940 basicamente apresenta um gato, chamado Tom e Jerry que é o rato no qual ambos armam armadilhas e ciladas entre os dois, pois o gato sustenta uma insaciável perseguição contra o rato. O desenho começou apresentado em cores preto e branco, e atraiu um extenso público de telespectadores por ser mudo, emitindo sons e ruídos de onomatopeia, o que traz mais humor ao enredo. Ao decorrer da evolução das artes visuais e digitais, o desenho passou a ser colorido e expandindo cada vez mais seus espectadores. 

Fonte: Divulgação/ HBOMax

 

É sabido que a perseguição entre o gato e o rato é de ordem natural na biologia, pois ambos fazem parte da cadeia alimentar um do outro. Dessa forma, as peripécias que cada um trama contra o outro é que contém a trama do desenho. Ambientado majoritariamente em ambientes urbanos, os ocorridos apresentam um desfecho no qual o gato nunca consegue capturar esse rato especificamente. 

Fonte: Divulgação/ HBOMax

 

Por meio disso, pode-se fazer um paralelo com o mito de Sísifo, no qual como castigo carrega uma pedra gigante do início de uma subida até o seu final e então a pedra rola da subida ao início e novamente ele irá efetuar a carga incessamente. Caso o Tom capturasse o Jerry, o desenho enfim teria um final e não faria mais sentido continuar com a animação. Logo, assim como esse mito, o desenho para fazer sentido precisa continuar com essa trama específica: capturar o rato Jerry incansavelmente. 

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A fenomenologia-existencial presente no livro “A insustentável leveza do Ser”

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O livro intitulado como “A insustentável leveza do Ser” escrito pelo tcheco Millan Kundera foi produzido em um contexto da Guerra Fria e publicado no ano de 1984. Ficou mundialmente conhecido, tornando-se um clássico na literatura. É um romance que se passa por dois casais principais e que por meio deles, temas relevantes da existência humana são levantados, como a liberdade de nossas escolhas, assim como a consequência delas. Por se desenvolver em um cenário político crítico, o romance é recheado de cenas nas quais ocorre a descrição de sentimentos de forma sensível assim como a dualidade que permeia do início ao final da obra, que é a leveza versus o peso da existência humana.

Ao decorrer da leitura do romance, é possível perceber fortes conceitos existencialistas, incluindo ideias preconizadas por Nietsche, como a crença ao nada e de que a vida não passa da própria existência em si mesmo, e finda-se em si mesmo. Além disso, é perceptível um viés muito forte ao pensamento fenomenológico, no qual as experiências humanas são o que importa nos personagens e por meio delas, carregam o peso de como é ser humano.  Com isso, a dualidade entre a leveza e peso das nossas escolham colocam o leitor equiparado aos personagens, o que os humaniza e ocorre a identificação, na qual nos leva a reflexão de nossa existência e de nossas escolhas.

O livro demonstra uma percepção bastante crua da realidade, que se relaciona em grande sintonia com o contexto sócio-político da época, que foi em um cenário de desesperança e de solidão. É importante ressaltar que mesmo que o autor traga temas considerados “pesados” da existência humana, como morte, solidão, tristeza, há também o conceito de leveza trabalhado na obra, que muitas vezes são demonstrados como desejos bastante comuns do ser humano, como o sexo e traição.

Fonte: encurtador.com.br/pxEKR

Os quatro personagens são apresentados de forma autêntica e muitas vezes simplista, mas não necessariamente menos complexa nas relações e experiências humanas. Este detalhe ganha muita importância na obra por se assemelhar aos leitores, que perpassam inevitavelmente por angustias e frustrações da existência de ser humano, assim como os personagens que ora estão questionando-se de suas escolhas e ora gozando do prazer delas.

A fenomenologia existencial fica escancarada em várias partes do livro quando os personagens se interrogam e entram em profundo questionamento sobre suas experiências no passado e de como elas determinaram a maneira como agem e como se expressam com os outros em suas relações. Tereza, por exemplo, demonstra ser a personagem mais reclusa e introspectiva no livro, que é justificado pela relação abusiva e tóxica com sua mãe narcisista. Além disso, é possível observar que esta mesma personagem levanta questionamentos enigmáticos e que muitas vezes obriga o leitor a repetir a mesma passagem várias vezes para compreender enfim o que se passa na personagem.

A leitura do livro é um tanto exaustiva mas muito necessária e prazerosa de se realizar. Desperta no leitor uma angústia inerente a existência de qualquer ser humano por esboçar, com muita maestria a dualidade entre o peso e a leveza disso. Também demonstra como as relações, experiências e as nossas escolhas como seres humanos estão inter-relacionadas. Contudo, o que mais é atrativo na leitura, são os temas existencialistas e fenomenológicos trabalhados de forma prática e ilustrativa por meio das escolhas e do passado dos personagens.

Assim, na Psicologia, temas como esses podem ser comumente trabalhados em um contexto clínico, pois a insustentável leveza do ser faz com que nós, seres humanos, nos questionemos de nossas escolhas corriqueiramente. Por conta disso, acompanha-se a angústia fatídica de que somos responsáveis por nossas escolhas mas, ao mesmo tempo, somos os únicos que podemos fazê-las, o que pode ser considerado como a liberdade.

FICHA TÉCNICA

Título: A Insustentável Leveza do Ser

Autor: Millan Kundera

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 344

Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca

Ano: 2017

REFERÊNCIAS

PIERRY, L. G. O Mito do Eterno Retorno em “A Insustentável Leveza do Ser”. Disponível em: https://medium.com/revista-subjetiva/o-mito-do-eterno-retorno-em-a-insustent%C3%A1vel-leveza-do-ser.

SCHNEIDER, D. R. O método biográfico em Sartre: contribuições do existencialismo para a psicologia. Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser / Milan Kundera; tradução Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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O Mito da Alma Gêmea e o desafio de amar

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A alma gêmea pode ser considerada o amor idealizado por uma determinada pessoa, a outra metade que visa preencher o outro. Porém, será mesmo que existe uma alma gêmea? Outra pessoa feita especialmente para completar o enamorado? Ou isso existe apenas na mente dos apaixonados e românticos, que defendem esse mito como uma verdade?

No período Helênico, alguns pensadores gregos acreditavam nessa verdade e criavam teorias que tentavam comprovar sua existência. Fedro e Pausânias acreditavam no amor intelectual, Erismaco no amor natural e Aristóteles contava o mito que deu início a esse debate, do qual os seres humanos eram criaturas andrógenas e Zeus como forma de punição os separou, assim eles passam a vida procurando a outra metade perdida.

Fonte: https://goo.gl/qty53x

O amor é algo paradoxal, ele nos faz acreditar que as coisas são possíveis e que por meio de um grande amor tudo na vida é mais fácil, porque há como dividir os problemas e dificuldades com outra pessoa. Embora o amor seja algo imprescindível para o homem, ele não é absoluto. Ele remedia certos momentos difíceis na vida mais nem tudo são flores. Amar requer paciência, agradar o outro, compreensão e não desistir por qualquer coisa.

