Sobrecarga e equilíbrio – (En)Cena entrevista a professora Vanessa Oster

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“Falar de saúde mental neste período é algo difícil, vivo no limite. Existe uma linha muito tênue entre a sanidade e o surto. Durante o dia tenho várias alterações de humor e isso reflete em todas as minhas atividades, principalmente no trabalho”.

O Portal (En)Cena entrevista a professora e pesquisadora do Instituto Federal de Tecnologia do Tocantins (IFTO), doutoranda  em educação pela UNICID, Vanessa Oster, para entender sua perspectiva acerca dos desafios que o Brasil da pandemia impõem à  mulher, profissional, cientista, esposa, mãe de duas crianças em idade de alfabetização no ensino remoto.

Em sua fala, a professora relata pontos como a intensificação da sobrecarga da mulher no período da pandemia, devido ao acúmulo de atribuições domésticas, das atividades escolares dos filhos às tarefas ordinárias da vida profissional. Nesta perspectiva, a entrevistada destaca a importância da saúde mental para oportunizar uma melhor interação entre as pessoas envolvidas na dinâmica do trabalho, tornando a rotina mais agradável e produtiva e conduzindo todos a decisões assertivas. Por fim, Vanessa Oster aponta preocupações com os retrocessos sociais no que tange ao atraso nas conquistas relativas à equidade de gêneros em decorrência do período de calamidade causado pela COVID-19.

Figura 1 – Foto pessoal

(En)Cena –  Considerando o seu lugar de fala, de mulher, professora do IFTO, pesquisadora, mãe e professora dos filhos em aula online e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID-19?

Vanessa Oster – Ser mulher durante a pandemia é um exercício diário de fé, paciência e persistência. São muitas demandas, é preciso ser uma boa mãe, uma excelente profissional, uma dona de casa exemplar e tudo isso acontecendo ao mesmo tempo no mesmo ambiente. As tarefas se confundem, trabalho e cuido das crianças simultaneamente. Isso para mim é o mais complicado. A sobrecarga da mulher é evidente no período da pandemia, ficou muito claro que as atribuições domésticas e as atividades dos filhos são das mulheres.

(En)Cena – Como a saúde mental (sentimentos e emoções) das mulheres interfere em tomadas decisões acertadas ou equivocadas no trabalho?

Vanessa Oster – Falar de saúde mental neste período é algo difícil, vivo no limite. Existe uma linha muito tênue entre a sanidade e o surto. Durante o dia tenho várias alterações de humor e isso reflete em todas as minhas atividades, principalmente no trabalho. O meu desempenho profissional está diretamente ligado ao meu estado de espírito. Se estou bem a aula ministrada por mim, a metodologia aplicada é exitosa caso contrário nada flui de forma prazerosa. A manutenção da saúde mental é de fundamental importância para que eu tenha condições de realizar as minhas atividades pessoais e profissionais com qualidade. Estando com uma boa saúde mental o convívio (mesmo que virtual) com os colegas propiciará uma interação/ socialização mais agradável e produtiva, o que automaticamente conduzira para decisões assertivas. Sendo assim, neste período, várias decisões tomadas foram erradas em função de uma instabilidade emocional.

Figura 2 – Mari_C/Getty Images

(En)Cena – Quais os desafios de ser ensinar e produzir ciência sendo mãe e mulher, durante a pandemia?

Vanessa Oster – Produzir ciência não é fácil em nenhuma condição, agora então exige uma maior dedicação. Ser mãe e fazer ciência, ao mesmo tempo e no mesmo ambiente é uma equação com muitas variáveis e nem sempre é possível chegar a um resultado, algumas coisas se perdem pelo caminho. Em vários momentos a mãe precisa elencar prioridade as quais lhe tomarão mais tempo. Neste período de pandemia eu optei em priorizar meu tempo com as meninas, até por elas estarem nas serem iniciais e precisarem receber uma alfabetização e um letramento de qualidade. Historicamente e socialmente, a mãe é tida como responsável pelas crianças e responsável por tornar o ambiente doméstico um bom lugar para a família conviver.

Como neste período de pandemia tudo acontece dentro de casa, fazer ciência e ser mãe demandou que muitas horas de sono fossem dedicadas a leitura para que a minha produção acadêmica não parasse. Com muita dedicação, muitos momentos de surtos e sem muita compreensão das crianças eu tenho conseguido fazer ciência. Não sei se manter a produção acadêmica é uma decisão assertiva no momento, devido à sobrecarga, mas é muito satisfatório ter resultados de um trabalho seu publicado. Seja como capítulo de livro, artigo ou qualquer outra forma de documentar a minha contribuição para a ciência. E assim vamos seguindo entre uma tarefa e outra das crianças um artigo é lido, depois que elas dormem é que consigo escrever.

Figura 3 – freepik

(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Vanessa Oster – Antes da pandemia estávamos em um “momento feminino”, estávamos nos aproximando de uma equidade de gêneros, porém com a crise da covid-19 talvez a vida de muitas mulheres mude e tenha um “retrocesso” no que se trata da equidade. Em função do convívio mais intenso entre os cônjuges, devido fatores econômicos e vários outros acontecimentos da pandemia, aumentou muito o número nos casos de violência doméstica. Algumas meninas que estavam em idade escolar, viraram adultas no período de pandemia começaram a trabalhar e terão dificuldades para voltar a escola, algumas mulheres saíram do trabalho para cuidar dos filhos pois não tinham com quem deixar as crianças, tornando-se assim dependentes financeiramente dos seus cônjuges. A meu ver são alguns fatores que podem levar uma submissão feminina. Por outro lado, algumas mulheres se destacam no período pandêmico devido ao potencial de liderança e facilidade de mediar conflitos nos Governos e nas Empresas. Sendo assim acredito que existirá dois grandes grupos, as mulheres independentes e estáveis profissionalmente (não sei se com saúde mental) que estarão à frente de grandes projetos sociais, grandes empresas e até mesmo líderes de governo e aquelas que retroagiram e tiveram que postergar o sonho da igualdade de gênero por mais uns anos. O que ambos os grupos terão em comum, é serem formados por mulheres sobrecarregadas e que estão em constante busca de equilíbrio.

