A ordem do discurso

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“(…) ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer
a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.”

(Foucault, p. 37, em “A Ordem do Discurso”, Edições Loyola)

Michel Foucault é um autor instigante e genial. Daquilo que compreendi acerca da genealogia e da arqueologia, métodos por ele usados em suas incursões sobre o saber, diria que ele descobriu e-ou mostrou o coringa do baralho, as raízes do saber, as condições para o fim da escravidão e dos totalitarismos.

Uma maneira de demonstrar minha admiração pelo que, mesmo que parcamente, compreendi acerca das reflexões e ações creditadas a Foucault, seria interromper esse comentário que recente se inicia. Na verdade, mesmo que coisas eu possa escrever sobre Foucault, nada sei sobre ele e suas reflexões e não o saberei, pois Foucault morreu em 1984.

Prolongar essa escrita é apenas uma forma de me prender aos diversos discursos que, sobre esse autor, rondam na língua portuguesa (incluindo as traduções de seus trabalhos). Continuar será reproduzir-repetir, obedientemente, como se fosse coisa nova, os comentáriossobre ele e sua obra, como a esse que, por insistência, teimo em continuar. É que a liberdade, num primeiro momento, parece me afugentar, mais do que me esclarecer e, talvez por isso, abrigo-me em minha biblioteca-caverna pra depois repetir, como a um papagaio, discursos ao ar. Assim é o mundo das palavras nos discursos.

Foucault apresentou sua compreensão (de longo alcance) sobre como essa prática discursiva se ordena por meio de sua aula inaugural no Collège de France, em 02 de dezembro de 1970. Tal aula foi traduzida por Laura Fraga de Almeida Sampaio e lançada em 1996, pela “Edições Loyola”, com todos os direitos reservados para essa editora, com o título “A ordem do discurso”. Direitos reservados sobre o conhecimento seria no mínimo contraditório com o tema do livro se não vivêssemos num Estado fascista. Contudo, como vivemos num Estado fascista, a contradição dissolve-se e a reserva de direitos autorais sobre os escritos de Foucault torna-se, dentre muitas outras, a condição de possibilidade de minha papagaíce.

Foucault é categórico sobre o discurso: di-lo perigoso, ardiloso, transitório e cuja duração “não nos pertence. ”Sua produção é “controlada, selecionada, organizada e redistribuída” (pelos direitos autorais inclusive). Os discursos não esclarecem a área sobre as quais versam; antes, eles são lugares nos quais os “temíveis poderes” são exercidos. Portanto, o discurso, por fazer funcionar poderes, é um objeto de desejo, é “aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Como exemplo pode-se pensar na luta que é para que contraiamos o poder concedido dentro do mercado de trabalho por meio da graduação em Psicologia. À classe de Psicólogos é reservada uma série de direitos e discursos como se fosse uma “sociedade de discurso” definida por Foucault como as sociedades

(…) cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (FOUCAULT, 2004, p.39).

A regulação da produção dos discursos é feita, em nossa sociedade e em grande parte, por exclusão, em sistemas de: interdição, separação-rejeição e oposição verdadeira-falso.

A interdição atua sobre o domínio do sistema da linguagem dos aglomerados humanos. Portanto, atua sobre a comunicação, por meio de permissões e proibiçõessobre o uso da fala e da escrita. Revela dinâmicas de poder do homem sobre o homem, como no casodo escriba, personagem detentor exclusivo da capacidade da escrita, altamente respeitado e influente nas sociedades primitivas, passando pela privatização da escrita e da leitura pelas diversas doutrinas religiosas (a Igreja regulou e regula até hoje o acesso a livros) até a atual organização disciplinar do saberque incrimina, por exemplo, quemfala, escreve ou ensina sobre algum tema para o qual não esteja burocraticamente “habilitado”.

A separação-rejeição dá-se pelas inúmeras práticas classificatórias que o homem faz sobre o homem: o exemplo dado por Foucault é o do louco. No contexto em que vivemos, o louco, comumente diagnosticado a partir de um sistema de classificação de pessoas (o DSM e o CID), é desacreditado em seus discursos a tal ponto de lhe imputarem a interdição judicial, situação civil na qual o que o sujeito diz e o que ele não diz valem o mesmo tanto: nada.

A oposição verdadeiro-falso, cunhada pela parceria da ciência com a lei (ciência-lei), desloca o valor do que é ou de quem faz um discurso para aquilo que elediz, para o próprio enunciado, independente de quem o diz, como no caso das perícias técnicas que subsidiam a decisão judicial da interdição. O importante, no exemplo das interdições judiciais, é o sujeito que discursa ocupar a posição a partir da qual ele possa discursar, a de perito. Dessa posição, por sua caneta os discursos passam, alguns mentirosos inclusive, mesmo que constantes na classe dos “no verdadeiro”. Como exemplo disso pode-se pensar na própria definição de interdição: o sujeito interditado não possui capacidade de responder por seus atos civilmente, mas responde judicialmente. Não há contradição maior e, para muitos dos casos de interdição judicial, mentira maior; mesmo que os laudos e diagnósticos envolvidos no processo de interdição estejam incluídos num sistema de “verdades” uma vez que os laudos periciais são, na prática, inquestionáveis.

A ordenação, a regulação, o controle, a organização e a redistribuição dos discursos pelos sistemas de exclusão funcionam a partir de “máquinas de fazer falar” que mantêm a separação entre os atos e os enunciados. Na continuidade do exemplo sobre a interdição judicial, a lei e a ciência enunciam as “verdades” e os atos que sustentam sua realidade material são vividos por quem ocupa outras posições discursivas: a pessoa interditada (cujos discursos nada valem), familiares e os técnicos que ficam entre os discursos da ciência-lei e os demais discursos cotidianos.

Os discursos que trafegam no seio cotidiano (na materialidade das relações) do interditado, dos familiares e dos técnicos são variados, mas parecem seguir um caminho de homogeneização o qual os torna consonantes aos discursos da lei-ciência. No final das contas, quem interdita não é a lei ou a ciência, mas sim quem convive diretamente com a pessoa interditada, que, absorvendo os discursos daquelas, como a água que, por tanto bater, à pedra fura, desacredita, dopa, interna, analisa, interpreta e desconfia. As únicas coisas que a lei e a ciência fazem são: tomar a decisão sobre a interdição, mandar interditar e retirar o nome das urnas eletrônicas do sistema de votação.

Esse processo é chamado de disciplinar. As disciplinas são compostas por aquilo que é necessário para a construção de novos enunciados. Possuem

(…) domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo (grifo meu) à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor (FOUCAULT, 2004, p. 30).

As disciplinas possuem um núcleo que envolve-abraça um saber e emana um efeito mortificador dos saberes de seu em torno corpóreo (os epistemicídeos discutidos por Boaventura, a teratologia do saber discutida por Foucault). Desse modo, em muitas situações de cuidado vividas no campo da saúde mental, os discursos que alicerçam as relações familiares são também poucos considerados na resolução dos conflitos vividos ao passo que os discursos técnicos possuem posição importante nas decisões dentro dos serviços de saúde mental, porém são esvaziados de poder de modificação uma vez que, em grande parte, são, como a esse texto, papagaíces ou dependentes de uma burocracia teratológica, mortificadora de saberes.

Para Foucault (2004) “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.” (p. 36). A regra geral das sociedades é, para mim, a seguinte: os recursos para a vida (alimentos e fontes de energia) são limitados e já possuem donos, pois apropriados à força.

As identidades que reatualizam permanentemente as regras são as diversas práticas que mantém as pessoas distantes de tais fontes, ou seja, as práticas de governo de maneira geral, que determinam o preço da energia elétrica, exportam o petróleo, vendem a água, privatizam a terra, expulsam quem quer plantar, decidem sobre o gasto na copa do mundo e da vinda do papa ao Brasil, concedem direito para empresas cobrarem sobre o tráfego de veículos e arquitetam sistemas de educação inócuos. É o que também vemos na esperança que temos nas leis, portarias, decretos, regulamentações e emendas repetindo o que já está escrito na Constituição num jogo que nos prende a atenção, mas que não serve para mais nada além de manter privatizado o que foi a mais de 500 anos privatizado. O que faz a vida é a materialidade cotidiana e não a esperança num Senado que nos causa náuseas.

Desse modo, há uma “polícia discursiva” que atua no discursar fora da ciência-lei. O discursar liga-se diretamente ao andar, pois falamos daquilo que vemos, vemos aquilo que alcançamos, alcançamos quando andamos. É a peripatética. Nosso andar é controlado por polícias também, ainda temos toque de recolher! Portanto, oexercício de controle dos discursos depende de um regime de controle sobre os corpos. Se andarmos de tal maneira, podemos ser presos ou desacreditados para fora do espaço intitulado como “no verdadeiro”.

O corpo é o foco das disciplinas. É o foco da Ordem como lema, do regime militar, incluindo todas as suas configurações, a atual incluída, com as fardas e a regulação do trânsito dos corpos; é o foco da Igreja que possui a castidade como um dos atos de maior prova de fidelidade do religioso e de sua aproximação com deus. Como diz Foucault, a prática contra os heréticos não foi uma manifestação exagerada de um passado distante e superado pela Igreja, mas sim pertence aos mecanismos das grandes máquinas de fazer falar que são as doutrinas, como o é também a tortura para o militarismo, inclusive como forma de provar a fidelidade aos aspirantes a discursantes dessa doutrina.

Os corpos são, pois, pelo menos em parte, objetos de apropriação. Se o corpo é válido não somente pode como deve trabalhar, se não o desempregoalcança, como as pestes, de repente e acamando. O desempregado encontra-se num nível social entre o empregado e o inválido: a ele, as máquinas de fazer falar dizem: explore o mundo com o que lhe resta e corra se não alguém pega as posições que restam, na sua cama inclusive!

Se inválidos, recebemos um brinde: explore o mundo com um salário mínimo, filas e perícias; um CAPS, um CRAS e uma USF te apoiarão nisso; mesmo se você resolver que se sente válido, não poderá trabalhar (para a máquina de fazer-falar), sob pena de ser um contra-a-lei… se trabalhar, não fale por aí! Escute, Zé Ninguém!

– Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;

– Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;

– Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;

– Não caia de amores pelo poder.
(FOUCAULT, p. 6, em “Por uma vida não-fascista”, Coletivo Sabotagem).

Nota:

O site  www.sabotagem.revolt.org disponibiliza “títulos libertos das banais convenções do mercado”organizado pelo Coletivo Sabotagem que não possui e tão pouco pretende possuir direitos autorais. Dentre as obras encontra-se a intitulada “Por uma vida não-fascista” que, para o Coletivo Sabotagem, “pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição, preservando seu conteúdo e o nome do autor.”

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Falar, pensar e lembrar

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O homem se faz cultural pela comunicação. É por ela que o pensamento modifica-se ao longo da história, quicá por ela modifica-se também o mecanismo daquilo que chamamos pensar. Seria o mecanismo de pensar o mesmo desde todo o sempre da vida humana? O pensar muda apenas de conteúdo ou também de mecanismo?