Sentir que existe outra pessoa no mundo que possa fazer tudo isso por a gente dá uma espécie de paz, conforto. Todavia, pensar em fazer tudo isso não é fácil, demanda muita experiência e força de vontade. Na bíblia diz “O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1 Coríntios 13:4-7). Imaginar um amor assim é idealizar algo fascinante e sem esforço, esse tipo de amor está fadado a ser impossível.

Fonte: https://goo.gl/7mJ5hx

Sempre acreditei no amor, em encontrar uma alma gêmea, minha metade, a minha salvação. O amor encontrado nos filmes, nos livros tem me confortado por muitos anos, encontrar um amor foi meu maior sonho. Mas, quando encontrei me decepcionei, ter paciência não é para todos, saber lidar com diferenças e dificuldade também não é fácil. Porque, confundir amor com paixão é muito recorrente, saber superar a paixão e chegar ao amor é mais difícil ainda. Enfim, o tempo passou e a experiência fez muita diferença. A paciência e a humildade de perceber que o amor é algo frágil e sem essas características ele não existe.

Não sei se de fato encontrei minha alma gêmea, mas sei que há muito tempo aprendi a amar ele e a esperar o tempo reservar momentos bons e suportáveis. Apesar disso, acredito muito no sentimento chamado amor, que ele faz milagres e mudanças na vida das pessoas, mesmo que não exista uma pessoa específica para cada um no mundo. Sempre é bom estar amando, aproveitando os momentos da vida com outro sujeito, sejam eles bons ou ruins. Portanto, que as pessoas possam visualizar e desfrutar de uma, duas, três, quatro almas gêmeas é o que importa, pois se existe uma coisa maravilhosa na vida é viver um amor.

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O mito do Sexo segundo Márcia Tiburi

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Em uma participação no programa Café Filosófico, Márcia Tiburi [1] nos traz uma excelente reflexão sobre a condição de ser mulher e a construção de ser feminina, bem como esses fatores se relacionam com o sexo e o poder. O mito é uma narrativa explicativa criada para esclarecer algo que não é explicado pela lógica. O interessante é que mesmo havendo uma elucidação racional para os fatos, o mito não foi eliminado, ele continua tendo sua função na subjetividade humana.

cafefilosofico

O sexo, no sentido do feminino e do masculino, também é um mito, são papeis criados para definir aspectos do homem e da mulher que não necessariamente fazem parte daquilo que eles são naturalmente, mas que ajudam na definição da identidade do ser. Considerando que historicamente os homens implantaram seu território de domínio na esfera pública e a mulher, talvez por sua condição reprodutiva, não teve tanta possibilidade de ocupar com tanta veemência o mesmo espaço, o papel do masculino acabou se fixando fortemente como aquele que detém o poder fora da casa, enquanto que para elas foi bastante limitado o papel de cuidar das crias e garantir o equilíbrio do lar.

Esses papeis delimitados por uma sociedade onde quem faz as leis são os homens, obviamente favorece quem cria as regras e não pode deixar de conter traços patriarcais. A essa criação sobre o como deve ser ou comportar uma mulher e um homem, a filosofia coloca na condição de mito.

Márcia Tiburi comenta sobre a questão da força e do poder atribuídos à imagem masculina, dizendo que “o poder” (enquanto substantivo) jamais será feminino, visto que é forte e a força é masculina (obviamente uma referência à aspectos físicos biológicos e não a aspectos emocionais subjetivos). Ela também fala sobre como “a delicadeza” é atribuída à imagem feminina, tanto que se um homem é um pouco mais delicado atribuímos a ele certa feminilidade.

O discurso patriarcal sobre o feminino está em todos os lugares, nem há como fazer uma genealogia que nos leve a origem do patriarcado, toda a nossa história, linguagem e racionalidade é patriarcal, não há como escapar disso, mas esse patriarcado precisa ser reconstruído a partir de uma crítica consistente a essa construção. Muitos autores defendem que o feminino é uma essência, uma natureza que precede a construções sociais e históricas que precedem o patriarcado. Mas, o feminino é mais amplo que a natureza, é também uma construção opositora ao paradigma do que é masculino, e a construção dos gêneros foi feita tendo o masculino como referência.

Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg
Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg

Entretanto, desde sempre as mulheres tiveram os mesmos desejos e potencialidades dos homens, mas a elas foi limitado o poder exercê-las e, apesar do mito do sexo e da construção paternalista das ideias de masculino e feminino, o homem e a mulher estão condicionados ao corpo em que nasceram, e no sentido biológico, o corpo nos é inexorável, somos aquilo a nossa condição, temos corpo de homem ou de mulher, hormônios de homem ou de mulher, a força física e a forma de homem ou de mulher e uma série de aspectos que também podem ser flexibilizados de acordo com a quantidade de hormônio que cada um tem, mas que não podem ser negados como características. Quando a anatomia não combina com o desejo iremos experimentar o conflito, mesmo que este possa ser superado. A pergunta a se fazer é como experimentamos o nosso corpo sendo este inexorável?

O sexo, portanto, não pode ser o sentido, mas sim a relação com o outro e isso está no sentido político como relação com o poder. A relação com o sexo pode ser construtiva ou destrutiva, produtiva ou não. Uma vida justa, boa e descente deve ser a busca, e o sexo apenas faz parte disso, mas não pode ser o foco do nosso sentido. O sentido está no todo, na complexidade e na totalidade do ser. Assim, fica lançada a reflexão: Qual a função do feminino para a própria mulher, não apenas para a sociedade?

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=6JNnFRf87DI

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Márcia Tiburi: O mito do sexo e a mudança no formato de conversação

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Se nosso ser político se forma em atos de linguagem, precisamos pensar nessa formação quando o empobrecimento desses atos se torna tão evidente. O autoritarismo é o sistema desse empobrecimento – Márcia Tiburi, em “Como falar com um fascista”

Em uma de suas participações no programa Café Filosófico, da CPFL Cultura, a filósofa Márcia Tiburi apresentou uma visão instigante sobre a desconstrução do mito do sexo. Para tanto, iniciou sua tese a partir da Grécia Clássica e, irreverente, disse que o útero é o grande fundador da filosofia. Isso pode soar estranho, no entanto ao apontar o método da maiêutica (parto) criado por Sócrates, a assertiva da filósofa ganha um novo sentido. Márcia Tiburi defende que, em razão de Sócrates não poder seguir a profissão de sua mãe, que era uma parteira, “ele então resolveu que faria algo melhor do que ela”. Desta forma, em vez de fazer o parto do corpo (cuja profissão era restrita ao universo feminino), faria o “parto das ideias”. Com isso, a criação da filosofia como a conhecemos hoje surge a partir de uma metáfora. A filosofia passa a ser caracterizada como um “partejar das ideias”, no sentido de “ajudar o outro a dar a luz às suas próprias ideias, algo que está guardado dentro dele, como se fosse um filho (ou seja, a metáfora da maternidade está funcionando aí o tempo todo)”, explica Tiburi.

