A maternidade como objeto de validação feminina

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Por Dayane Salles – Doutoranda em Sustentabilidade Ambiental Urbana, com mestrado em Processos Sustentáveis, Dayane tem experiência em escrita acadêmica, gestão e desenvolvimento de projetos e estudos ambientais.

A bisavó de Ana, pariu 12 vezes, a avó, 8, a mãe de Ana, 4. Ana, só pariu Clarice, que não quer parir ninguém. Nos jantares de família, a pergunta se repete desde que Clarice completou 30 anos: “Quando vem o bebê?”, “Da sua idade eu já tinha 4 filhos”, “Vai ficar mesmo pra titia?”. O assunto da noite, sempre adentra à intimidade de Clarice sem nenhum pudor, em intromissões e indagações indelicadas, disfarçadas em tom leve de uma brincadeira, que trata como inadequada a mulher que se recusa a seguir o enredo que lhe é imposto. Entoam, por todos os lados e cantos, uma só voz, em um coro que a define: “Egoísta!”, “Mal-amada!”. Por romper com a cultura da maternidade, somos julgadas como incompletas. Categorias! Adoram nos colocar nelas. Um script, um roteiro. A mulher “ideal”. Mas ideal de quem, e para quem? A feminilidade aparece sempre atrelada à maternidade como forma de validação da mulher em uma posição que lhe confere a fetichizada e inalcançável “completude”.

Para muitas de nós, a maternidade não é uma questão de escolha. Ainda que avanços tenham sido conquistados através da luta pelos direitos das mulheres, o caminho da maternidade atravessa nossa vida como uma aprovação de nossa existência. A cobrança e a pressão da sociedade que enquadra e impõe níveis de “ser mulher”, se amparam numa cartilha de normas e condutas sociais com lastro em bases fundantes da existência, desde crenças religiosas ancoradas em doutrinas que atribuem à mulher um papel de portal do pecado ao mundo, até ao simbólico nascimento de Jesus pelo ventre sagrado de uma mulher reconhecida como virgem e, talvez por isso, Santa.  Egoístas, mal-amadas, virgens, santas, e agora, na contemporaneidade, heroínas! O termo parece revelar um progresso na Agenda de direitos das mulheres, que desde a Revolução Francesa, se configura com avanços e retrocessos.  A criação de uma nova república em 1789, que buscava garantir princípios de liberdade, igualdade e fraternidade à população, não se estendeu às mulheres, que tiveram à época pequenas conquistas de direitos fundamentais, a partir de movimentos femininos que contestavam as condições de vida das mulheres. 

Séculos depois, esse movimento ganhou força, precisamente a partir de 1960, com o surgimento dos novos movimentos sociais, em que as mulheres conquistaram importantes direitos no que tange à igualdade política, jurídica e econômica. Tais movimentos continuam a se perpetuar em apelos dos mais variados, sejam em protestos, organizações, ou textos como esse, que busca promover a reflexão ao lançar luz à subjetividade feminina, de forma com que os quereres das mulheres não obedeçam às expectativas externas, e mais do que isso, que as vontades que nos são próprias encontrem solo fértil para florescerem nos tempos atuais, em que a liberdade feminina ainda é condicionada a estruturas de poder desiguais. Longe do glamour que retrata a ficção, há muitas camadas profundas que envolvem a mulher contemporânea. Existe, no “ser mulher” uma série de atributos que uma só voz nunca conseguirá destacar com a profundidade das dores, clamores e dissabores que as mulheres enfrentam. 

Segundo dados do IBGE, as mulheres se dedicam aos afazeres domésticos quase o dobro do que os homens. Uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela ainda que as mulheres trabalham cerca de 7,5 horas por semana a mais do que os homens, por conciliarem as atividades do trabalho com as atividades do lar. A maternidade, sem dúvida, impõe às mulheres um degrau a mais nessa caminhada. Além da sobrecarga de trabalho, as mulheres que optam por ter filho, ainda são pressionadas a serem felizes, pela tão problemática romantização da maternidade. Os Relatórios de Transtornos Mentais da Organização Mundial da Saúde apontam que mulheres sofrem mais com ansiedade e têm mais chances de terem depressão do que os homens. A depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil, segundo dados da Fiocruz, e a pressão social a que essas mulheres são submetidas ao serem taxadas como insuficientes, tem grande responsabilidade nesse índice, afinal, a frase “nasce uma mãe, nasce uma culpa”, não é só um dito popular infundado, já que as questões mentais têm ligação íntima com os aspectos sociais.

A desmistificação de que a felicidade da mulher é acessada somente a partir da maternidade, é assunto urgente. A cada ano diminui o número de mulheres que querem ter filhos, como apontam os dados da SEADE (2021). Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos por mulher passou de 2,08 filhos para 1,56 (SEADE, 2021). Em convergência a essa informação, no Brasil, 37% das mulheres em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não querem ter filhos, segundo uma pesquisa feita pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (TANCO).Os motivos que amparam essas escolhas, são muitos. Dentre eles, desejos pessoais, questões financeiras, garantia de liberdade, e priorização da carreira, já que ter filhos, pode sim prejudicar as mulheres na jornada profissional e, com isso, colocá-las em diferentes patamares econômicos e sociais. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, denominada “Estatísticas de Gênero – Os indicadores sociais das mulheres no Brasil”, divulgada em 2021, indica que somente 62,6% das mulheres brancas com filhos de até 3 anos estão empregadas, enquanto que, para as mulheres pretas, a proporção é menor que 50%. Com relação à paternidade, a existência de filhos não prejudica a participação dos homens no mercado de trabalho (IBGE, 2021).