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O Operário: a difícil luta para encontrar a sanidade

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O ser humano, em sua jornada, objetiva alcançar o equilíbrio tanto físico quanto emocional, frente às pressões do cotidiano, para que, assim, consiga suportar as tramas da vida de forma mais branda. Se tal estabilidade não for alcançada, e se ele, ao mesmo tempo, não mais encontra estratégias para lidar com essas adversidades, ele sofre. Dito em outros termos, essa pessoa entra em crise (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

A palavra “crise”, segundo Bonfada e Guimarães (2012), vem do grego “krisis”, que, de forma geral, circunscreve que uma decisão deve ser tomada. Eles, ainda, acrescentam que “essa palavra assume, desde suas origens, um sentido relacionado transição, separação, desequilíbrio, transitoriedade e, acima de tudo, a uma oportunidade de crescimento” (p.228).

Sá, Werlang e Paranhos (2008) afirmam que “vivenciar uma crise é uma experiência normal de vida, que reflete oscilações do indivíduo na tentativa de buscar um equilíbrio entre si e seu entorno” (p. 2). Quando a situação atual passa para um nível insuportável, é o instante em que a pessoa se dá conta dos fatos, de seu sofrimento e que algo precisa ser mudado. Considera-se importante, pois é um momento de metamorfose do indivíduo, em que se visualiza o seu poder criativo e transformador (BOFADA e GUIMARÃES, 2012).

"Quem é você?"
“Quem é você?”

Com o entendimento de crise, exibem-se a seguir a análise de um filme, cujo personagem principal apresenta crises no desenrolar da história. Esses comportamentos, juntamente com o corpo teórico sobre o tema relacionado a crise, serão relacionados para que se possa melhor entender como a mesma se instala em um indivíduo, ampliando, com isso, conhecimento referente ao assunto.

O filme “O Operário” – “The Machinist” (2004), com o roteiro de Scott Kosar e direção de Brad Anderson, conta a história de TrevorReznik (Christian Bale), um solitário operador de maquinário que há um ano não dorme, situação que vem, progressivamente, deixando seu estado físico e mental fragilizado. Reznik mostra-se paranoico, confuso, culpado e ansioso, sintomas estes que, no desenvolvimento do longa, vão “dando pistas” para que ele reconheça o seu real problema.

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Trevor trabalha em uma fábrica, operando máquina e, rotineiramente, após seu turno, encontra-se com Marie (Aitana Sánchez-Gijón) no seu serviço, uma garçonete que trabalha na lanchonete do aeroporto. Quando não, ele visita Stevie (Jennifer Jason Leigh), uma prostituta com quem ele tem um caso. Em suma, essas duas mulheres são as únicas pessoas com quem Reznik se relaciona.

Após se envolver em um acidente, no trabalho, Trevor começa sentir-se que está sendo perseguido pelos seus colegas de trabalho. Este evento ocasionou a perda do braço de Miller (Michael Ironside), quando, sem querer, ele aperta o botão que liga o maquinário que seu colega estava consertando. O acidente aconteceu porque Trevor se distraiu com a presença de um homem chamado Ivan (John Sharian) no local de trabalho. Eles, anteriormente, haviam conversado no estacionamento e, ao se apresentar, Ivan conta a Reznik que estava lá como substituto de Reynolds (James DePaul), soldador da fábrica.

Ivan (John Sharian)
Ivan (John Sharian)

 

No dia seguinte, quando foi dar seu depoimento sobre o acidente para os gestores da empresa e para o sindicato, ele descobre que não existe nenhum substituto trabalhando na fábrica e que a história que Ivan lhe contara não era real. A partir de então, ele começa a ser visto como louco pelos seus colegas de trabalho e ele, paranoico, percebe que sua presença é tida como um incômodo para os outros.

Confuso, Trevor procura desabafar seu conflito com Stevie. Ele alega que alguém invadiu a sua casa, deixando uma mensagem pregada na geladeira, do tipo “jogo da forca”, no qual ele tinha que adivinhar uma palavra de 6 letras, mas que as duas últimas palavras – “E” e “R” – já estavam reveladas.  Conta que, por causa do acidente que aconteceu com Miller, sente-se ameaçado pelos seus colegas de trabalho, pois estes o querem bem longe da fábrica. Fecha o discurso acreditando fielmente que haja uma conspiração contra ele. Reznik decide iniciar uma busca incansável a Ivan, pois ninguém acreditava na existência deste, então precisava encontra-lo para desmascará-lo.

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Nesse interim, a garçonete que trabalha no aeroporto, ao contar sobre seu compromisso para o Dia das Mães que fará com seu filho, decide convidar Trevor para ir ao parque. Lá, dentro da Rota 666 – uma das atrações do parque de diversões –, ocorria cenas que assemelhavam com sua realidade a cada momento do percurso, como: a mão de uma pessoa decepada, que o fez lembrar do acidente com Miller; a mãe em prantos no caixão de alguém; a palavra “culpado” escrita em uma placa; uma criança sendo atropelada pelo veículo que eles estão “dirigindo”; e, por fim, ao chegar na estrada que “leva ao inferno”, Trevor tem flashes de um possível carro atravessando um túnel. Durante esse momento arrepiante, o filho da garçonete que estava junto com ele, começou um ataque epilético, fazendo com que Reznik, desesperadamente, saísse correndo com o menino no colo, dizendo não ser o culpado pelo ocorrido.

Younes (2011), ao revisar os estudos sistemáticos de Lindemann (1944) acerca do conceito de crise, salienta que, por ser fruto de uma situação emocional, a crise é uma manifestação violenta e que, muitas vezes, pode prolongar (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008). Esse fato pode delongar ou não, depende de como o indivíduo vivencia essa experiência e se haverá ou não intervenção para esta. Trevor experienciou uma crise psicótica, fantasiando todo aquele ocorrido, denotando que, entre os três níveis do curso evolutivo de uma crise – prodrômica, aguda e recuperação –, ele está na segunda fase: aguda. É nesse período onde se observa que o sujeito vivência alucinações, delírios e discurso desorganizado. (CARVALHO, COSTA E BUCHER-MALUSCHKE, 2007).

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Assim sendo, “o reconhecimento e a intervenção precoces fornecem oportunidade única de instituição de medidas preventivas de eventuais perdas e complicações inerentes a doenças crônicas” (DEL-BEN et al., 2010, p. 79). Analisa-se que o personagem teve a sua primeira crise há um ano, porém não elaborou e/ou não recebeu uma intervenção para atenuar esse episódio, prolongando essa vivência. Essa crise psicótica deixou de ser um singular episódio para Trevor e, ao tornar-se recorrente, ele atingiu o estado crônico da crise psicótica, piorando o seu quadro: o surto psicótico.

