Rain Man: Um olhar sobre o Autismo e a Síndrome de Savant

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Rain Man estreou em 1988. Nessa época, o transtorno do autismo era pouco divulgado na mídia, o que fez com que o personagem de Dustin Hoffman (Raymond) se transformasse em uma espécie de referência no que tange aos sintomas desse transtorno. Algumas pessoas (e a mídia em geral) associavam as características do personagem ao transtorno, o que poderia produzir uma equivalência perigosa. O filme foi extremamente relevante para a apresentação do autismo, mas também contribuiu para provocar erros de interpretação, já que reduzia, aos olhos do grande público, os sintomas desse transtorno à imagem do personagem.

Raymond é o irmão mais velho de Charles Babbit (Tom Cruise). Viveu grande parte de sua vida em uma instituição para pessoas com transtornos mentais. A história inicia-se com a morte do pai e a leitura do seu testamento. Enquanto Charles ganhou apenas um velho carro e as roseiras da casa, Raymond foi beneficiado com todos os recursos dos investimentos do pai.

Aos poucos descobrimos que essa família é totalmente desestruturada. A mãe de Charles morreu quando ele tinha três anos e Raymond foi mandado para a clínica, pois representava (segundo o pai) um perigo para o irmão. Charles deixou de falar com o pai aos 17 anos depois de uma tentativa fracassada em ser notado por ele. Assim, o distanciamento que Raymond tem das pessoas parece ser um traço presente (em um dado nível) em todos os membros de sua família.

Charles, que até então não se lembrava da existência do irmão, apenas que um amigo imaginário cantava música para acalmá-lo quando tinha 3 anos, foi procurá-lo na clínica e tirou-o de lá sem o consentimento dos médicos. Era a forma que ele havia encontrado de recuperar a herança.

O que ele não esperava era que Raymond, mais do que repetir determinadas sentenças insistentemente, de gostar de determinadas produtos, locais e programas de TV de forma obsessiva, poderia ter fortes crises se vivenciasse mudanças bruscas em sua rotina ou se fosse impelido a fazer algo que não quisesse.

Segundo o DSM IV,

as características essenciais do Transtorno Autista são a presença de um desenvolvimento acentuadamente anormal ou prejudicado na interação social e comunicação e um repertório marcantemente restrito de atividades e interesses. As manifestações do transtorno variam imensamente, dependendo do nível de desenvolvimento e idade cronológica do indivíduo […]. Os indivíduos com Transtorno Autista têm padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades.

Uma das grandes complexidades desse transtorno reside no entendimento das variações dessas manifestações e a fase em que são identificadas. Quanto mais tarde é feito o diagnóstico, mais difíceis são as possibilidades de tratamento. No caso de Raymond, a questão ainda tem um diferencial, pois ele também sofre da Síndrome de Savant. ParaTreffert (2009), essa síndrome “é uma condição rara, em que pessoas com graves deficiências mentais, incluindo o transtorno autista, possuem algum tipo de talento ou habilidade extraordinária”.

Segundo pesquisas apresentadas em Treffert (2009), em cada 10 pessoas autistas, uma tem habilidades notáveis em algum grau. Logo ter autismo não implica ter a Síndrome de Savant. Há outras variações de autismo, como é apresentado no DSM IV, em que “o prejuízo na comunicação é marcante e persistente, afetando as habilidades tanto verbais quanto não-verbais; podendo haver atraso ou falta total de desenvolvimento da linguagem falada”.

Ter a Síndrome de Savant também não implica ser autista.  Segundo Treffert (2009), essa síndrome pode ocorrer através de outras deficiências de desenvolvimento ou em outros tipos de lesões do sistema nervoso central. Seja qual for a habilidade apresentada pelo portador da síndrome, ela tem uma base única: a memória. São habilidades intrinsicamente relacionadas à capacidade surpreendente de memorização.

Apesar de a personagem Raymond Babbit ter ambos os transtornos, Kim Peek, que foi a inspiração para os roteiristas desenvolverem o filme, não tinha autismo, mas era mentalmente incapacitado, precisava do auxílio do pai para realizar as tarefas mais básicas (como se vestir ou barbear), apesar de ter uma capacidade de memorização extrema. Até a sua morte em 2009, aos 58 anos, Kim havia memorizado cerca de 12.000 livros (inclusive a Bíblia). Mesmo sem compreender aquilo que memorizava, era capaz de citar palavra por palavra o texto de cada um dos livros.

Ter que passar um tempo com o irmão fez Charles aprender mais sobre as suas próprias fragilidades. Quando estavam em Las Vegas, ele usou as habilidades de Raymond para ganhar no jogo de cartas, entendendo, apenas posteriormente, o que aquela ação refletia, ou melhor, o tipo de homem que ele se tornara. Essa proximidade com o irmão, principalmente, fez com que ele trouxesse à tona passagens de sua infância, assim, ele pôde perceber que aquela pessoa tão distante, que vivia em um mundo particular e, aparentemente, inacessível, um dia foi seu protetor. O “Rain Man” que dá título ao filme é a forma com que Charles, aos três anos, se referia ao irmão, que, dentro de sua rotina de tarefas, protegia-o da solidão.

Mais do que a herança, o que Charles buscava ao fim da viagem que fez com Raymond, era recuperar sua família. Buscava um afeto que Raymond não conseguia retribuir. Mas, como as nuances do autismo ainda são complexas demais para o nosso entendimento, talvez, em algum nível, na mente de Raymond essa proximidade provocou alguma modificação. Mesmo que tal fato não seja expresso de uma forma que, no momento, tenhamos condição de identificar.

O estudo da mente tem várias vertentes, que refletem nas mais diversas situações. Doenças como a Síndrome de Savant podem contribuir para um melhor entendimento de como se dá o processo de aprendizagem, mais especificamente a parte do processo relacionado à memorização. Que diferenças estruturais existem nos cérebros dessas pessoas? O que possibilita a execução de ações extraordinárias, como a memorização de uma sinfonia de Beethoven ou de uma obra de Shakespeare? Por que a execução de algo extraordinário é feita de forma tão fácil enquanto ações simples, como amarrar o cadarço do sapato, não?

Para Treffert (2009),

nenhum modelo da função cerebral, incluindo a memória, estará completo até que se possa explicar e incorporar plenamente a condição rara, mas espetacular, da Síndrome de Savant. Na última década, particularmente, muito progresso tem sido feito para explicar esta justaposição dissonante de capacidade e incapacidade, mas muitas perguntas continuam sem resposta.

Para ele, as inovações tecnológicas no campo da tomografia computadorizada e da ressonância magnética serão cruciais nessas investigações. Pois, elas fornecem imagens de alta resolução de toda a arquitetura do cérebro (superfície e profundidade), o que permite uma inspeção detalhada da sua estrutura. Treffert (2009) acrescenta ainda que “estudos das funções do cérebro, tais como a tomografia por emissão de pósitrons (PET), tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT – sigla da expressão em inglês) ou a ressonância magnética funcional, são técnicas muito mais informativas sobre a Síndrome de Savant e, inclusive, do próprio autismo, uma vez que estas novas técnicas fornecem informações sobre o cérebro em funcionamento, ao invés de simplesmente visualizar a arquitetura do cérebro”.

O autismo colocou Raymond em um mundo à parte enquanto que a Síndrome de Savanttransformou-o em um prodígio no uso da memória. Em alguns estudos, busca-se no reforço desses talentos, uma forma de inclusão social, já que a pessoa passa a se sentir útil em um dado contexto. Uma dessas pesquisas foi relatada em Treffert (2009):

Clark (2001) desenvolveu um currículo de habilidade savant usando uma combinação de estratégias bem-sucedidas e atualmente empregadas na educação de crianças superdotadas (enriquecimento, aceleração e orientação) e educação de autistas (suportes visuais e histórias sociais) em uma tentativa de canalizar e aplicar, de forma útil, as habilidades, muitas vezes pouco funcionais e obsessivas, de um portador da Síndrome de Savant. Este currículo especial foi muito bem sucedido na aplicação funcional das habilidades Savant e produziu uma redução global do nível dos comportamentos autistas em muitos aspectos. Melhorias no comportamento, nas habilidades sociais e acadêmicas foram observadas, juntamente com o ganho nas habilidades de comunicação em dados contextos.

A expressão “fazer do mundo um lugar melhor”, nesse contexto, deixa seu sentido macro e volta-se para o interior do indivíduo. Talvez possamos usar a ciência para construir pontes entre os universos que compõem a natureza de cada um de nós.

Referências:

DSM-IV. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Disponível em:http://www.psicologia.pt/instrumentos/dsm_cid/dsm.php

TREFFERT, D. A. The savant syndrome: An extraordinary condition. A synopsis: Past, present, future. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences 364 (1522): 1351–7, 2009. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2677584/


FICHA TÉCNICA DO FILME

RAIN MAN

Título Original: Rain Man
Direção: Barry Levinson
Roteiro: Barry Levinson, Barry Morrow, Ronald Bass
Elenco Principal: Dustin Hoffman, Tom Cruise
Ano: 1988

Prêmios:

Oscar: Melhor Ator (Dustin Hoffman), Direção, Melhor Filme, Roteiro Original.
Globo de Ouro: Melhor Filme de Drama e Ator em Filme de Drama (Dustin Hoffman).
Urso de Ouro e o Reader Juryofthe “Berliner Morgenpost” no Festival Internacional de Cinema de Berlin

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Vida Líquida: consumo, velocidade e lixo na era da incerteza

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A vida líquida, assim como outras obras de Bauman, traz uma reflexão apoiada na revisão de alguns conceitos (como cultura, progresso, amor, medo, consumo) presentes e em constante mutação na sociedade atual. São vários livros permeados pela mesma premissa: o mundo líquido-moderno. Há fôlego para tantos desdobramentos de uma mesma temática? Sinceramente, não sei. No momento, estou preocupada com “a parte que me cabe deste latifúndio”, vamos, então, à Vida Líquida.

The Deluge by Gustave Doré

E aconteceu que passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio.
Gênesis 7:10
E expirou toda a carne que se movia sobre a terra […]. Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.
Gênesis 7:21-22

A palavra ‘vida’, segundo uma das definições apresentadas no dicionário Oxford, pode ser compreendida como o período entre o nascimento e a morte. Então, refletir sobre a vida líquida é compreender como se dá o movimento das variáveis, os elementos em trânsito entre as entradas e saídas dentro de um período de tempo que marca uma determinada existência.

Para Bauman, “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (p.8). Mas, parece-me que a vida sempre foi assim, uma série finita de incertezas permeada por artifícios capazes de produzir um sentimento relativo e breve de estabilidade.  Mas, por que essa fluidez parece agora tão mais evidente?

Talvez seja porque as inovações tecnológicas, os governos, a mídia e o mercado produziram um ambiente em que é cada vez mais fácil “apagar, desistir, substituir”. E a velocidade com que isso ocorre é que dá à vida esse caráter inconstante. É como se cada pessoa estivesse eternamente à procura de algo que possa ser seu novo objetivo ideal (uma espécie de Santo Graal), mesmo sem compreender porque havia buscado o já ultrapassado objetivo que ainda tem em mãos. Assim, a rapidez com que as variáveis mudam é condição necessária e, quem sabe, suficiente para a sobrevivência no mundo líquido-moderno.

