O meio digital como disparador do direito a saúde humanizada

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A Rede HumanizaSUS (http://www.redehumanizasus.net/) vem se firmando como um dos principais canais de divulgação, problematização, criação e trocas de experiências entre a Política Nacional de Humanização, usuários, militantes, trabalhadores e gestores do SUS em todo o Brasil. Desde sua fundação, há mais de cinco anos, a rede social já tem mais de 15 mil pessoas cadastradas em seu portal, além de contabilizar cerca de 1,3 milhão de visitantes e acima de 4 milhões de visualizações em suas páginas, segundo informou Ricardo Teixeira, consultor da Política Nacional de Humanização – PNH, de São Paulo. “Desses, mais de um milhão de usuários individuais que acessaram a rede nesses cinco anos, quinze mil são cadastrados, ou seja, vários acessam e navegam, levantam informações, mas navegam como “anônimos”, pessoas não logadas no sistema”, disse.

Ricardo Teixeira, ao participar do Seminário Norte de Humanização, em Manaus – AM, em março, explicou que os interesses dos usuários são os mais diversos possíveis. “Muitos vão e trocam informações, ou seja, é um acervo de conhecimento, através das conversas, das postagens, das práticas do SUS que são encontrados nos mecanismos de busca e que acabam interessando muitos usuários”, afirmou.

Ricardo Teixeira no Seminário Norte de Humanização com Bruno Mariani, em Manaus /AM
Foto: Michel Rodrigues

“Temos aproximadamente mil e duzentos blogs individuais, ou seja, das quinze mil pessoas [cadastradas] setecentas publicaram pelo menos um post, muitas delas publicaram vários posts. Há também dezenas de usuários que são blogueiros da RHS. [A RHS] É uma comunidade de blogs da saúde, sendo a essa altura, aproximadamente seis mil posts, mostrando assim a magnitude da rede”, completou o consultor.

Ao portal (En)Cena, que acompanhou toda a realização do Seminário Norte, Ricardo Teixeira cedeu a entrevista que segue.

(En)Cena – Como é a presença da Rede HumanizaSUS na internet?

Ricardo Teixeira – A Rede HumanizaSUS é uma rede colaborativa, uma rede social. É mais uma oferta da Política Nacional de Humanização (PNH) para humanização dos serviços do SUS. Possui cerca de cinco anos de existência, foi lançada em 22 de fevereiro de 2008, sendo uma proposta que desde o início se lançou com uma perspectiva inteiramente aberta, sendo uma plataforma com cadastramento livre na web, onde qualquer usuário pode se cadastrar. Esse caráter aberto é intrínseco à proposta, por que ainda que houvesse algumas ideias dos usos possíveis dessa rede na política, a aposta acertada foi a de que o sucesso dependeria das apropriações que os usuários fariam daquele espaço virtual. Sendo assim, torna-se difícil falar sobre o que ocorre na Rede HumanizaSUS, pois acontecem diversas coisas a partir de uma ferramenta simples que é o blog. O blog foi escolhido por sua popularidade na internet e devido à sua fácil estrutura de postagem e comentários que vai abrindo linhas de conversação.

(En)Cena – Por esse canal, além do usuário deixar queixas e sugestões, pode-se também solicitar serviços?

Ricardo Teixeira – As finalidades para esse blog são múltiplas. Os usuários são principalmente trabalhadores e gestores da saúde. A participação do usuário do Sistema Único de Saúde ainda é minoritária, apesar de estar crescendo nos últimos anos. Isso reflete as dificuldades da inclusão do usuário na construção do SUS. Há um canal de comunicação oferecido pela rede que tem sido muito utilizado pelos usuários, que é o “formulário de contato”(uma espécie de “fale conosco” disponível na plataforma). Sendo bem sincero, o uso desse canal se deve a certa confusão que é feita a respeito do caráter daquele site. Se você entrar no Google e digitar a palavra “ajuda” e “SUS”, procurando por algum serviço do SUS, na primeira página de resultados várias correspondem às páginas da RHS. Quando o usuário clica ali, ele vê uma série de matérias sobre serviços do SUS, posts, comentários e ele rapidamente a identifica como sendo uma página do Ministério da Saúde ou Ouvidoria, e eles mandam suas mensagens às vezes pedindo uma consulta, às vezes fazendo uma denúncia. Então por essa via, a participação do usuário é muito grande e bem frequente.

(En)Cena – Esses usuários recebem um feedback?

Ricardo Teixeira – Apesar dessa confusão, ele recebe o feedback  da equipe de editores/cuidadores do site e, dependendo da demanda, poderá ser orientado a utilizar um canal de expressão existente mais apropriado como a Ouvidoria do SUS. Esse canal de comunicação tem sido uma oportunidade da gente entender e conhecer o SUS e as grandes dificuldades que o usuário ainda tem tido com o quesito acesso.  Eu diria que 8 em 10 demandas de usuários que chegam por essa via dizem respeito à dificuldade de acessar algum bem ou serviço que o SUS deve de fato disponibilizar, seja por uma dificuldade real, ele está experimentando esse caminho e não está conseguindo, ou porque desconhece os caminhos, sendo esse um dos retornos que a RHS dá: orientar melhor  a como acessar o direito á saúde pública.

(En)Cena – Qual a dimensão da rede em relação ao número de acesso?

Ricardo Teixeira – Hoje a RHS tem mais de quinze mil cadastrados, ao longo desses cinco anos de existência da Rede. Ela já recebeu a visita de aproximadamente um milhão e trezentos mil usuários individuais, que realizaram aproximadamente um milhão e oitocentas mil visitas. Desses mais de um milhão de usuários individuais que acessaram a Rede nesses cinco anos, quinze mil são cadastrados, ou seja, vários acessam e navegam, levantam informações, mas navegam como “anônimos”, pessoas não logadas no sistema. Temos aproximadamente mil e duzentos blogs individuais, ou seja, das quinze mil pessoas, mil e duzentas publicaram pelo menos um post, muitas delas publicaram vários posts, há também dezenas de usuários que são blogueiros da RHS. Ela é uma comunidade de blogs da saúde, tendo, a essa altura, mais de seis mil posts, mostrando assim a magnitude da rede.

(En)Cena – Como você observa a Internet nesse campo da comunicação com usuários e também como um canal de serviço da RHS?

Ricardo Teixeira – É uma experimentação em curso. A resposta para a sua questão é uma resposta que nós estamos colhendo, acompanhando, monitorando, analisando e apostamos na ideia de usos que essa poderia ter para a qualificação do SUS.

(En)Cena – Há um estudo aprofundado nesse campo da comunicação (da internet) em relação ao SUS?

Ricardo Teixeira – Há uma questão que se coloca no plano das estratégias de mídia, das estratégias de comunicação em massa, que é o tipo de visibilidade que o SUS tem na mídia, principalmente na mídia de radiodifusão, de broadcasting, onde você tem uma instância central de onde parte a informação e se legitima pelo poder daquela empresa, sendo a televisão, o rádio, a mídia impressa, onde se expressaria inicialmente uma imagem dos problemas do SUS. Isto a partir das grandes dificuldades que são conhecidas, mas que acaba reproduzindo uma imagem deteriorada da política pública de saúde, onde acaba se constituindo aquela ideia de que o Sistema Único de Saúde não vai dar certo, de que é do governo, de que é direcionado aos pobres, criando um conjunto de preconceitos que vai se constituindo em torno da política pública por características desse tipo de mídia, do que ela considera relevante, reproduzindo uma imagem desqualificada da política pública.

(En)Cena – A Internet gera várias possibilidades, até mesmo de romper a fronteira entre a mídia convencional e o usuário…

Ricardo Teixeira – Então, em primeiro lugar, e isso é uma virtude dos novos meios de comunicação em rede eletrônica, onde então o jogo que fixa claramente quem é o emissor e quem é o receptor se embaralha, onde o receptor se torna o emissor de informação. Eu poderia dizer que a RHS tem sido um lócus importante de expressão de um SUS que dá certo, porque a grande convocação da Rede Humaniza SUS tem sido a de mostrar a sua cara, e o que tem sido feito para qualificar o SUS no cotidiano de trabalho, esse seria o primeiro papel muito importante, ou seja, criamos uma zona na web de informação onde você pode acessar outro tipo de informação a respeito do que se produz no cotidiano do SUS.

(En)Cena – Já houve alguma prática apresentada no SUS, que partiu de uma ideia apresentada no portal?

Ricardo Teixeira – Este seria um dos papéis dessa mídia, ao mostrar um SUS que dá certo. É uma de suas virtudes em potencial. Eu diria que não é a aposta principal, mas quando um trabalhador que atua em um determinado serviço, de maneira, às vezes isolada, desconectada, ele dá visibilidade ao que ele tem feito na Rede e ele recebe um retorno daquilo, no qual poderá ser um elogio, uma confirmação, reconhecimento da qualidade daquele trabalho, assim como também críticas, sugestões, associações de ideias suscitados a partir daquele experimento. Isso tem um efeito afetivo para o trabalhador.

(En)Cena – O que você vai relatar sobre esse Seminário Norte de Humanização? Vai ter alguma coisa sobre esse evento?

Ricardo Teixeira – Sim, já está tendo. Há dois dias que estou muito mergulhado nas atividades presenciais do Seminário, mas sei que já está sendo postado em tempo real o que está acontecendo aqui na RHS, e não só na rede, mas também nas outras redes sociais com as quais a RHS está conectada, facebook, twitter, sites de nossos parceiros, as redes eletrônicas. Uma postagem no espaço do nosso blog, do nosso site é imediatamente postada para as demais redes sociais.

(En)Cena – Como você percebe a parceria com o (En)Cena?

