Raça e desigualdade: a base injusta que alimenta o capitalismo no Brasil

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O capitalismo se desenvolveu a partir da utilização de raça e sexo como critérios de segmentos que foram mais explorados, ganharam menos ou ficaram ausentes (Entrevista com CIDA, Bento, por RUPP, Isadora. NEXO, 2022)

Ao se falar de desigualdade no Brasil, o retrato é muito claro, o grupo do 1% mais rico do Brasil tem um rendimento médio mensal 39,2 vezes maior que os 40% com os menores rendimentos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (MOURA, Agência brasil 2024).

O rendimento médio mensal real domiciliar per capita — ou seja, a renda média de um domicílio dividida pelas pessoas que lá habitam — do 1% mais rico foi de R$ 20.664,00 (vinte mil seiscentos e sessenta e quatro reais) em 2023, um aumento de 13,2% em relação ao valor observado em 2022, qual seja, R$ 18.257 (dezoito mil duzentos e cinquenta e sete reais). Enquanto isso, o rendimento médio mensal dos 40% mais pobres foi de, em média, R$ 527,00 (quinhentos e vinte e sete reais) no ano passado, o que representa uma alta de 12,6% em relação ao número registrado em 2022, qual seja, R$ 468,00 (quatrocentos e sessenta e oito reais). (Miato, G1 2024)

Logo, tem-se que a renda média do grupo mais rico cresceu mais em um ano do que a dos 40% mais pobres. Não bastando, o crescimento da renda daquele grupo foi ainda maior que a média nacional, veja: 

O rendimento médio no Brasil subiu 11,5% entre 2022 e 2023, passando de R$1.658 para R$1.848, maior valor da série histórica da pesquisa. E entre o 1% mais rico: R$ 20.664, uma alta de 13,2% em relação aos R$ 18.257 de 2022;” (Os dados fazem parte de uma edição especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgado pelo instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022).(Miato, G1 2024)

Analisando detidamente os dados acima explanados, questiona-se: sobre qual pele recaem os efeitos de tamanha desigualdade? Quais grupos levam nas costas o peso dessa disparidade? E, principalmente, como se dá a perpetuação de um sistema tão desigual? De onde vem tanto para uns e tão pouco, ou nada, para outros?

É claro que, ao se falar de desigualdade, o processo de acumulação de riquezas da população abastarda vem de uma herança escravocrata, “a herança da escravidão se expressa nas instituições e nos lugares ocupados pelos brancos. Um período de exploração, tanto dos recursos quanto das pessoas” (Entrevista com CIDA, Bento, por RUPP, Isadora. NEXO, 2022)

Ao ver como essas riquezas foram sendo acumuladas, tem-se o retrato do hoje e de como é penalizada a população hipossuficiente, em um sistema convenientemente estabelecido e mantido pela desigualdade, são homens e mulheres negras, são pessoas à margem da sociedade que carregam o peso do sistema capitalista, que sobrevivem com o mínimo, já dizia sabidamente Cida bento (Entrevista com CIDA, Bento, por RUPP, Isadora. NEXO, 2022):

uma sociedade que se alimenta do lucro e do preconceito de raça vendido como liberalismo meritocrático. O capitalismo se desenvolveu a partir da utilização de raça e sexo como critérios de segmentos que foram mais explorados, ganharam menos ou ficaram ausentes (Bento, 2022, p.). 

É notório que a história do nosso país (Brasil) carrega uma dívida para com a população negra, que sistemas de cotas e incentivos do governo tidos como mecanismo reparadores dessa história, se tornam frágeis tapa buracos, pois foram quase 400 (quatrocentos) anos de escravidão em um país com pouco mais que 500 (quinhentos) anos:

“Por 388 anos o Brasil teve sua economia ligada ao trabalho escravo: extração de ouro e pedras preciosas, cana-de-açúcar, criação de gado e plantação de café. A mão de obra escrava era a força motriz dessas atividades econômicas. E os fazendeiros tornaram-se o grande sustentáculo econômico do regime imperial.”(PENNA, Senado notícias, 2019); 