A velocidade com que o indivíduo transita entre o amor e o desapego, entre a relevância e o descaso, entre o moderno e o ultrapassado, entre o essencial e o desnecessário provoca um aumento exponencial do lixo. Cada pessoa carrega consigo seu lixo particular, que precisa ser despejado em algum lugar. E isso acontece através da ajuda dos mais diversos meios, desde terapias e pílulas mágicas até religião e sistemas educacionais.

Crédito: http://www.mymodernmet.com/photo/trash-flower

O lixo é o principal e comprovadamente o mais abundante produto da sociedade líquido-moderna de consumo. […] Isso faz da remoção do lixo um dos dois principais desafios que a vida líquida precisa enfrentar e resolver. O outro é a ameaça de ser jogado no lixo. […] A vida talvez seja sempre um ‘viver-para-a-morte’, mas, para os que vivem na líquida sociedade moderna, a perspectiva de ‘viver-para-depósito-de-lixo’ pode ser a preocupação mais imediata e consumidora de energia e trabalho. (BAUMAN, p. 17, 18)

Essa preocupação com esse estado fluido que constitui a vida em sociedade não é uma novidade. No século XIX, por exemplo, Karl Marx já mostrava em suas reflexões, especialmente em sua principal obra – “O Capital” -, uma inquietude em relação ao caráter instável e extremamente dinâmico do capitalismo. Mostrou que através das inovações tecnológicas (e a tecnologia, para ele, era considerada um elemento endógeno das relações produtivas) era possível criar monopólios temporários, que seriam responsáveis por mudanças substanciais na dinâmica do sistema.

Na primeira metade do século XX, o economista Joseph Schumpeter adicionou à questão da inovação tecnológica, a figura do empreendedor. O empreendedor, nesse contexto, é um dos principais responsáveis por dinamizar os processos econômicos através de inovações.  A partir disso, Schumpeter cunhou a expressão “destruição criadora”, que descreve o modo como o processo de inovação pode destruir empresas, produtos e modelos de negócio. Assim, segundo Tigre (2006), se para os economistas teóricos o problema visualizado era como o capitalista administra as estruturas existentes, para Schumpeter a questão crucial era em como ele as cria e destrói.

Sleep Elevations by Maia Flore

‘Destruição Criativa’ é a forma como caminha a vida líquida, mas o que esse termo atenua e, silenciosamente, ignora é que aquilo que essa criação destrói são outros modos de vida e, portanto, de forma indireta, os seres humanos que os praticam. […] Veem ‘as novidades como inovações, a precariedade como um valor, a instabilidade como imperativo, o hibridismo como riqueza’. (BAUMAN, p.10)

O imperativo da velocidade parece ser a tônica do século XXI. E para ser veloz tem que ser leve. Logo, faz-se necessário abrir mão de muitas coisas, e até (ou principalmente) de muitas pessoas. Em contrapartida, parece que nunca estivemos tão conectados, temos uma lista infindável de contatos em vários tipos de redes sociais virtuais. Podemos vivenciar a experiência de umablogueira na ilha de Cuba, o resgate de um cachorro em uma rodovia no México ou os últimos dias de um doente terminal.  A velha expressão “carrego o mundo nas costas” parece fazer cada vez mais sentido. A questão é: que mundo é esse? Que é pesado e insustentável, mas, paradoxalmente, leve e fora do alcance.

O Ser e o Tudo


Numbers Man by Tariq Yousef

O “tudo” que é exposto nas prateleiras virtuais infinitas talvez seja o gatilho para uma série de patologias no mundo líquido-moderno. “Numa feira global em que receitas de individualidade são vendidas no atacado” (BAUMAN, p. 29), já não basta mais ter um tênis da marca X, ou um carro do último ano, tem-se que ter a ilusão de que o tênis e o carro foram criados adequadamente ao seu perfil.

No século XX havia um limite para as prateleiras. Esse limite era o espaço físico dos departamentos. No virtual, tal limite perdeu o sentido. O mercado se mobiliza cada vez mais em produzir objetos que se adequem aos mais diferenciados perfis. Então, se você for um solitário colecionador de miniaturas em cristal de galinhas de angola, poderá encontrar na rede um ambiente para troca e compra desses artefatos, bem como aqueles que consomem um tipo de literatura bem específica também poderão fazer parte do final da cauda da curva de demanda, ou seja, mesmo poucos terão importância. Desta forma, sua individualidade será mantida, pois o mercado de nichos, conforme pode ser observado no Livro “A cauda longa”, de Anderson (2006), é tão, ou mais importante, que o mercado das massas.

Clone Man by Peter James

… quando a individualidade é um ‘imperativo universal’ e a condição de todos, o único ato que o faria diferente e portanto genuinamente individual seria tentar – de modo desconcertante e surpreendente – não ser um indivíduo. (BAUMAN, p. 26)

Essa constatação de Bauman é uma ironia provocativa à condição humana atual em relação a um de seus pontos mais frágeis e mais “preciosos”: sua individualidade. Vimos constantemente nas manifestações sociais, nas promessas de produtos das grandes empresas, nas diversas mídias de entretenimento, que somos importantes e únicos, e que o objeto X foi feito especialmente para nós, assim como o objeto Y já não é mais digno de nosso perfil cool. Em um ambiente como esse, quem ousa ser um igual, realmente, pode se tornar um contraventor. Talvez o “igual” do século XXI seja o equivalente ao sertanejo do Euclides da Cunha, ou seja, “antes de tudo, um forte”.

Querer é poder. E quando existe demanda, a oferta não demora a aparecer. Em nossa sociedade de indivíduos que buscam desesperadamente sua individualidade, não há escassez de auxílios, consagrados ou autoproclamados, que (pelo preço certo, é claro) se mostrarão totalmente dispostos a nos guiar pelos calabouços sombrios de nossas almas, onde os nossos autênticos ‘eus’ permanecem supostamente aprisionados, lutando para escapar em busca da luz. (BAUMAN, p. 28) 

Livros de autoajuda, Física Quântica para explicar a alma, seitas, religiões, empresas, Estado, mídia, partidos políticos e indústrias farmacêuticas buscam, em algum nível, ser uma espécie de guia para esse desejo tão humano da individualidade. Assim, através da fé ou da química, de discursos ou de um produto espetacular, essas entidades procuram sustentar que há relevância na existência de cada um. A questão é que esses elementos em demasia podem potencializar a existência de novas doenças, propiciando o surgimento de novas categorias de transtornos e movimentando, ainda mais, a indústria farmacêutica e outras vertentes do mercado.

Agora a questão não é somente curar-se de um mal, mas curar-se de um mal vendido e promovido como um bem.

O ser diante do tudo deseja, por uma questão de sobrevivência, salvaguardar sua identidade. Para tanto, segundo Bauman, oscila entre “as extremidades da individualidade descompromissada e da pertença total” (p. 44).  É como se tivesse que lidar com o desejo da liberdade, ainda que “assombrada pelo medo da solidão” e a necessidade da segurança, permeada constantemente pelo “pavor da incapacidade”.

Vida de Consumo

Para Bauman, “a vida líquida é uma vida de consumo” (p. 16). Assim, objetos e pessoas para manterem-se em foco precisam estar em constante movimento, o primeiro a partir de inovações incrementais, a segunda na agregação de novas competências e habilidades.

O termo “educação continuada”, tão discutido, promovido e, até mesmo, vendido por vários atores do sistema educacional ou do Governo, tem em sua base reflexões profundas que vão desde a ampliação da autonomia do indivíduo até o aviso insistente da necessidade de adequação a um mercado em movimento que envia o ultrapassado para a margem. O que é paradoxal, nesse contexto, é que algumas das maiores inovações que tivemos nos últimos tempos (relacionadas à informática, por exemplo) vieram da margem.

The Surreal Landscapes by Vladimir Kush

Precisamos da educação ao longo da vida para termos escolha. Mas precisamos dela ainda mais para preservar as condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao nosso alcance. (BAUMAN,p. 166)

Viver deslizando por águas muitas vezes desconhecidas, já que a água é corrente e dá a impressão de que nunca estamos imersos no mesmo contexto, apesar de que tudo pareça sempre igual (Reductio ad absurdum), é viver no limite. E isso significa, em alguns aspectos, manter-se em constante autoexame e autocensura, pois o mais complexo na vida liquida é criar meios que permitam estar satisfeito consigo mesmo. Assim, na reflexão de Bauman, “a sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. […] O que começa como necessidade deve terminar como compulsão ou vício” (p. 106).

A “síndrome consumista” é promovida ainda na infância, pois em um mundo em que a presença dos pais parece existir em fragmentos cada vez menores, por que os brinquedos e o afeto seriam permanentes?

Shopping Cart by Dran

É justamente por causa desse tempo de dedicação tão diminuto que alguns pais da modernidade líquida tendem a buscar novas formas de compensação, alimentando ainda mais o consumo e a ansiedade, o excesso e a redundância que acompanham a produção do lixo nosso de cada dia.

E não é desejo da sociedade de consumo reduzir essa ansiedade, muito pelo contrário, a ideia é intensificá-la. Assim, a renovação do desejo eterno pelo ‘novo’ continua sendo a mola propulsora do mercado e do ideal de “destruição criadora”. Para ansiedade, há medicamento. Logo, cria-se a verdade ilusória (?) de que “ficaremos bem”.

 De mártir a herói e de herói a celebridade

Martírio significa solidariedade com um grupo menor e mais fraco, discriminado e humilhado, ridicularizado, odiado e perseguido pela maioria – mas é essencialmente um sacrifício solitário. (BAUMAN, p. 58) 

Ainda há lugar para mártires no mundo líquido-moderno? Talvez. No entanto, ou eles vivem nas sombras, ou já estão devidamente medicados.

Um mártir, em um mercado que anseia por celebridades instantâneas ou vertentes híbridas de heróis com ganhos e perdas devidamente calculados, é apenas mais uma patologia ambulante, um conjunto de transtornos devidamente categorizado em um manual técnico da área de saúde mental.

Mas há uma outra vertente de indivíduos que borbulha nas poças contínuas da sociedade líquido moderna, construído a partir da ideia de que “qualquer pessoa que sofra é (ao menos potencialmente) uma vítima” (BAUMAN, p. 66). Essa ideia contida nesse contexto de “vitimização” desenfreada produz uma relação de mercado movida pela compensação financeira. Esse excesso é que pode gerar erro na interpretação do sofrimento psíquico ou pode ser útil para o desenvolvimento de um potencial desejo de vingança. Mas, no mundo líquido, o interessante é que a vingança seja interrompida antes do “banho de sangue”, e isso pode ser feito a partir de acordos bem elaborados.

Prepara…

“No futuro todos terão os seus 15 minutos de fama.” Andy Warhol

A celebridade parece ser um dos atores mais representativos da sociedade líquido-moderna. Tem relação com algumas variáveis: quantidade de imagens, frequência que são mencionadas, aparição em programas de TV, número de compartilhamento e curtidas em redes sociais, quantidade de visualizações de vídeos na net. É efêmera, abundante e esquecível, ou seja, a metáfora ideal do mundo líquido.