Ricardo Teixeira – Primeiramente, essa parceria se estabelece na própria web: se você entrar na Rede HumanizaSUS e ver entres os links de parceria dos sites, lá estará o (En)Cena e alguns outros sites, blogs. Acho importante dizer que a Rede Humaniza SUS tem cinco anos e, na época em que foi criada, esse tipo de rede, criando um espaço colaborativo, tipo rede social, ligada à questões do SUS, da defesa e organização de trabalho do SUS, era uma raridade. Hoje em dia, para nossa alegria, vemos que experiências similares se multiplicam, algumas em áreas mais específicas como a saúde mental, como o (En)Cena. Percebo essa parceria como uma sinergia de nossas forças e de nossa alegria de lutar por um mundo melhor.

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Temos que reagir, temos que nos indignar

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Carlos Rivoredo, no Seminário Norte da Política Nacional de Humanização (PNH), ocorrido em Manaus, nos dias 20 e 21 de março, dá uma chamada a todos nós no momento da abertura do evento. Pede para nos indignarmos com os desvios de verba pública e diz que toda a rede de hospitais privados foi financiada pelo Fundo da Assistência Social da época da ditadura. Afeto marcado, emoção expressa e um contágio silencioso. As pessoas ficaram caladas, bateram palmas e passaram a outro assunto como se uma brisa apenas tivesse passado antes de alguém fechar a janela. Aquele homem num repente foi ele todo, humano, pois lembrava de fatos, por todos os seus sentidos, com um foco atento ao que falava, afetado, indignado com a fraqueza humana, com nossa passividade.

A chamada de Carlos Rivoredo é para usarmos nossa atenção e nossa memória ao que fazemos em busca de uma vida coletiva sem vistas grossas à corrupção, aos fascismos que se encontram na relação entre governo e população. A comunicação deve ser ampliada, gerando clínicas ampliadas. A comunicação deve gerar protagonismo, movimentar nossa atenção para pontos em comum, que, se mudados, se geridos de outras maneiras, a vida pode ficar mais fácil, mais produtiva, mais criativa, menos sofrida, menos queixosa.

É pela comunicação que fazemos nossas próprias revoluções, o humanizar inicia-se por ela, com ela e para ela. O que queremos comunicar quando falamos de um exercício político e ético? O que se quer comunicar quando se capilariza a humanização como política nacional? A PNH visa exercitar a atuação política em torno das redes de assistência, começando pela rede de saúde.

Exercitar a atuação política na e da rede de saúde significa transformar uma prática despolitizada numa politizada, ou seja, transformar uma prática reprodutora em prática criadora, descartável em cultivada, sem sentido em projetada, corrupta em gerida.

A PNH é uma política de saúde de educação, de cultura, de gestão, de trabalho, de questões e não de respostas. Questiona a pólis, na pólis, com a pólis, mas não para a pólis. Sua ação é capilar. As políticas de respostas prescrevem, a PNH processa, compõe, agencia. Busca agenciar os afetos e a formação integral das pessoas, o desenvolvimento do fazer do humano ligado a uma ética coletiva, que cultiva filhos, cultiva laços, cultiva nossas percepções, nossos talentos, nossas potencialidades, nosso tempo, nosso desenvolvimento, não em números de PIB, mas em territórios de existências solidárias, o que não é o mesmo que assistencialistas, e ético-praticantes, o que não é o mesmo que caretas.

E o Fundo de Assistência Social continua a financiar hospitais privados. Se comunicação é o que fundamenta a humanização, nosso silêncio é um analisador. Talvez por que ainda buscamos humanizar os outros, e não a nós mesmos. Processo de trabalho nenhum é condição suficiente para manter tantos desencontros nas práticas de cuidado e da formação ao estilo ainda, eminentemente, bancário. Os processos de trabalho são raízes podadas de um tronco que mais cedo ou mais tarde vai cair. Se as raízes não crescerem, a árvore vai cair; se não desenvolvermos nossos processos de trabalho, não desenvolveremos nossa humanidade. Não me refiro aqui ao trabalho assalariado, mas ao trabalho como constituinte da humanização. O trabalho que cria culturas, ao invés de descartáveis, junto à educação; que trabalha os sentidos, a língua, a fala, a escrita, a lógica, o corpo, o sexo, as percepções, a arte e o esporte. Desenvolver seres humanos, na concepção que sustenta esse texto, não significa direcionar o homem para um rumo evolutivo-progressivo…desenvolver não é direcionar; o homem não precisa de direção, ele traça direções. O desenvolvimento deve se dar na apropriação de nossa capacidade criativa, gestora da vida e das coisas. Sem isso, nossa coletividade vai ruir, nossa humanização será a insistência de uma rede que se constitui quase sempre com dificuldades.

A formação da rede de serviços públicos não pode se sustentar na diferenciação entre usuário, gestor e técnicos de serviços. Não importa essa diferenciação, quando a questão é a gestão do coletivo. Isso não quer dizer que as funções-trabalho necessariamente devem ser banidas, mas a forma de trabalhar deve mudar. Os processos de trabalho possuem sua cota de importância nas características de nossa sociabilidade. Portanto, aqueles devem visar essa última. Fazer os Conselhos de saúde funcionar com potência é função de todos, não por que todos devem estar presentes nos conselhos, mas sim pelo fato de ser função de todos contagiar nossas relações com o bem público com transparência, solidariedade e co-gestão.

Carla Bressan (2002) faz uma análise política em seu artigo intitulado “Fundo de Assistência Social” parte integrante dos Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”. Seu trabalho retrata a maneira como os equipamentos do controle social funcionam aquém de sua real função que é estratégica na política pública da saúde, no SUS.

O Conselho é propositivo, avaliativo, deliberativo sobre os recursos, mas a execução não está na instância do Conselho. A gestão do Fundo não é do Conselho, mas do órgão público responsável pela assistência. No entanto, a proposta orçamentária deverá ser aprovada pelo Conselho e sua aplicação fica sob acompanhamento e controle do Conselho. Eis aqui um dos pontos centrais: o Conselho precisa discutir e analisar a proposta e o que se percebe é que, normalmente, a proposta orçamentária vem do gestor e muitas vezes, os conselheiros sequer têm elementos para discuti-la. Ou ainda a proposta vem com a referência explícita de que não seja discutida por falta de tempo porque “é perda de tempo discutir”, pois o recurso é muito pouco frente às necessidades. É muito comum acontecer isso, o gestor encaminhar para que o Conselho apenas aprove. O que quero chamar a atenção é que nossa função não está em meramente aprovar, pois existe uma responsabilidade nessa atitude – não é apenas uma formalidade eque muitas vezes, acabamos aprovando questões que nem sempre receberam o tratamento de debate e análise que demandariam. Isso não quer dizer que a proposta que vem do gestor seja ruim, mas a referência está na operacionalização do Plano e suas prioridades. Se a proposta é boa, não se tem que ter medo de que seja discutida.” (BRESSAN, 2012, p.16)

O sítio www.portaltransparência.gov.br/# apresenta as despesas e as receitas geradas nos Fundos Municipais de Saúde. Essas despesas e receitas precisam ser geridas pelos Conselhos. Os participantes do Conselho são os que diretamente podem ligar o orçamento municipal a um planejamento amplo. Como é planejado o uso desses recursos? Eu não sei.

Mas vejamos um exemplo de como a verba pública é administrada. O sítio da “Conexão Tocantins” mostra um projeto de lei que visa instituir auxílio-moradia para procuradores e promotores do Ministério Público Estadual. Os promotores e os procuradores recebem em torno de 25 mil reais como salário e pedem, das verbas públicas, mais 2 mil reais como auxílio-moradia. Para quê? Gostaria realmente de saber! O custo desse pequeno adicional (maior do que o salário bruto da maioria da população), por ano, para os 12 procuradores e para os 100 promotores, girará em torno de 2.900.000 reais (dois milhões e novecentos mil reais) A soma dos salários dessas 112 pessoas, juntamente com a soma do possível auxílio, resulta em cerca de 32 milhões de reais o que corresponde a um décimo dos recursos oriundos do governo federal para o município de Palmas que girou em torno de 290 milhões de reais. Isso quer dizer que 112 pessoas que trabalham para e no Estado recebem, como salário, um décimo do que o município recebe para criar políticas públicas para em torno de 220 mil pessoas, se pensarmos apenas no município de Palmas, sem contar as demais pessoas que, mesmo que parcamente, beneficiam-se com o retorno federal ao Estado do Tocantins. Não consigo compreender o exercício ético que sustenta uma realidade dessa. Vejamos a justificativa apresentada na reportagem do “Conexão Tocantins”:

“O projeto é apresentado após polêmica causada com a decisão dos deputados de também receberem auxílio-moradia, mesmo maioria deles tendo residência própria na capital. O valor que os parlamentares vão receber é de R$ 3.429,50.”

Ou seja, o argumento gira em torno de uma birra, como de crianças diante de um saco de pirulitos: o outro tem, quero ter também. Esse é o argumento apresentado na reportagem. Desconheço o real argumento, mas não creio ser diferente desse. A ética que sustenta uma realidade dessa é iníqua, não poupa vidas para se manter desigual assim. O bolsa-família gira em torno de, no máximo, 306 reais, por família. Analisemos bem, 306 reais por família, para todas as despesas, contra 2000 reais para deputados que já possuem casas e recursos para terem mais casas. Palmas possui em torno de 6500 famílias contempladas pelo programa bolsa família, ou seja, Palmas recebe em torno de 1 milhão e novecentos mil reais, por mês, para melhorar as condições de vida de mais ou menos 30 mil pessoas que moram em Palmas. Enquanto o salário de 112 pessoas contabilizam 32 milhões de reais por ano, o bolsa família atinge, com 24 milhões, 30 mil pessoas ao ano. Existe uma massa imensa de trabalhadores das universidades e dos serviços públicos, nós todos, eu inclusive, que sabem disso e se organizam apenas por sindicatos burocráticos e datas base que mais parecem um jogo histérico do qualquer outra coisa. Santa psicose, dai-nos forças contra as perversões, contra as fantasias e contra as depressões.