Se você questionar onde se concentra a maior parte da população negra, qual a renda, mercado de trabalho disponível, cargos ocupados e funções desempenhadas, quais serão? Tem-se aqui como resposta o pior recorte social possível, são subalternizados, marginalizados, explorados. Esquecidos à mercê de um sistema que não os enxerga. Gente que necessita! Que a fome é a realidade diária, que falta recurso, onde sequer as necessidades básicas são supridas, que falta dignidade à pessoa humana e, é por meio desse necessitar, que são mantidos nesses espaços subalternos, cativos não só em sentido figurado, mas infelizmente no terror literal da palavra.

A partir do sistema capitalista, onde se tornam escravos remunerados por “trocados” que mal suprem as míseras necessidades, de onde estão tão imersos que não se tem tempo para pensar ou questionar, quiçá modificar tais estruturas, sem grandes chances de ascenderem, pois as portas abertas são mínimas, as oportunidades de crescimento escassas e longe dessa realidade, regadas pelo dissimulado mito da democracia, mito esse que impede a consciência objetiva do racismo e o conhecimento direto de suas práticas concretas. O mito da democracia racial se baseia na crença historicamente construída sobre a miscigenação, mas Gonzales (2018, p.110) advertia que “Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava etc.”

O que convenientemente, ou melhor, dizendo, absurdamente coloca o negro como responsável por seu estado de pobreza e vulnerabilidade uma vez que vivemos em “uma democracia racial”. Mas a realidade é que o racismo é uma articulação ideológica para a manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância, sua exploração ou superexploração traz benefícios diretos e indiretos à população, ou seja, a discriminação não passa de um instrumento do capitalismo, que acomoda a estrutura social sem pretensão de mudança.

Concluindo-se que a fome e a desigualdade são necessárias para manutenção do sistema capitalista, para o sistema de dominação, e tristemente aderido por todo território brasileiro, cujos índices de subempregos em determinados setores são estratosféricos, de empresas que terceirizam serviços para continuarem a se beneficiar da força de trabalho barata, sendo que o seu quadro de funcionários é majoritariamente composto por negros, com baixo custo por empregado, rendendo alto lucro e uma força de trabalho descartável.Por fim, urge a necessidade de pensar em novas formas de existir, é necessário desmistificar manipulações discursivas a respeito de questões raciais, é preciso pensar os dividendos da herança escravocrata, contar a verdadeira história do país, modificar as profundas estruturas, repensar as academias e áreas do conhecimento que são usadas na perpetuação do sistema e, só assim, talvez, se balance a estrutura podre desse sistema.

 

Referências:

MIATO, Bruna: Desigualdade no Brasil: rendimento mensal do 1% mais rico é 40 vezes maior que dos 40% mais pobres.G1 Economia,2024. Disponível em:https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/04/19/desigualdade-no-brasil-rendimento-mensal-do-1percent-mais-rico-e-40-vezes-maior-que-dos-40percent-mais-pobres.ghtml. Acesso em 19 de Maio de 2024;

MOURA, Bruno Freitas: A renda dos 10% mais ricos é 14,4 vezes superior à dos 40% mais pobres. Agência Brasil, 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-04/renda-dos-10-mais-ricos-e-144-vezes-superior-dos-40-mais-pobres .Acesso em 20 de Maio de 2024;

MAEDA, Patrícia: O racismo brasileiro na obra de Lélia Gonzalez:CartaCapital,2020.Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/o-racismo-brasileiro-na-obra-de-lelia-gonzalez/ .Acesso no dia 20 de Maio de 2024;

PENNA, Carlos. Há quase 131 anos senadores aprovaram o fim do racismo no Brasil. Senado notícias, 2019. Disponível em : https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/05/13/ha-131-anos-senadores-aprovavam-o-fim-da-escravidao-no-brasil#:~:text=Por%20388%20anos%20o%20Brasil,sustent%C3%A1culo%20econ%C3%B4mico%20do%20regime%20imperial. Acesso em 2024.