Outra cena interessante ocorre quando, em uma rotina de trabalho, Trevor prende eu braço no maquinário e, desesperadamente, grita, pedindo socorro, mas que no primeiro momento ele não foi socorrido. Mesmo com a ajuda aprazada por parte dos colegas de trabalho, o operário acusou todos daquele ocorrido, afirmando que eles tinham travado a máquina com o objetivo de fazer com que ele perdesse o braço. Novamente, vivência uma situação de crise, com características de comportamento paranoico. Segundo Beck et. al. (2005), apud Schmidt e Della Méa (2013), “o indivíduo paranoide percebe a realidade de forma incorreta e atribui ao outro aquilo que existe verdadeiramente em si. A característica básica é a desconfiança” (p. 78). Depois, ele tenta procurar a foto que tirou da carteira de Ivan, para provar a sua existência, mas não obteve sucesso achando o retrato e, ao se envolver em uma briga com seu supervisor, ele é demitido.

"Não se preocupe, ninguém nunca morreu de insônia"
“Não se preocupe, ninguém nunca morreu de insônia”

Após a demissão, Reznik procura Miller para conversar. Nesse encontro, Trevor provoca uma briga e acusa Miller de estar ligado a Ivan, e acrescenta dizendo que ele é a pessoa que entrou na sua casa, deixando aquela mensagem, pois, de acordo com a sua conclusão, “Miller” é a palavra que desvenda o mistério do “jogo da forca” que tanto o confundiu. Ao sair da casa de Miller, Trevor avista Ivan a poucos metros e o persegue, anota o número da placa e trama o próprio acidente, para, no posto policial, obter informações sobre esse ser fugitivo e misterioso.

Após dar parte na polícia, Reznik se depara com a notícia de que o dono do carro daquela placa, surpreendentemente, é ele. O policial conta que esse carro tinha sido totalmente destruído, dado como perda total há um ano. Diante do fato, ele consegue perceber os acontecimentos ocorridos ao ano anterior, começando a encaixar tudo que, durante esse tempo ficou velado, mal resolvido. Em outro momento, no ápice do suspense psicológico, Trevor, ao perseguir Ivan, percebe que ele chegou ao seu apartamento com Nicolas (Matthew Romero Moore), filho da garçonete do aeroporto. Curioso, Reznik entra na casa, começando uma discussão com Ivan.

No meio da briga, Trevor descobre que o filho da garçonete estava morto há um ano. Esse fato vem à tona assim que, numa luta entre os dois, Trevor degola Ivan com a faca. Em estado de crise, Reznik relembra o acidente que ele provocou em Nicolas, mas, no entanto, em terrível estado de desespero, ele tenta se livrar do corpo de Ivan, pois este era o conteúdo de culpa que ele não queria encarar.

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Considerando o que foi dito acima, Slaikeu (1996), ao abordar as etapas de crise impetradas por Horowitz (1976), ele destaca que, diante destas quatro – desordem, negação, intrusão e elaboração –, uma dessas fases é a negação, onde o sujeito amortece o impacto diante do evento desencadeador. Logo a seguir, a intrusão dá sequência a essa etapa, momento em que pesadelos, ideias involuntárias, imagens, dentre outras preocupações marcam o comportamento do sujeito (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

No fim do filme, que volta a reexibir Trevor enrolando em um tapete um corpo – o de Ivan –, objetivado desovar ele em um local isolado, notamos que, ao jogá-lo pelo barranco, ele se dá conta de que não havia corpo envolto do tapete e que Ivan era ele mesmo. Em outras palavras, Trevor fugia da culpa sobre a morte da criança, mas sua mente dava sinais, lutava contra isso, fazendo com que ele não conseguisse mais dormir. Ao chegar no último instante da crise, intercalando e dando continuidade com a explicação de Slaikeu (1996), sobre as etapas que erigiu Horowitz (1976), Trevor chega a última fase desse processo, que é a elaboração, ou seja, ele integra o evento dentro de sua psique, enfrenta essa experiência, reorganiza-se e, relaxado, consegue dormir (SÁ; WERLANG; PARANHOS, 2008).

"Eu só quero dormir."
“Eu só quero dormir.”

Entende-se que, durante um ano, Trevor não recebeu nenhuma intervenção para integrar/elaborar essa vivência à sua psique, mesmo estando evidente que ele se encontrava na fase aguda das crises psicóticas. De acordo com Carvalho, Costa,Bucher-Maluschke(2007), pessoas nessa etapa devem, urgentemente, ser hospitalizadas e receber medicação antipsicótica.

Partindo desses fatos, considera-se, por fim, a importância de intervenções medicamentosas e psicossociais apropriadas, a fim de dirimir morbidades posteriores e vislumbrar prognósticos mais favoráveis (DEL-BEN et al., 2010). O fato de ele não ter procurado ajuda para integrar essa vivência para si, ficando na linha tênue entre negação e intrusão, deixa um alerta pertinente sobre olhar cuidadoso, sem julgamentos ou distanciamentos, que as pessoas próximas e os profissionais da saúde, em ambiente de trabalho, devem ter para dar conta desse sujeito fragilizado pelas dificuldades ao vivenciar uma crise.

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REFERÊNCIAS:

BONFADA, Diego; Jacileide, GUIMARÃES. Serviço de Atendimento Móvel de Urgências Psiquiátricas. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 17, n. 2, p. 227-236, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v17n2/v17n2a05> Acesso em: 21/04/2016.

CARVALHO, Isalena Santos; COSTA, IlenoIzídio; BUCHER-MALUSCHKE, Julia S. N. F. Psicose e Sociedade: interseções necessárias para a compreensão da crise. Revista Mal-Estar e Subjetividade – Fortaleza – Vol. VII – Nº 1 – Mar/2007 – p. 163-189.

DEL-BEN, Cristina Marta. et al.Diagnóstico diferencial de primeiro episódio psicótico: importância da abordagem otimizada nas emergências psiquiátricas. Revista Brasileira de Psiquiatria. Vol. 32, Supl. II, out 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbp/v32s2/v32s2a04.pdf> Acesso em: 27/04/2016.

SÁ, S. D.; WERLANG, B. S. G.; PARANHOS, M. E. Intervenção em crise. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas,2008, volume 4, número 1. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbtc/v4n1/v4n1a08.pdf> Acesso em: 21/04/2016.

YOUNES, Jaber Ali. Psicoterapia breve operacionalizada na crise adaptativa por perda: um estudo exploratório. 2011. 63 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2011.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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O OPERÁRIO

Diretor:  Brad Anderson
Elenco: Christian Bale, Jennifer Jason Leigh, Aitana Sánchez-Gijón, John Sharian
Ano: 2004
País: Espanha
Classificação: 12

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“Alice no País das Maravilhas” e o limiar entre loucura sã e sanidade patológica

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A loucura só existe em uma sociedade, já afirmava Foucault (1961). A questão dos limites saudáveis entre loucura e sanidade, não é algo fácil de se encontrar, precisamos entender que essa é uma compreensão relativa, que leva em conta a cultura e a época. Considerando cada ser humano único, entendemos que não é possível identificar um único padrão, sendo muito tênue a separação entre normal e anormal, entre saudável e patológico.