O ser humano é um manancial de vida e se deprime pelo fato de não saber onde deve atuar para injetar vida nessa pólis com marasmo, na qual sempre estamos em dívida. Devemos sempre…devemos dinheiro, devemos técnica, devemos conhecimento, devemos, devemos, devemos. Devemos fazer mais, devemos votar, devemos trabalhar, devemos deveres, devemos dever. Quando se deve, sempre se está num tempo que não o livre… a vida gira em torno da dívida. Quem deve, paga…quem paga trabalha à força.

Assim financiamos o Fundo da Assistência Social, mas não o gerimos. Estamos atarefados demais para conseguirmos pagar pelo o que fazemos. E quando fazemos nos sentimos, constantemente, em dívida. Trabalhamos mais e o ciclo se fecha assim, numa escrita sem fim.

Referência:

BRESSAN, Carla. Fundo de Assistência Social. In: Fundos Públicos e Políticas Sociais.MAGALHÃES JÚNIOR, José César; TEIXEIRA, Ana Claudia C. (Org.) Fundos Públicos. — São Paulo: Instituto, Pólis, 2004.. (Publicações Pólis, 45) Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”; São Paulo, Agosto de 2002.

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Da Pediatria para a Humanização da Saúde

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A Política Nacional de Humanização (PNH) completa 10 anos em 2013, mas ainda é um desafio para o Brasil, porque efetivar os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) no cotidiano das práticas de atenção e gestão, qualificando a saúde pública no Brasil  não é fácil. E é justamente neste ambiente que atua como consultor o médico pediatra Carlos Roberto Soares Freire de Rivoredo. Carlão, como é carinhosamente chamado pelos colegas pesquisadores, é também visto como pesquisador “curinga”.

Em entrevista ao portal (En)Cena, o médico explica que o Brasil vivencia um momento importante para o desenvolvimento de novas pesquisas na área de saúde, em especial nas regiões Norte e Nordeste.

Doutor Carlos Roberto é professor da Universidade de Campinas (Unicamp), mas viaja o país acompanhando e orientando pesquisas. E foi numa destas viagens, em Manaus (AM), durante o Seminário Norte de Humanização, que ele conversou com a reportagem do Portal (En)Cena.

(En)Cena – Nas viagens pelo Brasil, no espaço da pesquisa sobre a Política de Humanização, o que o senhor encontrou? Qual sua percepção sobre essas práticas?

Carlão – A encomenda inicial foi desenvolver a Frente de Pesquisa, e articular diversas Regiões, para que elas possam estar entrando nessa “coisa” de produção do conhecimento. No primeiro momento começamos a visitar os lugares e priorizamos os territórios que não têm uma tradição de pesquisa, necessariamente. O Brasil é um país desigual, é uma sociedade desigual, é ilíaca e reproduz isso em todos os setores. Nos setores de ciência e tecnologia, essa desigualdade também está presente, então um dos objetivos dessa Frente de Pesquisa é exatamente tentar mudar o eixo geopolítico de investigação em Saúde. O poder de pauta que o Ministério da Saúde possui, pode ser utilizado para mudar essa realidade e tentar promover uma equidade na produção de conhecimento do país. Tentar colaborar com isso, porque isso não muda assim sem mais nem menos, isso muda com o tempo e com algumas opções de políticas. Na PNH, uma opção política no que diz respeito à produção do conhecimento é desviar o eixo para lugares que tem relativamente pouca tradição de pesquisa, então fui inicialmente para o Nordeste e Norte. Foram os dois lugares que trabalhamos, o território que denominamos Nordeste II, que são os quatro Estados ao norte no Nordeste, que é Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão, e fui nesses quatro lugares. A gente optou por estar no primeiro momento, fazendo um projeto de estudo multicêntrico sobre apoio, onde entra os quatro estados, em quatro Universidades envolvidas (Universidades Federal do Rio Grande do Norte, do Maranhão e do Piauí, e Universidade do Estado do Ceará).

(En)Cena – Qual o objetivo?

Carlão – Criar uma rede de pesquisa em Humanização em Saúde nessa Região. A mesma coisa é na Região Norte.  Fui a Palmas, onde a gente fechou um início de conversa com a ULBRA, e alguma coisa com a Universidade Federal do Tocantins, não muito potente ainda, e agora estou em Manaus, vou mês que vem (abril) para Belém, e vou marcar agenda para os outros Estados que ainda faltam.

(En)Cena – Já é possível identificar resultado desse movimento de pesquisa?

Carlão – Já está rolando movimentos importantes no Sul, que é uma pesquisa que foi financiada via Ministério.

(En)Cena – A pesquisa fomentada pela Política Nacional de Humanização(PNH)?

Carlão – Fomentada pela PNH, que é a de avaliação de egressos dos Cursos de Apoiadores da Política. O que eu estou sentindo é que o Nordeste avança, porque ele já tem o objeto e esse objeto foi partilhado com o coletivo Nordeste e as Universidades. O que estamos oferecendo no inicio é o apoio técnico e a condução dos projetos para financiamento local, e se for o caso, sendo necessário, financiamento via Ministério. A única exigência que fazemos é que os objetos de pesquisa não sejam da decisão unicamente da academia, que eles sejam partilhados com os coletivos da PNH, as Secretarias de Estado, o Grupo de Apoiadores da Rede de Humanização. São essas pessoas, junto com a Universidade, ou as Universidades, é que vão decidir quais são os objetos de investigação. Não precisa ser estudo multicêntrico, apesar de ser o mais interessantes nesse caso, mas pode ser estudo local, projetos locais e o que eu estou percebendo é que se esboça uma rede, então conforme for a pujança do movimento do lugar a gente vai avançando cada vez mais.

(En)Cena – As Universidades decidem o foco dessas pesquisas?

Carlão – Não, é o coletivo. Os coletivos são grupos de trabalhadores, gestores e usuários do SUS, que compõe com as academias. As Universidades, junto com o coletivo da PNH. O ideal que a gente pensa é que os coletivos decidam o que eles querem saber, suas principais demandas, e eles chamam a Universidade e a gente vai entrando, decidindo quais o objetos a serem pesquisados.

(En)Cena – Esse projeto do Sul aconteceu desse jeito?

Carlão – Não! No Sul, quando cheguei, o projeto já existia. Eu só colaborei compondo um grupo já consolidado em pesquisa científica, colaborei somente na leitura do projeto e no planejamento da pesquisa.  Existem outras pesquisas que estão rolando, que também foram feitas dessa forma, uma no Rio de Janeiro no LAPPIS (Laboratório de Pesquisas sobre Práticas da Integralidade em Saúde/UERJ), sobre constituição de Redes.

(En)Cena – Você falou em articulação das Regiões, para mobilizar a produção do conhecimento. Exatamente que tipo de conhecimento que está se buscando nessas pesquisas?

Carlão – Por exemplo, essa pesquisa do Nordeste é uma pesquisa que vai dar voz ao Apoiador, para dizer “O que é apoio?” Porque o apoio tem sido discutido pelos teóricos e em instâncias de colegiados, seminários etc.? Agora o apoiador, a pessoa que está executando essa função… ele está tendo pouca fala! Quer definir apoio? Vamos definir com quem faz! Então eles estão fazendo a análise do trabalho deles através dessa pesquisa. Já existe uma proposta, um piloto, com questionário semi-estrutado. Estamos trabalhando os dados dessas entrevistas, talvez consigamos nesses próximos quinze dias escrever, reescrever, terminar de escrever e mandar para o suplemento que vai sair na Revista Interface só sobre Apoio Institucional e Humanização.

(En)Cena – Quando é que teremos  uma finalização desse trabalho, com os resultados já expostos?

Carlão – Desse miniteste?

(En)Cena – De todo o país?

Carlão – Ah, esse não tem fim. É orgânico.

(En)Cena – Acha que esse ano é possível avançar quanto?

Carlão – Esse ano, acho que na Região Norte vamos avançar bastante, tenho essa esperança. Acho que no Nordeste tem alguns projetos locais que vão aparecer, focais que vão aparecer nos Estados e o mais interessante, é assim, juntar esse povo para tentar construir essa rede. Isso que importa, para que ela possa andar com suas próprias pernas. O protagonismo da PNH não é perene, ele entra no primeiro momento como indutor. O objetivo é que em algum momento essa coisa ande sozinha e a gente possa estar indo eventualmente aos lugares para tentar estimular um pouco mais. Esse ano, tem essa Região Norte que está acontecendo, não estamos tendo perna para pegar mais nenhuma outra Região, provavelmente a pesquisa do Sul termina esse ano, a do Rio de Janeiro ainda não termina esse ano, pois está em processo e a do Espirito Santo também.

(En)Cena – O que um evento como o Seminário Norte de Humanização, no qual você está participando, soma como resultado positivo para esse movimento de pesquisa?

Carlão – Ah isso está sendo muito legal! Porque assim combinamos com os colegas da Universidade Federal do Amazonas, eles fomentaram a participação de alunos neste evento. Alunos de Medicina, da Residência Profissional, da Psicologia. Esses alunos vão produzir relatos, estarão acompanhando os grupos e os relatos do grupo, e esse material vai servir para uma análise posterior. Provavelmente, uma análise temática, uma análise de conteúdo. Vamos trabalhar alguns temas que vão surgir da conversa dos grupos, para serem analisados e quem sabe publicados em artigos, que a gente escreva e divulgue.

(En)Cena – E desse tour que você está fazendo pelo Brasil, tem algum trabalho que uma a Humanização e a Educação Popular, dessas pesquisas que você falou sobre o Rio?