RUPP, Isadora: ‘A herança escravocrata trava o avanço do Brasil’.NEXO,2022.Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/03/25/a-heranca-escravocrata-trava-o-avanco-do-brasil. em 20 de maio de 2024;

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Rubem Fonseca e A Grande Arte

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O livro de Rubem Fonseca com o título de “A grande arte” se passa nos centros da cidade carioca, Rio de Janeiro, em um cenário que denuncia veementemente as violências, inerente pelas relações sociais urbanas e pela dinâmica feroz do capitalismo, assim como a hierarquia das relações de poder. O livro narra a investigação de um caso de estupro de uma prostituta, que está sobe o comando do advogado chamado Mandrake, com o intuito de se tornar detetive. 

Fonte: Freepik

O personagem desde o começo do romance é descrito em características totalmente humanas e com isso, com certos desvios de moral, como por exemplo, não conseguir se manter fiel a uma única mulher, mesmo tendo um relacionamento fechado com sua cônjuge chamada Alda. Além disso, apresenta comportamentos subversivos a uma pessoa proletária e explorada pelo sistema capitalista, pois o protagonista apresenta consciência de classe. 

A linguagem coloquial usada predominantemente no livro, assim como uma brutalidade e violências nas palavras e na descrição dos cenários e pessoas, transmite certa inovação na forma de escrita, pois nunca se usou um método assim antes. Sua escrita classifica-se como romance policial, mas não se manifesta como os tradicionais, pois ao decorrer da história, o escritor explora tramas psicológicos como jogos mentais com o próprio leitor. 

O autor, com sua linguagem coloquial, simples, objetiva, mas ao mesmo tempo levando o leitor a participar da história, sugere que sua forma de escrita aproxima o autor do leitor. Essa característica faz com que a história, pela linguagem e pela proximidade com o leitor, faça da leitura do livro uma viagem inesperada, despretensiosa, mas ao mesmo tempo gerando expectativas e incertezas.

Por fim, o título do livro é referente a marca “P” que o assassino faz em suas vítimas no momento do crime, pois a “arte” seria essa marca registrada associado a maestria do assassino em não deixar o mínimo de rastros, vestígios ou indícios. Contudo, ao mesmo tempo, o intuito do romance não é descrever uma história minuciosa de romance policial, mas de trazer ao leitor um labirinto psicológico, descrevendo muitas vezes a humanidade dos personagens. 

 FICHA TÉCNICA

Autor: Rubem Fonseca

Título: A Grande Arte

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 304 páginas

País/idioma: Brasil/português

Ano: 1990

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Cinema retrata precarização no mercado de trabalho

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“Estou me guardando para quando o carnaval chegar” é um longa-metragem estreado em 2019, que tem como roteirista, diretor e personagem principal o cineasta Marcelo Gomes. O longa se passa na cidade de Toritama – PE, que fica a 171,5 km da capital pernambucana, Recife. O filme é narrado por Marcelo Gomes que exibe em imagens o seu retorno a cidade que atualmente é considerada a capital do jeans no nordeste.

Toritama é responsável pela produção de jeans e essa produção é realizada pelos moradores da cidade, cerca de 40 mil pessoas habitam e mais de 90% da população trabalha na confecção de jeans. As fábricas de jeans são chamadas de facções, que estão localizadas em galpões, garagens, salas e nas casas das pessoas, as facções estão por todos os lados.

Fonte: encurtador.com.br/adnw9

De acordo com Antunes (2001), a partir da década de 90 houve um grande aumento na informalidade e precarização do trabalho, o aumento da informalidade provoca péssimas condições de trabalho, ritmos intensos e carga de trabalho excessiva que não é fiscalizada, pois os trabalhadores são subcontratados por empresas que burlam a legislação.