Sócrates, assim, teria demonstrado possuir uma enorme inveja da sua mãe, por não poder realizar aquilo que ela fazia, que era “reproduzir o corpo, reproduzir a vida”. E é a partir desta falta, desta ausência, que ele reencena, recria o gesto de sua mãe. Neste ponto, diz Tiburi, “se for levar em conta o conceito de histeria naquilo que há de ‘teatro’, no hystera (útero), a filosofia já contém o germe do histérico”.

E onde ficavam as mulheres, durante este processo de “partejar as ideias”?, provoca Tiburi, para logo emendar: “Reclusas no Domus (casa em latim), no Oikos (casa em grego), que na verdade já era um protótipo de um campo de concentração”. E o que os homens faziam, neste ínterim? O que frequentemente, na história da humanidade, eles sempre fizeram: ocupar o espaço público, como o próprio Sócrates fez. Isso fica claro numa passagem de “O Banquete” de Platão, quando num dado momento os homens se preparam para começar um debate e pedem para a flautista sair do ambiente. “Deixem-na tocar para si mesma, ou para as mulheres lá dentro… mas procuremos agora o entretenimento através do diálogo”, destaca o texto.

Diante desta breve construção histórica, Márcia Tiburi diz que o mito do sexo é um dos quais a filosofia não conseguiu, até hoje, se posicionar de forma adequada. “O mito é uma narrativa que é construída para se colocar no lugar da ausência da lógica. Esta é uma interpretação tradicional e, em alguma medida, clichê. É uma interpretação básica, que é boa e justa, mas que não engloba todos os aspectos”, enfatiza. Neste sentido, a filosofia pode ser interpretada como uma negação ou mesmo uma superação do mito. Isso ocorreu de forma sistemática porque a filosofia quis garantir uma espécie de “reserva de marcado”, afinal o mito ocupava um amplo espaço à época. “Mas o mito não foi eliminado. Continuamos usando e criando mitos em nossas vidas a cada dia. A indústria cultural lança os novos mitos para saciar a nossa ‘sede’ e nossos desejos”, defende a filósofa.

Márcia Tiburi diz que por mais que se queira eliminar de cena certos mitos, pela força arquetípica de que está imbuído, isso não seria possível. “Vide o caso de Édipo (Édipo Rei, Sófocles, séc. V a. EC.), cujo mito se repete nas estruturas das famílias e mesmo na história da literatura. Um exemplo é o caso de Hamlet (de Shakespeare), que se configura como a renovação da estrutura do Édipo”, lembra, ao reforçar que a própria composição da literatura é uma renovação dos mitos ou um modo de mantê-los vivos. “O escritor Jorge Luiz Borges (1899 – 1986) costumava dizer que toda a literatura é uma releitura da Ilíada, da Odisseia e dos Evangelhos. Isso é até muito lógico, pois por mais que sejamos seres humanos com estilos e gestos diferentes, no final das contas estas diferenças são milimétricas”, reforça.

Tiburi explica que Platão, no “Timeu”, foi o primeiro filósofo a dizer que as mulheres tinham um animal dentro do seu corpo (o útero). Para ele, este animal quando estava insatisfeito perturbava tudo, inclusive o raciocínio. Por esta visão, tratava-se de um órgão atuando por outro órgão. “Talvez isso é o que tenha feito, segundo dizem as más línguas, Schopenhauer (1788-1860) dizer que as mulheres pensam com os ovários”. E como é visto útero, então? É este grande buraco, que ao mesmo tempo é o representante da animalidade do ser humano. A mulher, desta forma, passa a ser compreendida não como alguém que é dominada por seu cérebro – portanto, não é um sujeito capaz de fazer uso de sua racionalidade –, mas por viver “sendo capturada por essa animalidade que vem se dizer com toda a força”.

Em relação a Kant, Márcia Tiburi destaca que ele vai deixar explícito em vários textos que é preciso buscar e realizar, o tempo inteiro, o ideal de humanidade, posto que se não se realizar tal ação “estaremos sempre submetidos à menoridade da nossa condição humana”. Tiburi lembra que o filósofo prussiano deixa muito claro que as mulheres só podem participar desta humanidade de maneira restrita, enquanto são tuteladas por seus maridos. Assim, numa retomada ao ideário grego, competiria às mulheres ser o belo sexo, “bibelôs que ficam dentro de casa, num bem decorado campo de concentração, enquanto os homens vão para a esfera pública exercer o poder”. E é justamente neste ambiente de amplo debate sobre a condição humana, com a ênfase de Kant, que as mulheres começam a reivindicar sua posição dentro deste ideal de humanidade. Isso ocorre entre o final do século 18 e início do século 19. Uma dessas mulheres é Mary Wollstonecraft (1759 – 1797), que foi uma das primeiras a questionar as diretrizes deste ideal. É ela, assim, que define o feminismo como uma busca pelos direitos da humanidade, sem restringir a abrangência ao universo dos direitos das mulheres.

Voltando a questão do mito, Márcia Tiburi diz que ele surge quando não se tem uma resposta lógica e racional, que possa ser testada de forma empírica. Assim, “para o nosso medo da morte, criamos Deus. Ou livros, filhos e plantamos árvores. Todos estes são mitos”. Em síntese, o mito é a resposta para o vazio que é promovido por uma pergunta cruel que envolve um sentido, e que faz sofrer. A resposta do mito, portanto, é no sentido de que o sofrimento seja amenizado.

E por que o sexo se transformou num mito? “Porque o sexo virou a grande resposta para o nosso sentido. Sobre isso, o livro ‘A história da sexualidade’, do Foucault, é uma das poucas obras que alerta para a questão de que o sexo teria sido uma armadilha da qual nós, até agora, não conseguimos nos livrar. E que espécie de armadilha é essa? Ora, é o mito no qual a gente acredita. Ou seja, acredita-se que o sexo nos constitui como algo essencial. Que ao descobrirmos o sexo, descobriríamos quem somos”, arremata Tiburi.

Conversação

A filósofa lembra que quando Freud inventa a Psicanálise, ele altera o formato da conversação. Se a filosofia, em seu início nos pré-socráticos – sobretudo em Pitágoras, passando por Platão e Aristóteles –, era conversação num diálogo que só poderia ocorrer entre homens, Freud começa a ouvir as histéricas que manifestavam no corpo o mutismo em relação à linguagem, na virada do séc. 19 para o séc. 20. “Como se o corpo viesse a revelar aquilo que ficou proibido de se dizer na linguagem organizada e discursiva que utilizamos para se comunicar. O corpo, então, manifesta aquilo que não foi dito”, destaca Tiburi.

Freud descreve que os casos de histeria, em parte, estavam ligados à abstinência sexual. Mas ele fala também, no caso da paciente Anna O., que a mulher é tolhida ao não ter direito de viver dentro da esfera pública. No caso específico de Anna O., isso foi observado porque toda vez que ela fazia um exercício de intelecto, ao falar sobre sua vida, ela ficava bem. “Então Freud faz uma revolução, no território da linguagem, ao modificar a cena da conversação, quando passa a ouvir uma mulher. Isso ocorre depois de tentar o uso da hipnose. Ali houve um princípio de revolução feminista”, diz Tiburi, mesmo que este não fosse o foco do pai da psicanálise.