Para ilustrar essa questão utilizaremos a trajetória da personagem Alice no filme Alice no país das maravilhas, de 2010, dirigido por Tim Burton. O filme mostra a Alice depois de 13 anos, como uma jovem tendo que tomar a decisão de viver conforme a sociedade afirma ser adequado para uma garota, aceitando um casamento arranjado, ou ouvir seu “eu interior” e seguir os passos do pai, saindo totalmente dos padrões pré-estabelecidos da época. Antes da resposta ao pedido de casamento, Alice retorna ao “país das maravilhas” e trilha uma jornada pelo seu mundo interior descobrindo-se, e assim fortalecendo o seu self tendo, portanto, condições de tomar a decisão mais adequada para si, mesmo correndo o risco de ser tachada de “louca”.

O psicólogo trabalha na promoção de saúde enfocando a subjetividade e com o objetivo de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, sendo assim podemos pensar que também trabalha para uma valorização de aspectos pessoais que podem ir de encontro aos padrões pré-estabelecidos por uma sociedade.

Ao consultarmos algumas teorias da personalidade encontramos um ponto que apesar de apresentado de maneira diferente em cada uma, nos leva a pensar na descoberta de si mesmo, de sua essência para uma vida psíquica saudável. Buscamos aqui refletir sobre a existência de um aspecto saudável na loucura, na medida em que essa for apreendida no sentido de sair de uma norma considerada padrão para atender ao seu eu, assim como a existência de um aspecto patológico na sanidade, ao considerarmos sãos aqueles que mesmo em detrimento do seu self seguem cegamente as normas, tornando-se alienados de si, assim como compreender que entre loucura e sanidade pode existir um equilíbrio saudável.

Alice certa e Alice errada – Loucura e sanidade a história e seus vários significados

A maneira de ver a doença mental está intimamente ligada à imagem do louco, a loucura como doença mental é bastante recente, hoje não é mais um fenômeno oposto entre razão e desrazão. Segundo Frayze-Pereira (1984 p.08) “a loucura é interior à razão”.

A loucura passou por três momentos históricos: 1- Como liberdade e verdade nos séculos XV e XVI; 2- O grande internamento nos hospitais gerais entre os séculos XVII e XVIII; 3- A época contemporânea após a revolução francesa, quando cabe à psiquiatria cuidar dos loucos dos asilos (COROCINE, 2005).

Acreditamos que a maneira como a loucura é vista e tratada, até os dias atuais, traz vestígios dessa história e de seus momentos. Todos esses séculos de segregação deixaram para a loucura o status de exclusão. Entre os séculos XV e XVIII a história mostra que a loucura foi vinculada a desrazão, a libertinagem, ao pecado, e ao inumano, o que contribuiu para uma imagem negativa da loucura. O louco ainda hoje é escorraçado e vive sem rumo, carregando esse estigma.

Na história em determinada época surge também um fascínio pelas imagens da loucura. Nessa época a loucura surge como um saber, difícil e estranho, mas que é inacessível ao homem são. A loucura abre-se a um mundo de significações, que faz surgir figuras com sentidos que só se deixa apreender sob o insano. É uma sabedoria simbólica que provem de uma sobrecarga de sentidos e de significações que só o sonho e o insensato podem alcançar.

No final da Renascença a loucura entra em uma relação reversa a razão. Elas se recusam, porém uma se fundamenta na outra.  O pensamento moderno apresentado por Descartes segrega a loucura. Ela é confiscada por uma razão dominadora, que a aprisiona desta vez filosoficamente. No século XVII a loucura não mais domina a verdade, é o pensamento que a detém. “O eu que conhece não pode estar louco, assim como o eu que não pensa não existe.” (FRAYZE-PEREIRA 1984 p. 61).

Em uma sociedade, onde não se aceita o diferente, a diversidade, a loucura é sempre uma ameaça. Como afirma Frayze-Pereira (1984) “se a loucura é nesse mundo patologia ou anormalidade é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou uma impossibilidade.” (p.102)

A loucura tem muitas vestes, ou seja, ela se mostra de várias maneiras. E é assim que encontramos em Alice no país das maravilhas loucos e sãos em diferentes contextos: a sua tia Hermógenes é patologicamente louca, com sintomas claros como o delírio de estar à espera de seu noivo que é um príncipe, é o tipo de loucura que deve ser tratada; pois, prejudica o seu funcionamento, tanto no plano psíquico quanto nos planos social e/ou orgânico, assim com a falta de autonomia e liberdade, que acaba restringindo a sua vida.

O indivíduo só pode ser considerado louco em relação a algo ou alguém, pois é muito difícil definir a loucura por si só. As divergências a respeito da loucura são muitas, os antipsiquiatras sustentavam que não havia loucos e sãos, todo mundo era louco de certa maneira, já os psiquiatras eram aqueles capazes de distinguir os loucos dos sãos.

O pretendente de Alice, Hamsh, é um partido perfeito aceito por todos, um lorde, faz parte da alta sociedade, segue as normas, porém está totalmente alienado, não se permite pensar, segue cegamente o que lhe é imposto, mas é considerado são em relação aos costumes e a sociedade da época. Frayze-Pereira (1984 p.56) afirma que “há diferentes formas humanas de loucura. E cabe à crítica moral denunciá-las”.

Nesse sentido, sanidade está ligada a uma norma, uma regra, que se estabelece para eliminar as diferenças. Em uma cena, no início do filme, Alice é repreendida por não estar vestida apropriadamente, e rebate a mãe questionando quem decide o que é apropriado, a resposta para esse questionamento está nas normas sociais. A sanidade é para a mente o que a saúde é para o corpo, a mente funcionando de maneira apropriada, o que pressupõem que algumas pessoas saibam o que é adequado ou não.

Phillips (2008) considera a sanidade como uma integridade da mente, “um estado idealizado de hierarquias felizes e tradições infalíveis” (p.44) é usada para indicar pessoas disciplinadas, em uma sociedade de valores partilhados. Como Alice não sabe se quer se casar? Ela será feliz e terá uma vida perfeita, seria loucura não se aceitar.