Machado e Pinheiro (2016), em um estudo sobre a maternidade e o mercado de trabalho no Brasil, revelam o alto índice de mulheres que são demitidas logo após o período de proteção ao emprego garantido pela licença maternidade. Após 24 meses, quase metade das mulheres que usam o direito da licença-maternidade estão fora do mercado de trabalho, por iniciativa do próprio empregador, sem que haja justa causa (MACHADO; PINHO NETO, 2016). O custo da maternidade para as mulheres é alto. O fato de os homens abandonarem a paternidade aumenta a sobrecarga das mulheres que precisam assumir a condição de chefe de família, se encarregando das tarefas afetivas, educacionais e financeiras dos filhos.  Dados da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC), mostram que em 2020, 6,31% das crianças foram registradas somente pelas mães. No Brasil, mais de 11 milhões de mães são inteiramente responsáveis pela criação dos filhos. Romper com a cultura da maternidade é, para muitas mulheres, não só uma vontade genuína, mas uma forma de protesto pelas diferenças que homens e mulheres enfrentam no percurso de geração e criação de um filho.  Uma escolha que desrespeita a um só corpo e incomoda a tantos, se perpetua desde o início da civilização humana, em que a mulher, por vezes vista como propriedade privada, inicialmente pela figura do pai e depois do marido, tem seus direitos cerceados, e sua existência reduzida a um objeto de procriação. 

Desconstruir a ideia de que a existência da mulher precisa ser validada pela maternidade é um importante e complexo passo na tão almejada emancipação feminina. A nova leitura da maternidade pelas mulheres e pelo movimento feminista, não surge com o nascimento de uma mulher contemporânea que atende a mil afazeres e é eficiente em todos eles, mas com a libertação de uma mulher que se desfaz das amarras que lhe são postas, rompendo com o regime patriarcal que nos coloca em posição subalterna, explícita no repetido discurso de: “Mulheres nasceram para isso”. Se por um lado nos deduzem e reduzem a simplificações, por outro, a figura da mulher contemporânea que busca desfazer essas estruturas de poder, não rompe com a maternidade, mas com imposições. É preciso então transpor o papel secundário que nos é dado para ocuparmos o protagonismo de nossas vidas, autoras de nossos próprios roteiros. A essência e a aparência da maternidade se entrelaçam em um enredo de glórias e lástimas que acompanham a mulher em toda a sua existência. É necessário colocar ordem na casa e dar nome aos processos e fases que a maternidade traz, não com a intenção de desencorajar as mulheres que optam por esse percurso, mas de romper com uma lógica que aprisiona e cerceia sua existência, alojadas no mesmo endereço do discurso que diz que mulheres “nasceram para ser mães”.

Não nascemos para sermos mães se esse discurso nos impõe a obrigatoriedade de um caminho. A maternidade relacionada à mulher contemporânea é somente mais uma das arestas que engendra a forma com que a sociedade ainda enxerga nossos corpos, nossas vidas. Índices alarmantes de feminicídio, violência doméstica, psicológica, sexual, patrimonial e moral, são sintomas dessa mesma estrutura, há tempos contestada. Essa longa e tortuosa jornada, continua a ter como busca fundamental e inegociável, o respeito às mulheres, que só pode ser alcançado mediante o envolvimento de toda a sociedade. Respeito esse que deve ser expresso, não (só) por propagandas em datas emblemáticas, mas nas reuniões de empresas a portas fechadas, em que as mulheres sofrem diversas formas de abuso. Não (só) em campanhas publicitárias, mas através da igualdade de cargos e salários nas grandes corporações. Não (só) com auxílio-creche e outros benefícios financeiros, mas com a oferta de empregos às mães. 

É urgente a participação do governo através da instituição de políticas públicas que garantam e defendam os direitos das mulheres. É urgente o envolvimento das empresas na criação, desenvolvimento e manutenção de planejamentos estratégicos que abracem, envolvam e promovam essa pauta.  É preciso a mudança de comportamento de homens, revendo, a todo tempo e momento, seus papéis enquanto criadores e reprodutores de comportamentos machistas. Por último (e mais importante) é preciso reforçar o que nos trouxe até aqui. Contemos nossas histórias, falemos sobre nossas lutas. Sejamos solidárias umas com as outras, nos acolhendo, nos reconhecendo, nos apoiando, nos movimentando, juntas! Historicamente, todas as mudanças, as grandes transformações, não aconteceram em situações de conforto e calmaria. Se o hoje é tortuoso e o ontem foi ainda mais, a glória do amanhã não é só uma possibilidade. A vista do topo, há de compensar o caminho.

 

Referências

FIOCRUZ. Depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/depressao-pos-parto-acomete-mais-de-25-das-maes-no-brasil>. Acesso em: 15 mar. 2023.

IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2023.

IPEA, S. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/mestrado-profissional-em-politicas-publicas-e-desenvolvimentodesafios/index.php>. Acesso em: 15 mar. 2023.

MACHADO, C.; PINHO NETO, V. The Labor Market Consequences of Maternity Leave Policies: Evidence from Brazil. Disponível em: <https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos>. Acesso em: 14 mar. 2023.

SEADE. Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos passou de 2,08 filhos por mulher para 1,56 – Fundação Seade. Disponível em: <https://www.seade.gov.br/entre-2000-e-2020-o-numero-medio-de-filhos-passou-de-208-filhos-por-mulher-para-156/>. Acesso em: 14 mar. 2023.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World mental health report: Transforming mental health for all. Disponível em: <https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240049338>. Acesso em: 15 mar. 2023.

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Hometown Cha-Cha-Cha: sobre trauma, simplicidade, cura e rede de apoio

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Série sul-coreana retrata de uma forma calorosa o recomeçar, as formas das quais uma pessoa lida com seus traumas, e a criação de novos laços.

