Um último adeus…

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Aquele dia poderia ser como todos os outros, mais um turno no hospital, mais um paciente atendido, mais uma entubação, apenas mais um, mas isso estava muito longe de ser a realidade. Naquela tarde passando pela estrada paralela a cidade, havia um caminhoneiro, assim como todas as pessoas, cheia de vivências, pessoas que o amavam e histórias a serem escritas, em um momento de agonia decidiu parar no hospital.

Debilitado, pressão baixa, respiração alterada, esses foram apenas alguns dos sintomas que ele sentia, em meio a esse turbilhão de sintomas e sentimentos chega o diagnóstico, ele estava com Covid, mas não só isso, devido sua saúde fragilizada seu estado já estava deplorável, logo a equipe multidisciplinar já entende que será necessário a intubação.                                                                                 

Fonte: pixabay

A equipe tenta contato com a família e como de costume faz perguntas para investigar as nuances de seu estado de saúde. Ele fumava? Usava substâncias entorpecentes? Algo que o fazia ficar acordado?, todas essas e mais perguntas feitas. Sim, ele fumava, e para aguentar longos períodos na estrada também fazia uso de algumas substâncias, então anunciamos a necessidade da intubação.

O medo, desespero, agonia, todos esses sentimentos mistos que geram tamanha insegurança, fez com que a família negasse, muito mais do que negar a intubação, eles estavam negando a possibilidade de uma perda, um luto. Em meio a tudo isso, o caminhoneiro só pedia uma coisa: “Preciso falar com minha esposa!”, então ofereço meu celular e naquela pequena tela de celular vejo uma mulher, em prantos, com um bebe no colo buscando esperanças para acreditar que o pior não vai acontecer, mas falhando nisso.

O caminhoneiro a tranquiliza, diz que tudo bem ser intubado e que tudo vai ficar bem, diz que voltará para cuidar da filha e que não precisava se preocupar com nada. Então ele vai, e ao entrar na sala segura fortemente a mão do médico, e com uma firmeza ainda maior em seu olhar pede desesperadamente que façam de tudo para que ele viva, afinal ele precisava viver, tinha uma filha que há três dias estava no mundo, não podia deixá-la, nem ela e nem as suas outras duas filhas e muito menos sua mulher desamparada.

Fonte: pixabay

No meio do processo, todos os medos são concretizados, o caminhoneiro não suportou e naquele dia, que poderia ser tão comum, a equipe se olha, e ao perceberem, estão todos no chão, em prantos. Chorando pelo homem que partiu, pela filha que não conheceu, pela esposa que não vai ganhar mais um beijo e pela família que não vai tê-lo mais presente.

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Uma Crônica sobre os relacionamentos virtuais

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Relacionamentos que se iniciam no virtual  são menos legítimos? Reflexões acerca da virtualização do namoro. 

Matheus Aquino- @mathewsaquino2@gmail.com 

Foi em um dia bastante comum que um jovem estava conversando com seus amigos, já era noite e então um deles se levanta e pede ajuda para encontrar alguém legal no Tinder. Um dos amigos se oferece para ajudar e os dois começam a busca. 

Foram vários minutos de alguns cliques, arrastavam o dedo e decidiam se davam match ou não. Durante a escolha surgiam risadas, críticas e sugestões para decidir se tal pessoa era legal e se valia a pena conhecer. 

Depois de algum tempo eles pararam e um deles que estava apenas observando, perguntou o que tem de tão divertido em procurar pessoas por atacado. O outro riu e disse que achava normal, e que nem sempre as pessoas que procurava no Tinder era pra ter um encontro, algumas vezes era apenas para sair e quem sabe, iniciar uma amizade. Foi então que este amigo, mesmo achando estranho, tentou entender como as pessoas estão cada vez mais adeptas às tecnologias e aproveitando a facilidade de aproximação para então desenvolver novos laços, mesmo que correndo riscos. 

No mundo moderno, os relacionamentos virtuais emergiram como uma realidade complexa e multifacetada. Por meio das telas brilhantes dos dispositivos eletrônicos, uma nova forma de conexão humana foi estabelecida, transcendendo fronteiras geográficas e culturais. No entanto, junto com essa nova era de interação digital, surgem desafios e riscos que devem ser enfrentados e compreendidos.

Os relacionamentos virtuais têm o poder de unir pessoas que, de outra forma, talvez nunca se encontrassem. Com apenas alguns cliques, é possível estabelecer amizades, parcerias profissionais e até relacionamentos românticos. A velocidade e facilidade com que essas conexões são feitas são, sem dúvida, vantagens marcantes do mundo virtual.

Neste sentido, as redes sociais têm desempenhado um papel significativo na forma como as pessoas se conectam e se relacionam nos dias de hoje. Pesquisas sobre relacionamentos afetivos que se iniciam em redes sociais exploram como esses encontros online afetam o desenvolvimento e a qualidade dos relacionamentos amorosos.