Carlão – Muito pouco. Inclusive eu julgo que a PNH tem como princípio, o princípio da inclusão. Essa inclusão está sendo dupla na maioria das vezes, porque os gestores estão juntos, os trabalhadores estão juntos. Todavia quanto aos usuários ainda existem muitas dificuldades. Agora, recentemente, desde o ano passado se inicia, se cria uma frente dentro da PNH, que é uma frente de Mobilização Social. Essa gente está buscando coisas novas, inclusive dia 19 de abril, vai ter uma Oficina com Seminário, em São José dos Campos SP, na qual os usuários, os movimentos sociais estarão presentes.

(En)Cena – Os usuários têm enfrentado dificuldades?

Carlão – Nós é que temos tido dificuldade de incluir o usuário no nosso trabalho.

(En)Cena – E onde é que está a dificuldade exatamente?

Carlão – Temos uma cultura estranha em relação a isso, temos dificuldades de ouvir aquilo que não queremos. As pessoas vão falar, a gente vai ouvir e normalmente o usuário é o sujeito que fala aquilo que a gente não quer ouvir. Essa é minha leitura pessoal, não é a leitura do coletivo da PNH.

(En)Cena – O usuário não está incluído também nessa política, têm outras políticas acontecendo nos territórios, que ele desconhece, que ele sabe que é protagonista também…

Carlão – O SUS, cara, é absolutamente inovador em relação a isso!  Ele é o único Sistema de Saúde no mundo que tem isso, essa coisa de incluir usuário, da participação social.

(En)Cena – Ficou alguma coisa que você gostaria de falar?

Carlão – Eu só queria assinalar que a potência desse Seminário Norte, como as pessoas entram desejantes, elas querem alguma coisa. A Bruna La Close [Do Movimento GLBT, de Manaus, presente no Seminário Norte] estava falando que tinha pouca participação dos usuários. Mas há razões explicáveis. Tivemos a oportunidade de executar um Termo de Referência para 150 pessoas, não podíamos passar disso [como participantes do evento], não tínhamos como arcar com mais recursos nesse momento, isso tudo, mas o fato dela estar aqui [Bruna], e de outras representantes de movimentos sociais, de lutas de direitos humanos, estarem aqui, já é um caminho extremamente interessante. Eu acho que é a potência desse seminário! Ela é diferente dos outros, não estou dizendo que é melhor não. Estou dizendo que ela é diferente, estou dizendo que o ponto de partida é outro. É isso eu sinto quando saio do paralelo 17. Digo que o Brasil é divido entre o paralelo 17 para cima e o paralelo 17 para baixo. O paralelo 17 passa exatamente em cima do Rio de Janeiro, são Brasis diferentes e eles vão mudando para o lugar aonde você vai. Agora, o ponto de partida que eu sinto cada vez que eu venho à Região Norte, com o que eu vou ao Nordeste, é completamente diferente dos outros lugares.

(En)Cena – Quer dizer que você acha que isso aqui é um passo importante que se fazer humanização e a partir daqui ele vai ganhar outra escala?

Carlão – Outra escala, e outro tipo de abordagem, estratégia diferente de aperfeiçoar o movimento Humaniza SUS. Ele não termina aqui, ele vai continuar com outras coisas, outros acompanhamentos, outras discussões nos locais com as pessoas. A intenção, que percebi, é de não se fechar o evento em si, acabou, acabou, vai todo mundo embora para casa pensando.

(En)Cena – E o Seminário Nacional, que vai acontecer no segundo semestre, em Brasília, já tem um tema geral?

Carlão – Ainda não!

(En)Cena – A questão da Educação Popular, pode ser uma temática interessante?

Carlão – Esse seminário, provavelmente, vai incluir três mil pessoas. Ele é comemorativo! Agora, eu estive conversando com o Gustavo [Nunes, coordenação da PNH] da proposta da organização desse evento e mais algumas outras pessoas lá em Brasília e não se pretende que ele seja só comemorativo. Ele tem que ser propositivo, vamos comemorar os 10 anos da PNH com proposições, não para ficar só batendo palmas e dizendo “nós somos o máximo”, porque não somos! Como diz o ditado: não somos as últimas virgens do Paraíso, não somos!

(En)Cena – Até porque todo mundo está aqui trazendo ideias e quer que isso, de alguma forma, se transforme em políticas públicas.

Carlão – Se estamos lidando com a humanização, a gente não está lidando com essa visão meio tola de que o ser humano é necessariamente bonitinho e bom. Não somos rousseaunianos, sabemos muito bem que vamos lidar com aquilo que é bom e com aquilo que não é! Agora, o que importa, o movimento de humanização, o serviço da gestão, das práticas em saúde no SUS, tem haver com reconhecimento da ambiguidade humana e de coragem para enfrentar os inúmeros conflitos.

(En)Cena – O senhor acha que é uma estratégia ou pode ser um estratégia futura da PNH, entrar no setor da educação? A PNH tem trabalho muito grande ligado à educação em saúde, mas usar a educação, por exemplo, a educação infantil como um locus de estratégias. O que o senhor acha?

Carlão – Eu não sei se ela tem lastro para isso. A iniciativa que estamos tendo é de transformar o que pensamos inicialmente em pesquisa, transformar isso é uma coisa que já está sendo feita. Transformar isso em uma frente que chamamos de Frente Universitária: inclui extensão, pesquisa, estágios e a graduação. Já existem práticas importantes nas Universidades nesses âmbitos.

(En)Cena – Mas você acha que a educação infantil é possível?

Carlão – Eu acho que sim, mas não sei se com essas coisas da Humanização. Eu acho que a educação infantil tem, eu não sei como está sendo feito, mas ela precisaria estar trabalhando com as crianças, a ideia de cidadania e democracia. Penso ser fundamental trabalharmos o direito a saúde com educadores e com alunos.

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Por uma saúde humanizada para além das capitais

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A Coordenadora do Coletivo Norte, Alexsandra Cardoso Souza, afirma que PNH avançou muito em 10 anos, mas ainda existem desafios para saúde de qualidade nos extremos do país.

A realização do I Seminário Norte de Humanização, em Manaus – AM, foi um marco para o coletivo de gestores da Política Nacional de Humanização – PNH. O evento, que faz parte de uma série a ser executada pelo Sistema Único de Saúde – SUS, foi uma preliminar, em comemoração aos 10 anos da PNH, cuja etapa nacional será no segundo semestre em Brasília. Alexsandra Cardoso, coordenadora do Coletivo Norte, explicou que a maior dificuldade encontrada nos preparativos e execução da programação foi na vastidão da região e no fato de ter que dar visibilidade à realização. Você já imaginou viajar durante trinta dias para chegar a um determinado lugar? Pois é, em Manaus isso ocorre e é um desafio para as autoridades e profissionais promover saúde humanizada. Alexsandra revelou mais detalhes do evento, dos 10 anos da PNH, e outros.

(En)Cena – Como foram os preparativos para o Seminário Norte?

Alexsandra – É uma proposta de um coletivo de gestores da Política Nacional de Humanização.  Sentimos a necessidade de criarmos espaços regionais para discussão e amadurecimento de pautas e propostas, de modo que a construção do marco nacional dos 10 anos da política tenha realmente um debate vivo sobre os principais desafios dos territórios e suas especificidades.

Não foi fácil pensar no seminário para a Região Norte, principalmente se notarmos a extensão territorial, pois temos em um único Estado dessa região – por exemplo – a mesma extensão que uma outra região do Brasil. E como é que a gente ia poder fazer isso, de modo potente? Além de que a gente ainda tem uma malha aérea que é de difícil acesso, que é complicado porque as passagens são muito mais caras. Então pensamos: “bom, vai ser um desafio grande, mas é necessário até para a capilarizar a política, porque é um momento em que você consegue reunir gente de toda a região, como trabalhadores da saúde, para poder discutir uma política pública do SUS.”

Nós iniciamos esse movimento em setembro, quando o coletivo se juntou com seus cinco componentes, que são os consultores referentes para cada estado. O primeiro desafio seria chegar aos estados [do Norte], para oferecer um Seminário e dizer precisávamos que esses estados investissem na participação de seus trabalhadores, gestores e usuários. Foi uma conversa muito interessante com as Secretarias Estaduais e Municipais. Tivemos que garantir qual seria o estado que iria dar suporte há Seminário desse porte, dessa proposta, com uma logística adequada. E aí o Governo do Estado do Amazonas resolveu bancar essa parceria, muito legal.

(En)Cena – Como os outros parceiros surgiram?

Alexsandra – Decidimos chamar a Universidade Federal do Amazonas, pois queremos que essas pessoas estejam conosco – alunos do Curso de Medicina – chamamos também o Portal (En)Cena, que é nosso parceiro no Tocantins e garantimos a vinda da equipe para poder fazer toda essa parte de cobertura. Conseguimos incluir outros sujeitos e olhares em nossas discussões e fica a pergunta: como a gente entra numa produção do comum se tem um monte de gente pensando diferente, com objetivos diferentes? Era o que eu estava falando na mesa da abertura, que esse foi um exercício muito de cogestão para nós. Entendo que cogestão possui uma estreita relação com confiança, com tolerância que você tem no outro, tem também a questão de confiabilidade e aí no fim deu nisso daqui: nesse Seminário super potente com muita gente! Tivemos uma demanda muito grande de procura, mas só tínhamos 150 vagas e não foi possível abrir mais. Uma coisa que pontuamos é a necessidade de um Seminário dinâmico e de muito movimento e trocas.

En(Cena) – E você acha que isso está acontecendo? Você acha que está sendo assim?

Alexsandra – Está sim. Eu tenho sentido que está! E as pessoas também tem dito isso. Algumas metodologias que pegamos e colocamos na roda, essa coisa das pessoas circularem nas rodas e da gente fazer uma plenária aberta em que as pessoas pudessem se colocar, valorizando a circulação da fala. Isso já configura outro cenário para o evento. Além de que, tem também as pessoas que convidamos, que são pessoas muito estratégicas, tanto para a mesa de abertura, quanto para conduzir as rodas porque são pessoas que já tinham esse perfil de dar uma dimensão e um movimento às falas.