No caso de Toritama, os trabalhadores são profissionais autônomos e o tempo todo na obra é retratado como eles acreditam na falsa e ilusória ideia de liberdade e autonomia. Os trabalhadores reproduzem o discurso de serem seus próprios patrões e de ganharem mais, pois ganham de acordo com o que produzem. Antunes (2014, p. 40) alerta que:

A flexibilização produtiva, as desregulamentações, as novas formas de gestão do capital, a ampliação das terceirizações e da informalidade acabaram por desenhar uma nova fase do capitalismo no Brasil. As novas modalidades de exploração intensificada do trabalho, combinadas com um relativo avanço tecnológico em um país dotado de um enorme mercado consumidor tornaram-se elementos centrais da produção capitalista no Brasil.

Fonte: encurtador.com.br/cgDJK

Em Toritama, casas passaram a virar fábricas de jeans, famílias inteiras se ocuparam em alguma parte do processo de produção, onde dependendo de qual parte do processo se encontrarem podem ganhar de R$ 0,10 a R$1,00 por peça produzida. É comum ver pessoas de idades variadas trabalhando em facções e todos com um denominador comum que é a informalidade.

Na obra é possível perceber as péssimas condições de trabalho, jornadas excessivas e o enorme cansaço dos trabalhadores que fazem apenas pequenas pausas para refeições rápidas e retornam ao trabalho. Alguns trabalham das 7h da manhã e encerram às 22h, apenas com pequenas interrupções durante a jornada.

Faltam EPI’s e sobram riscos, pois os trabalhadores se expõem ao contato direto com reagentes químicos, objetos cortantes e têm que ficar na mesma posição por horas repetindo um dado movimento, o que pode ocasionar lesões por esforço repetitivo e outros problemas de saúde ocasionados pela falta de condições básicas e seguras de trabalho.

Fonte: encurtador.com.br/coBCJ

A indústria têxtil é um dos ramos que mais cresceu no capitalismo brasileiro, e junto com ela veio a flexibilização da mão de obra, que criou a falsa ideia de liberdade quando na verdade corresponde a uma neoescravidão. Conforme Antunes (2014, p. 684):

E  a  terceirização,  prática  presente  em  quase  todos os  ramos  e  setores  produtivos,  vem  se  tornando  a  modalidade  de  gestão  que  assume  centralidade  na  estratégia  patronal, uma vez que as relações sociais estabelecidas entre capital e trabalho são disfarçadas em relações interempresas, baseadas em contratos por tempo determinado, flexíveis, de acordo com os ritmos produtivos das empresas contratantes que desestruturam ainda mais a classe trabalhadora, seu tempo e trabalho e de vida, seus direitos, etc.

A cidade de Toritama parou quase que por completo para dedicar-se somente a produção de jeans, existem poucas outras formas de renda no município, além de que existem pouquíssimas opções de lazer dentro da cidade, visto que não há público para consumir ou desfrutar do lazer num lugar onde as pessoas vivem para trabalhar e descansam enquanto trabalham.

Fonte: encurtador.com.br/fjyGZ

Quando o carnaval se aproxima a pacata cidade de Toritama entra em colapso e diversos bazares surgem pelas ruas. Pessoas desesperadas para venderem tudo o que têm visando conseguir dinheiro para que possam viajar no carnaval para o litoral. O desespero é tamanho que aceitam valores inferiores ao que o produto corresponde e juntam tudo o que têm para obter ainda mais dinheiro que seja suficiente.

Algo interessante a respeito disso é que a quantia almejada não costuma ser alta, o que faz com que essas pessoas vendam seus bens por preços extremamente sucateados e quando retornam do carnaval empenham-se novamente para comprar de volta o mesmo produto que venderam e por um valor maior. O carnaval é o único período onde os trabalhadores param suas produções e fecham as portas de suas facções para descansarem e também para aproveitarem a festividade da data.