Construir arcas?

Departure of The Winged Ship by Vladimir Kush

Para sobreviver no mundo líquido-moderno, talvez novas arcas devam ser construídas. Várias são as questões que surgem para sustentar esse fato, uma delas pode ser assim formulada: render-se à coletividade da individualidade exposta em frascos ou correr o risco de ser parte do lixo descartado a cada inovação no mercado e nas relações humanas?

Segundo Adorno citado por Bauman (p. 175), “pessoas fracas e amedrontadas sentem-se fortes quando correm de mãos dadas”, e acrescenta ainda que “o mundo quer ser enganado”. Talvez essa constatação sombria de Adorno não seja refutável tão facilmente, tendo como base vários acontecimentos recentes.  No entanto, ainda é mais reconfortante refletir sobre a constatação de Bauman ao final de Vida Líquida:

 “Tão inevitavelmente quanto o encontro do oxigênio com o hidrogênio produz água, a esperança é concebida sempre que a imaginação se encontra com o senso moral.” ( p. 194)

Mas, o círculo vicioso matematicamente construído através dos medos e amores que definem a vida nessa modernidade líquida parece ser mais firme que nossas esperanças. Talvez Baudolino (ECO, 2001) tivesse razão: o que é a vida senão a sombra de um sonho que foge? 

 

Referências:

ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho; tradução Afonso Celso da Cunha Serra. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BIBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional. Paulus: São Paulo, 1990.

Dicionário Oxford. Disponível em: http://oxforddictionaries.com/

ECO, Umberto. Baudolino; tradução Marco Lucchesi.  Rio de Janeiro: Record, 2001.

TIGRE, Paulo Bastos. Gestão da inovação: a economia da tecnologia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2006.

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O Anjo Malvado – Psicopatia infantil?

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O Anjo Malvado foi lançado há 20 anos e sua temática atemporal mostra-se, tristemente, tão atual. O filme conta a história de Mark (Elijah Wood) e Henry (Macaulay Culkin), que iniciam uma convivência depois que ambos passam por tragédias familiares.

Cada personagem do filme parece viver sob múltiplas tensões, desde a resistência em sair da fase da negação do luto, até na distorção que fazem da realidade. O filme inicia-se com a morte da mãe de Mark e com a influência que suas últimas palavras tiveram na construção que seu filho fez do luto. A mãe disse que sempre estaria com ele, o que poderia ser uma metáfora do amor que os une, no entanto, devido aos momentos de stress que se seguiram à sua morte, Mark acreditou nas palavras de forma literal, assim fez uma projeção de sua mãe na mãe de Henry, com quem foi morar temporariamente em virtude do trabalho do pai.

A família de Henry vive sob a sombra de um acidente que matou um dos seus filhos (afogado na banheira), deixando a mãe com uma permanente sensação de culpa e dor. Aparentemente, os outros filhos do casal (uma menina de uns 8 anos e Henry) possuem uma rotina normal. Mas, o problema é justamente esse: quase tudo parece normal na superfície, mas há uma estranha sombra de horror ao se observar as ações que compõem o dia-a-dia de Henry.

“Se eu te soltar, acha que vai conseguir voar?”

A primeira experiência que Mark tem com a face mais obscura de Henry quase custou-lhe a vida. Em uma tentativa de subir na casa da árvore, ele fica a mercê de sua ajuda, pois sem isso muito possivelmente cairia de uma altura imensa e, pela reação de Henry, ele começou a se dar conta do seu estranho senso de humor.

Como eles passavam muito tempo juntos, Henry mostrou ao Mark muito de sua personalidade, aquelas nuances que os pais não enxergavam por não suportarem o peso do entendimento do que estava sob a superfície, ou por não prestarem atenção suficiente nos detalhes.

Mark foi percebendo, rapidamente, que Henry não suportava ser contrariado, que mínimas coisas poderiam trazer à tona uma forte irritação. O cão que latia foi um dos seus alvos. Ao mostrar uma arma que inventou ao primo e depois usá-la com a desculpa de assustar o cão, Henry, na verdade, apontou diretamente no animal e o matou. Esse fato provocou medo e horror em Mark. Um horror baseado na ausência de elementos que o fizessem entender as ações do primo. Ele não conseguia alcançar os motivos que levavam Henry a dar tão pouco valor à vida ou as consequências dos seus atos.

Segundo Hare (1998 apud DOLAN, 2004), a psicopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por uma série de características afetivas, comportamentais e interpessoais.  As primeiras conceituações dessa patologia sugeriam se tratar de um fenômeno unidimensional, mas estudos posteriores revelaram que as medidas de psicopatia  envolvem múltiplos fatores. Mais recentemente, foi proposta uma estrutura de três fatores (COOKE & MICHIE, 2001 apud DOLAN, 2004), a saber:

1. Um estilo interpessoal enganador e arrogante, incluindo desinibição ou charme superficial, egocentrismo ou um senso grandioso de autoestima; mentira, trapaça, manipulação e enganação.

2. Experiência afetiva deficiente, com pouca capacidade de sentir remorso, culpa e empatia; uma consciência fraca, insensibilidade, afeto superficial e falha em aceitar responsabilidade pelas ações (utilizando-se de negação, desculpas etc.).

3. Um estilo de comportamento impulsivo ou irresponsável, incluindo tédio, busca contínua por emoção, falta de metas em longo prazo, impulsividade, falha em pensar antes de agir e um estilo de vida parasita (tais como, dívidas, hábitos de trabalho insatisfatórios).

O personagem do filme (Henry), apesar de ser uma criança, apresentava muitas dessas características. Fingia-se de ingênuo e querido, usava de sua inteligência e perspicácia para que os outros acreditassem nas verdades que ele criava. Fazia o mal sem um motivo aparente, provocava dor sem qualquer resquício de remorso (como os detalhes que contou do afogamento do irmão e pelas ações que fez que quase resultaram na morte da irmã). E tinha um comportamento impulsivo regido, muitas vezes, apenas pela necessidade de sair do tédio.

Por exemplo, Henry convenceu o primo a lhe ajudar a levar um boneco para uma ponte,  mas lhe escondeu que sua real intenção era provocar um acidente na estrada. Fez isso apenas por diversão. E a sequência dessa cena tem um dos diálogos mais perturbadores do filme:

Henry: Quando você percebe que pode fazer qualquer coisa, você é livre. Você pode voar. Ninguém pode te tocar. Ninguém. Não tenha medo de voar.
Mark: Você é doente.

Nesse ponto, Mark já não tinha dúvida da maldade que havia em Henry. Uma maldade que ele não compreendia, mas que estava latente, apesar de distante da percepção dos pais do menino. O stress de ter que proteger a prima, a projeção de sua mãe (representada pela mãe de Henry) e a si próprio desencadeou um transtorno em seu comportamento, o que fazia com que a sua palavra não significasse muita coisa, ainda mais tendo alguém como Henry para manipular tranquilamente os fatos. E Henry, aproveitando-se de sua insensibilidade afetivo-emocional, conseguia fazer com que as peças do tabuleiro estivessem sempre a favor de sua próxima jogada.

Em uma conversa com a terapeuta, Mark tentou entender que tipo de pessoa era Henry:

Mark: O que torna as pessoas más?
Terapeuta: Mau é uma palavra que as pessoas usam quando desistem de tentar entender alguém. Há uma razão para tudo, se nós pudermos procurar.
Mark: E se não houver uma razão? Se algo simplesmente é?
Terapeuta: Por que, Mark? Você se acha mau? Por que deixou sua mãe morrer? Você sabe que não é verdade.
Mark: E se houvesse um garoto e ele fizesse coisas terríveis porque ele gosta de fazer? Você não diria que ele é mau?
Terapeuta: Não acredito no mal.
Mark: Pois devia acreditar.

Atualmente, não há nenhum teste padrão para a avaliação de psicopatia em crianças, mas segundo uma matéria publicada no NY Times em 13/05/2012 (1), “um número crescente de psicólogos acredita que a psicopatia, como o autismo , é uma condição neurológica distinta – que pode ser identificada em crianças a partir dos 5 anos”.

A existência e a avaliação de psicopatia em crianças e adolescentes é uma questão controversa (EDENS et al , 2001 ; HART et al , 2002 ; SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004). A principal preocupação reside na confiabilidade e validade das ferramentas de avaliação em curso, a adequação do desenvolvimento dessas medidas, a presença de dimensões distintas do construto da psicopatia e, principalmente, o impacto potencialmente negativo de rotular alguém com traços de psicopatia quando o indivíduo ainda nem atingiu a maturidade.

As principais preocupações sobre a avaliação de psicopatia em jovens (DOLAN, 2004):

  • O quão confiáveis são os traços psicopáticos precocemente identificados?
  • Há medidas apropriadas para a verificação do desenvolvimento de psicopatia para utilizar em crianças e adolescentes?
  • Qual é a prevalência de psicopatia na infância e adolescência?
  • Qual é a estabilidade do desenvolvimento da psicopatia ao longo da vida?
  • Qual é o impacto de atribuir um rótulo de psicopatia na infância e adolescência?

A hipótese de que o transtorno de personalidade e psicopatia pode ser diagnosticado na infância e adolescência já provocou acirrados debates na literatura. Alguns (por exemplo, FRICK, 2002; LYNAM, 2002 apud DOLAN, 2004 ) argumentam que, teoricamente, os traços de personalidade são relativamente estáveis em toda a adolescência até a idade adulta e que existem semelhanças notáveis entre a literatura sobre a psicopatia em adultos e os estudos apresentados sobre o mesmo tema em crianças e adolescentes. Outros (por exemplo SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004) sugerem que a psicopatia como um construto tem uma alta taxa de falso-positivo na adolescência, pois este é o período de considerável mudança no desenvolvimento. Cleckley (1976 apud DOLAN, 2004) também observou que certos comportamentos transitórios que surgem na infância e na adolescência lembram traços psicopáticos, mas atenuam consideralmente depois de passada essa fase. Por exemplo, “os adolescentes são conhecidos por serem mais impulsivos e terem menos compreensão empática do que os adultos”, e se os testes não considerarem tal variável, um adolescente poderá ter uma pontuação elevada com relação a esse itens (falta de empatia e impulsividade).

No contexto do filme, as evidências da personalidade antissocial de Henry são presenciadas apenas por Mark, pois ele é uma variável passível de controle, ou seja, o primo pode manipular e criar um ambiente que negue qualquer “verdade” que ele possa tentar afirmar sobre sua natureza. A lógica da mente de Henry cria uma realidade baseada na total ausência de senso moral e ético, por isso é tão complexo tentar entender as variáveis que dão contorno e alicerçam sua personalidade. Para o menino, algumas pessoas atrapalham a construção do universo que ele imaginou, por exemplo, o irmão mais novo afastava-o da mãe, pois com a vinda dele já não era mais o centro da sua atenção. A liberdade absoluta que ele pensava ter dava-lhe o direito de agir conforme sua vontade, pois só os livres estão acima do bem e do mal. Para Henry, simplesmente, não havia o outro, já que não havia empatia.