É pela comunicação ainda que o homem faz outros atos além de o de pensar e, contingente a ela, que também por atos se faz, os atos todos modificam-se, tanto nos conteúdos que carregam quanto nos mecanismos pelos quais são carregados. Por exemplo: as histórias sobre a cesárea nos dizem que, nos primeiros relatos existentes sobre essa cirurgia (documentos babilônicos de mais de 1700 anos antes de Cristo e a Lex Regia, da Roma Antiga, com data de em torno de 700 anos antes de Cristo), ela ocorria na dependência de a mãe morrer ou em estar em vias de morrer. (Parente e outros, 2010). O significado que embasava a decisão para se fazer a cirurgia era “tentar salvar o bebê”. Se compararmos tal significado com o atual, percebe-se que o conteúdo social-simbólico que é contingente ao ato da cesárea modificou-se completamente, mesmo que ainda se façam cesáreas para se salvarem as vidas tanto da mãe quanto do bebê. Os conteúdos trocados entre técnicos de partos, gestantes e familiares e que embasam a decisão de se fazer ou não uma cesariana modificaram-se ao longo dos tempos; com isso certamente modificam-se as decisões. Os mecanismos pelos quais tais conteúdos foram e são carregados também modificaram-se, basta ver que na Roma Antiga a lei régia determinava a decisão sobre o procedimento enquanto, hoje, o que o faz é o profissional amparado por seu Conselho, sem falarmos das características sociais marcadas pela diferenciação tecnológica de um e de outro tempo.

Se o pensar alicerça-se na experiência que temos no mundo, não somente devido aos conteúdos que a memória carrega, mas também em seu próprio funcionar, a plasticidade cultural deve, por hipótese, promover alterações não somente aos conteúdos do pensamento, mas ao próprio ato de pensar. O fazer questões, o questionar o mundo a nossa volta, é uma das atividades fundantes do pensar humano. Desse modo, compreender a forma como isso se vai modificando e como se modifica pode nos fornecer compreensões sobre o pensar.

Mario Eduardo Costa Pereira discute a mudança no pensar (certamente em seu conteúdo, talvez em seu mecanismo) ocorrida no esgotamento da sociedade da Grécia Antiga. Pereira discute o pensar grego, em contraposição ao pensar ocidental moderno, a partir de uma simples questão: quem sou eu? Tal questão orienta o pensar, na conjuntura moderna ocidental, a uma dobra sobre si mesmo, como se criasse avulsamente um outro mecanismo de ser que, por mergulho, pudesse definir o ser em termos de um “quem”. Para Pereira, o homem, a partir de tal questão e com o desenvolvimento do cristianismo, do monoteísmo cristão, da Inquisição e do desenvolvimento da lógica individualista característica à modernidade, passou a mergulhar em possíveis definições de um “quem somos”, em especial o concebendo como uma treva profunda e lamacenta sobre a qual as Igrejas (a católica e a científica) podem jogar luz. Criou-se assim, a concepção de “interioridade do ser” não constante no pensar da Grécia Antiga. Tal questão não operava, no grego, um mergulho numa alma opaca e perigosa como a água turva dos oceanos. Ao grego, a questão levava aos vôos em que quiça pudessem encontrar seus vários deuses e com eles cumprirem seus destinos, abertos ao cosmos, ao mundo. A “interioridade do ser” é, pois, uma descoberta e/ou uma invenção preparada na Idade Média e consolidada na modernidade, em especial quando um grupo de campos do conhecimentos começaram a afirmar que seria possível medi-la. Invenção ou descoberta? Talvez ambos.

A “interioridade do ser” é sim uma descoberta bem anterior às civilizações antigas. O homem enquanto espécie animal a descobriu. A racionalidade pensa sobre si mesma, pois assim é que se define, é assim que ela funciona. Selecionou-se assim. Para o homem organizar-se socialmente ele teve que diferenciar um tempo que ocorre ao seu arredor e um tempo que é diferente quando sendo homem em arredores. Por isso, todo homem descobre sua interioridade, sua alma, seus fenômenos, não importa o nome que se dá a tal processo sensitivo. Ao mesmo tempo, a “interioridade do ser” é uma invenção, pois os elementos que a fazem se desenvolver no relacionar-se humano são regidos pelas palavras postas em movimentação social e que criam os imaginários, as definições. Dentre tais palavras encontram-se, em especial, os memes.

As palavras postas em movimentação social regulam a percepção de passagem do tempo, elemento definidor da forma como nos comportamos. Quem controla o tempo que se passa nos arredores pode controlar o tempo de quando somos nesses arredores. A Igreja católica por muito tempo controlou e controla a palavra (a primeira palavra inclusive, pois “No princípio era o verbo”); o tempo, tanto que instituiu um calendário mundial; e os arredores, quando praticou do cercamento, tomando os arredores nos quais os homens são: suas terras, suas línguas (no caso dos índios brasileiros, por exemplo) e seus hábitos. Isso repecurte consequências até os dias de hoje. O caminho indicado pelos memes da Igreja apontam para um vale escuro do qual poucas pessoas podem sair, disseminando a ideia de que somos esse vale, pantanosamente sendo-nos.

É difícil precisar o quanto há de mudança no mecanismo de pensar para além da mudança de seus conteúdos. Mas certamente grande reviravolta ocorreu quando o homem não somente quis medir o próprio pensar mas também chegou a afirmar, e o afirma até hoje, que o pode iluminá-lo e-ou medi-lo. Não há farsa maior, na Psicologia, que os testes de inteligência. Medem uma mediocridade da inteligência humana e são menos que medíocres quando postos a funcionar. São mecanismos de poder que repetem os memes da Igreja: você é um vale sobre o qual posso jogar luz, se medi-lo…o comércio mantido pela rede dos saberes acadêmicos encarrega-se de produzir a necessidade de os aplicar.

O resultado da medição, normalmente exposto no Psicodiagnóstico, é, ao mesmo tempo, inútil e pragmático. Inútil, pois esvaziado de sentido, uma vez que a inteligência não pode ser medida, ela pode ser posta a funcionar quando o ser interage com o meio. Os testes apenas indicam a ocorrência ou não de determinado pensamento no determinado tempo da aplicação dos testes. Ao mesmo tempo pragmático, pois reproduz com eficácia a apropriação do saber alheio sob o domínio de um outro que supostamente é mais certo e mais válido para as orientações que da prática psicológica decorrem. Colaboram na manutenção da percepção de que somos vales obscuros que somente mecanismos da classe dos microscópios, da ordem dos paradigmas portanto, criadores de ciência normal, é que podem conhecer para, depois, revelarem. O saber de si tornou-se uma prática prescritiva e não compartilhada.

Contudo, a interioridade de si não representa apenas o vale com seus pântanos. Ela representa também a peculiaridade e a plasticidade característica do pensar humano. Fale sobre sua fala. Pense sobre o seu próprio pensamento. Lembre-se de sua memória. Essas frases evidenciam a peculiaridade e a plasticidade da aparelhagem sensitiva do ser humano. Essa aparelhagem, ao mesmo tempo em que é usada para a orientação do homem no espaço (pois seu funcionamento cria referenciais), pode ser usada para criar pontos de referência “dentro” de si própria. Daí uma outra nossa interioridade, que ilumina-se quando posta em movimento ao invés de necessitar esperar pela luz que se auto-proclama científica e-ou divina.

Quando falamos sobre nossa fala, marcamos características hoje que futuramente sofrerão alterações e, assim, criamos pontos de referências para navegarmos em nossa própria fala da mesma maneira que o podemos para nosso pensar, para nossa memória e para nossa criatividade. Todos criamos os próprios pontos de referência para dentro de nossas linguagens. Quando a Igreja torna única a história sobre o surgimento do homem e única a possibilidade de um Deus ela acerca-se desses referenciais e os toma a si. Quando a Psicologia, aquela revestida de aura de ciência dura, põe-se a explicar o homem a partir de medidas normatizadas, ela também toma a si os referenciais necessários para o desenvolvimento cognitivo e afetivo do homem, ou seja, ela barra o crescimento humano.

Como num oceano, os pontos de referências estabelecem, entre si, relações que orientam as navegações. Aliás é por fazerem tais relações, misturado à capacidade de o homem as reconhecer e-ou as elaborar, é que as estrelas, faróis, pedras, corais e etc são chamados pontos de referência. Contudo, no caso de os pontos de referência, criados ou naturais, não estabelecerem comunicação entre si ou no caso de o homem não estabelecer e-ou compreender tal comunicação, tais pontos deixam de ser pontos referenciais e passam a ser objetos apenas, estrelas distantes, faróis apagados, quiçá lixos à deriva.

O mesmo ocorre para o falar, o pensar e o lembrar. Criamos pontos de referências como, por exemplo, as sílabas BO e LA e depois, relacionando-as, falamos a palavra BOLA. Acreditamos em crenças que, se questionadas, modificam-se ao longo do tempo a tal ponto de reconhecermos mudanças no pensar e, assim, criamos pontos de referências na navegação de nosso existir. E uma das formas mais eficientes de lembrarmos das coisas é criarmos uma imagem mental em que coisas estabelecem relações como a um mapa imaginado para nossa memória navegar quando involuntariamente acessamos, buscamos acessar ou precisamos acessar lembranças.

Portanto, não é de outra maneira que o homem se faz cultural se não pela comunicação entre pontos de referências que cada um de nós deles se apropria. É por ela que o falar, o pensar e o lembrar modificam-se ao longo da história. O falar certamente modificou-se ao longo da história do homem na Terra, diversificando-se (não existe um forma melhor de falar, apenas formas diferentes), acumulando (e não superando) mecanismos diferentes para se consumar. Por exemplo, ela pode se consumar no uso das cordas vocais ou no uso das mãos, sem as cordas vocais. O pensar também, como discute Mário Eduardo Pereira. O lembrar segue na mesma mão tanto na diversidade de conteúdos para se lembrar quanto na amplitude das técnicas de armazenamento.

Por motivos ainda obscuros (mas extensamente debatidos e, de certa maneira, compreendidos nas discussoes acerca do poder) o homem tende a sobrepor suas maneiras de viver às de outros animais e às de outros homens. É por esse fator que tipos de falas, ao invés de serem acumuladas e-ou mantidas em nosso arcabouço cultural, morrem. Pelo mesmo motivo é que tipos de pensar e de lembrar também morrem e dão lugar ao tipo de pensar da vida moderna que resume-se ao crescimento econômico (custe o que custar), ao saber técnico e ao descarte. Como exemplo, pode-se pensar na morte de uns tantos dos cerca de 1000 dialetos indígenas que morreram desde os anos de 1500 até os dias de hoje, como nos aponta o professor Aryon D. Rodrigues (1999). Quantos pensamentos e memórias morreram juntamente com o fim desses tantos dialetos!

Além da morte de falares, pensares e lembrares de culturas ocorrida no tempo da história dos povos, creio que outra morte ocorre, progressivamente, por adoecimento, no dia-a-dia das pessoas, nos tempos de hoje. Refiro-me à morte de falas, pensamentos e lembranças e de falares, pensares e lembrares que ocorrem a todos nós e que é decorrente de como nos formamos educacional e socialmente. Para defender tal ponto de vista preciso recorrer à questão do mapeamento de tais funções (o falar, o pensar e o lembrar) por meio da criação dos referenciais.