 FICHA TÉCNICA 

Fonte: encurtador.com.br/nyA56

Nome: Estou me guardando para quando o Carnaval chegar

Nome Original: Estou me guardando para quando o Carnaval chegar

Origem: Brasil

Ano de produção: 2019

Gênero: Documentário

Duração: 85 min

Classificação: Livre

Direção: Marcelo Gomes

REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In: GENTILI, P.; FRIGOTTO, G. (Org.). A Cidadania Negada: políticas de exclusão na educação e no trabalho. 2 ed. São P

aulo: Cortez, 2001, p. 37-50

ANTUNES, Ricardo (2015) Desenhando a Nova Morfologia do Trabalho, Revista Estudos Avançados, 28 (81), 2014, Instituto de Estudos Avançados, USP, São Paulo

ANTUNES, R e DRUCK, G. (2014). A epidemia da terceirização in Antunes, R. (org), Riqueza e Miséria do Trabalho, vol III, SP, Boitempo.

 

 

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O Dilema das Redes: o Dilema Capitalista

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Em 2018 defendi minha tese de doutorado, cuja questão central era compreender a interveniência do Google no modo corrente (senso comum) para conceituar, diagnosticar e tratar o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) – diagnóstico cada vez mais comum em crianças em idade escolar. Tratei o Google como um Oráculo, o Oráculo contemporâneo para o qual lançamos todas as nossas perguntas e questões, inclusive aquelas relacionadas a diagnósticos. Quem nunca tentou se autodiagnosticar ou diagnosticar alguém por meio dessa ferramenta digital, que atire a primeira pedra.

Uma das coisas que aprendi na minha pesquisa, estudando os mecanismos do maior buscador da WEB, é que ele é um Oráculo bastante peculiar. Além de suas respostas não virem na forma de enigmas a serem decifrados, como era o caso dos Oráculos antigos, seu algoritmo é capaz de interferir na pergunta que faremos a ele. Ou seja, o Google sabe a resposta para a sua pergunta, mas também sabe bastante sobre a pergunta que você fará. Outra peculiaridade deste Oráculo é que ele é capaz de monetizar toda informação que possui; sobre o que você procura, e sobre você. Seu sistema altamente inteligente é capaz de, a partir da sua pergunta e do modo como você navega, te oferecer uma mercadoria, mas também, te oferecer como mercadoria para outrem. Para o supercomputador que coordena e organiza o maior buscador da WEB (a preferência pelo Google chega a 91%), todo ponto de conexão é um ponto para lucrar.

Meu percurso de tese foi seguir as orientações do buscador como se eu quisesse me informar sobre como diagnosticar ou tratar alguém com os sintomas do TDAH. Logo de início percebi que teria que burlar o algoritmo, para que ele não soubesse que era eu fazendo a pesquisa, porque isso influenciaria o tipo de resposta que ele me daria. Afinal, a internet já sabia sobre mim e a minha tese. Eu nem precisava pesquisar por novas publicações sobre TDAH, por exemplo, a Amazon já me atualizava sempre que um novo livro sobre o tema era lançado.

Assim, simulando uma pesquisa leiga e despretensiosa sobre certos sintomas compatíveis com o TDAH, me interessava saber para onde os 10 primeiros links de busca me levariam. Vale destacar que cerca de 52% dos internautas só verificam a primeira página (os primeiros 10 links de uma busca) e apenas 10% olham os resultados depois da terceira página.

Convido vocês a adivinharem o primeiro local para o qual o Google me levou…

O primeiro resultado da busca se apresentava apenas como um local de informações técnico-científicas e orientações sobre TDAH, com indicação de testes rápidos para que você mesmo fizesse um diagnóstico inicial e encontrasse as formas de tratamento mais indicadas. Mas, olhando com mais cuidado, percebi que se tratava de um site ligado à NOVARTIS, laboratório fabricante da Ritalina: o medicamento mais vendido para o tratamento de TDAH. Ou seja, um usuário comum de internet, fazendo uma pesquisa simples, indicando apenas alguns sintomas, sem nem mesmo saber da existência do TDAH, será conduzido a obter informações no site do laboratório que produz o medicamento para tal transtorno. Então, se você me perguntar se eu acho que o mecanismo de busca do Google é capaz de aumentar o percentual de diagnósticos de TDAH e de uso de Ritalina, eu diria que sim.