A loucura por outro lado é descrita como desordem, excesso, desequilíbrio, é o que Alice era para a Aristocracia Vitoriana. Ou seja, sanidade é tudo aquilo que é comedido, dentro da lei, enquanto loucura é tudo o que foge do controle, que é proibido.

A sanidade pode ser uma estratégia para nos proteger do mundo louco, é como se reconhecer certas coisas a nossa volta pudesse destruir nosso equilíbrio. A sanidade se torna aquele lugar onde tudo é ótimo, ela é a fantasia que nos mantém sãos.

Em Salazen Grum a rainha vermelha, estava rodeada de pessoas estranhas, pois assim não reconheceria em si o defeito, o que lhe tiraria o equilíbrio. A sanidade em Salazen Grum é a fantasia, que os protege da insanidade da rainha vermelha.

Alice esteve no país das maravilhas quando criança, e ao retornar há uma discussão se ela é a Alice certa ou a Alice errada. De acordo com Phillips (2008, p. 64) “nascemos literalmente insanos”. Ele apresenta o período da infância como um período de loucura original, que por meio do desenvolvimento nos ensinara a governar essa loucura e sermos sãos. Alice cresceu, não é reconhecida no país das maravilhas porque, deixou seu estado de loucura sã (não que ela fosse louca quando criança), mas o que para ela, agora adulta, é loucura, quando criança era normal. Alice aprendeu a se proteger e se defender de seus sentimentos intensos e sensações agudas, agora poderia se dizer que ela é sã.

Porém, para os habitantes do mundo subterrâneo, a Alice “certa” é a que no mundo real seria considerada “louca”. Foucault (1975) afirma que “A doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal” (p.49). Aqui verificamos outro aspecto da loucura, em uma visão mais antropológica que procura relativizar a loucura, mas que ao mesmo tempo traz o desvio como sua essência.

A mente sã vai controlar e adequar o que está descontrolado. O chapeleiro maluco diz a Alice que ela não é mais a mesma, que ela era muito mais “muitais”, que perdeu sua “muiteza”. A partir desse diálogo poderíamos considerar “muiteza” como um recurso interno, sendo assim, o Chapeleiro refere que Alice perdeu sua autenticidade, sua autoconfiança, sofremos um bombardeio desde o início da vida para nos “concertar” por meio da “boa educação”, o que por um lado nos faz cada vez acreditarmos menos em nós, e por outro ficarmos tanto mais reprimidos e defendidos quanto mais pressões externas sofremos.

Phillips (2008) esclarece que para os antipsiquiatras a sanidade ao extremo significava o que existe de mais embotador na cultura, a loucura neste sentido era uma resposta autêntica (muitais) ao que existia de mais desumanizador no mundo. A loucura do Chapeleiro, é também a loucura de Alice, e do pai de Alice, criativa, que busca a inovação, sem o medo das incertezas futuras. Assim, na sua forma mais extrema a sanidade torna-se um refúgio contra um novo perturbador.

A sanidade impõe limites a algo de excessivo nas pessoas, que é chamado de loucura. Esta é a sanidade que Alice encontra ao retornar do mundo subterrâneo.

O mundo subterrâneo – Teorias da personalidade e o crescimento psicológico

Partindo do pressuposto de que, a personagem Alice ao cair no buraco estaria desacordada, podemos pensar no “país das maravilhas” ou “mundo subterrâneo” como o seu mundo interno, portanto parte de sua estrutura psíquica. O caminho trilhado por Alice pode então ser comparado a um processo de crescimento psicológico.

A psicanálise nos esclarece que ao entrarmos em contato com conteúdos inconscientes, liberamos energia para ser utilizada com mais criatividade, ao desvendar os conteúdos inconscientes teremos mais autoconhecimento e podemos lidar com o sofrimento as dificuldades e conflitos com mais autonomia.

Na abordagem junguiana percebemos o processo de individuação como o caminho para a autenticidade, entrando em contato com as principais estruturas de nossa psique, integrando-as para nos tornarmos nós mesmos de maneira integra, distinta, única e singular.

A Gestalt-terapia busca aumentar a awareness, estar em contato com a nossa existência e saber quem se é, trocar o apoio ambiental para o auto apoio. Nestas teorias entendemos que o crescimento psicológico, busca o autoconhecimento, o que dá o suporte para o indivíduo ser mais autêntico e criativo.

Alice no inconsciente

A princípio gostaríamos de apontar algumas considerações levantadas por Tim Burton diretor do filme e alguns dos atores, apresentadas no bônus do DVD intitulado Encontrando Alice. Tim Burton fala da ideia de explorar a natureza dos sonhos no filme, é levantada a questão de que no país das maravilhas nada é totalmente bom ou mal, e todos são de alguma forma loucos. Alice no filme diferente do livro está tentando saber quem ela é, o diretor também aponta para a questão de que o que Alice está vivendo no país das maravilhas tem representação com o que ela vive. O início do filme mostra Alice como era antes, falam de como ela era próxima de seu pai que morre, e a deixa em um luto que revela sua falta de jeito e seu desconforto com a sociedade. Eles entendem a jornada emocional de Alice como a história de Alice reencontrando sua “muiteza”, e destacam que a maior questão de Alice é recuperar sua força e descobrir que pode ser confiante, e quando ela aceita sua força, a rainha branca pode recuperar o seu trono e as duas mudam, recuperam o seu poder.

Partindo dessas considerações, podemos fazer uma leitura da história de Alice baseada nas três teorias que acabamos de ver, e entender seu crescimento psicológico. Ao cair no buraco Alice entrar no mundo subterrâneo, ou no seu inconsciente. Vale ressaltar que apesar da Gestalt-terapia não trabalhar com o inconsciente ela não o nega, e em seu trabalho Perls (1977) considera o sonho como projeção de um self alienado do indivíduo, portanto também uma parte desconhecida do sujeito; nesse sentido, estando Alice sonhando, iremos considerar alguns aspectos do inconsciente. Pois de acordo com a afirmação de C. G. Jung (2004, p. 04) “É no inconsciente que mergulhamos todas as noites”.

Alice não reconhece nada no mundo subterrâneo, apesar de não lhe causar tanta estranheza. É como se fosse um lugar esquecido, mas não nunca visto; o que faz sentido: é seu mundo interno, porém com conteúdos recalcados ou que nunca tiveram acesso à sua consciência, reprimidos pelos padrões da vida na Aristocracia Vitoriana, e portanto irreconhecíveis. Para chegar ao mundo subterrâneo Alice tem uma longa queda em um buraco muito profundo: na teoria psicanalítica o inconsciente é considerado a instância psíquica inscrita mais profundamente, e a queda profunda sugere o quanto esses conteúdos são difíceis de serem alcançados.