Márcia Tiburi lembra que Freud é muito criticado por parte das feministas, “mas este ato corajoso [de ouvir as mulheres] ninguém ainda tinha tido. Isso deve ser creditado a ele”. Freud então passa a supor que lá, naquilo que a mulher tem a dizer, encontra-se um saber. “Ele estava confiando num saber que aquela pessoa detinha por ter experimentado a própria vida”, pontua Tiburi. Esta foi uma verdadeira revolução, que inclusive exerceu forte impacto sobre toda a filosofia.

A mudança de ênfase envolveu uma escuta, então, para tudo aquilo que não podia ser dito. Trata-se de uma escuta do mutismo. “Se isso não é contraditório, no mínimo é dialético. Como eu vou escutar o mudo? Já que ele é aquele que não fala? Eu tenho que reconhecer que ele se declara em outro lugar. E que lugar é esse? É o corpo”, esclarece a filósofa, que acrescenta: “Ouvir a voz que não se diz. Esta é também uma questão filosófica”.

O masculino e o feminino

De acordo com Márcia Tiburi, o que há de mais desconcertante a se falar para uma mulher é que “ela é tão feminina, porque tem as mãos delicadas e a pele tão delicada”… Haveria uma redução do feminino à delicadeza. “No entanto, esta é uma construção patriarcal que está em todos os lugares. Não se tem mais como fazer uma genealogia que nos leve à origem do patriarcado, porque toda a história, linguagem e racionalidade é patriarcal. Pode-se escapar disso? Só reconstruindo a partir de uma crítica consistente e interna ao patriarcado”, observa Tiburi, ao acrescentar que o mundo público é dos homens, e o mundo privado também é deles, “porque ele é interno à esfera pública. O feminino, assim, é uma construção deste patriarcado”.

A filósofa lembra que muitos(as) autores(as) e feministas declaram que o feminino é uma essência, uma natureza que precede as construções sociais e históricas. No entanto, isso que se chama de feminino é algo extremamente amplo e vago, a negativa de um paradigma do que seja o masculino. Este último é colocado de forma mais precisa, por estar configurado no universo público das ações e das decisões. “A grande pergunta é: de que me serve ser feminina? De que me serve ser uma mulher? De que me serve acreditar no meu sexo? Se não escolhemos nosso sexo ao nascer, somos a nossa própria condição, como defende Ortega y Gasset. O meu corpo, neste sentido, me é inexorável. Eu não posso escapar do meu corpo, nem do lugar geográfico que meu corpo ocupa, nem da minha anatomia. Se a minha anatomia não combinar com o meu desejo, eu vou conviver dentro de um conflito. Pode até ser bom. Pode-se até se sentir bem vivendo dentro de um conflito”, conclui Tiburi.

E se o sexo deixar de ocupar um lugar de destaque na esfera humana, haveria o risco de colapsar o que se entende por humano? Esta indagação é limitante, pontua a filósofa, porque coloca o sexo como um sentido final. Há, antes de tudo, uma troca, uma relação. O objetivo geral, em tese, é ter uma vida criativa e produtiva, que se configure de forma justa e decente. O sexo faz parte deste arcabouço. “Quando eu fiz a crítica ao mito do sexo, eu quis mostrar que o sexo não pode ser o foco do nosso sentido. Porque o foco do nosso sentido tem que ser o único lugar onde, de fato, se configura com lucidez a noção de sentido, que é o todo. Eu não posso pensar no sentido sem pensar no todo”, explica Márcia Tiburi.

Desta forma, no contexto da relação que se estabelece com “nosso sexo, que chamamos de sexualidade, seria bem interessante que se desenvolvesse uma política do sexo”. Isso na acepção de “desrecalcar” e, no bom sentido, “desmoralizar” a moral sexual, “que atualmente é pérfida, embora a cada dia se torne menos pérfida”. A filósofa diz que as manifestações de abertura sexual que a sociedade vive atualmente são benéficas para todos. Aos poucos, começa-se a ruir a tendência a acreditar nos gêneros. “Estamos deixando de ser homem e mulher, estamos deixando de fazer aquele papel histriônico teatral do ‘eu sou mulher, você é homem’. Isso envolve respeitarmos as novas anatomias, e as possibilidades que estas anatomias trazem, mas já há um movimento de abandono de muitas das paranoias e neuroses em relação ao ideário do sexo”, arremata.

Por fim, Tiburi diz que atualmente é possível que as pessoas se declarem para além das sexualidades impostas ou dos gêneros já pré-definidos. Então, começa-se a pensar na pessoa em sua dimensão mais ampla, próxima de uma expressão de liberdade. E este sujeito passa a se afirmar pelo que ele é, não pelo que o outro espera que ele seja. Ganha força, com isso, a desconstrução de tudo o que até então sustentava o mito do sexo.

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Robin Hood e o mito do anti-herói

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Robin Hood é um mítico herói inglês. Resumidamente ele era um ladrão que roubava dos ricos para entregar aos pobres. Segundo sua lenda ele teria vivido no século XIII, na época das Cruzadas, juntamente com o Rei Ricardo Coração de Leão, sendo a ele leal.

É comumente dito que Robin existiu de verdade, mas o fato é que se realmente existiu, isso não importa, pois a sua lenda permanece viva e encanta o mundo a séculos, sendo retratada diversas vezes ao cinema, quadrinhos, e televisão.

Em Nottingham, cidade no centro de Inglaterra onde se passam as aventuras de Robin, além das estátuas, há as ruas batizadas com o seu nome e um festival anual que lhe é dedicado. E há também o que resta da Floresta de Sherwood, onde é possível encontrar a árvore em redor da qual o bando de Robin se reunia em conselho.

Robin Hood ficou retratado no imaginário coletivo como alguém exímio no arco e flecha. Ele vivia na Floresta de Sherwood e tinha como grandes amigos e auxiliares João Pequeno, Will Scarlet e Frei Tuck. Seu grande amor era Lady Marian, com quem se casa em todas as versões.

O Príncipe dos Ladrões – como ficou conhecido – prezava a liberdade, a aventura e a vida ao ar livre. Uma das primeiras referências escritas ao personagem é o poema épico Piers Plowman, escrito por William Langand por volta de 1377. A compilação Gesta de Robin Hood, datada de 1400, sugere que as histórias que compõem a lenda já circulavam bastante e eram de conhecimento público anos antes, pelo menos desde 1310.

Existem diversas versões e origens do herói. A mais conhecida é a de que Robin se chamava Robert Locksley. Robert serviu em uma Cruzada ao lado do rei Ricardo, mas ao retornar ao lar, Nottingham, o encontra sob a tirania do irmão do Rei, o Príncipe John. O povo estava debaixo de leis abusivas e a caça – forma de sustento na época – havia sido proibida. Indignado, ele se recusa a aceitar a situação e se torna um fora da lei. Aproveitando – se de seu conhecimento em cavalaria, arquearia e combate adquirido na guerra, ele une um grupo e inicia um combate à tirania da nobreza, roubando nobres arrogantes e clérigos abastados, como forma de compensar o abuso.