O TDAH surgiu (ou foi inventado) há cerca de 20 anos, na época com raríssima incidência. Atualmente, pode acometer até 5% das crianças em idade escolar. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, o Brasil se tornou o segundo mercado mundial no consumo de metilfenidato (nome genérico da Ritalina), com um aumento de consumo de 775% nos últimos 10 anos.

O horror capitalista

Em 1997, Viviane Forrester publicou O Horror Econômico. A autora previa um novo holocausto provocado pelo capitalismo globalizado, que terminaria por excluir da sua dinâmica, uma imensa massa de trabalhadores. O capitalismo que ela anunciava, se sustentaria nas grandes rodas financeiras, prescindindo de nossa função como trabalhadores e produtores de riquezas. Para a autora, na fase final do capitalismo, consumir seria a nossa última utilidade. O que Viviane não previu é que, depois da função de consumidores, ainda restaria para nós o lugar de objetos a serem consumidos.

O documentário da Netflix, “Dilema das Redes” (parêntese para comentar que aquela novelinha tosca no meio do filme é totalmente desnecessária), trata exatamente disso que eu descrevi na minha pesquisa. “Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”, resume todo o dilema que aparece na minha tese, o mesmo que o documentário expõe. Mas o curioso é que o depoimento da elite dos especialistas, profissionais e criadores das grandes empresas da internet, mostra que eles não perceberam o verdadeiro dilema, mesmo com ele ali, escancarado diante dos seus olhos, o dilema estrutural que permite, propicia e até incentiva que Facebook, Google, Instagram, ou quaisquer outras redes similares adquiram o poder de manipulação que têm: o capitalismo.

Obviamente que essas empresas são responsáveis pela forma como manipulam seus usuários a fim de monetizá-los, mas é importante que se diga que elas só funcionam desse modo por estarem elas mesmas, assim como nós todos, regidas pela lógica do lucro e da mercadoria. Ou seja, acabamos com Facebook ou paramos de utilizar o Google e virá outra rede com a mesma lógica, talvez mais especializada, sutil e perversa. Também é ingênuo pensar que sair das redes ou criar mecanismos individuais para resistir aos seus algoritmos será suficiente. A Internet e suas redes – e é disso, a meu ver, que se trata o documentário da Netflix – apenas escancarou uma coisa que quem critica o modelo capitalista já sabe há muito tempo: quando é permitido que o capitalismo aja segundo sua própria natureza, ele tende a acumulação, a entropia e a autofagia. Nenhuma ética que privilegie o cuidado dos seres humanos, dos demais seres vivos e do nosso Planeta, pode sobreviver enquanto a acumulação de riqueza e o lucro forem os soberanos.

Resumindo: dilema a ser enfrentado não são as redes sociais, é a forma como permitimos que o capitalismo as organize, regule e sugue dela seus lucros.

No caso da minha pesquisa, por exemplo, seria ingênuo pensar que a solução seria apenas combater o TDAH, convencendo mães e pais, educadores ou profissionais de saúde a resistirem ao diagnóstico, sem intervir na lógica perversa que transforma o sintoma e o sofrimento das pessoas em mercadoria. Se não for o TDAH, será outro diagnóstico, outro transtorno a jogar nossas crianças e jovens na máquina de moer capitalista.

Não é por acaso que a todo momento, no documentário, a compulsão pelas redes seja comparada a outros tipo de compulsão, como a por drogas. O uso de drogas é tão comum quanto a própria existência do ser humano, mas é nas sociedades capitalistas modernas que elas assumiram o caráter de consumo e de compulsão. Ou seja, há implicações subjetivas e políticas quando se passa a consumir uma coisa ao invés de usá-la. Os povos andinos, por exemplo, utilizam a folha de coca das mais diversas formas há mais de 8 mil anos, sem grandes problemas ou riscos, outra coisa bem diferente é o que se tornou a cocaína, que é a coca transformada em mercadoria capitalista. Assim sendo, queimar plantações de coca é uma falsa solução para a questão da violência urbana, do tráfico ou da dependência por cocaína.