A importância dos pontos de referência que criamos para ser o que somos, ou seja, para falar, pensar e lembrar depende da forma como integramos tais pontos. Sem integrá-los, os pontos transformam-se em apenas lixo à deriva no ser… memória esquecida, pensamento confuso, verborragia. A integração de pontos referenciais pressupõe um sistema de integração uma vez que a comunicação necessária para uni-los ultrapassa a simples ligação entre dois elementos. Na integração, muitos elementos partilham de mesmos conjuntos de símbolos, sinais, atos, funcionamentos, referentes e etc. e por isso, ela pressupõe um sistema de integração. O fato de a integração pressupor um sistema não significa que o sistema de integração venha a priori.Significa que quando ela ocorre, ocorre de forma sistêmica.

O falar, o pensar e o lembrar, portanto, por serem sistemas integrados entre si ocorrem de forma sistêmica. A ocorrência sistêmica, nesse caso, pressupõe que o falar, o pensar e o lembrar ocorrem em diferentes lugares, podendo ocorrer em tempos iguais e-ou diferentes, concomitantemente ou separadamente. Nossas células pensam, nossos músculos lembram, nosso estômago fala e assim por diante. A integração sistêmica pressupõe que as partes de um todo funcionam junto e respondendo ao todo, mas não necessariamente estão sujeitas às mesmas regras, comandos, expectativas e funções.  O comando da organização do todo, numa ocorrência sistêmica, é disseminado. Há comandos e não um apenas, mesmo que possa haver um mais vital que outros. Isso quer dizer que as partes atuam no todo, às suas diversas maneiras, mas o todo não é a simples soma de todas as suas partes.

No mapeamento de nossos referenciais, fazemos ligações entre as falas, os pensamentos e as lembranças criados na existência e referentes externos, sobre os quais criamos nossas referências. Como criamos nossas referências? No relacionar-se com a infinitude dos referentes. O pensar e o lembrar ocorrem quando nossos próprios conteúdos, portanto nossos referenciais, tornam-se para nós, individualmente, referentes. Se assim não o for, nossa fala é apenas repetição de memes sociais. Atrofiam-se como a um músculo que não se movimenta. O potencial do ser humano é tão mais elevado que o que conseguimos realizar. Isso ocorre, pois falhamos diariamente naquilo que podemos ensinar e aprender. Nossos sistemas referenciais de nossas existências são dependentes de instituições que, sem julgar a índole tão pouco a intencionalidade de seus trabalhadores, perderam há muito tempo a capacidade de fazer seres humanos ultrapassarem seus próprios limites, apropriarem-se de seus próprios pensamentos e de suas próprias memórias. Daí a disseminada falação sobre tudo e que não diz nada. Daí esse nosso moderno adoecimento para o qual há já uma refinada disponibilidade de drogas.

Sem um sistema referencial que seja ao mesmo tempo compartilhado e apropriado individualmente não podemos superar nossos limites uma vez que para os superar precisamos de pensar, falar e lembrar por nossa própria conta, individualmente, mesmo que compartilhadamente. Em nosso caso, no caso do homem moderno e pós-moderno, o sistema referencial para existir nesse mundo é dependente de instituições despotencializadoras do espírito humano, mas detentoras de um imenso poder para a manutenção de seus status quo: amedicina, em sua vertente pragmática e mercadológica e seus apêndices paramédicos (como a Psicologia das testagens) com o poder sobre o tráfego das drogas; a Igreja, com a privatização da ideia de Deus e de sentido da vida; as instituições do direito que, aliadas às instituições militares e repressoras, mandam e desmandam a seu tempo. O resto de nós segue os escritos e-ou a Escritura, repetindo-os.

Esperamos a ciência dura e a Igreja explicar nossa fala, nosso pensar e nossa memória. Nem de perto percebemos que nós próprios é que falamos, pensamos e lembramos. Podemos falar sobre nossa fala, pensar o nosso pensamento e lembrar de nossas memórias. Temos tudo já, tanto dentro quanto fora de nós. O que então estamos esperando?

Referências:

RODRIGUES, Aryon D. A originalidade das línguas indígenas brasileiras. Conferência realizada na elaboração do Laboratório de Línguas indígenas da Universidade de Brasília em 08 de julho de 1999. Brasília, DF.

PARENTE, Rafael Câmara Medeiros e outros. A história do nascimento (parte 1): cesariana. In:Femina, setembro de 2010, vol 38, número 9.

PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Pânico – contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico. São Paulo: Lemos, 1997. 253 p.

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TDAH – um efeito colateral

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Como vemos empiricamente em nossa vida ao redor e como tem apontado estudiosos das tendências comportamentais do século XXI – como Bauman -, a tendência atual, na criação das crianças, é os pais acompanharem-nas cada vez com menos tempo – uma vez que trabalham o dia todo – e colocarem os filhos cada vez mais cedo nas escolas (isso não é necessariamente indicativo de falta de acompanhamento; no conjunto das características aqui apontadas pode ser); além disso, existe a tendência de entregar a posição central de decisão sobre a forma de criar os filhos cada vez mais ao saber alheio-especializado-médico-psicológico-medicalizado-medicalizante-psicologizado-psicologizante que está tomando conta tanto da iniciativa privada de serviços quanto dos equipamentos públicos de saúde, de educação, forenses e etc.

A especialização do saber possui dois efeitos colaterais: o primeiro é que não permite o trabalhador possuir, por dedicação e intuição, outro saber, ou seja, com dificuldades as pessoas podem aprender a ser pais e mães. Elas primeiramente são trabalhadoras, desde as primeiras horas do dia e, quando cansados e estressados, são pais, no final da noite. O segundo é a morte dos saberes que se propagam exatamente por suas características generalistas, como o saber de ser pai e de ser mãe. O descompasso relacional entre pais e filhos é mais um dos efeitos colaterais de tal sistema. A solução do sistema para seus efeitos colaterais é a produção de mais saberes especializados, mais medicações e mais efeitos colaterais. O TDAH é, antes de ser um diagnóstico, um efeito colateral.

O TDAH, de acordo com estudos sobre o desenvolvimento do conceito, é um diagnóstico médico-psiquiátrico cuja história remete aos estudos de George Still que relacionou as dificuldades de atenção a um suposto déficit neurológico, denominando, o conjunto dos comportamentos apresentados por 43 crianças que estudou, como “defeitos mórbidos de controle moral”. Na década de 40 tal conjunto de comportamentos passou a ser considerado “lesão cerebral mínima” e na década de 60 como “disfunção cerebral mínima” (BOARINI, 2007, p.39).

Um fator que continua na história de tal diagnóstico é a ideia de que é a criança que, no processo diagnóstico, não sabe (saberes e limites) e com dificuldades pode aprender (saberes, limites e/ou ambos). Todavia, as crianças exploram suas antenas, suas linguagens, suas comunicações. Elas fazem questões e, com elas, avançam, independente se o saber a que buscam encaixa-se naquele disponível nas escolas.

Os pais, nesse processo, pela falta de tempo e pela decadência atual da intuição como maneira de produção de saberes, pouco ou quase nenhum conhecimento produzem acerca de seus filhos e de como com eles podem se relacionar. Diante disso, buscam saberes nos profissionais. Esses, por sua vez, dizem tê-los. Contudo, pais, profissionais e professores estagnam-se na impotência diante do fenômeno social chamado TDAH. Por quê?

A busca, em outras pessoas, por respostas aos problemas de saúde (mentais inclusive) que enfrentamos é uma característica congruente à característica gregária do ser humano. Essa busca, atualmente, possui uma tendência a se dar nos seguintes moldes: o saber que resolverá os problemas familiares encontra-se (supostamente) no outro, e somente nele, e, tal saber, quando consultado, continua no outro, ou seja, não é compartilhado, mas prescrito, podendo ser prescrito outras vezes, por tempo indeterminado. Tal saber fundamenta-se na permissão para o uso de determinadas e específicas técnicas em cujo seio não se desenvolve a intuição tão pouco se discute o “relacionar-se”. Desse modo, tanto por parte dos pais quanto por parte dos técnicos, o “relacionar-se” não é colocado em questão. Essa característica social é condição para a estagnação impotente.

O saber que os pais acumulam torna-se descartável e, por troca, compram o saber do especialista para repor aquele que, por fim, descartam, por não serem imediatamente resolutivos. Isso ocorre quando buscamos um médico quando estamos apenas gripados ou um psicólogo quando estamos apenas tristes. Nossa tolerância ao “desenvolver-se” parece que se estreita no passar do tempo. Esse é um efeito do sistema especialista do conhecimento, uma vez que o “desenvolver-se” como ser humano depende da integração de nossos saberes. Outra condição da estagnação impotente.

O saber que se proclama correto sobre o TDAH, como o constante no sítio da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), define-o assim:

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e freqüentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. (http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html)

Gomes et al (2007) apresentam uma pesquisa (financiada por um dos laboratórios que produzem o metilfenidato no Brasil e apoiada pela ABDA) na qual a existência do TDAH enquanto entidade nosológica é colocada como princípio. Nas palavras dos autores

Como sugerido anteriormente (BEKLE, 2004), embora o auto-relato dos grupos indique consciência acerca da entidade cli´nica TDAH, existem importantes equi´vocos quanto a essa entidade, potencialmente mais graves nos grupos profissionais, uma vez que estes se responsabilizara~o pelo encaminhamento, diagno´stico e tratamento dos portadores. Isso fica especialmente evidente nos educadores, o u´nico grupo profissional no qual parte dos entrevistados (uma parcela expressiva) afirmou que o TDAH na~o e´ uma doença.

Nota-se que em tal pesquisa, a afirmação “o TDAH não é uma doença” é considerado um erro a ser sanado com as informações certas. Vemos isso na conclusão a que chegam os autores acerca da necessidade urgente de capacitação de profissionais que lidam com o TDAH para que o diagnóstico e o tratamento sejam bem sucedidos, concluindo que os profissionais (da saúde e da educação) ainda não sabem fazer o diagnóstico da doença. Para Gomes et al (2007)

É importante que grupos como os educadores reconheçam o cara´ter neurobiológico do TDAH para entender, entre outros aspectos, a ineficácia das punições (Brook e Geva, 2001) e encaminhar corretamente os casos. Os presentes resultados demonstram que, para os educadores brasileiros, o TDAH não se associa a uma disfunção do sistema nervoso central. Estudos futuros devem investigar de que forma a escola se prepara para identificar e acompanhar portadores de TDAH (GOMES et al, 2007, p.100).

Sobre a metodologia da pesquisa de Gomes et al temos que:

As entrevistas foram realizadas da seguinte forma: para a população em geral, realizou-se uma abordagem pessoal dos entrevistados, com aplicação de um questionário estruturado com cerca de 15 minutos de duração. Após a coleta dos dados, em torno de 30% das entrevistas de cada entrevistador foram refeitas pessoalmente ou por telefone para checagem da correção dos dados. Para médicos, psicólogos e educadores, as entrevistas foram realizadas por telefone, tendo-se utilizado um questionário estruturado especiíico para cada grupo. Os questionários utilizados em cada etapa estão disponíveis no endereço eletrônico (www. tdah.org.br) da Associação Brasileira de TDAH. (GOMES et al, 2007, p. 96)

Tal método permite apenas o levantamento de hipóteses sobre o saber e a prática dos profissionais pesquisados uma vez que, por centrar-se em questionários e re-afirmações por telefone, abrange informações bastante simplificadas acerca do que realmente os entrevistados sabem e praticam em torno do TDAH. Além disso, o processo de construção de tais saberes não é nem de longe debatido, deixando de discutir a relevância da medicalização em tal construção. Desse modo, concluo que as conclusões e discussões do artigo são precipitadas e carecem de embasamento nas ciências sociais uma vez que visam analisar a construção de saberes bem como a manutenção de práticas sociais.