Você está destinada a encontrar situações inesperadas na sua vida. Mesmo que você use um guarda chuva, você vai acabar encharcada. Só coloque suas mãos pra cima e dê boas vindas à chuva (Hong Du Sik)

Fonte: encurtador.com.br/myA09

Esse texto contém spoilers sobre a série e o final de alguns personagens, então tenha cuidado ao ler caso não goste de spoilers e essa série esteja na sua lista de para assistir.

Hometown Cha-Cha-Cha é uma série sul-coreana que foi lançada em Agosto de 2021, exibida no canal coreano TVN e distribuída internacionalmente pela Netflix. Com uma história contada de forma sensível, acolhedora e divertida, o k-drama foca na adaptação de uma dentista de Seul que se muda para o interior, para abrir uma clínica e um faz-tudo (literalmente) que viveu a sua vida inteira nesse vilarejo.

Yoon Hye Jin (Shin Min-a) é uma mulher adulta, dentista que perdeu a sua mãe quando era jovem. Ela atende em uma clínica popular de Seul, porém ao entrar em conflito com a sua chefe antiética (que fazia procedimentos nos pacientes sem necessidade, e cobrava a mais pelos procedimentos), ela pede demissão e vai parar em Gongjin, um vilarejo à beira do mar. O vilarejo é de certa forma significativo para Hye Jin, já que ela costumava ir lá com os seus pais antes de sua mãe morrer. Ela decide abrir uma clínica lá, como uma forma de ganhar dinheiro e ter independência empregatícia.

Já em Gongjin, Hong Du Sik (Kim Seon-Ho) é literalmente um faz-tudo no vilarejo, e possui licença para praticar quase todas as funções possíveis (desde barista à engenheiro). Extremamente atencioso, principalmente com os idosos, Du Sik trabalha ajudando todos do vilarejo, e tira folga um dia por semana. Du Sik foi abandonado pelos seus pais e criado por seus avós, mas um dia durante a sua infância o avô dele acaba falecendo e Du Sik se culpa pelo resto da vida por ter perdido.

Na análise do comportamento, nossos comportamentos são ditados por regras, contingências e consequências. De acordo com De-Farias (2010) e Skinner (1969/1984), regras são estímulos discriminativos verbais que descrevem ou especificam uma contingência. Contingências são relações do tipo “se… então…”.

Hong Du Sik, ao perder seu avô e ser abandonado pelos seus pais, desenvolve um repertório de contingências que representa um padrão de fuga de emoções e de se ter uma real proximidade com alguém através de qualquer tipo de amor. Se ele amar alguém, então essa pessoa definitivamente irá morrer ou irá abandoná-lo. Essa contingência se intensifica quando, ao já estar emocionalmente envolvido com Hye Jin, sua avó Kim Gam Ri morre dormindo. Du Sik é mais uma vez atingido pelo luto e suas contingências de abandono se intensificam.

Como telespectadores, é claro para nós que estamos de fora o quão distorcida a realidade é através das autorregras e contingências de Du Sik.

Um dos pontos mais calorosos sobre a série se trata dos moradores do vilarejo. Um trio de senhoras idosas (em que uma delas inclui sua avó) que ao mesmo tempo que demonstram sua idade e conhecimento, são como três melhores amigas adolescentes. Um cantor que só fez sucesso com uma música, e sua filha fã de um grupo de k-pop (grupo do qual mais tarde vai gravar um programa de TV no vilarejo). Uma mãe divorciada do seu marido que é prefeito do vilarejo, no qual ambos possuem uma amiga que na verdade é apaixonada pela mãe divorciada, quebrando assim estereótipos de heterossexualidade e nos apresentando de uma forma quase dolorosa a realidade de muitas mulheres lésbicas maduras. O melhor amigo de Du Sik e sua esposa que está grávida do segundo filho, da qual se sente negligenciada pelo marido por estar grávida e não ser tão bonita como antes.

Fonte: encurtador.com.br/bdmvB

A série é a demonstração mais clara de quão importante é uma rede de apoio. Cada personagem apresentado, mesmo que seja apenas por alguns minutos de cada episódio, serve como apoio para o outro ao praticar cuidados e atenciosamente ajudar uns aos outros a superar seus traumas e dificuldades. Du Sik, sendo o ponto em comum em todos eles ou não, tem dificuldade em aceitar apoio da sua rede quando está em sofrimento, mas aos poucos compreende que sozinho não consegue lidar com tudo, da mesma forma que as pessoas que ele ajuda.

“Você pode chorar se quiser. Deve ter sido tão difícil pra você. Você deve ter escondido a dor tão profundamente. Você carregou um fardo tão pesado. Você pode se sentir triste quando estiver comigo. Você pode me mostrar a sua dor. Você pode chorar.” (Yoon Hye Jin)

O drama nos faz refletir nos traumas e nos efeitos deles no presente, da mesma forma em que nos trás o calor ao ver o funcionamento de uma rede de apoio funcional, além de relacionamentos familiares funcionais e disfuncionais que refletem a realidade em uma abordagem não punitiva e não agressiva.

REFERÊNCIAS

Análise comportamental clínica: aspectos teóricos e estudos de caso. Ana Karina C. R. de-Farias & colaboradores. Porto Alegre : Artmed, 2010.

Hometown Cha-Cha-Cha: Série sul-coreana de drama aposta na simplicidade e serendipidade. Disponível em: <http://www.benoliveira.com/2022/01/hometown-cha-cha-cha-serie-coreana-drama-simplicidade-serendipidade.html>. Acesso em 26 de Fev. de 2022.

HOMETOWN CHA-CHA-CHA | ANÁLISE PSICOLÓGICA – YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X7Y5M-gwcEc>. Acesso em 26 de Fev. de 2022.

The Best Quotes From The Korean Drama, ‘Hometown Cha-Cha-Cha’. Disponível em: <https://www.cosmo.ph/entertainment/hometown-cha-cha-cha-best-quotes-a4575-20211024>. Acesso em 26 de Fev. de 2022.