A Internet ou suas redes é um falso dilema, que apenas encobre o verdadeiro.

O verdadeiro dilema é como fazer para barrar, subverter e superar o capitalismo.

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Sem sentido: diversas formas para sobreviver ao mundo capitalista

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O filme em geral apresenta vários aspetos importantes. Um dos sub temas que deve ser levado em destaque é o sofrimento que o universitário passa para ter uma boa qualidade de estudo

O filme “Sem sentido” (1998) é baseado na vida de Deryll Witherspoon (Marlon Wayans) filho mais velho de uma mulher negra e pobre que foi abondonada pelo marido tendo de criar os cinco filhos; eles moram em Harlem bairro de Nova York. O filme, apesar de ter sido dirigido por uma mulher branca, Penelope Spheeris, não dá nenhuma variabilidade às mulheres, resumindo-as apenas como mães que criam filhos. O longa também mostra a visão dos brancos sobre os negros naquele período histórico (MENDONÇA, ROCQUE, 2016).

Deryll é aluno do curso de economia em uma universidade, onde faz todo tipo de trabalho para conseguir pagar seu curso e sustentar sua família pobre. Neste sentido, a participação de estudantes universitários no trabalho é uma realidade; pesquisa da Universidade Federal do Goiás (UFG) diz que a maioria dos estudantes conciliam estudo com o trabalho e contribuem na renda familiar.  O filme retrata claramente isso, porém esse estudante de economia vai além de um trabalho comum (TOSTA, 2015).

Uma das formas que Daryll acha para conseguir mais dinheiro é sendo doador de sêmen, cabelo, sangue. Esse ato é algo muito comum nos Estados Unidos. Com o desemprego, cada vez mais americanos procuram agências para venderem seus sêmens, óvulos, sangue e até cabelo para poderem sobreviver (GLOBO ECONOMIA, 2018). Pela busca por mais dinheiro, Daryll vê um anúncio convocando voluntários para uma experiencia cientifica, que busca testar uma nova droga com o objetivo de aumentar os cinco sentidos. Numa atitude desesperada ele torna-se cobaia e receberá um bom dinheiro.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler permitiu várias experiências cientificas absurdas forçadas em prisioneiros no campo de concentração. Apesar disso ser proibido atualmente, o filme retrata que essa prática ainda é frequente, porém a diferença é que atualmente essas experiências ocorrem com o consentimento do voluntário, com direito de saber os riscos e benefícios possíveis. As pessoas pobres, sem nenhum meio de sustento se submetem a isso em troca de uma boa quantia. As cobaias humanas são pessoas usadas para testes de novos remédios da indústria farmacêutica (GLOBO ECONOMIA, 2018).

Ao mesmo tempo que Witherspoon se submete a ser uma cobaia humano, surge um processo seletivo para ser analista júnior em Wall Street, porém ele foi excluído da competição por causa da sua condição econômica e social. Contudo o rapaz volta a disputa trapaceando e se beneficiando dos superpoderes conferidos pela droga experimental, passando por todo efeito colateral que ela proporciona e se torna o analista júnior do ano, mas confessa que trapaceou.

O filme em geral apresenta vários aspetos importantes. Um dos sub temas que deve ser levado em destaque é o sofrimento que esse universitário passa para ter uma boa qualidade de estudo apesar de ser de uma família pobre em uma sociedade capitalista, porém com esforço e foco ele consegue alcançar seus objetivos de conseguir um bom emprego. Isso remete a realidade de vários jovens no mundo.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Penelope Spheeris
Elenco: Marlon Wayans, David Spade, Matthew Lillard;
Ano: 1998
País: EUA
Gênero: Comédia Romântica

REFERÊNCIAS:

O GLOBO ECONOMIA. Mais americanos procuram vender seu sêmen, sangue ou cabelo para chegar ao fim do mês. 2008. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/mais-americanos-procuram-vender-seu-semen-sangue-ou-cabelo-para-chegar-ao-fim-do-mes-3803403>.Acesso em: 30 setembro 2019.