Ao passo que um grupo de pesquisadores e profissionais da área tem por princípio que o TDAH é uma entidade nosológica, tal princípio é por outros pesquisadores e profissionais, questionado em sua veracidade.

As psicólogas que fazem uma leitura ampla sobre o tema do TDAH são: Maria Lúcia Boarini (Universidade Estadual de Maringá), Luciana Vieira Caliman (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Soraya da Silva Sena e Luciana Karina de Souza (Univesidade Federal do Espírito Santo). Virgínia Kastrup (UFRJ) estuda e escreve sobre atenção.

Boarini e Borges (2009) iniciam o livro “Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora” discutindo o TDAH a partir da ideia de espaço de convivência humana e de vivência da passagem do tempo. Explicitam que vivemos num modo metaforicamente comparado à uma panela de pressão no qual os grãos, no caso os humanos, vivem num espaço curto e em constante agitação. Discutem, ainda, o apostilamento das atividades escolares como maneira de aceleração da formatação das crianças e resgatam a história do uso de psicoestimulantes, como o café, para desacelerar motormente as crianças e acelerá-las na correria informacional da vida contemporânea. O uso da cafeína, usado na pedagogia doméstica, cedeu lugar a partir das décadas de 80 e 90 (do século XX) ao uso do metilfenidato, usado na “pedagogia” ortopédica. Além disso ressaltam o papel da mídia na construção de tal diagnóstico.

Uma das principais questões lançadas com maestria por Caliman (2008) é a seguinte: ao se tratar o TDAH, trata-se “uma patologia da atenção ou busca-se a otimização das habilidades atentivas, requeridas principalmente pelo espaço ocupacional e escolar”? (…) “Até onde estamos tratando de uma patologia, quando estamos buscando a melhora da performance atentiva?” (CALIMAN, 2008, p.564).

Para Gordon e Keiser (1998), as controvérsias em torno do diagnóstico do TDAH nascem primeiramente de sua face interna. Os sintomas que definem o transtorno (desatenção, impulsividade e hiperatividade) são, em menor grau, traços comuns da natureza humana. Todo indivíduo é, em certa medida, um pouco desatento, impulsivo, desorganizado, e nem sempre finaliza as tarefas almejadas, especialmente quando o sujeito em questão é uma criança de 6 ou 7 anos de idade. (CALIMAN, 2008, p. 562)

O questionamento levantado por Caliman é simples, direto e esclarecedor: como quantificar como normal ou doentia uma característica que é de todos e que é totalmente social dependente? Com tais questões, Caliman delineia uma dúvida contundente num suposto exato saber, colocando em xeque toda a parafernália diagnóstico-farmacológica empreendida mundialmente em torno daquilo que se nomeia por TDAH.

Soraya da Silva Sena (2008) aponta uma discussão central acerca do TDAH, a saber: o diagnóstico TDAH leva a quatro grandes ações técnicas, em ordem decrescente de hegemonia: a prescrição medicamentosa, a psicoterapia, a orientação familiar e intervenções nas escolas. Desse modo, Soraya evidencia o quanto o modelo biomédico é hegemônico na rede brasileira de cuidados e ações frente a tal diagnóstico. Mais uma vez vê-se, pela ordem das técnicas empregadas para a resolução do que se chama por TDAH, que o “relacionar-se” não é pauta de discussão.

A hegemonia do tratamento farmacológico para o que se chama de TDAH mostra que as questões envolvidas nesse fenômeno são, hegemonicamente, tratadas em nível bioquímico. Ou seja, a análise sobre as implicações do processo que culmina nos comportamentos que, em conjunto, são associados ao diagnóstico TDAH, é centrada numa simplificada relação existente entre o nível bioquímico do funcionamento neural e o conjunto dos comportamentos emitidos pelas crianças ou adultos diagnosticados. Contudo, o comportamento, mesmo que bioquimicamente composto, é mantido pela interação entre tal nível, o resto do ser e o meio. A análise centrada no “olhar para o corpo da criança, em seu nível bioquímico” é a repetição da centralização de poder em torno do saber científico (classificação outorgada pelos próprios sabedores). Uma análise ampliada revela a complexidade das relações entre pessoas, suas atenções, impulsividades e envolvimentos.

Boarini e Borges (2009) fazem um extenso levantamento das pesquisas referentes ao TDAH e apontam a fragilidade teórica, técnica e ética do aparato que sustenta o diagnóstico e o tratamento. Das pesquisas estudadas pelas autoras, ressalto as de:

1 – Guilherme et all estudaram 628 publicações e 55 artigos e concluíram que a relação entre funcionamento conjugal e TDAH são muito heterogêneas, demandando pesquisas longitudinais sobre o tema.

2 – Tannock, Dupaul, Stoner, Wannmacher ressaltam a falta de objetividade do diagnóstico uma vez que os sintomas possuem um continuum e dependem de julgamento subjetivos.

3 – Raul Gorayeb – psiquiatra e psicanalista – diz que “em quase 35 anos de experiência clínica, eu não me convenci da existência desse distúrbio e nem que ele seja curado com essa droga” (Gorayeb citado por Boarini, p.40)

Percebe-se que as pesquisas apontadas questionam o TDAH enquanto entidade nosológica e apontam questões, antes de enunciarem verdades comprovadas. Evidencia-se, portanto, sobre o TDAH um debate polarizado em dois conjuntos discursivos: um que debate os processos sociais em torno do TDAH e coloca em questão o lugar da verdade dos saberes que sobre ele se debruçam e outro que enuncia uma verdade que, se negada, a negativa, antes de ser uma dúvida, é um erro.

Esse último pólo, o que discute em termos de verdade em oposição a saberes errados (como na catequese para almas errantes), encara o metilfenidato como a principal terapêutica. De acordo com Gomes et al:

De fato, os estudos têm demonstrado que mesmo as abordagens combinadas, por exemplo, medicação e psico-terapia comportamental, não são eficazes em comparação com o uso isolado de medicamentos (BARKLEY, 2004; ROHDE e HALPERN, 2004). (GOMES et al, 2007, p.100)

O princípio ativo da medicação mais usada para os principais sinais do TDAH é o metilfenidato, um estimulante do sistema nervoso central. De acordo com a bula da droga

Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado (grifo meu), mas acredita-se que seu efeito estimulante e´ devido a uma inibição da recaptação de dopamina no estriado, sem disparar aliberação de dopamina. O mecanismo pelo qual ele exerce seus efeitos psi´quicos e comportamentais em crianças não esta´ claramente estabelecido (grifo meu), nem ha´ evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

Dentre as possíveis reações adversas estão o nervosismo, dificuldade para dormir e perda do apetite. Além dessas, pode também ocorrer:

  • febre alta repentinamente;
  • dor de cabeça grave ou confusão, fraqueza ou paralisia dos membros ou face,
  • dificuldade de falar (sinais de distúrbio dos vasos sanguíneos cerebrais);
  • batimento cardíaco acelerado; dor no peito; movimentos bruscos e incontroláveis (sinal de discinesia);
  • equimose (sinal de púrpura trombocitopénica);
  • espasmos musculares ou tiques;
  • garganta inflamada e febre ou resfriado (sinais de distúrbio no sangue);
  • movimentos contorcidos incontroláveis do membro, face e/ou tronco;
  • alucinações;
  • convulsões;
  • bolhas na pele ou coceiras (sinal de dermatite esfoliativa);
  • manchas vermelhas sobre a pele (sinal de eritema multiforme);
  • deglutição dos lábios ou língua ou dificuldade de respirar (sinais de reação alérgica grave);
  • erupção cutânea ou urticária;
  • febre, transpiração;
  • náusea, vômito, dor no estômago, tontura;
  • dor de cabeça, desânimo, cansaço.
    (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

O aumento do consumo do metilfenidato é significativo:

1 – na HOLANDA: em 2008, 34% das crianças tomavam medicamentos para TDAH;

2- na ARGENTINA: de janeiro a setembro de 2005 houve um aumento de 900% em comparação com as vendas de 1994;

 3 – no BRASIL: em quatro anos, de 2000 a 2004, houve um aumento de 940% no consumo da droga; (Boarini, e Borges, 2009)

4 – na ALEMANHA, em 2004, os números apontavam que cerca de 500 mil crianças e adolescentes tinham o diagnóstico TDAH.

5 – nos ESTADOS UNIDOS: a produção do medicamento aumentou cerca de 700% desde o início da década de 90. Em 1999, os EUA fizeram uso de 85% da produção mundial demetilfenidato para tratamentos médicos (Caliman, 2008);

Em 2004, o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade foi oficialmente reconhecido, através da Resolução 370 (Estados Unidos da América, 2004), como um dos problemas mais graves e importantes da saúde pública americana. De acordo com as estimativas publicadas nesta resolução, o TDAH abrangia de 3 a 7% das crianças e adolescentes americanos em idade escolar (2.000.000) e 4% dos adultos (8.000.000). Devido a esta resolução, o TDAH teve sua entrada nas datas oficiais do país com a proclamação do dia 7 de setembro como o “Dia da Consciência Nacional sobre O TDAH”.  (CALIMAN, 2008, p.560)

O TDAH, atualmente, possui, como principais sinais e sintomas o “comportamento hiperativo e inquietude motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefas e impulsividade” (Lima apud Boarini, 2009, p.20). Pensemos nessa citação e na seguinte questão que dela surge: o que socialmente existe e que é condição de possibilidade ao comportamento hiperativo, à inquietude motora, à desatenção, à falta de envolvimento persistente nas tarefas e à impulsividade?

Para responder a essa questão não precisamos negar a relação existente entre o mundo bioquímico e o comportamental…tão pouco a precisamos simplificar. Para responder a essa questão teríamos e teremos que analisar desde a alimentação a que temos nos habituado, às condições de formação não somente técnica como pessoal, afetiva e corporal, passando pelas condições de trabalho e de governabilidade sobre os problemas que enfrentamos socialmente, pelas divergências que a tecnologia vai inserindo nas relações inter-geracionais até às contruções comuns de nossas escolas-panelas-de-pressão, incluindo a gestão da ética na pesquisa e na aprovação de medicamentos. Uma acurada descrição desses fatores pode nos mostrar que o TDAH, antes de ser um diagnóstico é, antes, um efeito colateral para o qual uma medicação já foi prescrita e que, dificilmente, saíra do cardápio escolar-familiar.

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A experiência como Caleidoscópio da Vida

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A experiência, enquanto encontro com outros corpos – aqui corpo pode ser um livro, um filme, uma pessoa, um campo do saber… -, produz em nós um conjunto de afetos que necessitam de formas de expressão para se materializarem, para se tornarem concretos, para se corporificarem (ROLNIK, 1989). Se pensarmos que a cada experiência nova, a cada movimento do nosso corpo nos deparamos com outros corpos e estes encontros produzem diferenças em nossas formas de ser e de viver, podemos dizer que a experiência é o caleidoscópio da vida em sua multiplicidade. Da mesma forma que o caleidoscópio modifica as formas a cada movimento, os contornos da nossa “figura subjetiva” se modificam a cada movimento da experiência.