Talvez o pior momento do filme seja quando a mãe começa a enxergar as patologias que envolvem a personalidade do seu filho. O entendimento de que aquela criança, que até então representava sua ideia de “bom filho”, era um ser tão insensível e malígno marca o início de uma espécie de morte. Por isso que qualquer avaliação que tenta atribuir um diagnóstico de algo tão complexo como a psicopatia requer, de fato, muita discussão e reflexão. Isso porque um diagnóstico desse, considerando o que se sabe até o momento dessa patologia, pode simplesmente refutar o direito a vida, ao menos, a vida em sua plenitude, os direitos que nos permitem ir e vir, ter ideais, sonhos e objetivos.

A ideia de que uma criança poderia ter tendências psicopatas permanece controverso entre os psicólogos. Para o desenvolvimento da matéria sobre Psicopatia para o NY Times (1), a jornalista Jennifer Kahn  ouviu alguns psicólogos sobre o assunto.  Laurence Steinberg, psicólogo da Universidade de Temple, argumentou que a psicopatia, assim como outros transtornos de personalidade, são quase impossíveis de serem diagnosticados com precisão em crianças, ou até mesmo em adolescentes. Para corroborar seu argumento, ele apresenta dois pontos: que, nessa fase, o cérebro ainda está em desenvolvimento e que o comportamento normal de crianças e adolescentes pode ser mal interpretado, dando margem a inferência errônea da psicopatia. Outros temem que, mesmo se tal diagnóstico pudesse ser realizado com precisão, o custo social de marcar uma criança como psicopata é muito alto, pois esse transtorno tem sido apresentado historicamente como algo que não é passível de um tratamento eficaz.  John Edens, um psicólogo clínico na Universidade  Texas A & M, alertou sobre o fato de que dificilmente haverá apoio financeiro em pesquisas que busquem identificar riscos de psicopatia em crianças. Ele observou que, diferentemente de outras patologias, como o autismo, dificilmente alguém se mostrará solidário com a mãe de um psicopata.

Já Mark Dadds, um psicólogo da Universidade de New South Wales, que estuda o comportamento antissocial em crianças, diz que ignorar as características que levam a tal diagnóstico pode ser pior. Segundo outros estudos recentes apresentados em (1), foi revelado que parece haver diferenças anatômicas significativas nos cérebros de crianças e adolescentes que tiveram uma alta pontuação no Inventário de Psicopatia de Hare Versão Jovens (FORTH et al, 2004), “uma indicação de que o traço de psicopatia pode ser inato”. Em outro estudo (apresentado em (1)), que acompanhou o desenvolvimento psicológico de 3.000 crianças durante um período de 25 anos, foi apresentado que os sinais de psicopatia podem ser detectados em crianças a partir dos 3 anos. Um número pequeno, mas crescente de psicólogos, “diz que enfrentar o problema antecipadamente pode apresentar uma oportunidade de ajudar essas crianças a mudar de rumo”. Pesquisadores esperam, por exemplo, que a capacidade para a empatia, que é controlada por partes específicas do cérebro, possa existir, mesmo que fracamente, em crianças com Insensibilidade afetivo-emocional, logo, tal aspecto poderia ser reforçado.

No filme, a mãe de Henry não tem tempo para compreender todas as nuances dessa patologia,  a única coisa que entende é que seu filho está doente. As duas crianças (Henry e Mark) são marcadas profundamente pela escolha que ela deve fazer ao final.  E, no filme, como em muitas situações cotidianas, muitas vezes não há uma escolha que seja isenta de um profundo sofrimento.

Observação: Transtorno de personalidade antissocial (TPAS) é a classificação nosográfica atual que mais se aproxima e que veio a substituir no DSM o transtorno de personalidade psicopática, este não mais incluso nas últimas edições do manual, embora os especialistas não considerem os dois diagnósticos equivalentes (DAVOGLIO et al, 2012).

Referências:

DAVOGLIO, Tárcia Rita; GAUER, Gabriel José Chittó; JAEGER, João Vitor  Haeberle  and  TOLOTTI, Marina Davoglio. Personalidade e psicopatia: implicações diagnósticas na infância e adolescência. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2012, vol.17, n.3, pp. 453-460. ISSN 1413-294X.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300014

DOLAN, Mairead; Advances in Psychiatric Treatment (2004), vol. 10.  http://apt.rcpsych.org/

FORTH, A. E., KOSSON, D. S. & HARE R. D. (2004) The Hare Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL–YV) – Rating Guide. Toronto, Ontario: Multi Health Systems.

(1) http://www.nytimes.com/2012/05/13/magazine/can-you-call-a-9-year-old-a-psychopath.html

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O ANJO MALVADO

Título Original: The Good Son
Direção: Joseph Ruben
Elenco Principal: Macaulay Culkin, Elijah Wood, Wendy Crewson, David Morse
Ano: 1993

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O Fim da Eternidade

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O Fim da Eternidade, de Asimov, apresenta os elementos que, geralmente, compõem o universo das histórias de ficção científica, que vão desde questões relativas à viagem no tempo, paradoxos temporais, infinitas versões de futuro até as angústias e sonhos que formam a natureza humana.

A história inicia-se com o pensamento assustador do personagem principal: se preciso, ele destruirá a Eternidade.  O fim da Eternidade, então, transforma-se na premissa principal do livro e serve como variável para definir o futuro e mudar o passado.

O personagem principal, Andrew Harlan, é um Técnico dentro de um contexto definido como Eternidade. Um Técnico é alguém que, dizem os mais críticos, pode modificar “com um bocejo um trilhão de personalidades”.  Então, para entender a história, tem-se que primeiro compreender o contexto no qual vivem os personagens. A trajetória de Harlan, de um homem que vivia em um determinado século no planeta Terra, a um escolhido para ser um Eterno, é permeada por uma série de descobertas. Como um escolhido para viver na Eternidade pode querer destruir seu lar?

Talvez a resposta para essa indagação esteja no fato de que um Eterno deve esquecer a Realidade na qual viveu, logo esquecer as pessoas que fizeram parte de sua vida. Há um momento na história em que é possível entender que nem todo o treinamento de Harlan foi suficiente para separá-lo da humanidade, pois, em uma dada noite, ele volta a sonhar com a mãe. Uma mãe que, provavelmente, em uma linha de tempo que ele mesmo tenha modificado, nunca tenha, de fato, tido um filho como ele, ou talvez nem tenha existido.

A ausência de um contexto, de uma raiz, marca o início do fim da Eternidade.


Crédito da Imagem: Mike Salway Photography

As questões levantadas em livros de ficção científica são interessantes porque, além de abrir nossas mentes para imaginar extremas possibilidades (em um exercício, por vezes, saudável de ampliar a imaginação), apresentam as reflexões que envolvem a natureza humana em um patamar totalmente ampliado.

Em O Fim da Eternidade, um grupo em um futuro muito, muito distante, apoiado em algo que ocorreu no passado, mas que na verdade é baseado na primeira possibilidade de um salto temporal, compreendeu que, ao modificar pequenos elementos na linha do tempo (Mudança Mínima Necessária – MMN) podia se criar um mundo melhor. Um mundo em que grandes catástrofes capazes de dizimar a vida do homem na terra seriam evitadas. Logo, a Eternidade pode ser, em vários aspectos, a salvação da Humanidade, com uma única ressalva, tira-lhe a condição que torna seus indivíduos “humanos”, ou seja, tira-lhe a capacidade de definir seus próprios caminhos, mesmo em meio a catástrofes e sofrimentos.

Harlan deixou de querer ser um Eterno quando começou a perceber que seu trabalho simples de Técnico poderia mudar drasticamente não apenas a vida de uma comunidade ou de um grupo, mas, especialmente, a vida de uma pessoa. Pensar em um indivíduo em específico marcou o fim da Eternidade.

Monet

“Ele não amava simplesmente uma garota. Amava um complexo de fatores: suas roupas, seu andar, seu jeito de falar, seus gestos e expressões. Um quarto de século de vida e experiência se passou, numa determinada Realidade, para que tudo aquilo fosse forjado.” (p. 86).

Com essa descrição, Asimov mostra, de forma poética, mas, também semelhante ao contexto da Psicologia sócio-histórica, que somos mais do que uma cadeia de DNA, somos o resultado de um complexo conjunto de fatores. Muitas vezes, não é possível definir quais variáveis tornam uma pessoa melhor ou pior, doente ou saudável, ordinária ou extraordinária, mas pode-se verificar, em um dado nível, que alguns conjuntos de fatores tendem a contribuir mais ou menos para uma dada situação.

O que diferencia um indivíduo do outro, neste aspecto, seriam (em grande parte) os registros (psicológicos) que ele constrói a partir do seu contato com o mundo. Assim, segundo Aguiar (2007), “o psicológico se constitui, não no homem, mas na relação do homem com o mundo sociocultural”. Acrescenta ainda que “a realidade objetiva não depende de um homem em particular; ela preexiste e, nessa condição, passará a fazer parte da subjetividade de um homem em particular”.

“Ela era inteiramente diferente aos seus olhos agora. Não era absolutamente uma mulher ou um indivíduo. Era, de repente, um aspecto de si mesmo. Era, de um modo estranho, e inesperado, uma parte de si mesmo.” (Harlan, p. 72)

Ao iniciar esse tipo de pensamento, a sua função de Técnico começa a ser questionada, especialmente quando ele passa algum tempo com um Mapeador de Vida, que mostra-lhe como acontecem as modificações feitas nas linhas de tempo de forma a criar novas Realidades.

“Todo homem é uma perda irreparável ao seu mundo. Então você trabalha em cima daquilo. Você vê o que aconteceria à Realidade se cada um daqueles homens vivesse, e também – pelo Tempo! – se diferentes combinações de homens vivessem!” (p. 82).

Um dos indivíduos da Eternidade, que exercia a função de Computador, disse uma vez para Harlan que “os homens se identificavam por um tolo desejo de um lar no Tempo” (p. 82). Esse “tolo desejo” talvez fosse a forma que cada indivíduo tinha de manter-se único no Tempo, ainda que a Eternidade buscasse uma homogeneização.

Crédito da Imagem: ESO

Quando um Técnico criava uma nova Realidade, através de uma ação mínima em algum ponto do Tempo, poderia, como disse um dos contestadores da Eternidade, provocar a perda de grandes obras de arte, de grandes pensadores. Então, criava-se um mundo mais domesticado, no que tange às grandes catástrofes, mas, talvez, menos inventivo ou inventivo de uma forma diferente. E quem são os indivíduos da Eternidade para saber que tipo de diferença é melhor? Então, voltam-se às questões universais sobre livre arbítrio, liberdade etc.

Todas essas descobertas e mais algumas certezas que Harlan pensava ter a partir de determinadas observações  deixaram-no com uma falta de vontade de mover-se. Era como se a única coisa que lhe parecesse interessante fosse a “paz harmoniosa da não-Realidade”.  Ele já havia visto um dos Aprendizes sucumbirem, ele sabia que “lutar contra uma doença do espírito era como debater-se em areia movediça” (p. 137).