Fonte: Pexels

De acordo com uma pesquisa desenvolvida pelo Pew Research Center (SMITH, 2016), descobriu-se que 59% dos entrevistados acreditam que aplicativos e sites de namoro são uma boa maneira de conhecer novas pessoas. Além disso, a pesquisa também indicou que os relacionamentos que começam online são tão bons quanto aqueles que se iniciam pessoalmente. 

Através das redes sociais, fóruns e aplicativos de mensagens, os relacionamentos virtuais se desenvolvem em um ambiente onde as barreiras físicas não são um obstáculo. Eles proporcionam uma plataforma para expressão livre de ideias e sentimentos, permitindo que as pessoas compartilhem suas experiências e opiniões de maneira aberta e inclusiva.

No entanto, é importante reconhecer que os relacionamentos virtuais também apresentam desafios e limitações significativas. Embora as palavras digitadas possam transmitir emoções e ideias, a comunicação online carece da riqueza da comunicação não verbal. A ausência de expressões faciais, gestos e tom de voz muitas vezes pode levar a mal-entendidos e interpretações equivocadas (VASCONCELOS, 2014)

Outro aspecto crucial dos relacionamentos virtuais é a questão da autenticidade. Nas plataformas digitais, é possível criar personas e identidades falsas, o que leva a uma falta de confiança e transparência. Atrás de uma tela, é mais fácil ocultar a verdadeira identidade, levando a relacionamentos baseados em falsidades e desonestidade.

Além disso, a exposição a comportamentos tóxicos e abusivos é um risco real nos relacionamentos virtuais. O anonimato proporcionado pela internet pode incentivar pessoas a agir de forma agressiva ou prejudicial, sem enfrentar as consequências de suas ações. É fundamental estar ciente desses riscos e estabelecer limites saudáveis para proteger a integridade emocional e psicológica (MORAES; BRANDÃO, 2018)

É importante enfatizar que os relacionamentos virtuais não devem substituir os relacionamentos offline. Eles podem complementar e enriquecer nossas vidas, mas a interação cara a cara continua sendo uma necessidade humana básica. O toque, o contato visual e a conexão física são elementos essenciais para o desenvolvimento saudável das relações (VASCONCELOS, 2014). 

As redes sociais oferecem diversas formas de conhecer pessoas, como grupos temáticos, comunidades online, aplicativos de namoro e até mesmo interações casuais em comentários ou mensagens diretas. Essa variedade permite que as pessoas encontrem indivíduos com interesses e valores semelhantes. Neste sentido, é um potencial mecanismo de pertencimento social e ampliação das redes afetivas. Conclui-se que conhecer pessoas no mundo virtual e estabelecer relacionamentos a partir deste contexto não se caracteriza como uma forma melhor ou pior, segura ou perigosa; é, simplesmente, mais uma forma de se conectar com outras pessoas.

REFERÊNCIAS 

MORAES, J. G.; BRANDÃO, W. L. Relacionamentos Virtuais: uma Análise Acerca dos Padrões Comportamentais dos “Catfish”. Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas, 19(3), 300-308, 2018. 

SMITH, Aaron. 15% of American Adults Have Used Online Dating Sites or Mobile Dating Apps. Peer Research Center, 2015. Disponível em:<https://www.pewresearch.org/internet/2016/02/11/15-percent-of-american-adults-have-used-online-dating-sites-or-mobile-dating-apps/>. 

VASCONCELLOS, A.  A solidão nas redes sociais de relacionamentos. Revista Saber Acadêmico, 16, 100-108, 2014. Disponível em:<http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20180403111539.pdf>. Acesso 10 jun 2023.

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Anos nem tão dourados: a triste infância de Ciça

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“Enquanto fenômeno socialmente construído, incorporada como legítima e, mesmo, como imperativo, a violência prende-se às próprias condições de constituição e de funcionamento de uma sociedade de homens livres.” (ADORNO, 1988, p. 5).

No dia 15 de agosto de 1956 às 18 horas de um dia de sexta feira, nascia Ciça, um belo bebê saudável que pesava 4 kg. Ciça veio de uma gravidez não desejada, num lar disfuncional e muito, muito pobre de recursos materiais, bem como emocionais. O bebê era a quarta de uma família de seis agora, a mãe trabalhava dia e noite lavando trouxas enormes de roupas, que mal dava conta de carregá-las. Maria era linda e loira, olhos azuis da cor do mar em calmaria, só a cor que lembrava a calmaria. Sua pele muito branca fazia um contraste dolorido com o sol quente. As condições de trabalho eram precárias, três bacias, água tirada na cisterna puxada por uma corda, onde tinha um balde pendurado, (chamava-se sari). 