As fotos de Victor Melo nos arrastam para este conjunto forma/movimento, tornando possível enxergar os movimentos da vida enquanto experiência aqui-e-agora.

Jonatha Rospide Nunes

Referência:

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo 1989.

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Franz Anton Mesmer – a Hipnose e a Psicologia

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As histórias e estórias sobre a hipnose e sua relação com a “terapêutica pela fala”, e portanto com a Psicologia, são controversas. Giram em torno do incômodo da Psicologia, no uso da hipnose, de ficar a meio caminho das ciências duras, aquelas que supostamente possuem confiabilidade. (NEUBERN, 2006)

A hipnose surgiu no mesmo contexto do surgimento da ciência positivista e foi já de início considerada como um método menos científico uma vez que se constituía pela influência, que dependia (em seu início) das características do hipnotizador, o que se contrapunha e que se contrapõe ao pilar da neutralidade que sustenta a ciência dura e pressupõe (por vezes prega) aassepsia na relação entre quem aplica a ciência e quem a recebe, na posição de paciente e-ou sujeito experimental. (NEUBERN, 2006)

Raymond E. Fancher (1996) faz um apurado estudo histórico acerca da história da hipnose sobre o qual faço um pequeno resumo, apontando os fatos mais importantes com a tentativa de reconstruir, mesmo que en passant, a trajetória temporal entre os primórdios da hipnose e o seu uso na psicanálise por Freud e na Psicologia, por variados atores. Apenas como nota de esclarecimento, reconhece-se a importância da psicanálise como movimento instituinte da Psicologia Moderna, não legando-a, contudo, papel central em tal instituição.

Para Fancher, a hipnose, no mundo moderno, inicia-se juntamente à figura de Franz  Anton Mesmer. No ano de 1775, o príncipe da Bavaria constitui uma comissão para investigar as ações de exorcismo do padre Johann Joseph Grassner (1727 – 1779). Grassner fazia rituais de exorcismo para curar pessoas e, quando suas ações não surtiam efeitos, ele encaminhava o moribundo a um médico. Em seu tempo, o padre gerou polêmicas, tanto dentro quanto fora da Igreja. Franz Anton Mesmer fez parte da referida comissão e tentou convencê-la de que as ações de Grassner tinham validade, explicando-as com base em sua teoria acerca do magnetismo animal. Sua tentativa não salvou o padre da condenação.

 

Johann Joseph Gassner. Fonte: https://goo.gl/YmCEYz

Franz Anton Mesmer. Fonte: https://goo.gl/yFJo9R

Mesmer havia defendido o seu doutorado em 1766, na Universidade de Viena, com 32 anos, sob o título “Da influência dos planetas sobre o corpo humano”. Em sua tese, nomeava de “magnetismo animal” à força existente no relacionar-se da matéria com o cosmos sendo, tal força, sujeita à manipulação humana por meio, dentre outros, de imãs.

Em 1773, Mesmer começou a tratar Francisca Oesterlin a qual sofria convulsões, espasmos de vômitos, inflamações intestinais, dificuldades para beber água, dores de dente e ouvido, alucinações, cegueira temporária, sensações de sufocamento e paralisias, conjunto de sintomas que foi chamado por Mesmer de “febre histérica”. Ele iniciou um tratamento à base do uso de imãs no corpo de Francisca a qual entrava em um estado de crise convulsiva para, depois, aliviar-se de seus sintomas, temporariamente. A repetição do tratamento por diversas vezes parece ter curado a mulher.

Mesmer fez o mesmo com a garota Maria-Theresia Paradis, pianista cega desde os três anos. A verdade sobre esse caso parece não existir, mas pesquisadores indicam que, pelo menos temporariamente, Mesmer conseguiu curar a cegueira da menina e que, certamente, foi o caso que o estimulou a sair de Viena para Paris, pois, em seu desenvolvimento, foi acusado de charlatão.

Na França, Mesmer fez diversos tratamentos. Aprimorou sua técnica, fazendo tratamento coletivos em torno de um tubo onde supostamente havia fluido magnético com capacidade de curar. Mesmer tocava sua “glass harmônica” (instrumento inventado por Benjamin Franklin) numa outra sala, enquanto seus pacientes ficavam de mãos dadas em torno do tubo. Após criar uma mística, ele entrava com seu roupão lilás e tocava no corpo dos pacientes com o dedo. Alguns entravam em estados convulsivos e um deles, normalmente o que apresentava a “maior” crise, era levado a um quarto reservado, o “quarto da crise”, recebendo tratamento especial de Mesmer. Pelo menos é assim como nos conta Fancher (1996).

O tubo e as sessões de Mesmer. Fonte: https://goo.gl/PYSz4R

 

Desenho da Glass Harmônica. Fonte: https://goo.gl/pbo35K

 

O relato acima parece mais uma caricatura. Se caricaturizado ou não, de qualquer maneira, o rei da França, em 1784, criou uma comissão para investigar os trabalhos de Mesmer. A comissão foi composta por, dentre outros, Benjamin Franklin (o criador da harmônica que Mesmer tocava com maestria), Joseph Guillotin (que sugeriu, no período da Revolução Francesa, o uso da guilhotina como forma de execução para as penas de morte) e Antoine Lavoisier (que perdeu a cabeça na guilhotina). (Notem como os destinos desses personagens selaram-se de maneira curiosa! – magnetismo?)

Benjamin Franklin
http://www.explicatorium.com/Benjamin-Franklin.php

 

Antoine Laurent Lavoisier. Fonte: https://goo.gl/T9U8QW

 

Joseph-Ignace Guillotin. Fonte: https://goo.gl/scZ4QM

Os membros da comissão participaram das sessões de Mesmer e concluíram que, de fato, os pacientes sofriam efeitos (de cura inclusive), mas que tais efeitos eram decorrentes do poder de sugestionabilidade criado pelo contexto e por Mesmer, ao invés do suposto magnetismo animal, como apregoado pelo médico vienense. A comissão desacreditou, portanto, Franz Anton, mas seus discípulos continuaram a exercer a “curas pelo magnetismo”.

Um de seus discípulos, Amand Marie Jacques de Chastenet, conseguiu levar um de seus pacientes a um estado de “crise” que, diferente das convulsões precipitadas nas sessões mesmerianas, caracterizava-se por uma paz, um transe em que a pessoa dormia, mas continuava a responder aos comandos do magnetizador. Chastenet chamou o estado de “sonambulismo artificial”.

John Elliotsen (1791-1868), médico no Hospital da Universidade de Londres, tentou trabalhar com o mesmerismo como meio anestésico (não como discípulo, mas resgatando o quase esquecido legado de Mesmer). John não recebeu apoio da Universidade e demitiu-se como maneira de protestar. Em 1843, fundou o jornal Zoist sobre o tema “fisiologia cerebral, mesmerismo e suas aplicações ao bem-estar humano”. Foi chamado de profissional “pária” pelos conselhos médicos da época.

Em 1842, W. S. Ward, médico inglês, afirmou ter feito uma cirurgia de amputação de perna usando o mesmerismo. A Sociedade Real de Medicina posicionou-se incrédula diante da afirmação de Ward.

O escocês James Esdaile foi o primeiro a usar o mesmerismo em larga escala e de maneira experimental, tabulando os dados. Operou mais de 300 pacientes no final da década de 1840. A maior parte dessas cirurgias foi de retirada de tumores no escroto, cirurgia considerada de risco para época, com um índice de mortalidade de 50%. De acordo com os dados de Esdaile, ele conseguiu diminuir o índice para 5% com o uso do mesmerismo. Também foi desacreditado.

Somente após os estudos do escocês James Braid foi que o mesmerismo conseguiu, novamente, um lugar dentro do meio científico. Braid estudou a insensibilidade à dor induzidas pelo mesmerismo e deu créditos à técnica após perceber que a pupila dos pacientes, em estado de transe, continuavam dilatadas, mesmo após forçar a abertura dos olhos do paciente. Braid, em seus estudos, associou os estados de transe à sugestionabilidade do paciente e não a um suposto fluido manipulado pelo magnetizador. Isso permitiu dar mais créditos à técnica uma vez que resolvia o problema da influência do magnetizador, fator importante numa ciência que se construía sobre o pilar da imparcialidade. Além disso, o que antes chamavam de mesmerismo, Braid chamou de neurohipnologia: hypnos, palavra grega que significa “dormir” e neûron, palavra grega que significa nervos. Hoje, a técnica é conhecida por “hipnose”.

 

 

De Braid a Freud, a hipnose desenvolveu-se em meio às divergências entre o que foi chamado de a “Escola de Nancy” (referente ao conjunto dos trabalhos e escritos de Auguste Ambroise Lièbeault [1823 – 1904] em torno da hipnose e de seus sucessores, como Hyppolite Bernheim) e a “Escola de Sapetrière”.

Hyppolite de Bernheim, de acordo com os estudos de Neubern (2006), buscou a junção da comunicação humana com os mecanismos cerebrais que fossem capazes de transformar a sugestão em processo de cura, de melhora, de soluções e etc. Dessa forma, colocava como ponto central da terapêutica psicológica a relação estabelecida entre o “cuidador” e seu paciente e o papel ativo do paciente em seu processo de cura. Sobre o projeto de Bernhein, Neubern afirma: “Natureza e espírito estavam novamente sendo conciliados dentro de um projeto científico” (NEUBERN, 2006, p.349).

Por outro lado, na Escola de Salpetrière, destacou-se os trabalhos de Jean Baptiste Charcot que, contrariando a concepção da escola de Nancy, encarava a hipnose como um sintoma da histeria e não como uma característica humana a ser usada no processo terapêutico.

Foi com Charcot que Freud, nos anos de 1885 e 1886, desenvolveu estudos e concepçoes acerca do que no meio acadêmico chamava-se de histeria e sobre o uso do método hipnótico em seu tratamento. Fulgêncio (2002) apresenta um relato sobre a passagem de Freud em Paris. Ressalta-se que Freud recebeu influência tanto de Charcot quanto de autores da Escola de Nancy, como Hippolyte Bernheim (foi professor de Freud) e, assim, pôde, pelo menos de início, usar e desenvolver o método hipnótico, mesmo considerando que sua eficácia estava aquém de uma clínica resolutiva.

Neubern (2006) mostra que a hipnose foi abandonada por Freud e que sobre ela pairou uma espécie de maldição, de silenciamento. Aliás, a história da hipnose, como se vê, é polêmica desde seu início, desde os trabalhos do padre Grassner e da comissão da qual Mesmer participou. O distanciamento da psicanálise com relação à hipnose, deveu-se ao fato de Freud e demais criadores da psicanálise buscarem maior credibilidade uma vez que a hipnose possuía e ainda possui relações com o mesmerismo, descreditada cientificamente. Contudo, Neubern conclui que a hipnose, no desenvolvimento da psicanálise, e portanto da Psicologia (mesmo que diferentes, modificantes uma à outra), não foi apenas abandonada, mas foi também censurada. O que nos leva a questões que vão além da validação ou não do conhecimento, pois abrangem uma Ética do pensar.