O inconsciente é atemporal, os personagens não acreditam que aquela Alice é a mesma de antes, pois não consideram os anos que passou desde a última vez que Alice esteve ali. O mundo subterrâneo também é confuso, e repleto de imagens simbólicas, assim como nosso inconsciente. Quando Alice é desafiada a lutar pelo reino, ela está sendo chamada para salvar seu mundo interno, que aparecia simbolicamente devastado, por tudo o que Alice reprimiu de si mesma, para viver nos padrões sociais.

Alice está em um momento tenso de sua vida quando corre atrás do coelho e cai no buraco. Os sonhos em psicanálise são uma maneira de equilibrar parcialmente os anseios e limitações da vida real, Jung (2004, p. 103), afirma que “os sonhos são a reação natural do sistema de auto-regulação psíquica.” Já na Gestalt-terapia os sonhos são um alerta de necessidades que temos em aberto. O trabalho com o sonho tem um papel importante tanto na psicanálise, quanto na psicologia analítica e na Gestalt-terapia; embora seja trabalhado de maneira diferente em cada abordagem. Verificamos que há um consenso em relação ao conteúdo dos sonhos, como sendo manifestações de aspectos do sujeito. Assim, os personagens do “país das maravilhas” representam partes da Alice que foram reprimidas, ou que ela desconhece.

Nessa perspectiva, a rainha vermelha representa a necessidade de controle, de manipulação de ideias, a insegurança e instabilidade emocional. A rainha branca representa o feminino, a sutileza, a magia e o equilíbrio. É a poção da rainha branca que traz Alice de volta ao seu tamanho normal. Absolém, a lagarta azul, aparece como a busca de conhecimento, a sabedoria, e representa a transformação de Alice: a medida que Alice vivencia seus desafios, Absolém passa pelo processo de metamorfose de lagarta para borboleta. A lebre representa a ansiedade e agressividade de Alice, ao tremer e jogar as coisas para todos os lados. O coelho branco mostra a preocupação com os compromissos, o que se “deve” fazer. Os gêmeos são a representação do seu lado infantil que foi deixado de lado, por ser mal compreendido pelos adultos. O gato risonho traz o medo e a covardia que Alice precisa vencer, ele é quem desaparece nas horas difíceis.

Para Jung esses personagens representam a sombra de Alice. Além destes temos ainda o Chapeleiro, que seria a representação do animus de Alice, que tem muitos aspectos do pai dela: a loucura do chapeleiro, sua criatividade e espontaneidade, remetem ao que Alice teve de modelo masculino, o seu pai era visto como um visionário.

Na perspectiva freudiana, a Rainha Vermelha pode representar o superego de Alice. Ela é a lei no mundo subterrâneo, é quem impõe os dogmas e crenças. Ela também representa a sociedade rígida, assim como a figura da mãe que lhe impõe regras, postura e até um casamento arranjado. Ao entrar em contato com esses seus aspectos internos, Alice passa por um processo de crescimento psicológico; para a teoria junguiana, o processo de individuação, para a freudiana a liberação de conteúdos reprimidos e para a Gestalt a expansão da consciência através da awareness.

Em sua viagem Alice ora está grande demais, ora pequena demais, como se realmente não fosse a Alice certa, e é apenas quando chega ao castelo da rainha branca que Alice volta ao seu tamanho adequado, como se estivesse se reencontrando, e é nesse momento que Absolém diz que ela está bem perto de ser a Alice. Ao enfrentar o Jaguadarte Alice está enfrentando a sociedade que molda, julga, oprime e destrói a sua criatividade.

Alice passa a tomar consciência de aspectos dela que não reconhecia, entra em contato com seus medos, e à medida que os encara cresce e se torna mais consciente, na Gestalt-terapia esse processo é visto como uma expansão da consciência, uma busca de awarennes. Notamos uma mudança não só em Alice, mas nos personagens do seu sonho, que acompanham a sua mudança psíquica: o Gato risonho se arrisca para salvar o Chapeleiro, Absolém se transforma em borboleta, o Chapeleiro volta a dançar o “passo maluco”, a rainha branca assume novamente o comando do mundo subterrâneo. Ao cortar a cabeça do Jaguadarte, Alice devolve o equilíbrio ao seu mundo interno.

Alice se torna a Alice certa quando aceita o seu desafio. Enfrenta seus medos, se permite pensar e decidir por si só o que fazer, toma as rédeas do seu destino, luta e vence o Jaguadarte. E é assim que Alice volta do mundo subterrâneo, com os conteúdos do seu inconsciente integrados como aponta a individuação de Jung, as energias antes recalcadas, livre para serem usadas em processos mais criativos, como sustenta a psicanálise de Freud e mais aware de si como argumenta a Gestalt-terapia de Perls, integrada, com autonomia para fazer escolhas, e responder ao ambiente com criatividade e espontaneidade, sem estar presa aos “deverias” impostos pela sociedade, livre para dizer não aos papeis sociais impostos, livre para seguir de forma individualizada.

A aristocracia vitoriana e Salazem Grun – Sanidade patológica x loucura sã

Phillips (2008) identifica a verdadeira sanidade como “qualquer coisa em nós que se recuse a sacrificar nossos mundos interiores, nossas visões singulares, para ter sucesso no mundo externo, o mundo como ele é” (p. 27). O autor ressalta que, para os antipsiquiatras, coisas que reconhecíamos como indícios de normalidade, eram também as que nos alienava de nós mesmos e dos outros, portanto não seria normal ser normal. A falsa sanidade busca a uniformidade e qualquer grupo que exija as fusões da individualidade enlouquece o indivíduo.

Na sociedade aristocrática onde vivia Alice, assim como na nossa, existem muitas regras que procuram uniformizar os grupos, Alice não se vestia da maneira que consideravam adequada, não pensava adequadamente, por isso não estava dentro dos padrões dessa sanidade. Alice, assim como o pai, gostava de imaginar coisas impossíveis, era ousada, mas negou boa parte de si para corresponder as expectativas da mãe e da sociedade. Parte de nós acaba se adaptando e desenvolve a ideia de que estamos errados, e é essa parte alienada que se alia a sociedade para reprimir nossa outra parte.

A criança tem uma natureza apaixonada, mas para se tornar membro aceito na sociedade sacrifica essa natureza por algo que pensa ser melhor. São oprimidas com os medos que os adultos têm em relação a própria sanidade. Phillips (2008) aponta que o autoconhecimento pode ser perigoso, a sanidade seria a arte de não conhecer tudo aquilo que se soubéssemos poderia nos levar a loucura. Porém, segundo o autor, a pessoa verdadeiramente sã nunca se conforma com o mundo, pois a conformidade trai aquilo que realmente ela é.