O sol castigava, pois não havia proteção, o trabalho era realizado durante o dia todo debaixo daquele sol escaldante, ou da chuva, tinha quatro filhos para alimentar. O pai de Ciça aparecia de vez em quando com um pacote de arroz, e por meses a fio não se ouvia falar dele. Na época pouco se sabia sobre a história deste moço, por onde andava, o que fazia, pensava na família? Pois bem, em meio a estes eventos, lá ficava o bebê, vez ou outra a mãe aparecia para amamenta-la, com pressa, o serviço urgia, se fez necessário estancar o leite e passar para a mamadeira, não havia tempo, assim o irmão mais velho poderia providenciar o mingau e ela estaria com mais tempo para as lidas do dia. Maria era uma mulher sisuda, de poucas palavras, sorrisos raros, quase inexistentes, e bastante violenta, Ciça saberia disso anos mais tarde.

Ciça cresceu e apesar dos pesares, cresceu saudável, aos cinco anos já tinha consciência do mundo ao seu redor e de seu lugar nele. Era uma garotinha linda; assim como a mãe, era sisuda, de poucas palavras, sem sorrisos, mas por motivos diferentes, achava ela.

Os dias eram sempre molhados, úmidos, assim como sua alma.
Imagem de Elisa Riva por Pixabay

A partir desta idade Ciça atesta se lembrar de cada detalhe de sua angustiante e melancólica vida. Ela já tinha obrigações dentro da minúscula casa, que contava com um cômodo e um puxadinho sem paredes para o fogão feito com seis tijolos, tinha também uma prateleira onde os alumínios brilhavam. Maria já introduziu Ciça no exercício de varrer, arrumar cama (só tinha uma para todos) e aos bofetões lhe ensinava a brilhar panelas, e como dizia ela, ensinava a ser “gente”.

Ciça sofria agressões por fazer e fazer mal feito, por não fazer, por chorar, por não chorar, ela era o pano de fundo das amarguras de Maria. Suas mãozinhas pequeninas não conseguiam segurar direito as coisas, portanto não tinha o domínio que Maria exigia dela, até aprender, seu corpo sofria, sua cabeça não entendia o ódio que aquela mulher nutria por ela. Por fim, foi se naturalizando, vai ver que a vida era aquilo mesmo. Por incrível que pareça Ciça amava aquela mulher, achava-a linda e como ela queria por um minuto sequer que ela a amasse, mas deveria ter algo torto com Ciça, algo com que fizesse que a Maria sentisse aversão por ela. Sim, a culpa era da Ciça. É evidente que era, ninguém morde uma criança até sangrar, sem que a criança seja torta.

Aos cinco anos e meio Ciça pegou um livro de sua irmã folheou e sem a menor dificuldade leu uma página, Maria não acreditou, julgou que a menina estivesse inventando e pegou o livro e leu a página, e não, Ciça não estava mentindo, e pela primeira vez em sua pobre vidinha ela ganhou um abraço da mãe que ficou maravilhada, pois a filha nunca havia ido à escola. Maria não sabia que a irmã mais velha sempre lia para Ciça, à luz de uma lamparina, ou à luz da lua, momentos em que Ciça poderia voar e sonhar. Nestes dias peculiares, sua irmã a introduziu no mundo das letras, era pouco, mas Ciça tinha avidez em aprender. E foi assim que se deu, foi um anjo que compadecido presenteou Ciça com este momento do qual ela se lembra até hoje.

A menina acordou no outro dia disposta, depois daquele abraço ela se encheu de esperança, com planos coloridos para um futuro melhor, embora ela não soubesse o que era futuro, pensou que as coisas seriam diferentes agora. Finalmente sua mãe a amaria, ora, porque não, afinal houve aquele delicioso abraço, não se pode agredir depois de um abraço, não tem como voltar atrás depois de amar. Ela descobriu que o mundo dos adultos, nem sempre tinha regras, continuidade, era como um filme com um roteirista macabro. Maria acordou e com a grosseria costumeira já colocou Ciça para brilhar as panelas e com promessas de muita surra caso não brilhassem. Ciça só a olhou desolada e uma lágrima furtiva rolou por sua face. Foi sua primeira grande decepção, mal ela sabia que viriam muitas outras.

Com o tempo as obrigações de Ciça aumentaram muito, com sete anos já haviam mudado de casa umas 10 vezes, sempre era no fundo de alguma casa, e as habitações eram sempre miseráveis. Nesta última casa em questão, havia um fogão a lenha e a menina foi presenteada com um banquinho, para que subisse e assim poder cozinhar. Sim, o almoço seria agora por sua conta. Maria explicou a Ciça como fazer arroz, foi rápido, e ela fez, da maneira que entendeu. As mãos tremiam, o pavor do insucesso era grande, pois as consequências seriam desastrosas. Pois bem, na medida em que o arroz foi cozinhando ele foi crescendo, crescendo, por fim derramou, era arroz demais para a panela. O desespero se instalou e se justificou, Maria entrou e quando viu aquilo, colocou a mão naquele arroz quente e numa fúria mortal, esfregou no rosto de Ciça, queimando todo seu rosto. Uma semana de babosa no rosto e uma tristeza de morte na alma.

Ciça aprendeu a dor de não ter sapatos.
Imagem de Azmy Talibi por Pixabay.