Levando em consideração o percurso histórico da hipnose e sua estreita relação com o nascimento e o desenvolvimento da Psicologia chamada Moderna, torna-se importante aprofundar os estudos acerca da história dessa relação, recontá-la nas muitas maneiras possíveis. O questionamento acerca da história é um dos motores do desenvolvimento da Psicologia. Neubern (2006) nos deixa uma questão que considero fundante e, por isso, a deixo aqui como encerramento desse texto: como uma ciência, como a Psicologia pode se desenvolver sem poder voltar às suas origens?

Referências:

FANCHER, Raymond E. Early hipnotists and the Psuchology of social influence. In: Pioneers of Psychology, Third Edition, W.W.Norton & Company, Inc. NY – London. 1996.

FULGÊNCIO, Leopoldo. A compreensão freudiana da histeria como um reformulação especulativa das psicopatologias. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano V, n. 4, dez/2002.

NEUBERN, Maurício da Silva. Hipnose e Psicologia Clínica – retomando a história não contada. In:Psicologia: Reflexão e Crítica 19(3) – p.346-354, 2006.

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O fascínio pela tela e o desenvolvimento dos sentidos na infância

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Os desenhos animados chamam a atenção pelo colorido e pelos efeitos sonoros, ao mesmo tempo em que podem proporcionar, ao corpo, alterações funcionais. A alteração dos batimentos cardíacos quando vemos um desenho de aventura, por exemplo, relaciona-se ao conteúdo bem como a interpretação do conteúdo das imagens e, portanto, tal efeito relaciona-se às emoções humanas. Aquilo que se relaciona à emoção das pessoas pressupõe uma integração entre os sistemas de captação e de compreensão do mundo e de expressão nele.

Desse modo, pode-se dizer, que o fascínio pela tela não éapenas fruto do processo pelo qual o homem se aliena. O fato de as telas dispararem processos que vão além do foco da atenção é condição suficiente para se encarar a televisão como um ativo meio de formação, inclusive afetiva, do ser humano. Isso não é o mesmo que dizer que precisamos das televisões (e congêneres) para nos formarmos. Pelo contrário, ela é apenas um instrumento moderno, potencializado pela tecnologia digital.

http://www.gemind.com.br/3952/televisao-faz-mal-bebes/

A criança, quando nasce, pouco integra e não sabe que integra os seus aparelhos de captação do mundo externo. Apesar disso, avança intuitivamente reagindo ao meio em que se encontra, mesmo que dependa vitalmente de quem lhes faz crescer. Fazer crescer depende de muitas outras coisas além da televisão. A mudança da voz dos pais, músicas, ritmos, luminosidades, vento, objetos com temperaturas diferentes, gostos e tato promovem o desenvolvimento infantil uma vez que faz o bebê integrar seus sistemas de captação de estímulos e informações.

A compreensão que a criança faz do meio em que vive, nos primeiros anos da vida, é pautada em sensações ligadas àsatisfação e à segurança, reconhecendo-as pela diferenciação de sensações opostas que nela gera insatisfação e insegurança. Trata-se de um sistema comunicacional entre tecidos e órgãos que captam estímulos, integrando-os, promovendo uma mistura de incômodos, satisfações, movimentação e cansaço. A criança reage a essas mudanças com movimentos e com sons que são reconhecidos por adultos que, por sua vez, com aquela interagem e promovem, em nível verbal e não verbal, comunicação e, portanto, constroem linguagens.

Tal integração, que se dá nas relações humanas, depende de como integramos, enquanto seres individualiazados e sociais, nossos sistemas de captação, codificação, decodificação e emissão da linguagem. A fala usa e, ao mesmo tempo, cria a linguagem. É a capacidade de nos referirmos ao mundo e, portanto, de dizermos sobre as transformações oriundas do “ir sentindo”, incluindo, nesse fenômeno, os resultados da captação dos cinco sentidos (tato, paladar, olfato, visão e audição) chamados de percepções. Uma vez que o “ir sentindo” depende da comunicação, a fala depende das várias linguagens desenvolvidas por cada agrupamento humano e, portanto, não sópossui o papel de referir sobre o mundo, mas também o de construir as relações e os fenômenos.

O tema da linguagem e da estimulação infantil, nos leva ao tema inicial desse texto, sobre o qual passo a explorar a partir da seguinte questão: qual o papel da televisão e do videogame no desenvolvimento cognitivo infantil?

A televisão e o videogame são eficientes na promoção da linguagem oral e na integração de sistemas de comunicação uma vez que trabalham com as cores, os sons, os símbolos e as emoções. As cores, os sons, os símbolos e as emoções da criança, quando assiste à TV, acomodam-se nas diversas maneiras que a criança as possa acomodar, a depender do espaço que possui, deitadas, em pé, sentadas, de cabeça para baixo e etc. O tempo é também um fator determinante: seguir programas que contam histórias que se conectam ao longo do tempo permite à criança aprender histórias, acumular aprendizados, além de ver como um mesmo contexto (os lugares nos quais se passam os desenhos) pode variar em seus elementos.

Pelo fato de a televisão alavancar o aprendizado por meio da narrativa, descrição e contação de histórias, o tato tende a não ser ativado no momento desse aprendizagem, uma vez que a atenção está voltada para a captação visual e auditiva. O olfato e o paladar também raramente integram-se no aprendizado mediado pela TV. Por outro lado, o contato com brinquedos, com a comida, com animais, com outras crianças, com adultos, com objetos e coisas em geral tende a integrar, na aprendizagem infantil, um número maior de sentidos, desde que dispostos em relações sociais facilitadoras de criatividade, em espaço suficiente para a movimentação e para o brincar além de tempo apropriado para a construção de conteúdos simbólicos. Não adianta ter muitas coisas acessíveis; os objetos são apenas meios de interação e, portanto, de construção simbólica, mas, para tanto, a mediação de outras pessoas (crianças e adultas) é necessária. E ésobre isso que a Pedagogia se debruça.

A televisão e o videogame também possuem a capacidade de mediação entre a criança e o par imagem-som, limitada, contudo, pois eletrônica. Por mais que alguns softwares sejam mais eficientes na comunicação de informações e no estímulo àmemória, pelo fato de integrarem apenas dois sentidos humanos (visão e audição), não possuem capacidade equivalente à mediação humana. Nessa discussão, não estáem questão qual mediação é melhor, mas, antes, visa-se apontar a imprescindibilidade da mediação humana, direta, pele com pele, no desenvolvimento infantil.

Voltando à questão da integração de sistemas de captação, na infância ela pode ser comparada à fome. A criança busca aprender. Isso não é o mesmo que dizer que se trata de um ato voluntário. O meio a estimula, ela reage, buscando-o, descobrindo-o. As metáforas conseguem dizer mais completamente sobre isso: o girassol busca o sol, os mamíferos recém-nascidos buscam a mama, o broto busca o ar, as crianças buscam interagir. O fator simbólico é um elemento que se constitui no início do desenvolvimento da criança. Traspondo o significado das metáforas ao desenvolvimento infantil, diria que as crianças, já em seu primeiro ano de vida, buscam aprender.

Dando prosseguimento às metáforas, pode-se dizer que a criança tende a dedicar mais tempo ao “prato” de sentidos que mais lhe sacia a fome de todos os seus sentidos. Em muitos casos, esse prato é a TV que, por sua vez, tende a excluir três sentidos: o tato, o paladar e o olfato. Nos casos em que o interesse pela televisão é maior, pode-se pensar que o que mais está saciando o interesse da criança pela estimulação é um meio de comunicação que a estimula, mas não por completo. Tal fato leva-nos a afirmar, pelo menos como hipótese, que as relações que a criança, nesse caso, faz em seus diversos aprendizados estão, do mesmo modo que a TV, excluindo a estimulação e a integração dos sentidos, uma vez que a TV, que em geral integra e estimula apenas dois, éo que a mais sacia. A criança, quando acompanha histórias contadas pela televisão, avança, sem fronteiras, nos territórios da atenção, da memória e do pensamento, sem, contudo, integrar nesse processo os sentidos do tato, do paladar e do olfato. Pode-se concluir, também hipoteticamente, que, em muitos casos, o pensar, o atentar-se e o uso da memória desenvolvem-se com um desenvolvimento hipertrofiado da visão, regular da audição e hipotrofiado dos demais sentidos.

As hipóteses levantadas são, logicamente, precipitadas, mas não absurdas. Demandam avaliações também sobre qual posição o desenvolvimento dos sentidos humanos têm ocupado nas relações humanas e no aprendizado escolar. Talvez tais sentidos são, da mesma forma, renegados a uma posição subalterna à visão e à audição.

Primeiramente, quando aqui uso o termo “escola”, não me refiro a todas ou a algumas em específico. Trata-se de um termo para se falar àquilo que julgo ver e haver em comum em muitas escolas brasileiras, baseando-me na observação que já pude fazer, nos artigos relacionados à escola e em minha vivência profissional. Trata-se de um ensaio despretensioso no que tange à comprovação das hipóteses, mas que pretende gerar debate.

As escolas são, em muitos casos, lugares que possuem menos cores que a televisão; tendem à assepsia monocromática desviada com letras e números cuja animação passa desapercebida diante da animação disponível na televisão.

http://www.zun.com.br/cuidados-com-a-voz-do-professor/

O som trabalhado é em geral a fala pausada e, por vezes, cansada, de um professor que é pouco escutado e que não recebe alguma orientação para o cuidado com o seu principal instrumento de trabalho, a voz (sem contar as mazelas que todos, empiricamente, sabemos haver nas condições de trabalho nas escolas); além disso, a tendência é o uso da voz sem explorar sua extensão de tons, de timbre e de ritmos.

Na escola, pouco se estimula o tato, uma vez que o contato com o lápis prepondera sobre o contato com a diversidade da matéria, sua temperatura, sua viscosidade e plasticidade; além disso, o ensino de ofícios (como marcenaria, pintura, carpintaria e etc) é, infelizmente, considerado secundário e reservado ao púbere que se encontra à margem do sistema escolar. A exploração do corpo pela atividade física éfeita da maneira mais disciplinar possível com o declarado objetivo de fazer as crianças gastarem a energia para poderem se aquietarem nas cadeiras. Educação sexual não há, além de uma série de informações que visa o controle de natalidade e a hiperadequação à norma hetero-cristã-sexual.

Quanto ao paladar e ao olfato, a plastificação e uniformização das refeições tem contribuído ao enfraquecimento da capacidade que o ser humano possui no uso desses sentidos. Na escola, o paladar é estimulado apenas recreacional e ligeiramente e o olfato é o mesmo da cidade: de cimento, talvez cinza.

A escola é, portanto, um lugar de estímulos iguais para crianças que querem ver coisas diferentes e que vêem coisas diferentes na televisão, todos os dias. A fala é, na maior parte do tempo controlada, tanto na altura, quanto no tempo e no local, sem contar o controle do conteúdo. A criança que não se interessa pela escola ou se interessa menos por ela do que pela televisão, além de carregar estigmas ligados ao não aprendizado fica dois turnos na escola, o mesmo lugar que, provavelmente, tem grande responsabilidade por sua falta de interesse.