O amor, a incerteza, o medo e a esperança marcaram o fim da Eternidade e, por sua vez, o início da Infinidade. Ser apenas uma “probabilidade muito baixa” em meio a infinitas bifurcações de tempo/espaço parecia ser uma alternativa muito perigosa, mas, ainda assim, mais coerente do que sucumbir-se à ideia de fabricar condicionais para o estabelecimento de Realidades Desejáveis.

A questão que uma das mulheres da Eternidade apresentou para tentar refutar os condicionais programados pautou-se na seguinte premissa: se a humanidade souber que a Terra significa “uma prisão cercada por uma infinidade de liberdade” muito provavelmente definhará e desaparecerá, pois “haverá uma perda de objetivo, um senso de futilidade, um sentimento de desesperança que não poderão ser superados”. E, para completar, ela afirmou:

“Qualquer sistema parecido com a Eternidade, que permite ao homem escolher seu próprio futuro, terminará optando pela segurança e pela mediocridade. […] O número de Realidades é infinito. O número de qualquer subclasse de Realidades também é infinito. Por exemplo, o número de Realidades que contêm a Eternidade é infinito; o número em que a Eternidade não existe é infinito; o número em que a Eternidade existe, mas é abolida, também é infinito.” (p. 250).

Por mais circular que seja esse pensamento, ele pode nos fazer refletir sobre o conceito de liberdade e sobre a real existência dos elementos que o definem, especialmente se considerarmos as formas como ele tem sido empregado ao longo dos séculos.   Cada vez que conceitos como infinito, eternidade, liberdade estão presentes em uma discussão, a análise torna-se muito complexa, pois sem um contorno, uma finitude ou um cárcere, parece-me que tal análise perde o sentido, ao menos um sentido que a minha categoria (humana) possa ser capaz de apreender.

Sobre Isaac Asimov

Nasceu em Petrovich, Rússia, em 1920. Naturalizou-se norte-americano em 1928. Além de escritor, foi Professor de Bioquímica na Universidade de Boston, EUA. Escreveu e editou mais de 500 livros (a série Fundação, Eu, Robô, O Homem Bicentenário). É mundialmente conhecido como autor de Ficção Científica, mas escreveu sobre vários outros gêneros (tramas de detetive e mistério) e até livros didáticos. Em 1966, a trilogia Fundação foi eleita a melhor série de ficção científica e fantasia de todos os tempos, superando concorrentes renomados como O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, e John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO:

O FIM DA ETERNIDADE

Autor: ASIMOV, Isaac
Ano: 1955
Tradução: Susana Alexandria

REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Wanda M. Junqueira, Consciência e atividade: categorias fundamentais da Psicologia Sócio-Histórica. In: BOCK, Ana M. B.; GONÇALVES, Maria G. M.; FURTADO, Odair (orgs). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2007. págs. 95 – 110.

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Tecnologia, Humanidade e (R)Evoluções

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Desde a invenção da roda e das inúmeras possibilidades surgidas a partir dela, a tecnologia surpreende, intriga e provoca as mais diversas discussões. Se há alguma coisa que a história nos mostrou de forma contundente é que dificilmente conseguimos impedir que o avanço tecnológico seguisse seu curso.  Foi assim na Revolução Industrial, com as máquinas de teares substituindo o trabalho manual, é assim agora com a tecnologia permeando nosso cotidiano de forma tão profunda que é quase impossível desvencilhar a pessoa da técnica que a envolve.

Esse não é mais um texto falando dos perigos que tal “invasão” pode provocar, ou talvez seja. Mas, independente do que penso, ou dos infindáveis discursos sobre o “impacto” da tecnologia na sociedade e nas relações humanas, a trajetória do processo de “destruição criadora” (termo cunhado pelo economista Joseph Schumpeter) tende a seguir seu caminho. Por quê? Simplesmente porque é possível. Se é possível que uma grande empresa crie um produto que agregue informação ao que vemos, ou melhor, que vá além daquilo que vemos, então isso será feito. E mesmo que uma legião de pessoas crie teses e artigos sobre o mal que isso pode provocar nas relações humanas, na capacidade de atenção/foco/concentração, no nosso discernimento entre o que é real de fato e o que é real em potência, ainda assim, a inovação será efetivada, pois há meios para isso. Se há meio, é porque além da técnica necessária para que um produto seja desenvolvido, também há nicho de mercado, ou há poder suficiente para transformar aquilo que ainda nem existe em uma necessidade pungente.

 

Há inúmeras questões levantadas a partir da intensificação do uso de aparatos tecnológicos no cotidiano. Há pais preocupados se as várias janelas abertas na tela durante a execução de uma tarefa escolar pode prejudicar a atenção do filho, assim como alguns cientistas cognitivos também discutem se o uso de óculos que agregam informação pode tirar a atenção de um dado tempo/espaço, de forma a que o indivíduo, aos poucos, perca o controle dessas variáveis (tão humanas).

Houve um tempo que memorizávamos com facilidade o telefone de um amigo, da nossa mãe, do chefe, agora é difícil encontrar uma pessoa capaz de citar cinco números de telefone. Isso ocorre porque, de certa forma, a tecnologia nos permitiu criar uma memória externa. Então, muito do que lembramos, do que sabemos, está numa espécie de HD externo. Quantas particularidades podem ser guardadas de uma pessoa, de um objeto; quantos números podem ser associados, sem erro, sem dificuldade. Mas, há sempre algum romântico lembrando-se do tempo (nem tão distante assim) em que ele sabia do número do telefone fixo da casa de sua primeira namorada, ou dos rostos e do jeito dos seus colegas de infância mesmo tendo apenas uma foto amarelada e distante da turma. Essas lembranças nos definem? Há alguma diferença em carregar uma lembrança em um HD externo e em nossa mente? Se podemos tirar fotos com celular, postá-las e marcar pessoas na imagem em uma rede social, então para que o esforço em tentar guardá-las na mente? (ou no coração, como diria o romântico).

Estamos cercados de informação, ou melhor, elas explodem na nossa face. Podemos ter respostas para nossas mais complexas indagações. Como? Google, Wikipédia, Yahoo.respostas (Quem nunca?), bibliotecas digitais das melhores instituições de ensino (MIT, Yale). Nunca tivemos tantas possibilidades de respostas, mas (agora vou ser extremamente brega), nunca tivemos tantas dúvidas. E esse nunca é só um recurso linguístico para dar à sentença certa dramaticidade, pois, obviamente, não posso sustentá-lo.

Em tempos de wearable tech (“tecnologia feita para vestir”), podemos sair por aí com nossos óculos agregados a contextos/informações e concluirmos o inevitável, ou seja, que espaço/tempo não são constantes absolutas, mas variáveis que mudam a partir de determinadas perspectivas. Há, ainda, pesquisadores e empresas que procuram contextualizar os dados dispostos nas páginas da web de forma a criar sentido dentro de determinados universos (entretenimento, trabalho, estudo), assim podemos ter respostas mais eficientes para as nossas buscas quase infinitas.

As inovações tecnológicas são rápidas, inúmeras e constantes. Parece que sempre foi natural trocarmos de telefone a cada ano, ou as fotos sempre foram marcadas em um ambiente que agrega família, amigos e outras 500 pessoas que simplesmente estão por ali, vinculados a um dado contexto, a um tipo de relacionamento que pode advir de uma regra de transitividade, de uma necessidade profissional ou, simplesmente, de algum tipo de carência.

Não sei se informação substitui experiência, nem se simulação é equivalente à vivência. Mas, sei que vivo em um mundo repleto de tecnologias, muitas delas permitem que cirurgias sejam realizadas e possam salvar vidas, facilitam nosso trabalho e nos libertam de momentos solitários, mas, também, exigem cada vez mais um senso de atenção diferenciado, uma nova complexidade no campo da percepção. Talvez nos adaptemos a isso rapidamente, e aquele romântico que há em nós, do tipo melancólico, saudoso de uma carta escrita à mão, seja apenas mais uma memória armazenada em uma nuvem virtual. Talvez o Homem do Subsolo de Dostoiévski, ao final, tivesse razão: “em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia“.

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Meu Primeiro Amor: a morte e o processo de luto na infância

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O filme é apresentado através do olhar de Vada (Anna Chlumsky), uma menina de 11 anos que mora com o pai e uma avó doente em uma casa-funerária.  A estreia do filme foi em 1991, um ano após o sucesso estrondoso de Esqueceram de Mim, o filme que transformou o menino Macaulay Culkin em um astro da indústria do cinema, apesar de ter apenas 10 anos.

E esse fato ocasionou uma das questões mais inquietantes na época do lançamento do filme: como levar crianças ao cinema para assistir ao menino sensação do momento ser morto por picadas de abelhas? Na época, muitas discussões vieram à tona, com partipação de psicólogos e pais, sobre o quão um filme como esse poderia afetar as crianças.

Mas, há uma forma ideal de falar sobre a morte com crianças? Há alguma idade adequada para tratar de um assunto tão complexo? A percepção da morte de um adulto por uma criança é diferente da percepção que ela terá da morte de outra criança?

Talvez o grande erro de qualquer linha de raciocínio que busque responder a essas questões está na apresentação de respostas generalizadas, considerando crianças em dada faixa etária como se fossem um único bloco, como se cada bloco sentisse de uma forma semelhante.

Machado(2006) diz que a forma como uma criança vive o luto e faz uma representação interna da morte varia de acordo com a idade, a personalidade, o estágio de desenvolvimento cognitivo e psicossocial, a intensidade com que ela vivencia a situação (proximidade, por exemplo), e, ainda, com aspectos mais gerais que tem relação com a cultura em que está inserida.

A menina do filme, Vada, é uma criança solitária, que se sente culpada pela morte da mãe (que morreu devido a complicações no parto), que não sabe como lidar com os corpos que são embalsamados no porão de sua casa (onde funciona a funerária) e que tem como único amigo, um menino tímido chamado Thomas J. (Macaulay Culkin).

Tendo como base os estágios de desenvolvimento da criança propostos por Piaget, Torres (2002) diz “que a criança só concebe a morte como um fenômeno irreversível a partir do estágio das operações concretas, mais ou menos aos sete anos de idade”. E Machado (2006) acrescenta que “somente entre os nove e os doze anos, na transição da infância para a adolescência, que se interioriza a morte como um fenômeno universal, irreversível e comum a todos os seres vivos”.

Por ter dificuldade em lidar com a ideia da morte, apesar de viver em um ambiente onde essa temática está presente de forma profunda, Vada aparece constantemente no consultório de um médico da família, alegando que está com alguma doença incurável. O pai, que vive em um mundo à parte desde a morte da esposa, não percebe a solidão e o medo da filha, especialmente, a sua insegurança perante a finitude da vida. Uma vida cercada por doenças e perdas.

“Cerco-me de pessoas que acho intelectualmente estimulantes.” (Vada)

Thomas J., ao contrário dos adultos do filme, conhece a menina, entende a dor que ela sente, sabe até como a ideia da morte a atinge. Mas é pequeno demais para transformar tudo isso em palavras. Algumas crianças (como alguns adultos) são mais sensíveis a dor dos outros. Essa sensibilidade pode refletir em pequenos gestos de grande impacto.