Ciça nesta época aprendeu a cozinhar, quando tinha algo para cozinhar, ela não sabia se ficava alegre quando não tinha, ou ficava triste por não ter, ela conhecia a fome de perto. Os sentimentos de Ciça eram confusos entre ser triste ou ter um alívio da tristeza, aliás, os únicos sentimentos aos quais ela tinha intimidade eram medo, vergonha, tristeza, angústia e um monte de porquês embolado em sua garganta. Neste período Ciça entra na escola, “Escola Estadual Professor Chaves”, era uma escola chique para a época, lá estudavam tanto ricos como pobres, isso também foi o calvário de Ciça. A menina não tinha calçados, ia com o uniforme limpo que brilhava, porém, descalça. Logo, virou chacota da turma. A segunda decepção, ela não pensava que crianças também poderiam ser cruéis.

Ciça frequentou a escola por um ano, saiu-se mal em todas as matérias, se sentia a pior das criaturas. Seu irmão Valmir que era seu único e melhor amigo, era mais inventivo e ousado, a vida dura o tinha tornado um mini adulto. Ele achou um pé de botinas, e no outro pé ele enfaixava com tiras de pano e mancava, fingindo estar machucado e assim rompeu o pré-primário. Ciça não, passou a se esconder no mato até a aula acabar, mas não era de todo perdido, estudava nos livros, neste ano, apesar dos parcos resultados, aprendeu a ler corretamente, fazia contas mais ou menos, mas adorava, como ela adorava o livro de histórias. Lia avidamente e com isso tomou gosto pela escrita, o que se tornou seu refúgio. Um dia desses de esconderijo, a menina se encontrava debaixo de uma árvore perto de uma cerca de arame, e chovia muito, caiu um raio que arrebentou a cerca, Ciça ficou intacta, se instalou nela uma esperança que ela seria um ser especial, isto passou a movê-la. 

O tempo passou, sua mãe nunca descobriu que ela não terminou os estudos, mesmo porque, não havia tempo para estes pormenores, a escola nunca a procurou, e com isso Ciça fez 10 anos. Tornou-se uma linda garota, de cabelos muito negros e longos, dignos de elogios de quem os visse. Ela não se dava conta disso. Mudou-se com a família para o estado de Goiás, onde a pobreza deu uma arrefecida, mas a fúria de Maria não. Nesta época, Maria teve mais dois filhos, mas Maria tinha que trabalhar, agora ganhando um pouco mais. Os cuidados com os irmãos eram por conta de Ciça, a menina lavava, passava, cozinhava e cuidava dos irmãozinhos, não havia tempo para estudos, a noite quando o pai aparecia, ele lhe dava algumas lições. Quando Maria chegava checava todo o serviço realizado, caso houvesse alguma coisa fora do lugar, ou mal feito ao seu olhar, o lindo cabelo de Ciça era usado como cordas enlaçando a mão de Maria que neste movimento arremessava a cabeça de Ciça nas paredes. Uma nova modalidade de violência se instalou.

A vida seguia, nesta época além de escrever Ciça adora cantar, e o fazia muito bem, cantava o dia todo naquela lida infernal que a deixava exausta. Um dia sua irmã ao chegar do trabalho, deparou-se com Ciça com os cabelos desgrenhados, perguntou o que houve, ele já sabia, mas queria saber dela. Ciça relatou e ela incontinente pegou Ciça pela mão e levou-a em um salão, sua irmã também tinha os cabelos longos e lindos. Sentaram as duas e ela disse: corte nossos cabelos curtinhos, e assim foi feito. Foi a maior prova de amor que alguém já havia dado a ela. Nunca mais a menina esqueceu, como também, nunca mais ela deixou o cabelo crescer, nunca mais conseguiu, foi como se quisesse cristalizar aquele momento de entrega genuína da irmã, bem como preservar dentro de si aquele sentimento de que alguém de verdade a amava.

Em tempos difíceis, ter com quem contar é um tesouro.
Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay

Ciça sempre pôde contar com sua irmã doravante, isso a fazia mais feliz, lhe dava um mínimo de segurança. A menina voltou a estudar, mas sempre fazia supletivos, cursos rápidos e sem embasamentos, mas aprendi muito, era uma devoradora de livros, ganhou prêmios de melhor redação, foi pro jornal e tudo; sempre passava nos testes de emprego, era dedicada em tudo que fazia, tornou-se uma adolescente sem problemas, educada e obediente. Porém com ela se arrastou pelo resto da vida, um sentimento enorme de baixa autoestima. Começou a trabalhar fora aos 12 anos de idade, todos em casa tinham que trabalhar, a vida já não era tão difícil, tinha comida na mesa. Maria era fria, porém, suas agressões haviam diminuído bastante, era quase uma mãe nesta época. Ciça se tornou especial? Não, não se tornou, o raio não fez efeito, mas se tornou um ser humano que não replicou a violência e está quase se formando aos 66 anos, acho que isso a torna quase normal, o que já é lucro para ela.