En(Cena) – Como no Seminário tem gente de muitos lugares diferentes, gostaríamos de saber o que vem a ser um problema comum para todas elas, ou quais são as experiências positivas?

Alexsandra – A experiência mais interessante pra mim é o fato das pessoas conseguirem pegar o que trabalhamos através da teoria da Política Nacional de Humanização, que é pautada nas diretrizes. Então trabalhamos, por exemplo, o acolhimento. Depois trabalhamos a cogestão, refletindo sobre o que é e como ela se configura. A gente trabalha redes discutindo sobre elas também. Primeiramente, você fica nesse campo teórico e conceitual porque as pessoas tem uma dificuldade muito grande de levar isso para o concreto. E aí quando você vem para um Seminário em que você traz sete estados da Região Norte, com secretarias municipais e estaduais de Saúde, Universidades, professores, doutores, trabalhadores, usuários da saúde, formando um público totalmente diversificado, você consegue experimentar alguns dispositivos como, por exemplo, o trabalho em redes. Trabalhamos redes e fazemos redes falando sobre elas, escutando a percepção do outro sobre nosso local de fala, então aqui, agora, a gente está trabalhando redes, estamos mostrando como é esse exercício de trabalhar as diferenças aqui mesmo no seminário. Então, vê-se muita gente discutindo um tema que é comum a todos. Eu acho que os pontos positivos são os temas que estão dentro do Seminário e essa possibilidade de você experimentar as diretrizes da política [PNH] e podermos também se encontrar. Só o fato da gente ter um local para poder se encontrar, comunicar, conversar e dizer das nossas angústias no trabalho, dizer do que está dando certo.

(En)Cena – Há um relato prático dessas rodas?

Alexsandra – Sim. Eu estava em uma roda ontem [dia 21, segundo dia do Seminário], como tema que falava sobre a transversalização das redes, quando as pessoas começaram a falar sobre a questão da saúde mental indígena, que é algo muito forte aqui na Região Norte e dessa roda elucidou-se um monte de perguntas e dúvidas sobre a saúde indígena como, por exemplo: Como é que a gente atua com a população indígena? Como é que a gente entra nas aldeias? Como a gente pode tentar manejar e reduzir o impacto do uso e abuso de substâncias que estão se alastrando nas aldeias? Como diminuir a mortalidade infantil entre os índios? A partir dessas perguntas, pessoas que já tiveram experiências com a população indígena foram partilhando seus saberes e dizendo: “olha, eu fiz isso e deu certo” ou “eu acho que não é por aí”. O relato de experiências é riquíssimo e válido.

(En)Cena – É um dos exemplos positivos desse tipo de evento…

Alexsandra – A gente sempre pensa quando está provocando uma roda ou um Seminário sobre quais são os encaminhamentos que saem disso tudo. Não me refiro aos encontros e estratégias compartilhadas como apenas um produto, porque embora a gente tenha que produzir algum tipo de produto dos encontros que fez, temos, antes de mais nada que sair com um norte, com algum direcionamento para quando voltarmos para o nosso Estado e saber sobre o que poderá entrar no plano de ação do coordenador estadual ou municipal de humanização frente às demandas, ou mesmo o plano de ação de uma unidade ou dos representantes dos serviços que já são apoiadores da PNH. Tão importante quanto o produto e a direção do plano de ação é o apoio que tais representantes têm – ou têm que ter – frente às dificuldades que enfrentam, porque ter um plano de ação otimista e estar sozinho não significa muita coisa, por isso que essa ideia de apoio na política é forte. Nossa ideia não é produzir um trabalho solitário, mas sim um trabalho coletivo! Porque quando você volta de um encontro como esse, sua percepção sobre seus parceiros fica mais clara, quais são as pessoas com as quais você pode contar (além do consultor) para não se sentir sozinho e é assim que você vai estabelecendo uma rede. Você começa a observar experiências de outros lugares, que comungam com uma realidade próxima da sua, começa articular encontros em seu estado, convida algum consultor para levar uma ação específica para onde você acha conveniente que se trabalhe sobre determinado assunto, chama um trabalhador que tenha uma experiência interessante e assim as pessoas vão fazendo intercâmbios, dividindo para multiplicar. Eu acho que o importante é isso, sem contar também que um dos objetivos nossos é canalizar as políticas e fazer com que as pessoas conheçam a Política Nacional de Humanização.

Alexsandra faz uma fala de agradecimento no fechamento do I Seminário Norte de Humanização

En(Cena) – Quem são essas pessoas a quem você se refere?

Alexsandra – São trabalhadores em saúde, gestores, usuários dos SUS, mas ultimamente tem entrado na nossa proposta começar a sair desse campo da saúde propriamente dito e engendrar na Justiça, na Educação, e nos Direitos Humanos porque a PNH é transversal.

En(Cena) – Já dá para visualizar algum resultado da incursão da PNH nesses outros campos?

Alexsandra – Sim, porque começamos a incluir os operadores da Justiça dentro de um trabalho de Redes que estamos fazendo. Então, tanto o Projeto Cegonha, como as redes de urgência e emergência – e as outras redes de atenção, que são prioridades do governo – tem uma diretriz em comum que é o acolhimento com classificação de risco, que significa você dar resolutividade dentro das unidades de saúde para as pessoas saberem onde é que elas têm que ser atendidas, para que um caso que possa ser atendido num Ambulatório não seja atendido, por exemplo, em um Hospital. Dessa forma temos chamado o Ministério Público para conversar porque os profissionais da saúde sofrem com a judicialização da saúde. Porque quando as pessoas não conseguem remédio no SUS elas vão ao Ministério Público e em 24h o SUS tem que dar conta de fornecer esse remédio, mas esse é um problema que é resolvido individualmente, enquanto nós queríamos resolver isso para todo mundo. Por exemplo, trocamos experiências também com os órgãos de segurança convidando o Corpo de Bombeiros para estar junto conosco nas discussões porque é preciso essa orientação quanto às situações de risco, para eles saberem para onde levar uma pessoa após um acidente, dentre outras situações. Além disso, outra frente que vem crescendo na política volta-se para a Saúde Prisional, que é quando nos perguntamos sobre como as pessoas que estão presas estão sendo atendidas, e como é prestada essa atenção à saúde do preso. Então, frente a isso, eu posso dizer que estamos em direção a outros caminhos, ampliados, fazendo um trabalho bem legal. E esse trabalho – lógico – é um trabalho que a gente sempre faz em rodas.

En(Cena) – Como você avalia esses 10 anos de PNH? Quais os pontos que você acha que precisam mudar?

Alexsandra – Coisa para mudar a gente sempre tem. Então eu digo que são 10 anos de um trabalho de constantes mudanças. A PNH, há 10 anos, aqui no Norte, não é a PHN de hoje. Há sete anos, havia apenas uma consultora para essa região, que foi a Terezinha Moreira, uma desbravadora, que pegou esse desafio de vir para o Norte e trazer a PNH. Imagina uma pessoa fazendo todo esse trabalho sozinha e tentando a comunicação com as secretarias que, a princípio, não conseguiam entender direito às propostas da iminente PNH, porque antes se entendia humanização de outra forma, como se humanizar significasse abraçar as pessoas, colocar recepcionistas alegres e sorridentes nos hospitais, como se isso fosse resolutividade de serviço, embora também seja importante e interessante. Humanização não é necessariamente isso, ou não é só isso, absolutamente. A companheira Terezinha teve um trabalho hercúleo na Região Norte e foi fazendo isso junto com as secretarias, onde os coordenadores municipais e estaduais de saúde foram sendo os “consultores” da política na época e isso deu muito certo. Hoje em dia temos todos os hospitais e todas as unidades de saúde querendo implantar a Política Nacional de Humanização, porque ela está dentro de outras políticas, de outros decretos e antes não era assim. Hoje já estamos mais voltados à saúde do trabalhador, à valorização do trabalhador, além de que, hoje temos um acesso mais fácil às secretarias, que nos aceitam melhor por causa desse trabalho que a Terezinha fez. Em âmbito nacional, a gente tem repensado muito sobre a questão das diretrizes e de outros dispositivos, porque esses da política não são o bastante e nós podemos criar outros dispositivos e sempre estarmos analisando-os. Nós começamos a enxergar essa necessidade agora, mas há 10 anos não pensávamos nisso, de iniciar a comunicação com outros Ministérios – como o de Ciências e Tecnologia, Previdência Social – então está tendo uma rede, coisa que há dois anos nem pensávamos.

En(Cena) – Isso é por conta até do conhecimento que os gestores passam a ter e começam a investir mais em programas, em capacitações para os que trabalham nisso?

Alexsandra – Isso é por conta também das diretrizes do governo, como a de promover a redução de mortalidade, por exemplo. Acho que tem a ver também com o momento novo que o próprio Ministério da Saúde tem passado. E tudo isso está muito ligado à questão das políticas, das necessidades e acho que em partes há também uma cobrança da sociedade, onde as pessoas precisam estar mais ativas, procurando mais saúde, se colocando mais também. Tanto é que investimos muito nessa parte da mobilização social, do controle social, porque sabemos que isso é importante. Um Sistema Único de Saúde não vai depender só de gestores e trabalhadores, vai depender de todo mundo e o quê temos feito para isso melhorar?

En(Cena) – E o Norte como está em termos de Humanização, de Humaniza SUS (se você puder, é claro, fazer uma comparação considerando todas as questões)?