Ao final da historia ele vence o príncipe John e casa-se com Laid Marian, sobrinha de Ricardo. No fim da história, Ricardo Coração de Leão reaparece após sua derrota em terras estrangeiras e nomeia Robin Hood cavaleiro, tornando o nobre novamente. A verdade é que Robin Hood sempre foi fonte de versões para o cinema e televisão. A ideia do anti-herói que usa um artifício antiético para promover a justiça agrada a consciência coletiva.

Em todas as teorias que sustem que Robin realmente existiu, o herói escolheu a vida clandestina e de fato era um fora da lei, transgressor da ordem, por ter sido injustiçado e assim convocando para sua missão um grupo enorme de aliados. Ele se torna então o símbolo do heroi para o povo de generosidade e o temor dos governantes. Robin costuma ser retratado com uma roupa verde, que maneja o arco como ninguém, não teme nada e vive livre e feliz, rodeado de amigos que se ajudam a cada nova ameaça.

Antes de começar a analise então é importante salientar que é de pouca importância o que se sabe sobre o homem real que teria servido de inspiração para o surgimento dessa figura mitológica. Pretendo analisar o símbolo e o suposto contexto histórico. A grande questão e cerne central da epopéia de Robin Hood são as Cruzadas.

O Rei Ricardo parte em combate em nome da Igreja. Ele vai para Jerusalém na Terceira Cruzada e seu trono é então usurpado por seu irmão tirânico o Príncipe John. Temos aqui o inicio do problema: o rei é fraco e sucumbe ao poder.

Conforme Von Franz (2005), os contos e as lendas sempre se iniciam com um problema ligado ao rei:

Agora, nós continuamos com a exposição, ou seja, com o início do problema. Você o encontrará na forma do velho rei que está doente, por exemplo, ou o rei que descobre que toda noite são roubadas maçãs douradas de sua árvore, ou que seu cavalo é estéril, ou que sua mulher está doente e que precisa da água da vida. Algum problema sempre aparece no início da história obviamente, porque se assim não fosse, não haveria história. Então se define o problema psicologicamente e procura-se também entender sua natureza.

Com essa explanação faz-se necessário compreender a natureza desse problema inicial. Primeiramente o simbolismo do Rei é de muita importância. Um estudo mais aprofundado sobre o rei encontra-se em um capítulo intitulado “Rex et Regina”, do livro de Jung, Mysterium Coniunctionis. O Rei nas tribos mais antigas possuía qualidades mágicas para o povo. Certos chefes, por exemplo, eram tão sagrados que não podiam mesmo tocar a terra e por isso são carregados pelo seu povo (VON FRANZ, 2005).

Em diversas sociedades primitivas, a prosperidade de todo o país dependia da sanidade física e psíquica do rei: se ele se tornasse impotente ou doente, tinha que ser morto e outro rei deveria tomar seu lugar, cuja saúde e potência garantissem a fertilidade das mulheres e do gado, bem como prosperidade de toda a tribo. Com isso existe a ideia de que o Rei deve ser renovado periodicamente.

Conforme Von Franz (2005)

Pode-se dizer, em resumo, que o rei ou chefe incorpora um princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei representa o princípio divino na sua forma mais visível, é sua encarnação e sua moradia. Consequentemente, ele tem muitas características que nos levariam a considerá-lo o símbolo do SELF, porque o SELF, de acordo com a nossa definição, é o centro do sistema autorregulado da psique, do qual depende o bem-estar do indivíduo.

O Rei Ricardo então, como símbolo do Self, e ligado a uma civilização ocidental, representava, sobretudo a religião vigente: o Cristianismo, que deveria ser a fonte de saúde psíquica do povo. No entanto, a sua época havia um grande descontentamento com o Cristianismo, devido as Cruzadas. Esse descontentamento aparece diversas vezes nas adaptações do herói no cinema, principalmente em suas falas.

E a religião, assim como qualquer sistema regente, se desgasta. Seus símbolos perdem as qualidades numinosas. A história comparada das religiões mostra a tendência dos rituais ou dogmas religiosos a tornarem-se superados depois de um tempo, a perderem seu impacto emotivo original, tornando-se fórmulas mortas. Embora adquiram qualidades positivas da consciência, como a continuidade, eles perdem o contato com a corrente irracional da vida e tendem a tornar-se mecânicos (VON FRANZ, 2005). O mesmo acontece como os sistemas políticos, que se torna com o tempo desgastado.

Em Robin Hood, vemos os sistemas político e religioso vigente em processo de desgaste. Ricardo como Rei sucumbe as Cruzadas e abandona o que era essencial: o povo. As Cruzadas eram movimentos militares de inspiração supostamente cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-la, ocupá-la e mantê-la sob domínio cristão. Foram cerca de nove Cruzadas.

A Terceira Cruzada, pregada pelo papa Gregório VIII após a tomada de Jerusalém pelo sultão Saladino em 1187, foi denominada Cruzada dos Reis. É assim denominada pela participação dos três principais soberanos europeus da época: Filipe Augusto (França), Frederico Barba-Ruiva (Sacro Império Romano-Germânico) e Ricardo Coração de Leão (Inglaterra). Com isso, vê-se que o Cristianismo havia sucumbido ao principio do Poder. Não havia mais Eros na religião vigente. Cobiça e brutalidade marcaram esse movimentos.

O irmão do Rei, então usurpa o trono. John é a sombra do Rei, o principio do poder. Onde quer que uma estrutura cultural, religiosa ou civilizatória perca seu caráter religioso, ocorrem lutas políticas entre ditadores e grupos exclusivos que determinam o destino inteiro de uma civilização. Caso não haja um símbolo mais poderoso ainda capaz e unificar o povo, então a influencia disruptiva, aliada a lutas por prestígio e vaidade aparece (VON FRANZ, 2002).

A igreja nessa época não possuía mais vida espiritual capaz de manter o povo unificado, e assim estava destinada a perecer na luta contínua por poder. Nessa época, onde o Rei precisa ser renovado o principio do poder, representado por John, impera. Na figura de John temos a ira destrutiva. Na animação da Disney de 1973, John é representado por um leão, animal que para Jung, além de ser símbolo da realeza, representa os impulsos animais, fortes e apaixonados desejos, afetos. O leão representa um impulso poderosíssimo.

Conforme Von Franz (2002):

“Se um ser humano perde o seu ponto de apoio religioso, ela se desintegra se tornando alvo fácil de afetos, tais como sexo, poder, além de outros impulsos e desejos. (…) É o momento em que a personalidade é avassalada pela cobiça.”

É nesse cenário que surge Robin Hood, em defesa dos oprimidos e se torna uma figura mítica. Apesar de fora da lei, Hood é um herói. Entre as figuras de herói existe uma grande variedade: o tipo “tolo”, o tipo trapaceiro, o homem-forte, o inocente, o jovem belo, o feiticeiro, aquele que resolve os problemas e obstáculos através da mágica e aquele que os suplanta e resolve através de poder e coragem. O herói é o salvador, ele renova situação de vida.