A amizade entre os dois deu a Vada a oportunidade de ter uma infância mais feliz, mesmo que a tragédia que se seguiu tivesse força suficiente para transformá-la para sempre.

De todas as cenas do filme, a mais “fofa” é a volta do lago (depois do beijo embaixo do Salgueiro), quando Thomas J. tem coragem de mostrar seus sentimentos, mesmo depois que Vada disse que se casaria com o professor de literatura (Sr. Bixler).

Vada?
O que é?
Pensaria em mim?
Para quê?
Se não casar com o Sr. Bixler.
Acho que sim.

As cenas que se seguem após esse último encontro fizeram muitos pais terem que explicar aos filhos, muitas vezes cercados por um contexto em que a morte parece ser uma realidade tão distante, que crianças também podem vir a morrer.

No início do filme, Vada rouba um dinheiro da maquiadora dos defuntos (que depois se torna noiva de seu pai) para fazer um curso de poesia com o prof. Bixler. No entanto, sua primeira tentativa de fazer um poema resultou em um verso sobre sorvetes. Então, o professor sugeriu que ela tentasse se expressar através de sua alma, não apenas através de coisas concretas e cotidianas.  Somente ao final do filme, depois de alguns dias da morte do Thomas J., que ela conseguiu finalmente fazer uma poesia que mostrava, de fato, o que sentia.

“Salgueiro chorão com lágrima escorrendo
Por que você chora e fica gemendo?
Será porque ele lhe deixou um dia?
Será porque ficar aqui não mais podia?
Em seus galhos ele se balançava
E ainda espera a alegria que aquele balançar lhe dava
Em sua sombra abrigo ele encontrou
Imagina que seu sorriso jamais se acabou
Salgueiro chorão pare de chorar
Há algo que poderá lhe consolar
Acha que a morte pra sempre os separou?
Mas em seu coração pra sempre ficou.”

Para Baker et al (1992), o processo do luto e do entendimento da morte consiste na vivência de etapas psicológicas que progressivamente visam superar a dor. A primeira etapa envolve a compreensão do que é a morte, suas características e a capacidade de reconhecê-la no cotidiano.  Nesta fase, é importante que as crianças se sintam autoprotegidas, ou seja, elas precisam compreender que o fato de uma pessoa morrer não significa, necessariamente, que elas ou suas famílias estejam em perigo imediato.

A fase intermediária envolve a compreensão de que a morte é uma realidade, logo é preciso aceitar as emoções que vêm junto com tal fato. Assim, as memórias e as conexões com a pessoa que partiu não é um mal a ser evitado, mas uma necessidade que advém da vivência do luto. Assim, não é uma atitude coerente dar às crianças a falsa esperança de que um ente querido pode “voltar” depois da morte ou, ainda, simplesmente começar a desestimular a conexão da criança com a pessoa que partiu (BAKER et al., 1992). Esta fase mostra uma grande diferença na maneira que crianças e adultos lamentam a perda.  Isso porque a maioria dos adultos, por entender o conceito da morte, não tem que gastar tanto tempo para descobrir o que aconteceu, ainda que o desaparecimento da pessoa de forma brutal do seu meio seja um fato impactante, mas a criança ainda terá que processar a ausência da pessoa sem, muitas vezes, ter a vivência e os elementos necessários para fazer uma representação disso.

A última fase deste processo envolve uma reorganização do sentido de identidade e das relações com os outros e com o meio ambiente. A criança terá que aprender a investir emocionalmente em si mesma e na relação com os outros, sem que o medo de perder alguém para a morte venha a ser um empecilho. Nesta fase, a criança bem ajustada ainda se lembra da pessoa amada, mas sem o medo excessivo que os outros também irão morrer, logo é capaz de lidar com essas lembranças e com as tristezas que as acompanha (BAKER et al., 1992).

Assim, voltando às questões iniciais sobre a vivência do luto na infância, talvez a melhor forma de lidar com uma criança que perde alguém é, primeiramente, estar disposto a conhecê-la, entender, mesmo que seja aos poucos, como ela percebe o mundo e como as coisas desse mundo a afetam. Cada um de nós tem uma lembrança relacionada à morte, e cada um de nós tenta encontrar formas de lidar com ela.  Para muitos, isso pode levar a lugares profundos e/ou sombrios, para outros pode ser um caminho menos tortuoso, mas, em qualquer situação, nunca parece ser uma estrada fácil para se percorrer sozinha.

Referências:

BAKER, J. E., SEDNEY, M. A., & Gross, E. Psychological tasks for bereaved children. American Journal of Orthopsychitray, 62, 105-116, 1992.

MACHADO, A. Como lidam as crianças com a morte/Luto. Revista no. 67 sinais vitais, Julho, p. 45-50, 2006.

TORRES, W. O Conceito de morte em crianças portadoras de doenças crônicas. Psicologia: teoria e pesquisa. Mai-Ago, vol. 18, n.2, p. 221-229, 2002.

FICHA TÉCNICA DO FILME

MEU PRIMEIRO AMOR

Título Original: My Girl
Direção: Howard Zieff
Roteiro: LauriceElehwany
Elenco Principal: Anna Chlumsky, Macaulay Culkin, Dan Aykroyd, Jamie Lee Curtis
Produção: Brian Grazer
Fotografia: Paul Elliottt
Trilha Sonora: Edgar De Lange, James Newton Howard

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O Homem de Aço: a face obscura do Superman

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O novo filme do Superman, intitulado O Homem de Aço, mescla cenas de ações com imagens eloquentes que deslizam lentamente sobre a tela dando ao contexto uma conotação quase espiritual.

Nesse filme, o Superman é um ser angustiado, em fuga, que não sabe o que ou quem é, nem de onde veio, e que está em constante retorno às suas memórias da infância, da adolescência e até daquelas que ele nem consegue identificar em qual tempo ou espaço existiram. Assim, o que diferencia esse Superman de tantos outros que já assistimos talvez sejam os sentimentos (tão humanos) de raiva, frustração e insegurança que o acompanham desde a infância.

Enquanto filmes como “Os vingadores” tinham nos elementos cômicos alguns dos seus melhores momentos, um recurso até mesmo usado no sombrio Batman (seja na comicidade mórbida do Coringa, ou no tom engraçado e paternal do seu fiel mordomo Alfred), em o Homem de Aço, a ausência desse tipo de recurso dá ao filme um diferencial ousado.

Nos outros filmes do Superman, aqueles em que o herói-alienígena ainda usava uma cueca sobre a calça colante, o personagem tinha um ar mais ingênuo, politicamente correto, com um senso moral irrepreensível, alguém que parecia ser um ideal humano. Talvez bem diferente do Super-Homem imaginado por Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra”, um conceito que surgiu na medida em que “o homem se tornou uma coisa que tinha de ser superada”, pois este “é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo”.  Mas, do que estava falando mesmo? Ah, sim… dos outros filmes do Superman.

Pois bem, o novo filme tem lá suas mudanças, mas ainda assim é um filme do Superman. Logo, mesmo que ele já consiga admitir que tenha vontade de esmurrar os moleques que o tornaram o adolescente de Kansas que mais sofreu bullying, ou, em um dado momento, tenha estraçalhado – de fato – um pobre objeto inanimado (não estou nomeando-o aqui para não estragar a surpresa) evitando, com isso, machucar um bêbado insolente, ainda assim, é um jovem íntegro, com vários preceitos morais, criado por uma pacata família do Kansas.

Já tivemos uma apresentação magnífica do Jor-El, feita por Marlon Brando, em Superman – O filme (de 1978), mas nunca tivemos (já estou esperando um comentário dizendo: você esqueceu de…. ) uma reconstituição tão surpreendente do planeta Krypton. Um planeta mais avançado tecnologicamente que a Terra e que, por isso mesmo, sofreu algumas das nefastas consequências que acompanham determinadas inovações. A destruição de Krypton teve relação com duas situações: o excesso da extração de seus recursos naturais e a degeneração do meio social devido ao uso da engenharia genética para a criação de um novo modelo de vida.

Em Krypton, cada pessoa nasce com UM PROPÓSITO. E isso poderia ser uma coisa positiva, dado o fato de que a maioria de nós passa toda uma vida a procura de um propósito, de um sentido. Mas por que em Krypton, Jor-El (o eterno gladiador Russel Crowe) e sua esposa vão de encontro a essa premissa e dão ao seu filho, literalmente, um mundo de dúvidas? Sendo bem ingênua, diria que talvez seja porque não há ser humano (ou kryptoniano) que suporte viver num ambiente totalmente programado,  direcionado pelos preceitos de uma lógica que tem apenas doisstatus: zero ou um (verdadeiro ou falso, bom ou mau, professor ou médico etc ).

Então, nesse mundo de dúvidas que é a Terra, o Clark adulto, além da sua mãe Martha, pode contar com a Lois, que é apresentada nesse filme como uma mulher com a inquietação  e curiosidade peculiares desse personagem, porém mais proativa e independente.

Estamos no século XXI, logo seria complicado nos depararmos com uma Lois que não reconhecesse o Clark por causa dos óculos, ou que gritasse a cada cinco minutos para que ele viesse salvá-la do perigo (ops.. isso é o Super Mouse, mas está valendo). Lois, nesse filme, consegue interagir com um programa de computador com consciência (sem detalhes rs), guardar em sua memória fantástica um plano extraordinário e… Enfim, é um filme de superheróis, e isso não pode ser esquecido. Você só pode aceitar um alienígena que voa, que tenha visão de raio-x e entorta aço ou qualquer coisa que ele queira, se estiver embuído de um espírito imaginativo e permeado por licença poética rs.

Há no filme uma tentativa de aproximar a figura do Superman (cujo S significa Esperança no dialeto de Krypton) ao Messias do Cristianismo. O que é comum em muitas histórias de heróis da ficção científica. Talvez em O Homem de Aço essa proximidade ficou ainda mais evidente, pois há uma série de elementos na tela que remete a isso, seja nas constantes apresentações do Superman de braços abertos (como se estivesse na cruz), seja no fato de ter um pai que existe além desse universo.

Inclusive, em um dos momentos de decisão de Clark, no qual ele precisa ir contra o seu pai da Terra e atender a sua consciência, que é uma mescla da consciência de seu pai de Krypton, é mostrada na tela a clássica imagem de Jesus no Jardim de Getsêmani na noite que antecedeu a traição que ele sofreu por um dos seus discípulos.


Talvez, metaforicamente, o diretor quisesse transmitir a ideia de que ao colocar-se como um defensor da humanidade, o Superman também pudesse ser traído por ela. E é esse o embate principal do filme, o Clark que é tão humano, mas paradoxalmente, tão deus, para salvar a Terra, teria que ir contra aquele que era, de certa forma, seu semelhante, apresentado na figura do General Zod (um homem com um propósito).

O conjunto de elementos que permeia a personalidade do Superman fez nascer uma expressão, que parece ter sido introduzida em 1954 pelo Dr. Fredric Wertham em seu livro Seduction oft he Innocent: complexo de Superman. Tal complexo advém de um “sentimento doentio de responsabilidade, ou na crença de que todos os outros não têm a capacidade para executar com êxito uma ou mais tarefas” 1 . É como se a pessoa tivesse a necessidade constante de “salvar” os outros, já que tem os meios mais concretos para isso (ao menos, em sua concepção).