Referência

LONGO, S. Cristiano. (2005). ÉTICA DISCIPLINAR E PUNIÇÕES CORPORAIS NA INFÂNCIA. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/QxyYj3c7DdyV7WxxZMdsfYN/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 20/02/2023

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A coragem de ser quem eu sou

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Por muito tempo me escondi em um casulo

A escuridão parecia uma companhia segura

Deixei minha essência se tornar um segredo

Como se fosse um perigo aos demais

(Eu era ou eu sou?)

 

Como se a verdade deles ditassem a minha

Decidi silenciar cada medo e desejo

Vivi sob a sombra de quem estava ao meu lado

Porém me desconhecia

(Eu errei ou erraram?)

 

Se apenas tivessem a sensibilidade 

A mínima curiosidade

Teriam olhado nos meus olhos

Poderia ter sido descoberta antes de virar um caos

(Isso me salvaria ou me atormentaria?)

 

Antes das mentiras se tornarem insustentáveis

O passado pesar nas costas

E o perdão ser questionável

 

Antes do silêncio se tornar aceitável

Mas o grito sair inevitavelmente 

Ao bater de frente com os meus limites

 

Berrei, libertei um provável monstro

Que vivia em mim

E quando este saiu finalmente percebi

Que não havia monstruosidade e maldade nenhuma

 

Não sou o que eu acreditei

Não sou o que acreditam desde que me desencarcerei 

 

Mesmo assim não soltei todas as amarras

Muitos seguem na negação, atando os nós

Na insistente incompetência de engolir à seco a aceitação

 

Deve ser difícil viver capturado à crenças engessadas

Mais difícil ainda viver na possibilidade de me adequar

Esperando a desordem atenuar

Ponderando cada passo pois alguém criou a teoria 

De que certas coisas não podem ser vistas

 

Eu sei que um dia tudo pode mudar e ser como deveria

Mas e até lá?

Até lá eu me equilibro nessa linha tênue entre improvável e impossível

 

Até lá me contento com o fato de que  devo me resguardar 

Deixar que demonstrações de amor ocorram na escuridão

 

“A impossibilidade está à um beijo de distância da realidade”

Um beijo seria um ato revolucionário ou uma prática catastrófica?

 

Meu corpo inteiro teima em querer descobrir

“No momento certo” eu afirmo e afirmam pra mim…

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Uma história de opostos em Green Book

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Concorre com 5 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (com Viggo Mortensen), Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali), Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem.

Don Shirley (interpretado por Mahershala Ali) é um pianista negro brilhante que deseja fazer uma tour no sul dos Estados Unidos, uma região marcada pelo atraso, pelo preconceito e pela violência racialPara acompanhá-lo durante esses dois meses de shows ele resolve ir a procura de um motorista/assistente. 

Tony Vallelonga (vivido por Viggo Mortensen) – também conhecido como Tony Lip – é um malandro de origem italiana que trabalha na noite em Nova Iorque. A boate onde atuava, chamada Copacabana, precisa ser fechada e Tony se vê sem trabalho durante alguns poucos meses.

Responsável pelo sustento da família, Tony, que era casado com Dolores e tinha dois filhos pequenos, começa a procurar emprego para subsistir durante os meses em que a boate estava fechada.

Fonte: https://goo.gl/opdKij

O início da viagem

Um belo dia, Tony recebe um telefonema de um conhecido anunciando que um médico estava a procura de um motorista. Sem saber bem o que lhe espera, Tony vai para a entrevista. Chegando ao lugar, sente-se perdido porque o endereço lhe leva a um teatro. 

Quando conhece Don Shirley, na entrevista, Tony se surpreende ao saber que o tal doutor é na verdade um doutor na arte do piano. E é negro. Uma questão especialmente delicada para Tony que, apesar de negar, era preconceituoso assim como uma grande parcela da sociedade em que estava inserido. 

Muito conceituado entre o público, Shirley costumava ser chamado de doutor como sinal de admiração. Depois de algumas discordâncias, Tony, que desejava ser apenas motorista e não assistente pessoal, acha melhor não trabalhar com Shirley, especialmente tendo em conta a remuneração proposta. 

No dia a seguir, recebe um telefonema inesperado do famoso pianista, que desejava pedir a autorização de Dolores, mulher de Tony, para contratá-lo, cumprindo as exigências que o marido dela havia feito. O acordo é fechado e os dois embarcam rumo aos shows no Sul do país.

Vale lembrar que o contexto norte-americano, na realidade dos anos sessenta, que é a época em que o filme se passa, havia extremo preconceito racial no país. Ao longo do percurso vemos alguns casos explícitos de segregação. Durante uma das apresentações, por exemplo, o pianista é impedido de usar o banheiro do espaço, destinado apenas para brancos. Em outra ocasião Shirley é proibido de jantar no mesmo restaurante em que seu público estava. Ao longo da turnê, o músico também não pode se hospedar em uma série de hotéis reservados só para brancos. 

Tony aos poucos vai criando afeto pelo peculiar pianista e se irrita com as regras antiquadas e racistas da região. Os dois vão gradativamente criando um laço de afeto e crescendo pessoalmente com a experiência de lidarem um com outro, com personalidades tão distintas.   