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Série ‘On My Block’: rumo à vida adulta

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Na série produzida pela Netflix no ano de 2021 e bastante popular, conhecida como On My Block, apresenta a rotina do ensino médio de cinco amigos inseparáveis e expõe dilemas, conflitos, e experiências comuns da fase da adolescência. Quem ganha grande destaque na primeira temporada é a personagem Monse, na qual se manifesta como “ponte” entre todos os integrantes do grupo. Sem o seu esforço de manter a comunhão entre todos, o grupo de amigos já estaria dissolvido. 

Ao decorrer dos episódios, eles embarcam e enfrentam várias experiências, como o primeiro porre e a perda inesperada e abrupta do personagem Ruby de uma parente sua muito querida, assim como a procura incansável de Monse por sua mãe. Além disso, ocorre o dilema do personagem César em entrar ou não na gangue de seu irmão mais velho. O mesmo ocorre com o personagem Jamal, que se encontra em um embate por confessar ou não aos seus pais que não cogita o basquete como carreira, pois seus pais o estimulam muito para isso. 

Fonte: Google Imagens

 

É perceptível que ao decorrer das experiências, o grupo se mantém unido, consolando uns aos outros, assim como os apoiando e servindo de refúgio dos problemas e como rede de apoio. Muitas vezes os cinco adolescentes eram incompreendidos pelos pais e neles mesmos encontravam compreensão e ao mesmo tempo, certos aconselhamentos para seguir com ações e decisões maduras, com princípios norteados pela honestidade e bem estar. 

Ficou nítido que além da união entre eles, cada um manifestava seus traços de personalidade de forma autêntica e diferenciada em cada situação problema que se encontravam. Com a visão de mundo de cada um assim como os aspectos culturais e sociais nos quais desenvolveram no seu crescimento, é nítido como os personagens agem diferente em cada ocorrência nos episódios. 

Fonte: Google Imagens

 

Um adendo muito importante a ser feito neste aspecto é exatamente os aspectos culturais desenvolvidos e atribuídos a cada personagem. As referências latinas são muito lembradas e levantadas em dois personagens recorrentemente, que é o Cézar e o Ruby. Ambas as famílias organizam festas temáticas comuns no México, assim como apresentam aspectos religiosos muito fortes, pois a mãe do Ruby é uma devota fervorosa na igreja Católica do seu bairro. Tais aspectos confirmam que os traços culturais são muito bem evidenciados ao decorrer dos episódios. 

Por fim, além da questão cultural, outro aspecto abordado na série é o recorte racial. Percebe-se que alguns aspectos comuns a cultura negra são destacados na série, como por exemplo o caso do Jamal, no qual não tem afinidade com o basquete, mas que é tradição de sua família afrodescendente aderir a esse esporte, principalmente da parte paterna. A série em si é uma ótima sugestão para descontrair, pois quando se passa os episódios, percebe-se que o humor é uma ferramenta muito bem explorada pelos personagens, assim como a capacidade de cada um em protagonizar. Os personagens são bem explorados e em cada papel desenvolvido, percebe-se muita afinidade com eles, ou seja, muita concordância.

 

Fonte: Google Imagens

O final é inesperado e abrupto, o que deixa espaço e margem para a segunda temporada, que já está disponível na plataforma de streaming. On My Block mostra, por meio de uma visão de comédia trágica, como os adolescentes mais propícios a serem marginalizados nos Estados Unidos, que são os afrodescendentes e latinos, perpassam pelas dificuldades e dilemas para a vida adulta. Os aspectos étnicos e raciais são bem levantados e destacados na série e muitas vezes trazem reflexões ao expor as situações problemas.

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Steven Universo – um retrato sobre relacionamentos abusivos em “Alone at Sea”

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Steven Universo (ou Steven Universe, nos Estados Unidos) é uma série animada norte americana produzida por Rebecca Sugar para o canal televisivo por assinatura Cartoon Network. Você pode conferir mais sobre o desenho neste link:

No episódio “Alone at Sea”, ou “Sozinhos no Mar” em português, temos uma abordagem sobre relacionamentos abusivos e a dificuldade em seguir em frente em decorrência de traumas. Tudo isso retratada de uma maneira muito delicada para o público.

Sinopse: Steven, Greg e Lapis Lazuli fazem uma viagem de barco para o mar e encontram-se em águas perigosas.

O episódio começa com Steven levando Lapis Lazuli, sua amiga, para uma viagem de barco pelo mar com seu pai, Greg. Steven diz que, embora Lapis tenha passado por uma experiência traumática, onde ficou presa em uma fusão por meses, a água faz parte de quem ela é e ela não deveria ofuscar o quanto ela gosta dela.

Em um breve resumo: meses atrás, Lapis Lazuli, para poder salvar Steven, se fundiu com uma inimiga (Jasper) e a prendeu no mar, não permitindo que a fusão se desfizesse durante meses. A experiência foi extremamente traumática para Lapis, que se encontrava em uma constante luta para não deixar Jasper desfazer a fusão e escapar. Na série, as fusões são retratadas como um relacionamento, onde ambas as partes precisam estar de acordo para funcionar, o que não foi o caso da fusão de Lapis com Jasper, onde as duas passaram meses presas no caos dessa fusão, levando a uma experiência traumática para ambas.

Jasper e Lapis, presas no interior da fusão

Voltando ao episódio, Lapis reforça que não foi apenas uma experiência traumática, dando a entender que foi pior que isso, mas Steven insiste em leva-la para essa viagem, de modo a ver o lado bom de não estar mais passando por isso, e, embora Lapis diga que acha que não mereça, irá tentar.