Um dos pontos mais bonitos do filme é a imagem do Superman a partir do olhar de Jonathan Kent (Kevin Costner). Como um pai amoroso, ele quis proteger seu filho da complexidade que seria revelar sua natureza tão diferente e, de certa forma, tão superior fisicamente à humana. Pela primeira vez em um filme do Superman, essa situação estranha de ter um homem em nosso meio que voa e que tem uma força descomunal é apresentada de forma tão sensível.  A existência de alguém assim poderia representar a ruptura dos mais profundos conceitos que sustentam e definem a humanidade.

Ao ver seu filho brincando de ser um herói, uma brincadeira que faz parte do universo de tantas crianças, ele começa a temer o inevitável, ou seja, parece que aquele indivíduo já nasceu com um propósito. Logo, não haveria meios capazes de provocar uma mudança em sua natureza, pois os poderes que ele possui não existem a partir de uma escolha, mas de uma condição. Não sei se essa conclusão é assustadora ou libertadora, mas, acredito que seja, ao menos, inquietante.

Nota:

1 http://en.wikipedia.org/wiki/Superman_complex


FICHA TÉCNICA DO FILME

O HOMEM DE AÇO

Título Original: “Man of Steel”
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David S. Goyer, Kurt Johnstad
Criadores do Superman:Jerry Siegel& Joe Shuste
Elenco Principal: Henry Cavill, Amy Adams, Russell Crowe, Michael Shannon, Diane Lane, Kevin Costner, Laurence Fishburne.
Produção: Charles Roven, Christopher Nolan, Deborah Snyder, Emma Thomas
Fotografia: Amir M. Mokri
Ano: 2013

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As Intermitências da Morte

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O livro “As intermitências da morte”, de José Saramago, brinca (acredito ser esse o verbo mais adequado a esse contexto), de forma irônica e romântica, com uma temática aparentemente pesada e complexa. A morte é, ao mesmo tempo, o tema e a personagem principal do livro. E a história começa quando, em um pequeno país, depois da comemoração do final de mais um ano, acontece o seguinte fato:

“No dia seguinte ninguém morreu.” (p. 11)

Foto do site: Worlds Beyond Rittman

E o fato de ninguém morrer dá início a uma espécie de caos no mundo, ao menos no pequeno mundo formado por aquele distante (?) país.  Mas, como assim? Por que o desejo mais antigo da humanidade, o da vida eterna, pode causar tanto horror, medo e desassossego?  Talvez porque um dos poucos sentidos da vida seja a certeza da sua brevidade. Sem essa certeza, o que temos? Sem a morte, o que somos? Por que motivo teríamos a necessidade de perpetuar nossos genes gerando mais crianças para superlotar um mundo de imortais?

Com o fim da morte, algumas instituições foram afetadas:

– As companhias de seguros precisavam se reinventar, criando uma nova forma de seguro de vida, já que a vida não tinha mais fim.
– Os agentes funerários perderam sua única fonte de renda.
– Os asilos teriam que ser multiplicados em todo o país, dado o fato de que as pessoas envelheciam, ficavam doentes e inválidas, ainda que não morressem.
– Os hospitais passaram a existir como depósito de moribundos.
– E a Igreja perdeu sua principal premissa de sustentação: a promessa da ressurreição.

Naqueles dias que ninguém morria, a manchete que perdurava nos principais jornais era:

“E Agora Que Irá Ser De Nós” (p. 23)

Foto: Tiquetonne2067

A ironia estava em entender que aquilo que pareceu ser nosso maior mal era também o nosso único norte. Parece que a morte nos direciona ou, simplesmente, estamos acostumados demais à brevidade para suportar uma existência sem fim. Assim, uma angústia perpassava o coração daqueles que participavam da reunião dos delegados das religiões:

“a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido.” (p. 35)

E um novo axioma parecia se formar na mente das pessoas, ainda que a maioria tentasse ignorá-lo: “se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido” (p. 36).

Com esse condicional, Saramago trouxe à tona a tormenta vivida por Raskólnikov, personagem de Dostoiévski em Crime e Castigo, que começou a ter delírios de grandeza e a imaginar-se um Napoleão, alguém que tudo podia, pois não fazia parte da maioria ordinária cuja sina não era relevante e que tanto fazia existir ou não existir. Assim, em meio a possibilidade da vivência de um aglomerado de pessoas sem leis morais, o medo começava a se alastrar em cada lar do pequeno país.

Em um futuro sem morte, mas repleto por um presente de doenças e de gente presa na linha tênue entre o existir e o não existir, começaram os clamores pelo direito de morrer.

(velho doente): “Não quero água, quero morrer.”(filha): “Lembre-se de que a morte acabou”, (velho doente): “desde que o mundo começou a ser mundo sempre houve uma hora e um lugar para morrer”. (p. 39)

Esse dilema provocou o início de uma jornada rumo à fronteira do país para depositar (do lado de lá) os corpos quase sem vida de seus entes queridos, porém doentes demais para terem alguma existência digna. O velho doente apresentado anteriormente foi o primeiro a atravessar a fronteira, carregado pelos filhos. Nesse outro país, o velho conseguiu, enfim, descansar da vida, que a ele já parecia ser um fardo imenso, como também o era para sua família. Quando os filhos voltaram ao seu país, à sua casa (sem o pai que agora jazia enterrado depois da fronteira), a família tinha dúvida se tal ato seria encarado como um crime ou como um suicídio.

Assim, em meio a “uma sociedade dividida entre a esperança de viver sempre e o temor de não morrer nunca.” (p. 71) começavam a surgir os mais metafísicos argumentos:

“Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.” (o espírito que paira sobre a água do aquário, p. 73)

“As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie.” (aprendiz de filósofo, p. 73).

E nada é mais Saramago do que a discussão entre um espírito que paira sobre a água do aquário e um aprendiz de filósofo. A morte de cada um parece ser o reflexo de uma morte maior, aquela que existe enquanto existir o universo. Porém, talvez ainda haja uma maior que essa, mas vou parar por aqui, porque esse é um típico argumento ad eternum, longo demais para minha brevidade.

“o quase e o zero, que é a maneira plebeia de dizer o ser e o nada” (p. 78)

Os economistas também se juntaram à discussão da problemática que era viver em um mundo sem morte. Com suas tabelas e gráficos, fizeram estudos prospectivos apocalípticos sobre como o país iria sucumbir, em pouquíssimo tempo, aos perigos da eternidade. Não haveria, logicamente e matematicamente, espaço para tantos e tantos eternos. Os países fronteiriços também tinham se armado de forma a resistirem à invasão dos seus vizinhos sedentos de morte. A máfia, pois sempre há quem se beneficia em meio à desgraça, estava com toda uma ação orquestrada para vender morte na obscuridade, ainda que isso também fosse um acordo silencioso com o Primeiro Ministro. Os políticos (desde sempre) fazem acordos com o crime organizado na tentativa de perpetuarem um suposto poder.

“se não voltarmos a morrer não temos futuro.” (primeiro ministro, p. 86)

Assim, finaliza a primeira parte do livro, em que a temática girava em torno da morte, e inicia-se a fase da morte como personagem de carne e osso (em princípio, só osso).

“A morte, em todos os seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher.” (p. 128)

Fonte: Getty Images

A morte mesmo anunciou seu retorno de forma esfuziante no principal jornal do país. E, enquanto todos festejavam o retorno da finitude do corpo, o presidente de um grupo, que estava mais animado que a maioria, discursava sobre tão apoteótica notícia. Mas, a morte (como a vida) também é feita de estranhas ironias:

“Às vinte e três horas e cinquenta minutos o presidente teve um infarto do miocárdio. Morreu com a última badalada da meia-noite” (presidente da associação das funerárias, p. 105)

E, assim, conhecemos a morte (em minúsculo mesmo porque ela tem ímpetos de ira se escrevemos seu nome de outra forma) e começamos a acompanhar sua complexa trajetória em existir como morte em um mundo de vivos, em ser tão temida, ainda que, aparentemente, seja tão necessária, e ser tão silenciosa perante toda a dor que a sua existência provoca.

“porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de-dizer diante da maior dor humana.” (p. 126).

A morte de Saramago é uma figura angustiada, repleta de dúvidas, com vaidades e remorsos extremos e que pouco sabe sobre o sentido das coisas (como muitos de nós).

Pintura: Vincent Van Gogh

“não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto” (p.146)

Essa morte, tão despida e só, que cria um sistema de cartas de aviso ao futuro defunto, na inocência de apaziguar a dor de quem parte, achando que, com isso, a pessoa teria tempo para pedir perdão, perdoar, pagar dívidas, redimir-se, vê-se presa a um estranho acontecimento: certo dia, uma carta não chega ao destinatário e quem devia morrer, não morre.

E inicia-se uma série de dúvidas (tão humanas) diante de uma morte tão frágil, por exemplo, “… quando nos perguntamos se somos realmente aqueles que fomos, ou se algum gênio da lâmpada não nos irá substituindo por outra pessoa a cada hora que passa.” (p. 151). Quem nunca?

E, então, a morte começou a observar mais de perto esse homem que não morria, a quem o bilhete avisando seu fim breve não conseguia alcançar. Deixou seus afazeres de morte nas mãos de sua gadanha silenciosa e pôs-se a segui-lo. Afinal, por que um violoncelista, de 50 anos (que deveria ter morrido aos 49 anos), que vivia com um cão, em uma casa simplória, desafiava a ordem natural das coisas? Tirava o pouco do sentido que tinha a morte (e a vida).

Pintura: Vincent Van Gogh

“Este homem está morto, pensou, todo aquele que tiver de morrer já vem morto de antes” (morte, p. 153)

“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (p. 154)

“ele se move e agita em todas as direções sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável humanidade.” (a morte, p. 163)

Ela (a morte) nunca entendeu bem as pessoas, sabia que sua existência dependia da existência delas. Que o fim delas significaria seu fim. Como muitos de nós, ela também tinha dúvidas sobre as instâncias superiores que deveriam direcionar todas as coisas. Alguns conceitos humanos, como a liberdade, a esperança e a caridade, escapavam-lhe, pareciam ser apenas artifícios criados para que a vida, aparentemente tão cara para a maioria, pudesse ter algum tipo de sentido.

E, enquanto buscava compreender a existência sem fim do violoncelista, “a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico respirava.” (p. 169). Com ele (mas sem que ele a visse), ouviu pela primeira vez, o brevíssimo estudo de Chopin, opus 28, número nove, (http://www.youtube.com/watch?v=cKeley78hM4).

“o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma coisa ainda tivesse ficado por dizer.” (reflexão da morte, p. 171)

Há em consultórios psiquiátricos, em clínicas terapêuticas, em palestras filosóficas, em ensaios antropológicos e sociológicos, uma busca constante do sentido da felicidade. Esse sentido, muitas vezes, vem camuflado como pílulas mágicas, às vezes, como respostas rasas, outras, como argumentações profundas. Mas a morte, justo ela, alcançou em algum nível essa sensação ao ouvir Chopin, numa casa velha, diante de um homem solitário e de um cão adormecido.