Personagens principais

Tony Vallelonga (Viggo Mortensen) 

Fonte: https://goo.gl/2KKCFb

De origem italiana, Tony Vallelonga, também conhecido como Lip, é casado com Dolores e tem dois filhos. Ele trabalha como uma espécie de segurança numa boate em Nova Iorque e se vê em apuros financeiros quando o clube noturno decide fechar as portas por dois meses.

Durante esse período, o valentão precisa encontrar um trabalho provisório para pagar as contas da casa e acaba sendo contratado por Don Shirley para atuar como motorista.

Ao longo do seu percurso pelo sul dos Estados Unidos ele passa a sentir na pele o racismo vivenciado pelo pianista afro-descendente. A viagem serve de alerta para ele, que era um cidadão americano branco comum, nascido e criado no Bronx, que não tinha que lidar com qualquer dificuldade devido a cor da sua pele.

Don Shirley (Mahershala Ali)

Fonte: https://goo.gl/LdHsTj

Extremamente solitário, o pianista, que é um virtuoso, não tem amigos e nem família. Ele menciona rapidamente um irmão, com quem não tem contato há muito tempo. Em uma conversa com Tony também deixa escapar que já havia sido casado, mas que o casamento foi por água abaixo devido aos compromissos da carreira. 

Correto e honesto, Tony muitas vezes se irrita com algumas atitudes do motorista, que tem uma noção de certo/errado mais fluida.

Rude, muitas vezes antipático e arrogante, Shirley vai se deixando cativar por Tony e os dois vão criando com o tempo uma convivência harmoniosa que se transforma numa amizade plena. 

Don representa os negros norte-americanos que sofriam uma série de limitações e humilhações cotidianas devido única e exclusivamente a cor da pele. 

Dolores (Linda Cardellini)

Fonte: https://goo.gl/fjyU7a

A mulher de Tony é compreensiva com o marido, embora seja extremamente preocupada com o destino da família. Responsável, ela é dona de casa, cuida do lar, dos filhos e da gestão do orçamento doméstico. Quando a boate Copacabana fecha as portas provisoriamente, Dolores se desespera sem saber como fará para pagar as contas.

Doce, amorosa e gentil, a personagem interpretada por Linda Cardellini é uma típica mulher norte-americana dos anos sessenta: voltada para a família, responsável pela criação dos filhos e pela manutenção da rotina do lar. 

Análise do filme Green Book

Baseado em fatos reais

No ano de 1962, o famoso pianista negro Don Shirley resolveu fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos.

A viagem aconteceu gerenciada pela Columbia Artists, empresa que administrava a carreira do artista, e durou cerca de um ano e meio (o filme na verdade condensa a história, como se a turnê tivesse durado dois meses). Durante o trajeto, o pianista tocou apenas para um público composto por brancos.

Para acompanhá-lo nesse ambiente sulista não muito hospitaleiro, Shirley sentiu que precisava de um motorista, mas também um assistente pessoal e uma espécie de guarda-costas.

Vale lembrar que a preocupação com a segurança não era desmedida, apenas alguns anos antes (em 12 de abril de 1956), o também músico negro Nat King Cole foi atacado no palco enquanto se apresentava para uma audiência branca no Alabama.

O verdadeiro pianista Don Shirley

O Don Shirley da vida real nasceu na Flórida, no dia 29 de janeiro de 1927, filho de pais imigrantes jamaicanos. O pai do pianista era um pastor e a mãe era professora. Shirley ficou órfão de mãe quando tinha apenas nove anos de idade.

Profundamente ligado à música, o menino começou a tocar quando tinha apenas dois anos e se apresentou profissionalmente aos dezoito.

Como o filme menciona rapidamente, Shirley gostaria de ter seguido a carreira de pianista clássico, mas acabou por enveredar no jazz porque ouviu conselhos de produtores que afirmaram que o público norte-americano não aceitaria um negro tocando canções clássicas.

Alguns hábitos e a residência do pianista, que aparece no longa, também são compatíveis com a realidade. Don Shirley viveu num suntuoso apartamento no Carnegie Hall durante cerca de cinquenta anos.

Verdadeiro pianista Don Shirley e Mahershala Ali, que interpreta seu papel no longa metragem. Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

A procura do pianista por essa pessoa que o acompanhasse resultou na descoberta do segurança de boate Tony Vallelonga, que trabalhava em um clube noturno chamado Copacabana. 

Com o fechamento provisório do espaço, Tony, então sem emprego e com obrigação de sustentar a família, foi a procura de trabalhos esporádicos.

O encontro com Tony

Criado no Bronx, no seio de uma família ítalo-americana, Tony era o provedor de um lar composto pela mulher e por dois filhos.

Embora no filme o personagem não se assuma declaradamente como preconceituoso, a mulher, Dolores, deixa transparecer esse defeito do marido, que é compatível com a história real.