Conforme Von Franz (2005):

O herói é, consequentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. Sendo um produto da psique inconsciente, ele é um modelo que deve ser observado, pois demonstra o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF.

Robin cumpre os desígnios do arquétipo do herói, pois ele realmente compensa e restaura a situação sadia. O fato de ser um fora da lei mostra que os elementos que provem do Self não se adequam a moral vigente. O inconsciente é amoral diante da consciência. Mas na verdade, Robin é então um transgressor. O ato de roubar o aproxima do mítico Prometeu, que rouba o fogo dos deuses para dar a humanidade. Robin rouba os valores dos poderosos, e do principio regente da consciência, que se desviou do padrão instintivo de funcionamento.

Como Prometeu trouxe o progresso a humanidade, Robin traz uma nova visão ao homem Ocidental, um acréscimo de consciência. Esse acréscimo de consciência vem por meio do questionamento das ações humanas. A destruição de um povo em nome do poder e o abandono de outro povo à custa do que se denomina Deus. Assim como Jó bíblico e Prometeu, ele questiona essa divindade. Ele questiona seus atos, sua agressividade, seu instinto. A dúvida é o início da consciência.

Mas tanto o mito, quanto a lenda mostram que a cada ganho em conhecimento e consciência, é acompanhado, inexoravelmente, por sofrimento, culpa e castigo. O ônus a ser debitado àquele que sai das trevas. Robin paga seu débito com a exclusão e a solidão. Além disso, Robin vive na floresta, em meio à natureza. A floresta é um símbolo do feminino e de uma parte intocada da psique. Tanto que a deusa associada as florestas é a deusa virgem Ártemis, um dos aspectos da Grande Mãe.

Na lenda e nas adaptações cinematográficas não há uma figura feminina juntamente com o rei. Ou seja, falta o elemento feminino no principio regente da consciência. A lenda de Robin mostra um fato bastante atual na humanidade, que é a exploração dos recursos naturais provinda do homem moderno. Essa exploração já vem chegando ao limite do absurdo. E a vida na floresta escolhida por Robin, mostra um caminho completamente oposto do homem ocidental, que prefere a vida agitada das grandes cidades. Essa característica o aproxima dos deuses pagãos da natureza, consortes da Grande Mãe.

O elemento feminino também é trazido à tona com o herói que passa a auxiliá-lo e sua aventura, que é sua amada Marian, retratada as vezes como sobrinha do rei Ricardo. Outro aspecto interessante em Robin é o fato de utilizar seu arco e flecha com maestria. Sobre isso podemos fazer algumas associações. O arco e flecha pode ser considerado como uma das mais inteligentes invenções da história da humanidade. Com essa arma, o homem passou a evitar a luta corpo a corpo, à qual estava submetido na antiguidade.

Nessa época, o homem precisava lutar corpo a corpo com os animais para caçá-los ou atirar dardos ou lanças, o que era extremamente perigoso e tornava praticamente impossível a caça às aves. O arco e flecha, então, passa a proteger o homem que podia atirar a uma distância segura e em silêncio. Levando a humanidade a um salto para frente em termos de melhoria quanto à sobrevivência. Arco e flecha então é um fruto da função intuição, uma vez que veio a se opor a força bruta. Além disso, para se utilizar o arco e flecha em uma caçada, era necessário não apenas ter uma boa pontaria, mas um estado psicológico adequado. Se antes disso o caçador houvesse tido uma briga, certamente erraria o alvo.

Portanto é necessário para se atingir um alvo buscar o equilíbrio interior. Acertar o alvo requer concentração, inteligência e intuição. Uma vez que o Self é representado como o centro da psique em sua totalidade, Robin além de ser extremamente inteligente, é hábil em acertar o alvo, mostrando que está em consonância com os desígnios do Self. E sendo por isso capaz de conduzir as pessoas à totalidade. Robin integrou a sombra, pois nele também vemos o aspecto negativo do herói, na figura do fora da lei.

Hood é conclamado o Príncipe dos Ladrões. O ladrão é uma figura mítica, sendo que a mais famosa é a do deus Hermes, considerado pelos gregos o padroeiro da inteligência, astúcia e dos ladrões. Todas essas características de deuses pagãos vistas em Robin são muito interessantes. Em uma época em que o paganismo foi reprimido em função de um Deus único, muito do conhecimento perdido dessa época foi para o inconsciente. Juntamente com esse conhecimento pagão, está o feminino que possui uma expressão mais magnífica no paganismo.

Robin então é responsável por trazer esse conhecimento reprimido à consciência e trazer a tona para que ocorra uma renovação. Também é importante salientar que nos contos de fadas vemos que a renovação se inicia nas camadas mais baixas da sociedade, Toda renovação não atinge de imediato as classes mais altas da sociedade. A renovação vinda de baixo seria a expressão da necessidade do povo de se livrar da opressão e ter liberdade. Aprofundando mais na imagem arquetípica de Robin Hood.

Conforme Hillman (1998), a figura do Puer Aeternus, como arquétipo único tende a unificar em um só as seguintes imagens: o Herói, a Criança Divina, O Filho do Rei, O Filho da Grande Mãe, Eros, o Psicopompo, Mercúrio – Hermes, Trickster e o Messias (o Salvador). Robin Hood possui várias dessas qualidades citadas: ele é um Herói; um sedutor assim como Eros; um Trickster, pois prega peças nos poderosos da cidade; um Mercúrio – Hermes por sua inteligência, criatividade e astucia; um ilho da natureza, ou seja, da Grande Mãe; e também um Salvador.

Ainda conforme Hillman (1998) o arquétipo do Puer Aeternus personifica ou está em relação especial com os poderes espirituais transcendentes do inconsciente coletivo. Representa com isso, o impulso do Espírito. A problemática do Puer foi muito bem detalhada por Marie Louise Von Franz em sua obra Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infância. Nessa obra ela aborda com clareza e detalhes o plano principal neurótico.

Contudo, agora quero enfatizar, com a figura de Robin Hood, o plano de fundo arquetípico, que traz a luz e a sombra e uma grande possibilidade de crescimento e desenvolvimento. O Puer é nossa própria natureza, algo de primordial em nós que transcende as normas coletivas. É a nossa essência que nos liga ao Self.

Através do Puer nos é dado nosso sentido de destino e missão, de que temos uma mensagem, de que somos portadores da chama divina. Ele é nosso sentido de vitalidade, de abundância, de entusiasmo. Assim como Robin ele está a serviço dos deuses (no caso o Rei Ricardo), ou seja do Self. Não quero com isso fechar o assunto, pois muito há o que se falar de Robin Hood e sua imagem de Herói, Trickster, Sedutor e Transgressor. Mas já é de muita valia compreender que ele representa o frescor da alma, a faísca do espírito e nossa mais profunda originalidade.

 

REFERÊNCIAS:

HILLMAN, J. O Livro do Puer – ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1998.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.

VON FRANZ, M. L. Puer Aeternus – A luta do adulto contra o paraíso da infancia. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

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Arquétipos em “O Conto da Princesa Kaguya”

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Filme de Animação.