Alexsandra – Eu diria que nós estamos muito bem. Estamos muito felizes com o trabalho, porque isso reflete muito o que se tem feito coletivamente. Por exemplo, temos as parcerias com as Secretarias Estaduais de Saúde, que constituem quem coordena e ordena essa parte da política no estado. Estamos recebendo uma demanda grande das Secretarias Municipais, que nos procuram para poder trabalhar a Humanização dentro dos seus serviços. Hoje temos muito mais trabalhadores que se dizem apoiadores da PNH do que antes. E, por fim, eu acho que isso também reflete no modo que esses cinco consultores estão se organizando, no modo como eles, ou melhor, nós, trabalhamos a proposta para a região Norte em relação à PNH. Então, somos um coletivo cogestor. Temos também tem um apoio enorme da Coordenação Nacional da Política e isso dá uma liberdade para trabalhar. Eu avalio tudo isso como um trabalho muito legal e interessante, além de que, a gente tem pensando em muitas coisas para a região Norte, tudo de forma coletiva, contando com aquilo que eu falei no início de que cada estado é como um país, porque é de uma dimensão, é de uma diversidade cultural imensa. No estado do Amazonas, por exemplo, tem município que você demora trinta dias para chegar. É muito difícil imaginar uma situação desta, quando não se vive nela. É uma distância psicológica muito grande para nós. Daí você pensa em quais estratégias você pode usar para tentar levar saúde para um lugar como esse que, só para chegar, leva-se 30 dias. Então, necessita-se de um planejamento muito mais organizado, consistente e com muito mais pessoas. Acho que é por isso que a gente investe mais nessa questão das redes e da discussão conjunta.

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Política Nacional de Humanização, Amazônia e processos de produção de saúde

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O Congresso da Região Norte da Política Nacional de Humanização (PNH), realizado em Manaus em março deste ano, afirma os princípios desta política que desde 20031 vem produzindo, através de suas intervenções – em nível nacional, estadual e municipal -, transformações nos processos de produção de saúde, em especial nas formas de cuidar e de gerir. Além disso, este jeito de “fazer” está articulado com a constante transformação das formas de ser e de viver, em outras palavras, as intervenções da PNH produzem como efeito, a transformação das pessoas e das práticas, uma vez que as práticas (em qualquer setor em que elas estejam inseridas: saúde, assistência, justiça, etc.) são indissociáveis dos tipos de subjetividade que as encarnam2.

Partindo do pressuposto de que os processos de trabalho, as formas de cuidado e a produção de subjetividade são imanentes, a PNH intervém, ao mesmo tempo, na forma de produzir a clínica e a política3. As práticas produzidas pela PNH buscam, através da metodologia da humanização4, a produção de dispositivos que possibilitem a construção de um modo de incluir trabalhadores, gestores e usuários na elaboração, execução e avaliação da produção de práticas em saúde5. De acordo com Eduardo Passos6 (2012) “a feitura da humanização se realiza pela inclusão, nos espaços da gestão, do cuidado e da formação, de sujeitos e coletivos, bem como, dos analisadores (as perturbações) que estas incursões produzem”.

A experiência em Manaus (com a participação de trabalhadores, gestores e usuários) possibilitou a vivência da indissociabilidade entre clínica e política nas rodas de conversa7, nos modos de gerir (tanto a organização do evento como os analisadores8 que surgiam), no jeito de ser das pessoas e na implicação9  que as mesmas possuem com o que fazem, ou seja, produção de saúde.

Assim como a clínica e a política não estão separadas, os movimentos do homem não estão separados, de forma alguma, dos movimentos mais amplos do planeta. Em Manaus estávamos em constante articulação com outros movimentos da Amazônia – produzidos por sua imensa biodiversidade e constante transformação. O clima quente e úmido, a fauna e a flora exuberantes, a quantidade de rios, as chuvas e o nível das águas, a mistura de traços de diversas etnias da região… enfim, a floresta amazônica é um dos lugares de maior biodiversidade do planeta, um dos espaços onde há um sem número de diferentes formas de vida compartilhando um lugar comum. A variação de espécies da fauna e da flora se articula com a constante transformação da paisagem operada, em especial, através da elevação e diminuição no nível dos rios em função da quantidade de chuva.

Os movimentos dos processos de produção em saúde operados pela PNH, engendrados por um modo de inclusão das diferenças e a constante análise da produção de práticas em saúde, funcionam de forma parecida com os processos de produção da vida na floresta amazônica. Da mesma forma que na floresta a biodiversidade é imensa, no Brasil existem pessoas de todo tipo, em virtude de sua área territorial extensa e também pela diversidade cultural das diferentes regiões; assim a PNH busca em suas intervenções a produção do comum enquanto uma forma de criar articulações entre as diferenças, produzindo dispositivos que operem através das diversas formas de participação dos envolvidos nos processos de produção de saúde. Assim como a Floresta se transforma constantemente, nossa sociedade também, no entanto o que os rios produzem na floresta é o mesmo que as relações de força em nossa sociedade; relações de força enquanto poder10, conjunto de forças que em sua resultante moldam as condições de possibilidade da nossa existência. Assim como os rios moldam as condições de possibilidade da vida na floresta.

Notas:

1De acordo com a Rede HumanizaSUS http://www.redehumanizasus.net/node/2504 “A PNH existe desde 2003 e propõe mudanças para qualificar a atenção e gestão em saúde pública no Brasil, atuando em todas as políticas do SUS.”

2NEVES, Abbês Baêta; FILHO, Serafim Santos; GONÇALVES, Laura; ROSA, Mônica. Memória como cartografia e dispositivo de formação-intervenção no contexto dos cursos da Política Nacional de Humanização. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e Intervenção / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

3BARROS, R. B.& PASSOS, E. (2005a). A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v.10, p.561 – 571.

4Na Apresentação dos cadernos HumanizaSUS, Dário e Eduardo falam da dimensão metodológica da PNH, enquanto um modo de incluir gestores, trabalhadores e usuários nos processos de produção de saúde. In. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à saúde. Política Nacional de Humanização. Formação e Intervenção / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização – Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

5Idem.

6Ibidem.

7Metodologia criada por Gastão Wagner de Souza com objetivo de inclusão dos sujeitos na produção dos processos de saúde, se trata de produzir “com” os sujeitos e não “para” eles. CAMPOS, G.W. Saúde Paidéia. São Paulo: HUCITEC, 2000.

8LOURAU, R. A análise Institucional. Petrópolis: Vozes, 1975.

9LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, S. (Org.). René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 186-198.

10 FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2001.

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Humanização dos processos de trabalho, ou seria de nós mesmos?

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Foi bem interessante o meu contato com a Política Nacional de Humanização (PNH). Antes de ter conhecimento dos seus princípios e diretrizes já almejava uma relação como ela propõe. Logo, não tive dificuldade de me apaixonar. A cada leitura esse sentimento crescia e talvez por conta disso acredito plenamente que é possível colocá-la em prática. Sempre fui otimista quanto a isso.

Tive a oportunidade de estar presente no encontro dos consultores da PNH da Região Norte em Manaus–AM, e foi um encontro mágico. Um lugar onde se evidenciou dificuldades e angústias e traçaram-se novos desafios, como o de agregar o usuário a esse movimento, “pois só é possível que a política se consolide se ouvir suas dificuldades e necessidades”1. Percebi que é preciso investir em formações, na aproximação com a universidade, incentivar e disseminar pesquisas a cerca do tema, divulgar experiências exitosas, disseminar a PNH nos processos de trabalho, conhecer a diversidade cultural da população, fomentar roda e protagonismo, buscar estratégias para levar o conhecimento da PNH para a comunidade, exercer a clínica ampliada, partir para aAÇÃO, compartilhar conhecimentos.

E mesmo com grandes desafios, o que prevaleceu foi o compromisso e a vontade de viabilizar tais mudanças. Não houve ninguém apressado para ir embora, as discussões de tão produtivas ultrapassaram o tempo previsto e todos estavam encantados com a possibilidade de fazer acontecer essas transformações, e se deixaram ficar. Nessas trocas, cada um expôs suas experiências e ouviu atento a vivência do outro. Médicos, psicólogos, biólogos, assistentes sociais, pedagogos, enfermeiros, técnicos, gestores, representantes de movimentos sociais, consultores e apoiadores da PNH, usuários e educadores populares, todos não em busca de sobrepor seu conhecimento sobre os demais, mas de enriquecer sua prática com a contribuição do outro – o respeito e humildade foram permanentes.

E a PNH que se propõe não é um modelo a ser seguido, mas um processo, uma essência que toca cada um de forma diferente e que quase sempre promove mudanças profundas. Exercer a PNH no cotidiano dos serviços é também praticá-la nas relações – “temos que combater as dicotomias criadas ao longo de nossa história, não há como separar corpo e mente, público e privado, processo de trabalho e vida fora dele”2, são componentes de nossa existência, portanto se atravessam, complementam-se e nesse movimento constituem nossa VIDA. Assim, para humanizarmos os nossos processos de trabalho, precisamos primeiro fazê-lo com nós mesmos, mudando conceitos, desconstruindo e construindo novas formas de perceber e relacionar-se com o outro. E para que esse processo aconteça, precisamos sair de nossa “ZONA DE DESCONFORTO e não de conforto, pois não é agradável onde estamos, é um lugar individualista”3 e solitário. Temos que “parar com queixumes e partirmos para a AÇÃO4 e compartilhar, agregar, dividir, “resgatar a AMOROZIDADE5, estreitar laços e promover rodas e encontros.

Ao fim desse evento, saí transformada e por isso compartilho com vocês essa experiência, com o intuito de disseminar esse movimento e que ele também lhes cause paixão. Eu me comprometo a entrar em AÇÃO e VOCÊ?

Notas:

1 Bruna La Close.  Representante do movimento GLS de Manaus.
2 Ricardo Penna. Psicólogo e consultor da PNH.
3 Ricardo Teixeira. Professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, consultor da PNH e coordenando da Rede Humaniza SUS desde 2008.
4 Roseni Pinheiro. Professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora e líder do Grupo de Pesquisa do CNPQ LAPPIS – Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde e bolsista de produtividade CNPq.
5 Reginaldo Alves. C
oordenação Geral de Apoio à Educação Popular e a Mobilização Social .