“À morte pareceu-lhe sentir um brusco aperto…, uma agitação súbita dos nervos, podia ser o frémito do caçador ao avistar a presa, quando a tem na mira da espingarda, podia ser uma espécie de obscuro temor, como se começasse a ter medo de si mesma.” (p. 188)

A morte, agora com corpo e rosto de mulher (uma necessidade que adveio da sua pesquisa sobre a real natureza do violoncelista), passou de observadora a observada:

“bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo sentido último, se é que tal coisa existe num verso, continuamente escapa ao tradutor. E finalmente porque sua figura isolada, ali no camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta.” (violoncelista ao ver a morte, p. 191).

E poucas vezes alguém descreveu tão bem a solidão de uma mulher, ainda que essa mulher fosse a morte. Talvez nessa época, cercados de tantos apetrechos eletrônicos e de tantas possibilidades de criar vínculos virtuais, haja uma quantidade maior de pessoas habitando o nada, rodeada de vazio. Aqueles cujas causas primeiras de suas lutas (ou discursos) não são a temática da luta em si, mas a possibilidade de serem “curtidos”, “compartilhados”, “reblogados” ou, simplesmente, “vistos”.

Mas, um livro que começa com essa dedicatória – “a Pilar, minha casa” (Pilar é esposa do Saramago), – teria que ter um romance à altura. A morte e o violoncelista não conversam apenas, têm um embate cheio de segundas e terceiras intenções, como são os embates entre homens e mulheres desde que o mundo é mundo:

“Tem medo de mim, perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca coisa sentir-se inquieto na minha presença, Inquietar-me não significa forçosamente ter medo, poderá ser apenas o alerta da prudência, A prudência só serve para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba por se render, Espero que não seja o meu caso, E eu tenho certeza de que o será.” (diálogo – morte e violoncelista, p. 194 – aos que não estão acostumados com a escrita do Saramago, a separação do diálogo é feita pela vírgula e a letra maiúscula no início de cada sentença mostra que a fala passa de um personagem para o outro)

Para a morte do Saramago, apegar-se a alguém teve como consequência ficar ainda mais exposta, parece mesmo que, apesar de um corpo e um rosto, ela ficou mais despida do que quando era um esqueleto nu. Parece que não há muita diferença entre aqueles que são pedaços de vidas e esses outros, que são pedaços de morte.

“No seu quarto do hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho. Não sabe quem é.” (p. 200)

Esse ainda não é o fim da morte (ou para a morte). Há algumas páginas a mais para a compreensão de alguns dilemas: se existe morte nesse ser que não sabe mais quem é; se há vida no violoncelista que construiu sua rotina no comodismo ou na sina de ser para sempre só. Aquele que não morreu com aquela que desaprendeu a matar.

Saudades do Saramago. Sua morte tão humana nos faz repensar nossa vida tão breve.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

Autor: SARAMAGO, José
Ano: 2005

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O Homem Elefante

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“De fato, a minha aparência é algo medonha,
mas censurar-me é censurar a Deus.
Pudesse eu recriar-me novamente,
não te decepcionaria.”

Poema de Isaac Watts com que Joseph Merrick terminava as suas cartas.

Joseph Merrick fotografado em 1889

Na literatura, na música, nos negócios e na ciência constantemente é apontado que a aparência física agrega valor ao indivíduo, seja na empatia natural que a beleza provoca, ou na facilidade em ser notado (em um mundo que prima pelo espetáculo). Há diversos estudos na área da Psicologia, mais especificamente em um ramo denominado Psicologia Evolutiva, que buscam explicar como algumas características humanas foram moldadas desde a evolução. Essas características tanto podem advir de elementos mais diretos, como a visão ou a audição, quanto de situações mais complexas, como estratégias para escolha de parceiros, percepção espacial etc.

Psicologia Evolutiva tenta examinar a base de determinados comportamentos, por exemplo, o porque consideramos algo belo ou tenebroso, nojento ou agradável. Por que há rostos e corpos que são mais desejáveis? Por que em dadas épocas determinados tipos físicos exerceram mais poder no que tange à atração sexual?

Em meio a essas perguntas, deparo-me com a história real de Joseph Merrick, que viveu na Inglaterra vitoriana do século XIX. Nasceu em 1862 e, por volta dos dois anos, tumores imensos começaram a crescer em seu corpo, a ponto de deixar um de seus braços imóvel, de prejudicar sua respiração, impossibilitar que dormisse deitado ou que andasse normalmente.  Joseph causava horror em quem o via, algumas pessoas tinham ânsia de vômito ao se deparar com a sua figura, outras desmaiavam. Foi considerado um monstro, uma aberração, uma abominação da natureza.

Joseph Merrick fotografado em 1888

Somente na década de 70 do século XX que a medicina entendeu (em parte) a doença que o deformou: a Síndrome de Proteus, “uma doença congênita que causa crescimento exagerado e patológico da pele com tumores subcutâneos, desenvolvimento atípico com macrodactilia e hemi-hipertrofia”.  Por ser uma doença que ocorre raramente (foram descritos cerca de 100 casos no mundo), há poucos investimentos para estudos na área.

No século XIX, participar de espetáculos em “circo de horror” sendo uma aberração usada para aguçar a curiosidade do público era tudo que restava a pessoas que sofriam, por exemplo, da síndrome de hipertricose (excesso de pelos), que fossem siameses ou tivessem qualquer outro mal que deformava sua aparência e tirava-lhe do ciclo estabelecido aos humanos. Nesse contexto, ser humano implicava parecer humano. E parecer humano não tinha relação com caráter ou consciência, mas com a aparência física determinada a partir de um padrão. Esse tipo de circo foi proibido no final do século XIX na Inglaterra, mas, de certa forma, ainda existe, só que agora novos artifícios são usados para mascarar o lucro que advém da exposição da dor e do medo.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch

Mais do que sua aparência, o caso de Joseph causou repercussão na sociedade da época porque vinha acompanhado de uma sombria revelação: a “aberração” era sensível e inteligente. Sua vida assombrada pelo preconceito, pelo medo e pelo horror não obscureceu sua humanidade. Entender que por detrás daquele aspecto assustador podia haver um ser consciente era o que mais provocava o desconforto das pessoas.

O filme de David Lynch sobre a vida de Joseph Merrick (baseado em manuscritos do Dr. Frederick Treves – “O Homem-Elefante e outras reminiscências” e, em parte, no “Estudo da Dignidade Humana”, de Ashley Montagu) traz alguns questionamentos sobre os motivos que tornam muitos de nós tão avessos ao diferente, especialmente quando essa diferença tem relação a aspectos físicos.  É possível olhar para além das deformidades físicas? Ou Joseph Merrick estaria fadado a morar no circo de horror no qual passou parte de sua vida?

Há pesquisas como a de Schaller e Duncan (2007) que levantam hipóteses sobre um “sistema imunológico comportamental”, que tenta explicar porque as pessoas tendem a sentir desconforto perante “anormalidades” profundas. Outros acreditam que existem pessoas merecedoras da maldição divina, daí o castigo de ter uma aparência abominável. No entanto, o que é mais evidente na história de Merrick, especialmente na forma como foi contada no filme do Lynch, é que a sensibilidade independe da aparência. A inteligência e a consciência que nos tornam humanos vão além daquilo que o outro vê ou daquilo que o espelho nos mostra.



Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (John Hurt e Anne Bancroft)

“Não saio tanto quanto gostaria porque as pessoas naturalmente se perturbam com a minha aparência.
As pessoas ficam assustadas com o que elas não podem entender.” (Joseph Merrick)

Merrick começou a ter uma certa dignidade em vida quando conseguiu se livrar do agente circense que o escravizava e obteve ajuda do médico Frederick Treves, do Hospital de Londres. A princípio, aqueles que o conheciam imaginavam se tratar de uma criatura com extremas deformidades físicas e com uma óbvia deficiência mental. Somente quando ele falou pela primeira vez e mostrou sua capacidade de entendimento do mundo, das pessoas, da arte e dele mesmo é que, enfim, perceberam que estavam diante de um ser humano inteligente e sensível.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (Anthony Hopkins e John Hurt)

O médico, ainda que tenha tido sentimentos nobres e uma genuína comoção perante o sofrimento de Joseph, também estava fascinado pelas descobertas que podia obter na área da medicina a partir do entendimento das causas de sua deformidade. Essa dualidade de sentimentos do médico é apresentada no filme: a angústia em entender se mesmo ele, que conhece Merrick tão bem e sabe da extensão de sua sensibilidade, é capaz de enxergá-lo além de sua aparência. Para o médico, era necessário descobrir o motivo da deformidade, pois entender a doença tira-lhe o aspecto de maldição, ainda que para a pessoa que está presa a ela, esse entendimento não muda a limitação que lhe é imposta. Joseph sonhava em um dia sair do hospital de Londres e morar em um hospital de cegos, onde pudesse encontrar uma mulher que viesse a gostar dele, apesar de sua aparência.

“Eu não sou um elefante. Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano. Eu sou um homem.” (Joseph Merrick)

Joseph morreu aos 27 anos, em 1890. Em uma tentativa de dormir como uma pessoa normal causou um deslocamento acidental do pescoço, que não suportou o peso da cabeça durante o sono. Assim, a causa oficial da morte foi asfixia.

Em 2012, após 122 anos de sua morte, voltou a ser notícia em vários meios porque foi anunciada a realização de uma análise do DNA de seus ossos com o objetivo de encontrar o diagnóstico final das causas que resultaram em sua deformação. Isso será feito a partir da verificação da existência de alterações genéticas em alguma sequência do seu genoma. Seu esqueleto é mantido preservado no Royal London Hospital, em Whitechapel. Joseph foi estudado em vida, continua sendo estudado após a morte. Descansar em paz não é um direito de todos.

A sequência final do filme de David Lynch é um daqueles momentos que silencia não apenas a voz, mas a alma. Joseph Merrick, ao final, parecia querer ao menos adormecer como um ser humano, já que acordado tinha que suportar a dualidade de duas existências, aquela que existia em sua mente, e a outra, que ele via através da face de horror de quem se deparava com a sua imagem.

Boa noite, Joseph Merrick!

http://youtu.be/z75wcxf6ZVk

Nunca, nunca! Nada morrerá.
O rio corre, o vento sopra,
as nuvens movem-se,
o coração bate.
Nada morrerá.

(Alfred Lord Tennyson)

Referências:

Filme:
Ficha Técnica
Título: O Homem Elefante / The Elephant Man
Direção: David Lynch
Elenco: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Freddie Jones…
Roteiro: Christopher De Vore, Eric Bergren, David Lynch, Frederick Treves (história original)
Ano: 1980.

Artigo:
SCHALLER, Mark; DUNCAN, Lesley A. The Behavioral Immune System – Its Evolution and Social Psychological Implications. In J. P. Forgas, M. G. Haselton, & W. von Hippel (Eds.), Evolution and the social mind: Evolutionary psychology and social cognition (pp. 293-307). New York: Psychology Press, 2007.

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