O filme é baseado no conto do Cortador de Bambu, um conto japonês bastante popular. A história conta que um dia, enquanto cortava bambus na floresta, um velho, sem filhos se deparou com um misterioso e brilhante talo de bambu. Depois de cortá-lo, ele encontrou dentro dele uma criança do tamanho de seu polegar, que parecia uma boneca. Ele alegrou-se por ter encontrado uma menina tão bonita e a levou para casa. Ele e sua esposa criaram-na como sua própria filha e a chamam de Princesa.

 

 

A menina tinha um crescimento acelerado e logo se tornou uma bela jovem que gostava de correr pela floresta com seus amigos, pobre, suja, mas que possuía muitos desejos e sonhos. Seu pai, por outro lado, continuava a trata-la como uma verdadeira princesa. Ele à levou para a cidade para dar-lhe uma boa educação, mas teve muita dificuldade na missão de transformar a menina em uma “perfeita dama”.

 

Na verdade ele projeta em Princesa seu próprio desejo em ascender de classe social esquecendo os desejos e anseios da filha. Isso mostra um problema muito recorrente que gera muita angustia em pais e filhos, quando os pais com seus desejos e anseios não satisfeitos projetam na criança aquilo que não conseguiram realizar. E esse é um fardo muito grande para qualquer criança!

 

 

Como Princesa se transforma em uma jovem de beleza incomum, ela passa a ser cobiçada por cinco nobres, e também pelo próprio Imperador. E seu nome passa a ser Kaguya, ou seja, Bambu. Entretanto a menina não quer se casar e anseia voltar para sua vida simples interiorana. Por isso ela envia seus pretendentes em tarefas praticamente impossíveis de serem concretizadas, tentando assim, evitar o casamento com um estranho que não ama.

 

Mas Kaguya terá que enfrentar seu destino e punição por suas escolhas. Kaguya é apenas um prêmio para esses homens, e por essa razão ela sente um desespero imenso. Nesse desespero o povo da Lua (local de onde ela veio), ouve seu lamento e anuncia que virão buscá-la. E não há como reverter a situação.

 

 

Pode-se dizer que esse é um conto de fadas visto da perspectiva da princesa. O fato de ela ser uma filha da Lua, que desce a Terra (parece que o próprio povo decidiu enviá-la a Terra), mostra que se trata de uma heroína típica de contos de fadas e de mitos. Seu nascimento é mágico e seu destino incomum. Mas ao contrário das heroínas clássicas, as quais não são retratadas em sua dimensão humana, Princesa sofre, sente e anseia.

 

Kaguya é um arquétipo. No filme podemos perceber que os arquétipos necessitam da consciência do ego e da vida humana para se manifestarem e se humanizarem. Sem a dimensão humana eles são apenas potencialidades. Aparentemente Princesa falha em sua missão, uma vez que não conseguiu ser feliz aqui na Terra, mesmo assim sua história traz lições de extremo valor.

 

Quantas vezes deixamos de realizar nossos desejos em prol das convenções passadas a nós pela família e pela sociedade? E o quanto sofremos com as consequências de nossas escolhas? No filme, Kaguya sofre com a consequência de não haver seguido seu coração e ter ficado com seu amigo de infância Sutemaru. Quando ela se conscientiza disso já é tarde demais!

 

 

Quantas vezes nos arrependemos quando é tarde demais?  Quando não se pode mais voltar atrás?

 

Além disso, quando o povo da Lua vem buscá-la ela dá mais uma lição que pode parecer óbvia e clichê, mas que nos esquecemos constantemente em nossa vida diária: que a beleza da vida humana está no conflito. A felicidade e o sofrimento humano, inerentes à condição humana, são partes da nossa beleza. Kaguya não quer retornar ao mundo dos arquétipos, pois somente na condição humana é que existe a possibilidade de crescimento.

 

 

Além disso, enquanto ansiamos por posses, dinheiro e poder, ela descobre que sua alma era feliz com a simplicidade. Seu verdadeiro amor estava o tempo todo a sua frente e na vida simples é que ela conseguia ser ela mesma. A grande lição do filme, é que não importa o quanto se tenha, ou título que se carrega, se você não estiver seguindo o caminho da sua alma, tudo isso não vai adiantar nada. Pelo contrário, ao resistir em ouvir o desejo de nossa alma, ganhamos apenas dor, sofrimento e neuroses.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


 

FICHA TÉCNICA DO FILME

O CONTO DA PRINCESA KAGUYA

Direção: Isao Takahata
Música composta por: Joe Hisaishi
Autor: Isao Takahata
Duração: 137 minutos
Data de lançamento: 23 de novembro de 2013 (Japão)

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“Sniper Americano” e o (ainda) insuperável mito do herói

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Bradley Cooper), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição, Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som.

 

“Tal como a fumaça em elevação de uma oferenda, que atravessa a porta do sol, assim vai o herói, libertado do ego, pelas paredes do mundo… e segue adiante”.
Joseph Campbell

 

Com previsão de estreia no Brasil neste dia 19/02, Sniper¹ Americano é um sucesso de bilheteria e de crítica nos Estados Unidos, sobretudo depois de receber seis indicações ao Oscar 2015, incluindo três das principais categorias: Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado (além de Melhor Edição, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som). Há críticos, no entanto, que apontam erros grosseiros na obra – de continuidade, por exemplo – e não veem sentido na projeção que o longa tomou… Creditam o sucesso à tendência americana – por vezes ufanista – de destacar filmes que souberam sintetizar um ideal de vida festejado/almejado pelos yankees.

 

 

Sniper Americano é baseado numa história real, cujo roteiro é uma adaptação do Best Seller “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History”, sobre a vida do franco-atirador Chris Kyle, interpretado no filme por Bradley Cooper, que precisou “aumentar” 18 kg para se assemelhar com as características físicas da personagem.

 

 

A narrativa conta a trajetória de Kyle, desde sua pacata vida de cowboy no interior dos Estados Unidos, até seu “despertar” para o fato de que com frequência vários americanos estavam morrendo ao redor do mundo – e no próprio EUA, com o fatídico episódio de 11 de setembro – em decorrência de ataques terroristas promovidos pelos radicais islâmicos. Por ser um excelente atirador, habilidade que conseguiu graças às interações com o pai, Kyle então resolve dar a sua contribuição às Forças Armadas de seu país. O filme aborda, dentre outros aspectos, um patriotismo que transcende as definições mais usuais e ideológicas e descamba para uma origem mítica.

Chris Kyle foi um dos mais letais atiradores americanos – matou mais de 200 –, no entanto sua vontade de preservar um estilo de vida – e a própria determinação em salvar os seus compatriotas, alvos de constantes e hostis investidas – lhe fez assumir o posto de sniper não como um fardo, mas como uma missão, cujo preço ele estaria disposto a pagar, “face a face com o seu Criador”. Numa guerra como esta, ainda em curso com o crescente desafio imposto pelo Estado Islâmico, presume-se que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência. Kyle já sabia disso. Não por menos, tanto o livro quanto o filme sobre sua curta vida são sinônimos de sucesso em seu país.