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A Humanização do Homem Biopsicossocial

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Parágrafo único:  O homem confiará no homem, como um menino confia em outro menino. Thiago Mello – Estatuto do Homem (Ato Institucional Permanente), Santiago do Chile, abril de 1964.

É muito fácil falar em humanização, também é comum conceber o conceito de Humanização da Política Nacional de Humanização (PNH) partindo da visão culturalmente difundida em acordos mudos de nossa sociedade sobre o que é “ser” homem em nosso tempo.

Dada a breve história de vida da PNH (dez anos), ao falarmos de humanização, a primeira visão que temos é a de que – acredito não ser essa uma visão restrita apenas do senso comum1, mas também à academia – precisamos, enquanto técnicos, fazer o bem aos usuários dos serviços de saúde. Sob essa ótica, a concepção popularmente difundida de humanizar é: não desrespeitar, não ignorar, não negar, não punir, não agredir, não magoar, e todos os outros nãos que se pode imaginar.

Culturalmente, estamos acostumados ao “Não”, por medo da punição. Na academia, o médico aprende que não pode praticar eutanásia para não ir preso, o psicólogo a não revelar o sigilo do cliente para não perder seu diploma, o enfermeiro a não receitar um medicamento, fora os que são preconizados pelo Ministério da Saúde, pelo processo legal, etc. É incomum ver o contrário: um ensino pautado no amor – digo de amor porque sou otimista, e prefiro acreditar na possiblidade de mudança, sempre – no bem, na filantropia, no altruísmo, e ainda assim, quando praticamos tais ações visamos a aprovação da plateia, muito mais que a satisfação do ato.

O status “Co” – comum, comunitário, conjunto e compartilhado – sempre foi idealizado como habilidade necessária e almejada pelos cidadãos em nossa cultura. O que é um ideal, senão algo que nunca poderá ser alcançado? Mas será mesmo? Para além do reducionismo do termo, eu acredito na potencialidade das possibilidades. E se algo existe é por que ele é real, talvez bem mais do que ideal.

E foi assim que nasceu a PNH. Há menos de trinta anos atrás, quem ouviria falar em participação popular, cogestão, e interface de um programa de melhoria do sistema de saúde com demais programas do governo? De 1964 até 1988 não se ouviria falar na efetivação de uma Política Nacional de Humanização, muito menos em um Sistema Único de Saúde.

São coisas tão novas, tão utópicas e ao mesmo tempo tão reais. O que era sonho, hoje é palpável e agora está ao alcance de todos, porque ele é de todos e para todos. A PNH não é Humanizada porque se pauta na Transversalidade, na Indissociabilidade entre atenção e gestão e no protagonismo, na corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos coletivos. A PNH é humanizada porque é feita por homens e para os homens. Em seu modelo, que só é possível mediante uma prática, é a práxis da comunidade casada com a academia, mais o corpo técnico de profissionais da saúde inseridos que nos é o que garante essa tal humanização.

O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro (BOFF, 1999, p.33).

Se rompermos com a visão mecanicista, cartesiana e reducionista de um homem concebido apenas a partir de fatores biológicos, psicológicos e sociais, que também sofre uma influência direta da cultura na qual estão imersos, chegaremos ao campo das possibilidades.

O campo das possibilidades está para além do reducionismo, buscando o extremo contrário: a ressignificação – respeitando o que precisa ou não ser mudado, o que precisa ou não ser significado – sempre considerando as potencialidades particulares e coletivas. Seria utópico dizer que isso nasce da noite para o dia. Se a PNH nasceu, foi porque se percebeu que práticas como o acolhimento, a gestão participativa, a ambiência, a clínica ampliada e a defesa dos direitos do usuário eram práticas que já vinham acontecendo e davam certo. Nessa lógica, se antes do conceito vem a ação, devemos ter claro que antes da humanização sempre vem o homem.

Referências:

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

Nota:

1 – Em momento algum pretendeu-se desmerecer o saber produzido pelo senso comum. Do contrário, de minha parte ele é respeitado e até mesmo incentivado, como um dos vários meios de se produzir conhecimento.

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O papel da narrativa na Humanização

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“Se não tem ação, não tem princípio”. Essa frase foi usada por Roseni Pinheiro1 quando, nos trabalhos do Seminário Norte de Humanização, discorria sobre o princípio da Integralidade.

No processo de sermos e-ou nos tornarmos humanos, de forma integral, lidamos diretamente com a forma como as pessoas contam suas histórias, pessoais e coletivas. A integralidade está intimamente ligada à narrativa uma vez que essa é um formato de relato histórico que posiciona sujeitos em torno de objetos, descrevendo ações e adjetivando tanto essas últimas quanto os sujeitos e os objetos. As qualificações podem ainda, por sua vez, ser intensificadas adverbialmente. A linguagem exercida pela língua tem, desse modo, papel importante na formação subjetiva uma vez que, no aprendizado da língua, não apenas repetimos fonemas e os associamos às grafias, mas também ela própria serve de substrato para que a criança construa a sua maneira de se socializar e também a sua maneira de olhar para a própria história e ao meio em que vive bem como a orientar sua narrativa de vida. Isso quer dizer que a maneira como falamos sobre nossa vida tem seu quinhão na gênese do pensamento, da memória e da criatividade. Dessa maneira é importante estudarmos o papel da narrativa de vida na constituição subjetiva.

A Educação Popular trabalha diretamente com a questão da narrativa. A partir da descrição e da narrativa (um tipo de descrição dos fatos) do cotidiano das pessoas, Paulo Freire revolucionou a prática de ensino, em especial a de alfabetização. A prática da Educação Popular é no sentido de educação de base de maneira que as pessoas de um determinado território apropriem-se da forma de falar sobre suas vidas. Tal apropriação é visualizável a partir do momento que tais narrativas passam a costurar afetos, técnicas e saberes; é visualizável quando tal educação opera protagonismo, ou seja, quando no trabalhar há emancipação do homem uma vez que o trabalho, na Educação Popular, anda juntamente com a educação, pois transforma o homem ao invés de o alienar. A narrativa torna-se, nesse contexto, um instrumento para a disseminação de uma cultura, para a disseminação do cantar, do dançar, do sentir. A narrativa da própria história e das próprias experiências é um meio para a humanização.

A Política Nacional de Humanização (PNH) é a principal política que coloca em cena a humanização. Tal tema parece necessitar de uma abordagem pedagógica, mas também uma abordagem na área da saúde, uma vez que é na criação dos laços sociais que a PNH exerce seu efeito práxico; com a capilarização ela adentra nas relações, analisando as instituições e ativa fluxos instituintes. A Educação Popular é um manancial instituinte, controlado, em grande parte, à base de fármacos. O TDAH é o que mais liga a escola à área da saúde, ou seja, o que mais liga as áreas da Educação e da Saúde são problemas e não parcerias – as relações entre esses setores são mais disciplinares do que em rede.

Nesse sentido, ficam as perguntas: Como estabelecer a intersecção entre a PNH e a Educação Popular? Ou melhor, quais práticas são possíveis para a “humanização” na educação, escolar ou não? E, mais especificamente, que práticas são possíveis usando a narrativa de vida? De que maneira a narrativa pode ser explorada de maneira a construir uma Educação Popular em Saúde?

A abertura da narrativa com a arte parece ser uma característica essencial para repensarmos o seu uso nas práticas sociais.

Nota: 

1 Coordenadora do LAPPIS e professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ.

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Os Serviços de Saúde e a produção imaterial do trabalho

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O (En)Cena entrevistou o Professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Ricardo Teixeira. Ele é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985); tem mestrado e doutorado em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atua como médico sanitarista da Universidade de São Paulo, desenvolvendo atividades de assistência, docência e pesquisa junto ao Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa (Butantã). Desde 2007, é consultor da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, coordenando, desde 2008, a Rede Humaniza SUS.

Ricardo Teixeira no I Encontro de Humanização do Tocantins – Foto: Michel Rodrigues

(En)Cena – Ricardo, é possível, hoje, conversar sobre os temas da saúde fugindo da área técnica da saúde?

Ricardo Teixeira – Só o termo “área técnica”, já abre toda uma discussão. Eu entendo o que você quer dizer com isso, mas até poderia colocar essa ideia em questão. Na área da saúde, quando você fala em “área técnica”, a gente logo pensa nas profissões da saúde, em suas intervenções específicas, precípuas, vamos dizer assim; o médico mexe no corpo, o psicólogo mexe na mente, têm toda uma tecnicalidade ligada às finalidades atribuídas ao trabalho do profissional de saúde. Esse trabalho técnico se realiza num contexto relacional de encontro e conversa que, com frequência, é do campo extratécnico, embora também seja passível este ser tomado sob uma perspectiva puramente técnica. Eu mesmo procurei fazer isso quando tentei desmiuçar essa dimensão: trabalho e saúde.

(En)Cena – A discussão em saúde ainda é muito técnica hoje?

Ricardo Teixeira –  Técnica é um termo meio desgastado, no qual se associa uma frieza, uma dureza, um engessamento. Mas isso é uma visão da técnica, se abrirmos essa conversa para além do técnico entendido, como as intervenções para as quais nós somos treinados em nossas áreas de formação, nós daremos vazão para além de uma dimensão imaterial do trabalho. Essa é outra entrada conceitual possível, pensar os trabalhos em saúde como trabalhos imateriais, trabalhos que tem uma dimensão de produção imaterial. Qual o tipo de produção que nós estamos falando? Estamos falando de produção de relação, produção de encontro, produção de afeto, produção de reações emocionais, produção de comunicação.

(En)Cena – Você acredita que a PNH têm contribuído positivamente para essa produção imaterial do trabalho nos Serviços de Saúde?