Durante a viagem, Lapis e Steven se divertem bastante, jogam conversa fora, tentam pescar e admiram a paisagem, mas Lapis constantemente olha para o oceano com uma vista triste e começa a se sentir pra baixo. Mais tarde, alguma coisa bate no barco causa um tremendo barulho, e antes que eles pudessem saber o que era, ocorre outra batida que acaba prejudicando o motor do barco, fazendo com que Greg desça ao motor para saber o que aconteceu.

Enquanto isso, Steven pede desculpas pela viagem estar fracassando, mas Lapis diz que é culpa dela por não conseguir aproveitar a viagem por constantemente pensar sobre a fusão com Jasper e a constante batalha que enfrentou durante os meses que isso durou.

Steven diz que ela não precisa mais se preocupar com isso, pois Lapis não precisa mais estar com Jasper nessa fusão, mas para sua surpresa Lapis diz que sente falta dela. Steven não entende e comenta o quanto Jasper era horrível para ela, mas Lapis diz chama a si mesma de terrível e diz o quanto é culpada por tudo de ruim que aconteceu com ela desde que chegou à Terra, ao mesmo tempo em que grita com Steven questionando se ela estava errada.

O barco bate violentamente em alguma coisa novamente, e então algo começa a subir nele. De repente, Jasper aparece dizendo “finalmente, achei que nunca conseguiria te encontrar novamente”, com uma expressão insana. Lapis questiona se Jasper estava os seguindo, mas Jasper a corrige, dizendo que na verdade era Lapis que estava a procurando. Steven tenta interferir com seu escudo, protegendo Lapis, mas Jasper começa a rir dizendo que Steven está apontando o escudo na direção errada, que era a Lapis que ele deveria temer.

Lapis diz que isso não é verdade, mas Jasper a confronta e diz que sabe do que ela realmente é capaz de fazer. Jasper diz que achava que ela era bruta, mas que agora vê como Lapis é um monstro. Jasper tira Steven do caminho e antes que Lapis pudesse ajuda-lo, Jasper agarra seu braço e ajoelha, pedindo para que se fundissem novamente.

Jasper explica como fundidas as duas eram maiores, mais fortes e podiam até voar. Steven alerta Lapis para não a ouvir. Lapis diz o quanto ela realmente foi horrível para Jasper, odiando-a e descontando toda a raiva nela e na fusão. Jasper começa a implorar, dizendo que Lapis a mudou, que ela é a única capaz “aguentá-la” e que juntas elas seriam imparáveis.

Lapis olha para Steven, que estava esperando que ela fizesse a escolha certa, e diz não. Lapis diz que nunca mais quer sentir o que sentiu quando estavam juntas, mandando Jasper ir embora. Jasper fica furiosa e culpa Steven pela rejeição de Lapis. Ela vai em direção a ele para destruí-lo, mas Lapis usa seus poderes para mandar Jasper pra muito longe, de volta ao oceano.

overview for Brazil_City

O barco começa a afundar e Lapis leva Steven e Greg voando. Steven diz o quanto está feliz por ela ter feito a escolha certa e ter derrotado Jasper. O episódio acaba com Lapis concordando e eles vão embora, aliviados.

 

 

Este episódio faz diversas referências a traumas e relacionamentos abusivos na vida real.

Lapis se sente culpada por tudo de ruim que aconteceu a ela desde que chegou a Terra, chegando a dizer que não merece coisas boas ou ser feliz.

water wangs — i was terrible to you. i liked taking everything...

Quando confrontada por Steven, que diz o óbvio ao mencionar quão horrível era a fusão das duas, algo que no desenho foi sempre retratado como relacionamento, Lapis diz que na verdade sente falta daquilo, mostrando como é difícil para pessoas que se encontram em relacionamentos abusivos se desapegarem ou enxergarem o que estão passando.

Steven Universe Lapis admits she miss being fused to Jasper on Make a GIF

Jasper ajoelha e diz que mudou, colocando-se em uma posição de vulnerabilidade e arrependimento, dizendo que é a única capaz de aguentá-la, fazendo uma chantagem emocional, que depois claramente se mostra falsa quando a mesma tenta atacar Steven, culpabilizando-o, sendo uma referência a como pessoas abusivas culpam as outras pessoas e fatores externos para se livrarem da culpa.

Tantei Armin

Embora Jasper seja a vilã no desenho, o episódio aborda como ambas as pessoas nesse tipo de relacionamento podem ser abusivas umas com as outras, mostrando Lapis como um dos fatores que também contribuiu para que isso acontecesse.

A dificuldade de Lapis para aproveitar a viagem e os momentos bons com Steven mostra a dificuldade que as pessoas que passaram por esse tipo de trauma possuem para conseguir seguir em frente, mesmo quando não estão mais vivendo aquilo, ao mesmo tempo em que se sentem culpadas ou não conseguem ter uma perspectiva diferente e melhor para o futuro.

Ainda assim é possível seguir em frente.

 

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Steven Universo – um aprendizado sobre lidar com emoções em “Mindful Education”

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Steven Universo (ou Steven Universe, nos Estados Unidos) é uma série animada norte americana produzida por Rebecca Sugar para o canal televisivo por assinatura Cartoon Network. Você pode conferir mais sobre o desenho neste link.

No episódio “Mindful education”, ou “Educação de consciência” em português, temos uma abordagem sobre a dificuldade em lidar com emoções, culpa e excesso de preocupações. Tudo isso retratada de uma maneira simples e muito delicada para o público.

Sinopse: Steven e Connie em seu contínuo treinamento de combate, entretanto, durante o episódio, ambos se encontram em uma situação de muita culpa em decorrência de eventos passados, fazendo com que não consigam lidar com o acúmulo de emoções que estão sentindo.