Que efeitos a precariedade de estimulação do tato, do olfato e do paladar produz no aprendizado e, portanto, na constituição do ser humano? Que relação fazemos com nossos próprios corpos e que insistimos em passar culturalmente? Pelo fato de os sentidos estarem ligados ao reconhecimento e à percepção do próprio corpo, tal falta de integração deve levar a alterações em tal reconhecimento e na percepção como um todo. Tal precariedade produz certamente efeitos  na criação do ritmo, na integração dos sistemas de recepção e transfusão de mensagens, na dança, no sexo, nas relações, na vida. Afinal, a dança é apenas, geralmente, uma recreação nas escolas e não um meio de formação social e de percepção corporal!

Os ritmos no viver humano demandam espaço, passagem de tempo diferente do tempo do mercado e que acompanhe as mudanças corporais com uma linguagem corporal criativa e expressiva. O que as crianças escutam e vêem na escola supera, na saciação da fome por aprendizagem, o que escutam e vêem na televisão e nos games?

Talvez o papel da TV seja importante, o que não quer dizer que devemos cultuar a TV. O que quero dizer é que os efeitos da TV são mais potentes do que imaginamos. Mas a pergunta que fica e que talvez me leve a outra escrita é: o que nossas crianças andam a tocar, a ouvir, a cheirar e a degustar no sistema educacional? Que concepção de corpo temos construído socialmente? Que corpos a sociedade tem moldado?

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A diligência – “Façamos, vamos amar”

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A diligência é um substantivo feminino oriundo da palavra latim diligere que significa amar. Na língua portuguesa essa palavra possui mais de um significado. A palavra diligência refere-se a atos realizados por trabalhadores do poder judiciário fora do estabelecimento público. Refere-se também a uma carruagem movida à força animal usada em conquistas territoriais como ocorreu na história norte-americana rumo ao oeste. O filme “Stagecoach” (traduzido como “No tempo das diligências”) de Jonh Ford (1939) retrata uma diligência que carrega um grupo de pessoas para o Novo México. O enredo do filme não é importante para o propósito deste texto, mas ressalta-se a colaboração do filme para associar a diligência à alta velocidade (para os padrões dos tempos do faroeste).

Além desses significados, a diligência é definida pelo dicionário Aurélio como a “presteza em fazer alguma coisa; zelo.” O fato de a palavra presteza significar rapidez colabora também para a associação existente entre a diligência e a rapidez.

Outro significado da palavra diligência é o de antídoto contra o pecado da acídia, conhecida, erroneamente por preguiça. De acordo com “Provérbios 20-27” “O preguiçoso não assará a sua caça, mas o bem precioso do homem é ser ele diligente.”

Significados à parte, a diligência é um significante do saber humano (mesmo que pouco usado) e, portanto, amplia-se sua compreensão quando associado a outros conceitos que vão além de seus próprios significados. Um primeiro conceito com o qual pretendo discutir acerca da diligência é o de sensibilidade.

O que é a nossa sensibilidade? Talvez não se possa dizer o que ela é exatamente, como, quando apontamos a uma cadeira, dizemos que cadeira aquilo é. Mas pode-se dizer como elas funcionam, a sensibilidade e a cadeira. Algo para funcionar não precisa ter a natureza de “ser” para além do que coloca em movimento enquanto funciona. Como a um sopro, carregado sim de sua natureza corpórea, com sua massa relativa e absoluta, nossa sensibilidade existe. Além disso, nossa sensibilidade, como o sopro, congrega e está congregada a tantas outras múltiplas sensibilidades. Assim, defini-la por sua corporeidade seria perda de tempo, como se tentássemos delimitar um sopro dentro de um tornado. Nossa criatividade se constitui por nosso conjunto de sentidos, ou seja, de nossos sistemas decaptação do mundo e da integração entre eles.

Somos extremamente frágeis e podemos façanhas grandiosas. Temos tamanha capacidade de destruição que 25 anos de educação para a vida social não são, em muitos casos, suficientes, para despertar o carinho, a alegria e a prontidão social (diferente da prontidão serviçal assistencialista) de pensarmos no bem e agirmos da melhor maneira, características constantes nos diversos significados da diligência. O “pensar no bem” e o “fazer da melhor forma possível” depende de uma ética e de uma moral (depende, pois, da organização dos ajuntamentos de pessoas no mundo). O exercício ético e moral fundamentam políticas públicas, de Estado, internacionais, privadas e de base, nos campos da educação, da saúde e outros vários; fundamenta também o que divide o mundo em “pecado” e “virtudes”.

As teorias sobre os sete pecados capitais, de acordo com Jean Lauand (2004), em suas notas para a conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, são cristãs por origem. São oriundas da reflexão dos padres e monges cristãos dos primeiros séculos depois do nascimento de Cristo, em suas práticas monaquistas. O termo “capital” deriva do latimcaput, que quer dizer “cabeça”, ou seja, o pecado que está no topo e que comanda. As virtudes são os antídotos dos pecados. São atos e coisas que funcionam no sentido de reverter os processos gerados pelos pecados.

Como já dito, a diligência é o antídoto da acídia. A acídia é o pecado maior que dá origem a pecados menores como a preguiça. A acídia não é o mesmo que o “perder de tempo” da preguiça. O pecado da acídia refere-se às práticas julgadas como moralmente e eticamente contrárias ao amor; o que se perde no exercício da acídia não é somente tempo, mas também as condições que atraem o amor; perde-se vida, perde-se sensibilidade.

A pressa sim encontra lugar em nosso estilo de vida. Ela nada tem a ver com a diligência. Isso é o que nos diz Paul Lafargue, em seu livro “O direito à preguiça”. A preguiça de Lafarque é o antídoto da pressa que nos bestializa, que nos aliena, que nos prende aos nossos erros, que faz de nossa sensibilidade um instrumento mal cuidado, esquecido nas carreiras, esteiras e escadas rolantes de nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a preguiça defendida por Lafargue apresenta, em seus interstícios fundantes, em suas entranhas paradigmáticas, em seus veios de vida-saber, as condições para uma educação universal, plena e integral do ser humano, que contempla sua diversidade de maneira mais governante ao invés de mais governada. O nome do livro, com perdão pela audaciosa proposta, heurística apenas, poderia ser “Um convite à diligência”, uma vez que o autor realmente nos convida a analisarmos o porquê de fazermos o que fazemos, de pensarmos e repensarmos a forma como vivemos, exercício para a vida diligente.

Com isso, Lafargue e outros autores que refletem sobre os modos de vida que operam relações e subjetividades, nos comunica que o ser humano, independente de classe social ou etnia, é um manancial de potência de vida, é um manancial de sentir, perceber, conhecer, afetar-se, amar, emocionar-se, sofrer. Dizendo em outros termos, o convite é para olharmos o quanto de nossa vida é condição para o exercício da diligência e o quanto dessas condições nós próprios criamos. Podemos levantar a seguinte questão: como a nossa comunicação, trasvestida em seus afluentes educacionais, prisionais, sociais etc, ensina, compartilha, dissemina, cria e permite a diligência? Mais precisamente, a questão é: onde comunicamos diligência quando fazemos o que fazemos?

A vida, para comunicar a diligência, deve-se exercitar-se, às vezes a esmo, às vezes sistemática, nadando ainda na desintegração dos próprios sistemas e sentidos estabelecidos por nossos contratos sociais neuróticos, insensíveis à vida, burocráticos. Mas, se a olharmos em seus detalhes, naquilo que, imaginando nós, a vida nos queira comunicar (como se cada coisa tivesse a sua própria mensagem, a nossa vida inclusive) veremos que ela nos fala pela diligência espermatozoidal e ovular, pelos sistemas de percepção altamente qualificados no homem e pelo cuidado que tais sistemas devem receber para captarem a diversidade que o mundo nos oferece. O conjunto dessas coisas é a expressão diligente da própria vida, incluindo, ainda como exemplo, a diversidade da vida no planeta terra, ou mesmo no quintal de casa.

E tal expressão se compõe, dentre outras coisas, de exercícios que nada tem a ver com Ordem e muito menos com Progresso. A vida, para existir, supera os obstáculos que o meio lhe impõe, invariavelmente. O exercício é o elemento da diligência e é o que faz a vida. Sem exercícios nunca andaríamos e tão pouco falaríamos. E, se a vida nos fala para andarmos com seus exercícios, é que ela própria é uma diligência. E se somos feito de corpo, esses exercícios devem abarcá-lo também e, portanto, temos que fazer mais exercícios físicos, fazer mais sexo e usar mais princípios ativos; temos que andar mais, peripateticamente.

A diligência assume formas tão interessantes quanto desconhecidas; a diligência depende da sensibilidade e da vida. As formas de nossa sensibilidade e da nossa vida são orientadas pelo sistema social, em especial em suas manifestações educativas, legislativas e de controle. Tal sistema molda o sentir humano que é uma fonte de energia. Somos iguais pilhas, mas não necessariamente temos que estar “pilhados” com tanta frequência.

As formas de sensibilidade dependem do sistema de cultivo em que nos encontramos, não só das plantas, mas também de outras coisas cultiváveis, como filhos, afetos e conflitos. Os sistemas de cultivos dessas coisas todas influenciam-se e parecem ter a tendência de seguir o sistema de cultivo das plantas, no nosso caso o latifundiário. São as orientações relacionais que estão no sistema de cultivo que orientam, não sozinhas, nossa educação, nossas relações sociais, nossos exercícios de estímulo à sensibilidade, nossas concepções.

No sistema latifundiário, a aproximação entre o homem e aquilo que ele cultiva é a menor possível. O veneno e as máquinas medeiam tal relação. No caso dos filhos ocorre uma tendência parecida: os fármacos e as fichas de triagem de psicologia, medicina e outros profissionais são os instrumentos que medeiam a relação entre pais e filhos e entre professores e crianças educandas do ensino infantil. No caso dos afetos, a tendência, a mesma na relação com as crianças, é a do fármaco substituir a emoção produzida pelo nosso mundo. No caso dos conflitos, a burocracia cada vez mais entra em suas mediações, deixando-nos sem material para analisarmos nossas vidas – tudo é decidido por terceiros que decidem sobre nós.

Contrapondo ao esquema latifundiário, pode-se pensar a relação com o cultivo de outras maneiras. Pode-se num relação a partir de seus possíveis efeitos. Que efeitos teria na prática de cuidado com as crianças, com os afetos e com os conflitos uma prática de cultivo das plantas não latifundiária, pelo contrário disseminada entre a maioria? Qual seria o efeito no qual o cultivo das plantas seja criado ao costume de uma sociedade, inclusive como recurso para evitar as fomes que passam seus membros, como no caso do Brasil? O cuidado com as plantas requer o manejo da terra, das raízes e folhas. Para tal manejo se tornar capilarizado (não latifundiário), deve-se acrescer, dentre as técnicas todas oriundas do trabalho humano, um diálogo, ou seja, a comunicação, entre a planta e a pessoa, que substitua o veneno e as máquinas. Que efeito teria uma educação mais afetiva e menos adoentada no cuidado que temos com as plantas? Como lidar com a questão do controle das massas, na perspectiva de um grupo de cultivo capilarizado ao invés de latifundiário?