Alice não se deixou alienar, era diferente das moças da sociedade, sua mãe e sua irmã tentavam convencê-la a se adaptar, a seguir os padrões, mas algo em Alice não se encaixava naqueles padrões. Alice por conta da personalidade diferenciada do pai, que possibilitava o suporte à sua imaginação, não aprendeu a ceder aos apelos da sociedade a ponto de se abandonar totalmente.

Perls (1977) afirma que o primeiro e último problema do homem é se integrar e, ainda ser aceito pela sociedade, pois ao compactuar com os desejos da sociedade, aprendemos a ignorar nossos sentimentos, desejos e emoções.  Essa perspectiva é vivenciada na sociedade aristocrática da era Vitoriana, e também no mundo interno de Alice, pois no reinado da Rainha vermelha, os habitantes do Mundo subterrâneo eram pressionados a se adaptarem aos seus caprichos; em Salazem Grun, onde ficava o castelo da rainha, só eram aceitas as pessoas que tinham qualquer parte do corpo de tamanho desproporcional. A rainha por ter a cabeça grande, impunha um padrão conforme o seu, como resultado as pessoas, passaram a usar narizes, orelhas e barrigas falsas, para enganar a rainha. Phillips (2008) a esse respeito menciona que temos grande gasto de energia nesse conflito entre a exigências externas e a nossa natureza interna. Seguindo o que “deveria” ser, a pessoa se torna falsa, constrói um ideal de como deveria ser e não como é.

Phillips (2008) argumenta:

A loucura em sua melhor forma, é uma jornada rumo à verdadeira sanidade, rumo a autenticidade de nossa verdadeira natureza, através da loucura estamos em contato com o que há de melhor em nós. A cultura corrompe nossa verdadeira sanidade. (p.25)

A sanidade nos mantém no domínio do já conhecido, ela pode ser tranquilizadora, mas também vazia. Em uma cultura comprometida com a criatividade, individualidade e talento, a sanidade parece inglória.

A sanidade modera onde a loucura excede, assim a loucura pode alcançar uma felicidade que a razão e a sanidade podem reduzir.

 O sangue do Jaguadarte – Os limites entre normal e patológico

Sãos e loucos têm muito em comum, as diferenças entre um e outro ficam pouco claras, e por isso a distinção do que é loucura e do que é sanidade vem sempre acompanhada de uma interrogação. Sãos e Loucos são cúmplices, o indivíduo são vê um pouco de si na loucura, um está ligado ao outro muito mais do que queiram reconhecer. Loucura e sanidade são extensões uma da outra.

Se o saudável é ser são e louco, como saber a medida? Como não ultrapassar o limiar saudável entre loucura e sanidade? Esse é sem dúvida um ponto bastante controverso, cada um tem seu limite próprio, o de Alice estava no momento em que o Chapeleiro pede para que ela fique no país das maravilhas: se Alice deixasse de beber o sangue do Jaguadarte que a levou de volta a realidade externa, estaria fazendo um corte com essa realidade e entrando no campo da psicopatologia.

Winnicott (2011) afirma que um homem ou uma mulher é saudável quando são “capazes de alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais” (p. 09). Algumas perdas devem existir, para controle dos impulsos, mas em uma identificação extrema perdemos o self, o que não está no campo do normal. Para o autor o saudável não é fácil, já que não se limita à simples ausência de doenças psiconeuróticas. E mesmo o indivíduo saudável tem medos, sentimentos conflitivos, dúvidas e frustrações. O importante para a pessoa estar saudável é que sinta que está vivendo sua própria vida, assumindo suas escolhas, sendo independente e autônoma.

Para Zinker (2007) o conhecimento, a existência e a felicidade só são encontrados com a reconciliação das diferenças. Um comportamento integrado possibilita uma gama de respostas entre os extremos polarizados, e a pessoa é capaz de responder com flexibilidade, criatividade e espontaneidade a uma variedade de situações.

Mas, colocar os loucos sobre um pedestal, deixando-se fascinar por seus poderes e acreditar no lucro de um saber inatingível aos não loucos, pode desviar nossa escuta da vivência trágica dos loucos. Por isso a sanidade pode ser considerada como o realismo necessário para a sobrevivência psíquica, é a sanidade que dá moderação a loucura e a fantasia.

Mas também crer numa loucura localizada no indivíduo e transfigurar o louco em monstro nos leva a recusar sua humanidade, e também nos faz esquecer que algo se diz através da loucura. Assim, entendemos que como afirma Winnicott apud Phillips (2008), “podemos ser realmente pobres se formos apenas sãos”, tanto quanto “somos ainda mais pobres se formos apenas loucos”, como complementa Phillips. (p.29)

Considerações

Falar de sanidade e loucura é fascinante e ao mesmo tempo difícil, assim como o saudável e o patológico, pois ao mesmo tempo que esses termos têm sentidos antitéticos, também têm os limites entre um e outro muito próximos. Buscando identificar os limites saudáveis da loucura e da sanidade a partir dos seus significados, levando em consideração a questão cultural, mas principalmente o sentido atribuído ao indivíduo louco ou são, logo, percebemos que não se pode dar um valor apenas negativo ou apenas positivo para a loucura e nem para a sanidade. Além de encontrarmos na  loucura alguns aspectos saudáveis, e verificarmos que uma sanidade baseada apenas nas normas impostas pode ser considerada patológica à medida que aliena o sujeito de si mesmo.

Nesta perspectiva o filme de Tim Burton ilustra perfeitamente a partir da jornada da personagem Alice, estes aspectos da sanidade e da loucura patológica, assim como da sanidade e da loucura sã, além de identificar na personagem o processo de crescimento psicológico, baseado no seu autoconhecimento.

Esperamos desmistificar a loucura, e talvez incitar a busca interior da loucura sã de cada um.

Referências:

ALICE no país das maravilhas.Direção: Tim Burton, Estados Unidos, Disney, 2010. 1 DVD vídeo (109min).

COROCINE, Sidnei Celso. A fabricação da periculosidade: um retrato sobre a violência nas instituições. Ed. Quártica, Rio de Janeiro, 2005.

FRAYSE-PEREIRA, J.A. O que é loucura. Brasiliense. São Paulo, 1984.

FOUCAULT, M.”A loucura só existe em uma sociedade” (entrevista com J.-P. Weber), Le monde, n 5.135, 22 de julho de 1961.

FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. Perspectiva. São Paulo, 1978.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1975.