No início do episódio, Steven tenta fazer uma brincadeira com Connie, mas nota que a mesma está indiferente. Durante o episódio, Steven e Connie tentam treinar se fundindo, mas algumas coisas dão errado em decorrência de um problema que aconteceu com Connie, fazendo-os perder o controle da fusão se separando. Posteriormente, Steven tenta confortar Connie e saber o que aconteceu, ela diz que acidentalmente machucou um garoto em sua escola pois não sabe o que fazer nesse tipo de situação envolvendo acidentes e acabou fugindo.

Depois de ter explicado a situação, Garnet chega e explica que uma fusão, para ser estável, precisa de equilíbrio interior. A falta de equilíbrio leva a conflitos e a perda da estabilidade da fusão, sendo assim, é preciso manter também um equilíbrio mental, confrontando e entendendo seus próprios sentimentos. Com isso, Garnet oferece ajuda para meditar e compreender melhor seus interiores.

Em seus interiores, após se fundirem novamente, Garnet canta uma música sobre confrontar seus sentimentos. Borboletas aparecem e mostram duas personagens, Ruby e Safira, com problemas, onde Safira se sente incomodada com uma borboleta e Ruby fica furiosa com essa única borboleta, sem perceber que aos poucos várias outras borboletas passam a incomodar Safira. Posteriormente, Ruby respira fundo e consegue ampliar seu olhar sobre a situação, onde ela estava furiosa com apenas uma borboleta em vez de ajudar Safira que estava sendo prejudicada por várias. Ela então para e vai em direção a Safira, ajudando-a e posteriormente acalmando a situação das borboletas juntas.

Stevonnie então canta e percebe que Steven e Connie estavam na mesma situação, mas dessa vez conseguem resolver juntos e com calma, terminando assim a meditação.

 

Em outro dia, Steven e Connie tentam treinar novamente, como Stevonnie, mas tudo acaba dando errado quando Steven também se encontra na mesma situação que Connie estava antes, quando se depara com vários problemas de seu passado que ainda não se resolveram, problemas esses que envolvem sua mãe, uma antiga amiga, uma inimiga e outras pessoas a qual se encontrou e teve problemas aos quais Steven não sabe o que fazer.

Stevonnie se sentindo inferior aos seus problemas.

Durante esse processo, Stevonnie começa a ter uma crise de ansiedade e acabam caindo da arena onde estavam, em um precipício. Durante a queda, eles se desfundem e Steven explica a Connie como não consegue lidar com todos esses problemas que o assombram. Connie diz que está tudo bem pensar sobre isso e também está tudo bem se sentir mal em relação a isso, mas que Steven tem que honesto em como isso o faz mal, para assim seguir em frente.

#steven universe from tinnink #steven universe from tinnink

Com a ajuda de Connie, Steven consegue aos poucos se acalmar e pensar sobre suas ações passadas, onde todos esses problemas foram causados a partir das outras pessoas rejeitarem sua ajuda, mesmo ele fazendo o possível. Ao se acalmar por completo, se fundem novamente e conseguem flutuar com os poderes de Stevonnie em segurança ao solo, terminando o episódio com um sorriso aliviado no rosto.

Esse episódio faz diversas referências. As borboletas são uma delas, onde em algumas culturas elas representam a alma de um indivíduo, com a cor branca representando sua pureza, que também possuem associação com boa sorte e com o seguir em frente durante a vida.

A técnica de meditação utilizada por Garnet durante o episódio faz referência as mesmas estratégias utilizadas pelos princípios da Terapia Cognitiva baseada em Mindfulness (Mindfulness Cognitive Behavior Therapy – MCBT) ou Terapia de Aceitação e Compromisso (Acceptance and Commitment Therapy – ACT), onde em suas falas durante a música Garnet diz “É apenas um pensamento, nós podemos assisti-lo indo embora”. É uma prática da aceitação da presença de emoções negativas sem se deixar controlar por esses pensamentos. Ambas as terapias já mostraram ter um ótimo sucesso em tratamentos de ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático.

Stevonnie em Mindful Education(Fanart) | • Steven Universe BR • Amino

O símbolo de mãos que Garnet e Stevonnie fazem durante a meditação é chamado de símbolo “Vishuddha Chakra Mudra”, ou chakra/energia da Garganta. Esta energia, apresentado pela cor azul, é a energia da Comunicação, que estava bloqueado pela confusão e mentiras.

lesbian squared — Garnet in Mindful Education

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“The Man in The High Castle”: a banalidade do Mal e os mundos quânticos

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A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich

Mundos paralelos quânticos nos quais encontramos as melhores versões de nós mesmos e a permanência da estrutura que reproduz a banalidade do Mal, não importa o mundo ou o governo que ocupe o Estado. Com esses temas a série da Amazon “The Man in The High Castle” amarra a narrativas das três temporadas anteriores e encerra com o episódio final “Fire from the Gods”. Baseada no livro homônimo no escritor gnóstico sci-fi Philip K. Dick, a série figura um mundo alternativo no qual o Terceiro Reich e o Império Japonês ganharam a Segunda Guerra Mundial e mudaram a face da História. Mas há um fantasma que assusta os vencedores e inspira a Resistência: a descoberta da existência de mundos quânticos paralelos onde a História foi diferente e encontramos nossas próprias versões alternativas que tomaram decisões diferentes. Mas há algo que permanece: nossas almas permanecem prisioneiras na banalidade do Mal.

Neste mês chegou na plataforma de streaming da Amazon a temporada final da série The Man in The High Castle (2015-19), baseada no livro homônimo do gnóstico escritor de ficção científica Philip K. Dick. As temporadas anteriores já foram discutidas aqui no Cinegnoseclique aqui.

Foram 40 horas de duração em episódios distribuídos em quatro temporadas nos quais a equipe de roteiristas liderada pelo criador da série Frank Spotnitz teve que estender a estória para além das 240 páginas originais de K. Dick. Claro que expandir dessa maneira o romance mais bem estruturado da carreira do escritor norte-americano, pode resultar em muitos problemas narrativos: a última temporada corre muito rápida na qual parecia não haver tempo suficiente para amarrar as pontas soltas de forma satisfatória e dar conta do arco de personagens das três temporadas.