A prática de não aproveitar as coisas não causa problemas somente ao sistema ecológico, mas também ao nosso sentir, uma vez que não-aproveitar gera não-sensibilização, ou seja, os sentidos, a criatividade, a sensibilidade não recebem incentivos para serem usados, pois o descarte vai nos significando o eterno-retorno, e nunca um entrar-em-contato. No latifúndio, uma minoria cuida, uma maioria espera, não pratica o cultivo. As máquinas e os venenos entram em contato com a planta, nós não. Os psicólogos e médicos entram em contato com os filhos, os pais não. O trabalho que perde o sentido e a vida é aquele que se dá de forma latifundiária, onde muitos peões podem ser descartados para sustentar rainhas, torres e bispos.

Durante o trabalho de quem espera o eterno-retorno do industrializado na prateleira, o cultivo também deve ser bastante restrito: não temos tempo para cultivar as crianças e o Estado está se saindo mal com isso; não cultivamos o cuidado e a gentileza. Estamos, normalmente, estressados. Poetas vivendo a diligência da percepção humana de ser neste mundo, confundidos como loucos, dizem isso há muito tempo: “a gentileza gera gentileza”. É um saber de uma beleza incomparável! Mas isso não é importante, o sistema educacional mal consegue definir o que é gentileza!

A gentileza é uma vivência corporal, mas escutamos a todo o momento: “não entrem em contato com os corpos; não excedam no sexo, nem em quantidade e muito menos em qualidade! Não se exercitem! Trabalhem alienadamente e mantenham a Ordem e o Progresso!” Não tem nada mais patético que o lema da nossa bandeira – é anti-diligente. E o nosso afeto tão pouco é cultivado – vem em cápsulas.

Se há algo que podemos cultuar nesse mundo, como maneira de vivermos mais diligentemente, é a nossa sensibilidade, ou seja, nossa capacidade de sentir as coisas; da visão, da audição, do tato, do paladar, do olfato, passando pela raiva, pela paciência etc.

Podemos nos movimentar, mas não correr, com nossa sensibilidade e com nossa vida. Experimentando, reconhecemos a sensibilidade que se encontra no exercício da diligência e a diligência que opera no exercício da vida. O encontro dos gametas e o caminho seguido pela célula ovo até a morte do corpo, com um dia ou um século de existência, é a diligência que há na vida; é a vida sendo diligente, a diligência que, redundantemente, gera vida. O recheio disso, composto pelo incessante sentir, é a sensibilidade que mantém a vida e a diligência; depende das duas para se manter. São movimentos que se movimentam juntos.

Nota: a frase “Façamos, vamos amar” que aparece no título do texto é o nome de uma música do Chico Buarque.

Referências:

LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.

LAUAND, Jean. O Pecado Capital da Acídia na Análise de Tomás de Aquino (notas de conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, disponível em http://www.pecapi.com.br/ – Univ. Fed. do Rio Grande do Sul, setembro de 2004).

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A Psicologia no Brasil: Leitura histórica sobre sua constituição

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Em 2007, foi lançada a 5ª Edição do Livro “A Psicologia no Brasil – leitura histórica sobre sua constituição” de Mitsuko Aparecida Makino Antunes, Psicóloga e Doutora e Psicologia Social. A primeira edição é de 1998 e representa um bom estudo inicial sobre a história da Psicologia no Brasil.

Mitsuko dividiu seu livro em duas partes: a primeira é dividida em dois capítulos que tratam de maneira abrangente acerca do desenvolvimento do saber psicológico no Brasil dos séculos XVIII e XIX; e a segunda é dividida em três capítulos que aprofundam a primeira parte. Esse texto apresenta, em linhas gerais, a reflexão e a sistematização feita pela autora.

Na primeira parte, no capítulo I “A preocupação com os fenômenos psicológicos no período colonial”, a autora analisa a Psicologia no período colonial baseada em três autores:Samuel Pfromm Netto, com o artigo “A Psicologia no Brasil”; de 1978-1981; Marina Massimi, com sua dissertação “História das ideias Psicológicas no Brasil em obras do período colonial”, de 1984 eIsaias Pessotti, em suas “Notas para uma História da Psicologia Brasileira”, de 1988.

Chamada de Psicologia Colonial por Mitsuko e de período pré-institucional por Pessotti, a Psicologia no Brasil, no século XVIII, foi desenvolvida por autores brasileiros e portugueses, jesuítas ou políticos que cursaram universidades europeias, em especial a de Coimbra. De acordo com esses autores, nesse período havia quatro grandes campos do conhecimento que produziam acerca do conhecimento da Psicologia:

1- A Religião, com a Teologia;
2- A Filosofia Moral;
3- A Medicina;
4- A Pedagogia.

Mitsuko cita ainda os campos da Política e da Arquitetura como também produtores de conhecimento acerca do que se entendia por psicologia no século XVIII, no Brasil.

Os temas trabalhados por todos esses campos do conhecimento foram:
1- As emoções e os sentidos;
2- A educação de crianças e jovens;
3- O autoconhecimento;
4- As características do sexo feminino;
5- O trabalho;
6- A adaptação ao ambiente;
7- Os processos psicológicos;
8- As diferenças raciais;
9- A aculturação e técnicas de persuasão de “selvagens”;
10- Controle político;
11- Aplicação da Psicologia na área médica.

As emoções são encaradas, nesse período, como forças interiores que não são demoníacas, mas que, em excesso, levam a doenças de cunho orgânico ou psíquico. Percebe-se, aqui, uma influência ou congruência com os pressupostos de Pinel e, portanto, uma condição de possibilidade para a prática alienista brasileira, desenvolvida nos séculos XIX e XX.

Sobre a construção desse conhecimento, o alcance desse artigo não abrange. Mas indico a leitura do artigo “A Psicologia dos Jesuítas: Uma Contribuição à História das Ideias Psicológicas”, de Marina Massimi, que trata da psicologia colonial dos séculos XVI e XVII e que é uma leitura necessária e impactante, para os historiadores da psicologia.

Acerca do autoconhecimento, Mitsuko cita trabalhos sobre a vaidade, sobre a obtenção do “conhecimento de si” e sobre a objetivação da experiência anterior. É interessante notar que o século XVIII foi o século de consolidação da concepção de que o homem, enquanto ser humano, possui, internamente, um “eu” que o controla e que ele, o homem como um todo, o pode também controlar, como se o homem pudesse dobrar sua consciência sobre si mesmo. Trata-se de uma concepção que demorou séculos a ser gestada. Sobre esse assunto, ver o livro “Pânico: contribuição à psicopatologia dos ataques de pânico”, de Mário Eduardo Costa Pereira.

Sobre a educação de crianças e jovens, na mistura do conhecimento psicológico com a Pedagogia, estudou-se a formação da personalidade, a aprendizagem e a influência dos pais, dentre outros temas. Sobre a mulher, estudos acerca das funções maternas e da diferença dos valores da mulher índia e a colonizada. Autores como Mello Franco, Alexandre de Gusmão e Mathias Aires abordam o tema do trabalho contrapondo-o ao ócio, condenado como o gerador de desordem. O trabalho serviu como a cura para os indígenas que eram preguiçosos (ou que não aceitavam a catequese), mostrando o caráter de biopoder nas práticas de gerenciamento de corpos que, como o trabalho dos jesuítas, tanto escravizaram, quanto colaboraram para o desenvolvimento cultural pelo sistema de educação.Sobre a sexualidade, na mistura entre o conhecimento psicológico e a medicina, Mello Franco a associava como determinante da loucura.

Ao mesmo tempo em que se percebe uma grande vinculação do conhecimento psicológico com projetos eugenistas do século XVIII, Mitsuko, referindo-se à produção teórica de Marina Massimi, afirma que também houve produções que questionavam a posição de submissão da mulher e do índio, sobre psicoterapia e educação, alguns dos quais reverteram, a seus autores, com a Metrópole e a Inquisição.

O segundo capítulo “A preocupação com os fenômenos no século XIX “ é dedicado ao desenvolvimento do saber da psicologia no século XIX. Em suma, os campos da Educação e da Medicina são os que mais desenvolveram com influência social tal saber.

Na Educação, desenvolveu-se, principalmente, em meio às correntes do liberalismo e do positivismo. Concebe-se, nesse período, a psicologia como o estudo da alma, como a concebeu Descartes. Sobre a alma, são estudados os fundamentos da vida psíquica, como a identidade e o caráter, e, também, fenômenos psíquicos específicos, como as emoções, a motricidade, o pensamento, a memória etc. Mitsuko ressalta a influência de pensadores como Locke, Rousseau, Pestalozzi, Herbart e Spencer.

Nas escolas, havia castigos contra a desobediência e contra o onanismo. Na mistura com a medicina, o onanismo do garoto escolar era considerado o causador de“a tísica, a loucura, a hipocondria, a flegmasia crônica de órgãos e finalmente a morte”. O tratamento preventivo para o onanismo era a ginástica. (Roberto Machado citado por Antunes, 1998, p.29).

Na medicina, desde 1836 há registro de teses de conclusão do curso de medicina versando sobre as “paixões ou emoções, diagnóstico e tratamento das alucinações mentais, epilepsia, histeria, ninfomania, hipocondria, psicofisiologia, instrução e educação física e moral, higiene escolar, sexualidade e temas de caráter psicossocial.” (Antunes, 1998, p.27). A primeira identificada é de Manoel Ignácio de Figueiredo Jaime chamada “As paixões e afetos d’alma em geral, e em particular sobre o amor, amizade, gratidão e o amor da pátria”. No final do século, a tese “Duração dos Atos Psíquicos Elementares”, de Henrique Roxo, é defendida. Ela é considerada pelas fontes de pesquisa de Mitsuko como o primeiro trabalho de Psicologia Experimental.

Ainda na medicina, Mitsuko refere-se à abrangência de seu controle social gestado na prática de seu desenvolvimento. Para tal, o conhecimento da psicologia foi importante uma vez que a práxis da saúde pública, levada à cabo pela medicina, concebia ações de limpeza da sociedade, eliminando a desordem e o desvio, incluindo o das emoções. Em 1830 apareceram reivindicações para a abertura de manicômios e, em 1842 foi inaugurado o Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, tendo o trabalho agrícola como forte meio terapêutico.

Os capítulos I e II fazem parte da primeira parte do livro que busca, basicamente, situar as áreas dentro das quais se gestou o saber psicológico brasileiro no período colonial, ressaltando as áreas da Educação, da Medicina e do Trabalho. A parte II do livro é destinada ao aprofundamento de dados e análises em torno de cada uma dessas três áreas. Para quem se interessa pela história da Psicologia, o livro de Mitsuko Antunes a apresenta de forma didática e clara, com indicações dos principais trabalhos acerca do tema. Boa leitura.

REFERÊNCIAS:

ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: Educ, 1998, 5ª. Ed. 2007.

Sobre a autora:

Possui graduação em Psicologia Formação de Psicólogo pelo Instituto Unificado Paulista (1978), mestrado em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1985) e doutorado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991). É professora titular do Departamento de Fundamentos da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, atuando, desde 1992, no Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: Psicologia da Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Psicologia da Educação, pesquisando e orientando pesquisas em: psicologia da educação, história da psicologia da educação no brasil, história da psicologia no brasil, constituição de identidade de educadores e educandos. (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4784793Z1)

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