Ricardo Teixeira – Certamente. Os Sistemas de Saúde são sistemas de atenção e de cuidado. Se conseguirmos integrar essa reflexão, que pode até ser técnica, sobre os sistemas de atenção, chegaremos à outra produção: há outra produção na saúde, ela se dá quer a gente tenha conhecimento dela ou não. Podemos tomar consciência dela se a concebermos como uma dimensão produtiva, sobre a qual preza a qualidade. É o tipo de produção que se dá nos encontros. Afinal, nenhum trabalho em saúde se dá fora dos encontros, nenhum trabalho em saúde está fora da conversa. A psicologia, por exemplo, fez disso seu campo de intervenção, mas se você pensa a técnica do médico ou do enfermeiro, temos intervenções onde essa dimensão não é problematizada, nem sequer na formação. Vejo a Política Nacional de Humanização do SUS (PNH) como uma grande medida, que procura trazer a tona essa dimensão produtiva do trabalho em saúde.

(En)Cena – Para construir a rede de atenção em saúde é necessário trabalhar/gerir essas diferenças de informação na formação?

Ricardo Teixeira – Gerir também. Aliás… É gerir mesmo! Percebo essa questão que você está trazendo, nos mesmo termos da questão anterior, é um trabalho que se dá no encontro, talvez a minha primeira colocação remetesse mais a ideia do encontro entre o cuidador e cuidado, quero dizer, é mais um campo de relações que se abre a partir das relações entre as profissões. É um trabalho em rede, cooperativo… É um trabalho que busca construir um comum nessas diferenças. Agora a ideia de gerir… É cogerir o fato de que todos estão implicados nessa gestão da composição, e no jogo das diferenças.

(En)Cena – A percepção que temos, eu queria saber se isso é uma percepção que existe dentro da visão da PNH, é que o usuário é uma figura que está equidistante da rede. Nessa experiência de cogestão, a rede consegue chegar ao usuário, o usuário consegue se perceber como cogestor do sistema?

Ricardo Teixeira – Não! Muito pouco. Acho que esse é um grande desafio, mas que também cobra de nós outro modo de acolher conceitualmente essa ideia. Acho que a ideia produção de saúde cria algumas brechas possíveis para recolocarmos esse problema.

(En)Cena – Como isso seria possível?

Ricardo Teixeira – Eu falei agora a pouco de “cuidador, cuidado”, e minha cabeça está cheia de reticências quanto a esses termos. Então, eu acho que o jogo da relação, é justamente um jogo que abre uma possibilidade de algo infindável, não é um campo fechado, mas é, justamente, o campo da produção contínua da abertura nas relações. Acho que há um modo de colocar o problema, onde o usuário sempre vai ficar em outra posição. Na Rede Humaniza SUS, por exemplo, que é uma rede onde, fundamentalmente, essa questão que você coloca se expressa, temos uma participação importante de trabalhadores e gestores da saúde, e uma participação mínima de usuários. Quando digo “usuário” me refiro a aquele que só é usuário. Mas uma das coisas que mais chama atenção na experiência das trocas na Rede Humaniza SUS é de como os trabalhadores também se colocam como usuários, costumo dizer: “é meio obvio”, alguns são trabalhadores da saúde, mas TODOS são usuários. Então ali já há uma possibilidade de abertura, já é outro modo de articular.

(En)Cena – Qual o principal público que acessa a Rede Humaniza SUS hoje?

Ricardo Teixeira – Ao mesmo tempo em que são poucos os usuários que participam da experiência da rede, tem uma parte significativa deles que são ou usuários da saúde mental, ou parentes de usuários da saúde mental, significativamente, são esses os usuários mais presentes na Rede Humaniza SUS. Temos alguns companheiros que perderam filhos dentro de hospitais psiquiátricos; que militam na reforma psiquiátrica; que encontraram na Rede Humaniza SUS um espaço. Do outro lado, a outra face dessa moeda é que: esses usuários também são trabalhadores do SUS, eles participam muito mais do que metaforicamente da produção de saúde.

(En)Cena – Você acredita que o trabalho imaterial se tornou a forma hegemônica do trabalho contemporâneo?

Ricardo Teixeira – Não é simplesmente porque a ideia do trabalho é imaterial. Além de atentar para dimensão dessa produção imaterial, inalienável, incontornável no trabalho em saúde, eu posso ignorá-la e ainda assim produzir afeto. Às vezes, mesmo que negativos, eu estou produzindo afetos. Essa produção está presente em qualquer encontro, em qualquer ato técnico da saúde, em qualquer encontro que se de nos espaços da saúde. O trabalho imaterial, que é uma boa categoria para pensar essa dimensão dos trabalhadores formais da saúde, abre uma brecha para a percebermos a produção social hoje. Se o trabalho imaterial se tornou, como diz alguns autores, a forma hegemônica do trabalho contemporâneo, ele integra imediatamente uma forma de trabalho não formal, que está fora do mercado formal de trabalho.

(En)Cena – Na sua visão esse trabalho imaterial, é uma espécie de doação que indivíduos fazem ao sentido coletivo?

Ricardo Teixeira – Eu acho que o mundo do imaterial abre essa possibilidade de pensarmos da ótica de uma “economia da dádiva”. Essa economia, e esse mundo que vivemos sob muitos aspectos, em que tudo tem uma ambivalência, um duplo valor, o trabalho imaterial é a ponta de lança de produção de valor no capital, mas, ao mesmo tempo, ele abre a possibilidade de uma incorporação no processo produtivo, de uma lógica da dádiva, do dom. E, efetivamente, quer dizer, em Marx a gente encontra essa discussão brotando, quer dizer, a ideia dele do General Intelect. Ele previa que, pela evolução das forças produtivas, o saber social total seria o grande ator da produção social. Quem participa dessa construção? Em um texto escrito em Alemão, ele, curiosamente, coloca em inglês, entre parênteses, do lado desse saber social total a ideia desse General Intelect. Particularmente, eu tento aproximar um pouco, talvez um pouco livremente da ideia de uma inteligência coletiva, de um intelecto geral, essa ideia de que o saber social total seria, cada vez mais, o grande ator da produção social.

(En)Cena – Essa integração das forças produtivas ao capital é generalizada?

Ricardo Teixeira – Sim. E ele é, ao mesmo tempo, um trabalho cooperativo. Ele se apropriar de saberes anteriores, e está sempre em ato, produzindo novos conhecimentos. É um trabalho lateralizadamente e imediatamente cooperativo. Eu não tenho como excluir o trabalho da educação, o trabalho da maternidade, o trabalho da mulher, tudo, de certa forma, começa a integrar uma dimensão produtiva. Essa integração generalizada de tudo na dimensão produtiva é o modo como o capital tem corrido atrás de conquistar novos continentes. Abriu-se um campo do ilimitado de novo, Rogerio da Cosa conversando com a gente, diz que a própria exploração do corpo físico é finita, já a exploração da subjetividade é, potencialmente, infinita.

(En)Cena – Tendo por base o livro do Edvaldo Couto “Corpos Mutantes”, a saúde está preparada para lidar com o corpo cybortico?

Ricardo Teixeira – Bom à saúde, ela trabalha efetivamente com o corpo cybortico já algum tempo, mas em múltiplas acepções. Uma delas, um trabalho em saúde que não é visto apenas da ótica técnica das intervenções sobre o corpo, é um trabalho que tenha uma dimensão de produção imaterial, um trabalho que, na verdade, convoca esse saber social total, um trabalho cooperativo. Penso que a complexidade dos desafios que a gente tem pela frente convoca outro corpo, um corpo que não está realmente dado. Vou falar de impressões, porque aqui eu estou entrando no terreno da exploração aberta, sob a influência dos últimos encontros, das ultimas conversas, das ultimas experiências. Nós que construímos uma politica publica como o SUS, que foi uma politica construída na luta e na alegria porque, há vinte anos, a possibilidade de construirmos uma politica publica universal de saúde era improvável… E eu acho que depois de vintes anos, todos que continuam ainda acreditando na possibilidade de uma politica publica, universalista, vivem hoje uma sensação de esgotamento, do campo do possível.

(En)Cena – Como você percebe esse corpo?

Ricardo Teixeira – A sensação que eu capto é de que falta um corpo, está faltando um corpo para isso, há um desafio que reclama outro corpo. Eu tenho muito forte essa sensação de que de fato nós vivemos em uma mutação da espécie, há alguma coisa passando por aqui. Há um desajuste relativo entre o tamanho do desafio ao qual a gente procura responder, e o corpo que dispomos para isso. Então me vem à ideia da construção de um corpo mais composto. Eu gosto muito de um conceito, às vezes um pouco controverso, que é aquele conceito de corpo sem órgãos, que a gente deve construir um corpo coletivo, um corpo que se mede nos fluxos de intensidade que percorrem esse corpo, a ideia de corpo sem órgãos, que é um conceito criado por Deleuze e Guattari.

(En)Cena – Ricardo, vamos chegando ao fim de nossa entrevista, e para finalizar: Esse corpo cibernético hoje, está em constante construção? Eterno Movimento?

Ricardo Teixeira – Eu acho que essa ideia interessante, porque ao mesmo tempo em que a expressão “corpo sem órgãos”, pode ser um pouco equivoca, por remeter a um corpo do qual se retirou os órgãos, curiosamente, e talvez nesse caso fique mais claro, que por vezes, a construção um corpo sem órgãos se dá pela adição de órgãos. Eu pressinto, que para fazer um corpo sem órgãos, nos falta órgãos que produzam outra organização. Um novo órgão redefine o organismo, e é nesse sentido que a gente permanece na luta contra o organismo. Mas não exatamente por um esvaziamento dos órgãos. E esse outro corpo, também não é esse corpo dado a nossa fé perceptiva individuada porque o cyborg, em minha opinião, já aponta para este corpo composto de muitos corpos, de muitos indivíduos. Quando estou falando do cyborg RHS, RHS eu falo do apelido acrônimo de REDE HUMANIZA SUS, que foi uma experiência que começou na WEB.


 

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