Mas não satisfeito, Spotnitz ainda acrescente novos personagens na temporada final: o grupo Rebelião Comunista Negra, uma espécie de Panteras Negras com a liderança carismática da ativista Bell Mallory (Frances Turner). Suas táticas de guerrilha armada, atentados e sabotagens sistemáticas farão o Império Japonês desistir e se retirar dos “Estados do Pacífico” (a Costa Oeste dos EUA), acelerando os eventos que culminarão numa crise política interna do Terceiro Reich.

Mas o saldo final foi positivo: uma estimulante combinação entre ficção científica, espionagem, política e thriller. Por isso, além do imenso arco de plots e personagens, a série levanta para abre um leque de temas que vai da hipótese quântica dos Mundos Paralelos (a chamada “Interpretação de Muitos Mundos – em inglês MWI, feita em 1957 por Hugh Everett – clique aqui) passando pela questão filosófica e moral da banalidade do Mal até a questões de Ciência Política – “uma coisa é derrubar um governo, outra coisa é ser governo”.

Para discutirmos esses temas é necessário fazermos um pequeno resumo das temporadas anteriores: Essencialmente a história se passa em um mundo alternativo onde as potências do Eixo venceram a Segunda Guerra Mundial e dividiram os Estados Unidos em dois: o Grande Reich do Leste nazista e o Estado Pacífico japonês no Oeste

Há uma zona neutra entre os dois ao longo das montanhas rochosas e fornece um refúgio para um crescente movimento de resistência. Portanto, enquanto as ações de controle e repressão do império e da resistência da rebelião se revezam entre as cidades de Nova York, Denver e São Francisco, abrangendo homens e mulheres de ambos os lados do conflito de uma maneira bastante realista, o elemento de ficção científica da história entra em cena – surge uma série cópias de filmes de alguém chamado “O Homem do Castelo Alto”.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

São filmes mostrando que realidades alternativas ou mundos paralelos foram descobertos. Nesses mundos as forças do Eixo foram derrotadas e EUA e URSS foram os vencedores, iniciando a Guerra Fria e a corrida armamentista nuclear tal como conhecemos em nosso mundo. Mas esses filmes mostram a possibilidade de vitória sobre os imperiais nazistas e japoneses, encorajando a rebelião. Mas também sugerem a possibilidade para viajar fisicamente entre mundos.

E é aí que entra a protagonista Juliana Crain (Alexa Davalos). Ela é uma espécie de mulher fora do tempo e do lugar, o ponto crucial da rebelião (e da própria narrativa) e a chave para a guerra entre os mundos. Ela leva três temporadas para dominar a capacidade de viajar entre mundos.

A última temporada

A quarta temporada começa exatamente onde a terceira temporada parou, com Juliana Crain (Alexa Davalos) sendo baleada pelo obergruppenführer John Smith (Rufus Sewell) no momento em que ela foge para o mundo alternativo em que os Aliados venceram a guerra.

Enquanto Juliana passa um ano no mundo alternativo, as mudanças de poder entre o Reich e os Estados japoneses do Pacífico deixam uma abertura para Smith consolidar seu poder. Essas mudanças são em parte graças à atividade eficiente e crescente da Rebelião Comunista Negra, uma facção recém-introduzida dos combatentes da resistência. O Homem no Castelo Alto, Hawthorne Abendsen (Stephen Root), ainda está sob custódia nazista, sendo forçado a negar o trabalho de sua vida na forma de protagonista de uma campanha de propaganda para desmoralizar a Resistência.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

 A última temporada se divide entre dar mais alguns detalhes (muito rápidos e que depende da concentração do espectador) sobre os pontos de contato entre os mundos paralelos: enquanto alguns personagens como Juliana e Togomi (o ministro do comércio do império japonês) possuem a habilidade de se deslocar pelos mundos através de estados alterados de consciência, os nazista precisam de uma pesada parafernália tecnológica – uma espécie de túnel subterrâneo baseado em mecânica quântica.

A ambição nazi será agora conquistar todos os mundos paralelos – espiões são enviados para trazer novas tecnologias e sabotar as potências que venceram os alt-nazistas. É o projeto “Die Nebenwelt”.

Fica evidente o porquê centenas de cobais foram sacrificadas no experimento: nem todos conseguem passar para os outros mundos – a não ser que a sua versão alternativa não exista ou tenha morrido. É o paradoxo do Doppelganger: duas versões alternativas não podem ocupar a mesma dimensão.

Fonte: encurtador.com.br/iswxV

Metafísica, a banalidade do Mal e Política – alerta de Spoilers à frente

Mas há um interessante tema que a temporada acrescenta: aprendemos que as duas versões de John Smith (a nazi e a de um humilde vendedor) têm certas tendências em comum – no caso de Smith a atração pelo Poder. Sua versão alt resistiu a esse appeal, abandonando o Exército. Enquanto John Smith virou “a pior alternativa de si mesmo”, como confessa amargamente no monólogo final do último episódio.

The Man in The High Castle tangencia um tema metafísico abordado originalmente no seminal filme gnóstico Cidade das Sombras (Dark City, 1998) – aliens aprisionam humanos em uma cidade artificial na qual, diariamente, as identidades de todos os habitantes são trocadas enquanto dormem: os aliens querem descobrir no experimento nossas “almas”, isto é, a essência humana permanente por trás das múltiplas identidades que assumimos nas várias existências.

Mais perturbadora, outra questão levantada é a banalidade do Mal, expressão criada por Hannah Arendt (1906-1975), teórica política alemã. Acompanhamos nas quatro temporadas os dois algozes de cada lado dessa Guerra Fria alternativa: do lado japonês, o inspetor Kido, da polícia dos Estados japoneses – a Kempeitai; e do outro o obergruppenführer John Smith. Ambos são pais de família, sinceramente preocupados com suas esposas e filhos.