 

 

A história de Chris Kyle fascina porque ele, como poucos, ensejou traços paradoxais que envolvem desprendimento (da família e do “conforto” do lar) e, ao mesmo tempo, comprometimento, algo que remete ao clássico conceito de “mito do herói”, estudado por anos a fio pelo mitólogo Joseph Campbell, cujo sentido está em despojar-se das vontades pessoais (e familiares) para atuar numa causa maior, que beneficie o máximo de pessoas (no caso do filme, os compatriotas ameaçados).

Em Sniper Americano, dá para perceber claramente o padrão da aventura mitológica do herói, que nada mais é que a exacerbação de um ritual de passagem, com a “separação, seguida da iniciação e, por fim, o retorno” como diretiva de vida para alguém que mesmo sendo oriundo do mundo ordinário, se dispõe a usar de todas as suas forças para, na empreitada que abraçou em terras distantes, derrotar o inimigo e retornar, “trazendo consigo os benefícios aos seus semelhantes”, como pontua Campbell. Para Kyle, o fruto de sua ação é a perpetuação do ideário americano e, claro, a manutenção da segurança dos colegas militares e da própria estrutura de poder da nação, já que as incursões bélicas eram “preventivas”.

 

 

Como “portador simbólico do destino de todos”, Kyle atende “ao chamado da aventura mitológica”, o que significa que

O destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida, distante. […] O herói pode agir por vontade própria na realização da aventura, como fez Teseu ao chegar à cidade do seu pai, Atenas, e ouvir a horrível história do Minotauro; […] mas a recusa à convocação converte a aventura em sua parte negativa. Aprisionado pelo tédio, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado para se transformar numa vítima. (CAMPBELL, 2007, pág. 67)

 

Chris Kyle, na medida em que abraça a aventura heróica, se embaralha para situar-se no “retorno”. Para Campbell, isso ocorre porque há o risco de o herói ter o seu inconsciente violado. Passam a sofrer de uma “deficiência simbólica”. No caso de Kyle, após quase 10 anos servindo às Forças Armadas, se vê compelido a manter-se entre os ex-combatentes, mesmo depois do regresso ao seio familiar, numa espécie de “recusa de retornar da aventura”.

Nos contos de fadas, essa deficiência pode ser tão insignificante quanto como a falta de um certo anel de ouro, ao passo que, na visão apocalíptica, a vida física e espiritual de toda a terra pode ser representada em ruínas. Assim, […], o herói de contos de fadas obtém um triunfo microscópico, doméstico, e o herói do mito, um triunfo macroscópico, histórico-universais. (CAMPBELL, 2007, pág. 41)

A representação universalista, em Sniper Americano, se dá pelo ideal de liberdade.

Mas, afinal, qual seria exatamente o destino de um herói, diante de tão grande missão?, o leitor poderia perguntar… Campbell apresenta várias possibilidades que vão desde a glória à incompreensão (este último tão comum quanto se possa imaginar).

O “retorno e reintegração social”, muitas vezes, não ocorrem de forma suave. Para essa inaptidão em se reposicionar na vida comum, o herói pode pagar com a própria vida. Vejamos o caso de Chris Kyle (cuidado, spoiler à frente), que ao ajudar na recuperação de um colega ex-combatente, medida que adotou para superar o próprio processo de reinserção, acaba sendo assassinado. Há, então, um típico exemplo de que apesar de o herói

alcançar seu alvo (pela violência, pelo engenho, pela sorte) e levar a graça para o mundo que ele desejou, [não sai incólume] pois os poderes desequilibrados por ele podem reagir tão violentamente que o herói será destruído tanto a partir de dentro como de fora – crucificado, tal como Prometeu, no rochedo do próprio inconsciente, [ou como Jesus Cristo, cuja mensagem é tida como incompreendida por seus contemporâneos]. (CAMPBELL, 2007, pág. 42)

 

O desfecho é trágico, mas também é delineador da “eternização” do herói, onde piedade, horror, conquistas e perdas se mesclam, numa dinâmica que lembra um dos fragmentos (46) do filósofo grego Heráclito, para quem a partir “das diferenças surge a mais bela harmonia, e todas as coisas se manifestam pela oposição”. Chris Kyle é aclamado como herói, e paradoxalmente morre no ápice daquele que seria o momento de colher os frutos da aventura mitológica (assim como ocorreu com Ayrton Senna). Ainda em vida, soube resumir parte do sentimento comum/predominante americano, de que (pelo menos em tese) os deveres para com a nação devem estar acima de qualquer investida pessoal.

Deu tudo de si e, despido de egoísmo, se esvaiu na mesma velocidade com que lançava os projéteis. Eis uma das facetas do “caminho do herói”: intenso e rápido como um raio. Afinal, deles o que irá ficar não são os enlaces do dia-a-dia. É a bravura e a coragem de ter feito “o percurso” por inteiro… estas sim vão se transformar em verdadeiras credenciais imortalilzadas. O que certamente ocorreu com o sniper americano Chris Kyle.

 

 

Nota:

¹ – Atirador de elite. A palavra sniper vem do pássaro snipe que era muito difícil de caçar e passou a ser dados aos caçadores habilidosos.Foram os alemães que começaram a chamar seus atiradores como snipers. No Exército Brasileiro é chamado de caçador. Aqui será chamado sniper. A história dos snipers começara na guerra de independência americana quando milicianos locais conseguiam acertas formações inglesas à distância. Os alvos preferidos eram os oficiais que tinham uniformes bem diferenciados dos soldados. Alguns batalhões ingleses chegaram a perder todos os oficiais. Antes desta época as armas eram muito imprecisas para que o sniper fosse viabilizado. Fuzis com projeteis encapsulados permitiram aumentar a precisão e distancia de tiro. Acoplados a lunetas permitiram que as técnicas e táticas dos snipers se desenvolvessem. A função dos snipers não é só bater alvos inimigos. Uma missão típica geralmente é penetrar as linhas inimigas, matar oficiais, artilheiros ou metralhadores, ou atrasar avanço inimigo em uma retirada de tropas, sendo um meio para conseguir superioridade de fogo. A identificação de alvos é crucial com o sniper tendo que distinguir oficiais, mensageiros, operadores de radio, operador de armas pesada e tripulantes. Os snipers inimigos são os mais importantes e os soldados comuns estão no fim da lista de prioridade. Como arma sua função é diminuir a moral inimiga, criar confusão e atrasos. Fonte: ArmaPoint – disponível emhttp://www.armapoint.com/tutoriais-diversos/140-taticas/1352-taticas-de-combate-taticas-de-snipers – acesso em 16/02/2015.

 

Referências:

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Crítica a Sniper Americano. Disponível em http://altamenteacido.com.br/review/critica-sniper-americano/ – acesso em 16/02/2015.

 

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

SNIPER AMERICANO

Título Original: American Sniper
Direção: Clint Eastwood
Duração: 132 minutos
Gênero: Ação – Biografia –  Guerra
País de Origem: Estados Unidos da América
Estreia: 19 de Fevereiro de 2015 ( Brasil )
Ano produção: 2014

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