JUNG, C. G. Fundamentos da psicologia analítica. Editora Vozes. 12ª edição. Petrópolis, 2004.

PERLS, Frederick S. Gestalt-terapia e potencialidades humanas. In: STEVENS, John O. Org.) –Isto é Gestalt. Summus Editorial, São Paulo 1977. p. 19-28.

PHILLIPS, Adam. Louco para ser normal. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2008.

WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. Editora WMF Martins Fontes, 5ª edição. São Paulo, 2011.

ZINKER, Joseph.Processo criativo em Gestalt-terapia. Editora Summus, São Paulo, 2007.


FICHA TÉCNICA DO FILME

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Gênero: Fantasia
Direção: Tim Burton
Roteiro: Linda Woolverton
Elenco: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Alan Rickman, Barbara Windsor, Bonnie Parker, Carl Walker, Caroline Royce, Chris Grabher, Chris Grierson, Christopher Lee, Crispin Glover, Dale Mercer, David “Elsewhere” Bernal, David Lale, Eleanor Gecks, Eleanor Tomlinson, Ethan Cohn, Frances de la Tour, Frank Welker,  Harry Taylor, Hilary Morris, Holly Hawkins, Jacqueline Tribble, Jemma Powell, Jessica Oyelowo, Jim Carter, Joel Swetow, John Bass, John Hopkins, John Surman
Ano: 2010

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Louco Para Ser Normal: sanidade ou loucura, eis a questão

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“A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal”
                                                           Raul Seixas

ADAMS, Phillips. Louco para Ser Normal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Usualmente, adjetivamos as pessoas como loucas, normais. No cotidiano, utilizamos estas classificações, quando as pessoas desempenham comportamentos inesperados ou esperados socialmente, respectivamente. Apesar de utilizarmos estes julgamentos, não sabemos ao certo o que realmente venha ser loucura e sanidade e também porque a fronteira entre a loucura e a sanidade é tênue, o que dificulta a conceituação.

O The New York Times afirma que Phillipe Adams, o autor do livro Louco para ser normal, conseguiu transformar a psicanálise em poesia por meio da tentativa de desconceituar a sanidade e a loucura nesta produção. A fim de realizar este trabalho, o autor busca nos dicionários e nas relações humanas para explicar a construção destes conceitos.

Desta maneira, no primeiro momento, Adams traz que a palavra sanidade é uma palavra inglesa que significa “sobre o corpo saudável”. Já um dicionário inglês define o louco como “perturbado da mente, enfraquecido do entendimento, delirante sem febre, expressão de desordem na mente, dominado por desejo violento ou irracional”. Apesar de trazer estes conceitos, que de certa forma depreciam a loucura, ele entende que não somente estas características devem ser levadas em consideração, já que os sujeitos que assim os classificamos, expressam os seus sentimentos e pensamentos por meio de símbolos, sendo, pois, sujeitos livres.

Neste processo de conceituação, o autor começa apresentar características paradoxais entre a sanidade e a loucura a partir dos olhares lançados a estes conceitos, tais como:

  •  A sanidade é moderada e a loucura é o excesso;
  •  Os sãos podem conviver com as pessoas e o louco não;
  •  A loucura é teatral e a sanidade é a realidade;
  •  A loucura apresenta atos inaceitáveis e o são desenvolveu o autodomínio.

Após apresentar a maneira que o louco é descrito na literatura e nas relações humanas, Phillipe começa discutir que aquilo que temos como sanidade é algo criado e mantido pela sociedade. Sendo assim, ele sinaliza que a cultura pode vir a corromper a real sanidade. Para o autor, a loucura é o caminho a verdadeira sanidade. Já que assim se pode encontrar com as necessidades, desejos, sentimentos, pensamentos do próprio individuo. Esta experiência faz com que o ser humano possa ser autêntico consigo.

O autor define a loucura como algo privilegiado à vivência do ser humano no mundo. No entanto, a população tem medo de experimentar esta condição. E como fuga deste fenômeno consultam psicólogos, psiquiatras, padres, pastores, a fim de se ajustarem aos contratos sociais. Será que a loucura é realmente algo bom, como afirma Phillipe Adams?

Na verdade, a discussão sobre este assunto não deve ser alicerçada em valores como bom ou mal, mas deve ser percebido que a sociedade valoriza a produção de subjetividades iguais. Desta maneira, o diferente não é valorizado.

Apesar disto, a sociedade mantém projetos e discursos a favor da inclusão social, da aceitação da diferença. Sendo assim, qual o real objetivo desses discursos, se a sociedade não os valorizam?

Neste caminho, Adams e os percursores da Antipsiquiatria consideram que os reconhecidos pela sociedade com normal são cúmplices da desumanização e contra a vida. Pois entendem que o cumprimento de regras, realizados por estes, impedem de que vivam em plenitude, de se conhecerem e lidarem consigo.

A partir dos aspectos apresentados pelo autor, questiono ainda se é o são ou o louco que vive encenando, representando. O são fica cumprindo regras, reprimindo desejos para ser aceito pelas pessoas. Desta maneira, os sujeitos têm sido no mundo aquilo que os outros esperam, e não aquilo que é.

Neste sentido, Maslow cria uma pirâmide que é nomeada com o teu nome, na qual hierarquiza as necessidades humanas, sendo ela composta pelos seguintes aspectos: Fisiológicos, Segurança, Afetivosocial, Autoestima e Autorealização. As primeiras necessidades expostas dizem das realidades básicas para o ser humano subsistir, já o terceiro é a ponte de ligação entre a subsistência e o existir pleno. Além disto, o fator afetivo-social refere-se à necessidade de ser aceito pelas pessoas a fim de entrar em algum grupo. De acordo com esta realidade, o sujeito se propõe a suprimir os seus desejos para se tornar aceito pelo outro. O aspecto proposto por Maslow pode ser visualizado também nos perfis das redes sociais, visto que aquilo que é expresso nas fotos, comentários, status, tweets são as configurações que o sujeito deseja ser percebido. Ou seja, aquilo que visualizamos nas redes sociais são produções dos alteregos a fim de que sejam aceitos na sociedade ou em tribos. Afinal, quem é o são e o louco?

Aparentemente, a intenção do autor, com esta produção, é definir a loucura e a sanidade. Tenho dúvidas se realmente ele consegue fazer isto. Porém, por meio da sua escrita acredito que ele desperta no leitor questionamentos de como estamos sendo no mundo, o que realmente é loucura e sanidade. Penso, que as interrogações e reflexões promovidas, sejam importantes no processo da construção de idéias, mais do que apresentação fechada de conceitos.

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