Fonte: encurtador.com.br/dfNOR

Principalmente na Nova York nazista, vemos o cotidiano da família de Smith: refeições, levar os filhos para a escola… e gerir projetos de Eugenia com o propósito de exterminar raças “inferiores”. São vilões que “administram” o Mal como mais uma atividade cotidiana, ao lado da agenda dos compromissos familiares.

Acompanhamos os führers alemão Himmler e o americano Smith em jantares com suas esposas, discutindo aspectos banais da vida conjugal, ao mesmo tempo em que decidem estratégias de conquista e extermínio. Uma assustadora combinação de amor, delicadeza e barbárie.

A série dá uma particular atenção de como a propaganda ideológica sedutora nazista (a propaganda política japonesa é figurada como ainda muito rudimentar, baseada apenas no terror imperial) tornou amoral ou natural toda a barbárie do Terceiro Reich.

Porém, a novidade da temporada final e que alterou a correlação de forças entre o Eixo e a Resistência é a entrada em cena da Rebelião Comunista Negra, que vive um dilema existencial: combater o império japonês, porém sem querer retornar à pátria da bandeira estrelada norte-americana – uma sociedade que era racista e intolerante, tal como os atuais algozes.

Após a vitória, fazendo recuar o império japonês e bater em retirada do Oeste americano, a máfia Yakuza aparece para colocar na realidade os idealistas líderes negros: “Uma coisa é derrubar o governo, outra coisa é ser o governo”, vaticina o líder da máfia japonesa Yakuza, em San Francisco, Taishi Okamura.

“Vocês vão precisar de nós para restaurar a eletricidade, a água e o oleoduto…”, alerta Taishi. Grande verdade histórica: toda revolução é uma revolução traída! Ocupar o Governo é uma coisa: é a fachada pública ou midiática do Poder. Outra coisa é conquistar a máquina do Estado, controlada pelo lobby de verdadeiras máfias de setores financeiros e infraestrutura.

Algo como tematizado pelo documentário brasileiro Democracia em Vertigem (2019) – não importa qual governo ocupe o poder: o Estado sempre será bancado pelos bancos, famílias proprietárias da mídia e as construtoras de infraestrutura (clique aqui).

E no Estado do Pacífico japonês, a máfia Yakuza, preparada para “negociar” com os novos ocupantes do Estado – a liderança comunista negra.

No final, a série The Man in The High Castle termina fiel ao espírito da obra de Philip K. Dick – podemos até encontrar versões melhores de nós mesmos em outros mundos quânticos, mas a estrutura que reproduz a banalidade do Mal continua incólume: de um lado, a Guerra Fria entre EUA e URSS; e do outro a Guerra Fria entre o Grande Reich e o Império do Japão.

Título: The Man in The High Castle (série)

Criador: Frank Spotnitz

Roteiro: Frank Spotnitz, Wesley Strick, Jihan Crowther

Elenco: Alexa Davalos, Joel de la Fuente, Jason O’Mara, Rufus Sewell

Produção: Amazon Studios

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2019

País: EUA

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(En)Cena lança série analítica sobre Black Mirror

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Textos problematizam os desafios da Psicologia frente o advento das tecnologias contemporâneas

O portal (En)Cena acaba de lançar a série “Angústias contemporâneas em Black Mirror: um olhar da Psicologia”, sobre as implicações das tecnologias contemporâneas nas subjetivas. Há vários textos assinados por acadêmicos e professores associando os temas da série às problemáticas levantadas por diferentes linhas teóricas da Psicologia.

Fonte: https://goo.gl/N8Ayyt

Dentre os temas abordados há o fato de as tecnologias se configurarem como uma extensão da consciência humana, além da relação da Inteligência Artificial com o fechamento e também abertura de novos postos de trabalho. A série também discute como a robótica atua desde a execução de cirurgias complexas, passando por sistemas de vigilância e, por fim, culminando na indústria de diversão e do sexo, através dos bonecos sexuais inteligentes, e os impactos desta dinâmica na subjetividade humana.

A Psicologia é pressionada a dar respostas a este momento histórico desafiador. Isto porque toda transformação de ordem social e tecnológica remete primeiramente a um movimento cuja gênese está na subjetividade. É a vontade humana, consciente ou inconsciente, que gera volição e, depois, as mudanças, no que Freud já relatava sobre o pensamento como o ensaio da ação.

A Série

Black Mirror é uma ficção científica de sucesso que já está na quarta temporada e que aborda de modo satírico e, por vezes, obscuro, temas típicos da pós-modernidade, sobretudo em relação às consequências imprevisíveis do exagerado uso das tecnologias.

Criada por Charlie Brooker, a série replica em sua estrutura narrativa uma dinâmica comum na liquidez da contemporaneidade, a saber, nenhum episódio é continuação de outro, e todo o elenco muda a cada tópico abordado. As estórias às vezes parecem caricaturais, mas em muito alerta para dinâmicas que já ocorreram e que podem ser naturalizadas, com o passar do tempo, como no exemplo do primeiro episódio da terceira temporada, que aborda um hipotético momento em que, para se ter ascensão social, é necessário viver sob o escrutínio de terceiros, a partir do recebimento de avaliações constantes e positivas em redes sociais eletrônicas (o que já está ocorrendo no Instagran, diga-se de passagem). Cada episódio espanta, cativa e gera insights transformadores. Com isso, Black Mirror acabou ganhando a graça do público e da crítica especializada, e é fonte de estudo em grupos de Psicologia, Filosofia e Sociologia.

Clique aqui para acessar a série http://encenasaudemental.com/series/serie-black-mirror/

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