Apenas em uma breve cena vemos um pouco do preconceito anterior de Tony. Quando dois negros estavam na sua casa, ao retirar a louça da mesa, Tony, ao chegar na cozinha, joga no lixo os dois copos que os negros usaram. Outra ocasião em que o preconceito aparece surge quando Tony rotula o pianista, usando uma série de estereótipos para caracterizar os negros.

Tony Vallelonga da vida real e o ator Viggo Mortensen, que interpreta seu papel no filme.
Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

A história contada pelo filho de Tony

Green Book tem como um dos roteiristas o filho de Tony, que incluiu uma série de dados reais no longa. As cartas de amor direcionada à Dolores foram efetivamente escritas pelo pai de Nick com a ajuda do pianista.

A história bebeu muito do real porque o filho, desde os anos 1980, estava interessado em fazer um filme sobre a amizade improvável do pai com Don Shirley. Ele havia gravado uma série de entrevistas detalhadas sobre o que os dois viveram na turnê. 

Nick Vallelonga ajudou a contar, em Green Book, a história do pai, Tony.
Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

O destino de Tony e Don Shirley

Quando a viagem acaba e os dois regressam para casa, segundo o filme Tony volta à trabalhar no Copacabana, mas ele e o pianista seguem sendo grandes amigos até o final da vida. Os dois curiosamente falecem em datas muito próximas: Tony morre em 4 de janeiro de 2013 e Don em 6 de abril de 2013.

Na vida real, no entanto, parte da família do pianista – que aliás se opôs à criação do filme Green Book – garantiu em uma série de entrevistas que Don Shirley e o pianista não ficaram amigos até à morte.

Fonte: https://goo.gl/d1NBGk

Duas versões pairam sobre a lenda da amizade de Tony e Don Shirley: o longa metragem garante que os dois ficaram grandes amigos até o final da vida, já a família do pianista afirma que essa versão é falsa.

Uma história de opostos

Habitualmente a sociedade estava acostumada a assistir um negro trabalhando para um branco, poucas vezes o statuo quo se alterou e viu-se um branco trabalhando para um negro.

Essa estranheza social compareceu muitas vezes no filme, quando, por exemplo, no Sul, os policiais pararam a viatura onde Tony e Shirley se encontravam para pedir esclarecimentos.

Pondo provisoriamente a parte as questões sociais, em termos de personalidade Don e Tony parecem opostos: o primeiro muito preocupado com a questão social (com a imagem, com a conduta) e o segundo desbocado e irreverente. A lógica dos opostos comparece se pensarmos no nível de refinamento e cultura de ambos os personagens.

Assim como na vida real, Don carrega muito mais a noção de requinte, de conhecimento e de estudo do que Tony, que possui pele branca.

Se historicamente os negros tiveram pouco acesso à informação e à formação, na história do pianista a lógica se inverte e vemos um sujeito cultíssimo de pele negra e um, de certa forma, ignorante, de pele branca. 

Don viveu imerso em um ambiente de alta cultura e frequentou os grandes salões enquanto Tony nunca saiu do seu bairro de imigrantes de classe baixa, convivendo sempre com um universo muito semelhante de indivíduos.

Outra distinção de comportamento se dá se pensarmos na conduta social dos dois amigos. Shirley demonstra ser consciente do racismo e da luta de classes, Tony, por sua vez, parece alheio à essas questões e deseja resolver os casos pontuais em que é confrontado através da força bruta.

Extremamente racional, o pianista pensa em cada movimento e em suas consequências, profundamente impulsivo, Tony vive à flor da pele e é movido pelos seus sentimentos.

A amizade de Tony e Don se contrói através da diferença.
Fonte: https://goo.gl/vV9AqQ

Por que o filme se chama The Green Book?

The Negro Motorist Green Book, editado por Victor Hugo Greenera uma espécie de guia de viagem para negros que quisessem viajar sem se preocuparem com a segurança.

A ideia era assegurar uma lista de restaurantes, hotéis e lugares turísticos que garantissem que eles seriam tratados com igualdade com os brancos, sem qualquer tipo de preconceito.

O livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1936 e continuou a ser vendido até 1966. Habitualmente distribuído nos postos de gasolina, o guia vendia cerca de 15.000 cópias por ano.

*Texto originalmente publicado em Cultura Genial (https://www.culturagenial.com/filme-green-book/)

O verdadeiro The Negro Motorist Green Book foi efetivamente usado na viagem de Tony com o pianista.

FICHA TÉCNICA:

GREEN BOOK- O GUIA

Título original: Green Book
Direção: Peter Farrelly 
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini; 
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia Dramática, Biografia 

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Acadêmicos de Psicologia apresentam suas narrativas de crise

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A atividade ocorre até o dia 5 de junho durante a disciplina de Intervenção em Crise

A disciplina Intervenção em Situações de Crise, do curso de Psicologia Ceulp/Ulbra, ministrada pela profa. Me Izabela Querido, deu início (17/05) às apresentações das narrativas de situações de crise pelos acadêmicos da disciplina, e retomam dia 05 de junho de 2018.

Com criatividade, sensibilidade e dedicação, os alunos de Psicologia produziram e apresentarão textos narrativos reais e/ou fictícios como produto parcial da disciplina, afirma Izabela Querido.

Acadêmicos da disciplina de Intervenção em Situações de Crise. Foto: arquivo pessoal.

A professora ainda ressalta a proposta dessa atividade de que durante as apresentações sejam exemplificadas as estratégias de intervenção e manejo dessas situações a partir da teoria estudada, permitindo aos alunos associarem os aspectos teóricos explicativos das situações de crise e suas possíveis intervenções.

Quem é Izabela Almeida Querido?

Foto: arquivo pessoal.

Psicóloga. Professora Universitária. Mestre em Ensino na Saúde pela Faculdade de Medicina Universidade Federal de Goiás. Especialização em terapia cognitivo-comportamental aplicada a crianças e adolescentes e Especialização em Saúde Mental. Pesquisadora com ênfase nas áreas saúde e terapia cognitivo-comportamental.

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A Imortal

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“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (Saramago, As Intermitências da Morte, p. 154)

Rua Tocantins, Paraíso do Tocantins, estado do Tocantins – local onde por muito tempo viveu uma imortal. Alguém que conheci na infância, no tempo em que acreditava que as pessoas eram como peças de barro, logo poderia moldá-las e recriá-las à minha imagem e semelhança. Sim, tinha crenças grandiosas na infância e uma esperança digna dos loucos. Essa senhora, que já era velha quando a conheci, parecia viver com uma quantidade reduzida de variáveis, não parecia refletir sobre o sol, as estrelas, o movimento do mundo, o ser e o nada, apenas andava sobre o chão, batia em seu neto (se achasse necessário), comia sua farofa, alimentava suas galinhas, mostrava-nos sua palmatória.

Na infância tinha um clube, que obviamente foi criado embasado em um objetivo grandioso: transformar a rua, a redondeza, o Paraíso em um local de paz, justiça e alegria. Mal sabia eu, naquela época, que um local assim seria o inferno para minha constante agitação mental. Um dos ideais heróicos do clube, que se intitulava “Laços da Amizade”, era criar mecanismos para sensibilizar o coração de pedra da minha vizinha, a imortal.

Hoje, ao abrir o caderno de anotação do grupo, vejo que esse ideal permanece lá, ingênuo e presunçoso como a maioria dos ideais e, consequentemente, não finalizado.  A minha vizinha imortal continuou sua rotina de olhar para o mundo a partir do seu conjunto de variáveis (que na minha presunção inicial descrevi como reduzido). O neto cresceu e se foi. Apenas a filha continuou por perto.

Os anos deslizaram-se através do tempo e a velhice da vizinha, que antes era observável de forma natural, passou a ter um reflexo assustador. Víamos um corpo na cama, no sofá, na cadeira. Um corpo opaco, quase um mero esqueleto. Minha fraqueza e, talvez, meu egoísmo não me permitiram visitá-la, tinha as palavras de Saramago em minha mente: “não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto”. E acho que temia ver minha vizinha desnudada, nítida, sem as capas que fizeram dela o “coração de pedra” que me provocava calafrios na infância.

O livro “As Intermitências da Morte”, de Saramago, começa com a absurda constatação de que em um determinado dia “ninguém morreu”. Quando o li pela primeira vez lembrei-me da minha vizinha, de quantas vezes meu pai e vários outros da rua foram chamados para seu suposto “último momento”. Quantos foram aqueles da Rua Tocantins, do Paraíso do Tocantins, que participaram ativamente dos “últimos momentos” da minha vizinha e depois partiram antes dela. Viraram pó e, acredita-se, descansam em paz. A paz que eu estranhamente almejei na infância, mesmo que sentisse medo do céu por achá-lo diferente do meu Paraíso.

Penso na Morte com seu velho caderno de anotações, amarelado pelo tempo, com os nomes de todos nós. Talvez minha vizinha fosse especial e tenha tido seu nome destacado em amarelo. Então, o nome se confundiu com a folha envelhecida do caderno da Morte e, assim, ela foi esquecida e seu corpo foi se desfazendo sobre o chão enquanto que, pareceria mais natural, se isso ocorresse embaixo da terra.

Hoje a Morte, numa dessas coincidências da vida, deve ter deixado seu caderno cair e, se pudesse ousar mais em minha dedução, diria que a página que ficou aberta sobre o chão era a tal página na qual foram escritas as letras destacadas em amarelo. Mesmo que sua anotação estivesse quase imperceptível, o recado em uma última tentativa de ser notado sussurrou para a Morte o nome da minha vizinha.

Neste domingo quente de um Paraíso que parece só existir em minha mente, minha vizinha morreu. E assim mais uma verdade da minha infância foi refutada: morreu uma Imortal.

Que ela descanse em Paz… (ainda que hoje eu não tenha a mínima ideia do sentido dessa palavra)

Foto: Irenides Teixeira

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