TOSTA, Tania. A participação de estudantes universitários no trabalho produtivo e reprodutivo. Goiânia (GO), v. 47, n. 165, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/v47n165/1980-5314-cp-47-165-00896.pdf>. Acesso em: 30 setembro 2019.

MENDONÇA, Lêda; ROCQUE, Lucia. A mulher e o “fazer ciência”: uma análise de filmes de comédia no ensino farmacêutico. Rio de Janeiro- RJ, 2016. Disponível em: <file:///C:/Users/evell/Downloads/22464-81845-1-PB.pdf>.Acesso em: 30 setembro 2019. P. 738.

YARAK, Aretha. “Ser cobaia humana virou uma profissão”, diz pesquisador

Roberto Abadie, autor de The Professional Guinea Pig, revela os bastidores do mundo das cobaias humanas. 2010. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/saude/ser-cobaia-humana-virou-uma-profissao-diz-pesquisador/>. Acesso em: 30 setembro 2019.

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Bolsonaro e a Destruição da Amazônia

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Até quando o sujeito capitalista colocara o lucro acima de tudo e todos?

No dia de hoje, 27 de agosto de 2019, a Amazônia queima. De acordo com a página de notícias da UOL (2019), até o dia 20 de agosto foram registrados mais de 23 mil focos de incêndio. Esse cenário de destruição tem preocupado pessoas no Brasil e ao redor do mundo, fazendo com que aqueles que ainda se importam com a preservação ambiental, iniciem campanhas em favor da defesa da maior floresta do mundo.

Mas o que tem colaborado para essa destruição em massa? Por que em pleno século XXI, com o conhecimento que se tem sobre aquecimento global, derretimento das geleiras, poluição do ar e extinção de animais, o ser humano insiste em agredir o planeta Terra dessa forma?
Muitas respostas podem ser dadas a tais perguntas, e a maioria delas se relacionam com um sentimento específico, a ganância, ou a avareza, um dos sete pecados capitais. O indivíduo avarento tem sido responsável por grandes prejuízos ao planeta, colaborando assim para a piora da vida humana.

É possível nomear o período em que a avareza acertou o homem em cheio, ele se chama Capitalismo. Soares, Navarro e Ferreira (2004, p. 43) trazem que “O capitalismo subsidiado pela ciência e pela tecnologia moderna consolidou processos de desumanização da natureza e desnaturamento do homem.”, deixando claro o quanto a obtenção de riquezas através da exploração natural se colocava como objetivo maior no coração dos seres humanos.

Fonte: NASA

O capitalismo surgiu no século XV, quando o sistema econômico feudal faliu. Portanto, historicamente, ele possui mais de 400 anos de existência. 400 anos de existência baseados no ponto chave desse sistema, o lucro! Mas então, o que ficou de aprendizado desses 400 anos? Especialmente em relação a consciência ambiental, algo foi aprendido?

Quando se pensa em consciência ambiental, a primeira coisa que vem a mente é a preservação da natureza, o que não deixa de estar certo. Entretanto, o conceito de consciência ambiental é muito mais vasto do que isso, englobando e correlacionando muitas áreas da vida humana. Soares, Navarro e Ferreira (2004, p. 44) conseguem resumir muito bem dizendo

A relação campo e cidade, as desigualdades sociais, a consolidação de uma sociedade excludente estão associadas à corrupção ambiental, cujo resulto visível está nas favelas, na devastação ambiental, nas cidades problemáticas, nos refugiados ambientais, na violência urbana, no desemprego, na perda de valores associados ao trabalho e a construção de benefícios coletivos, na falta de credibilidade que é público, no abandono de crianças e adolescentes, fatores que configuram a busca de sobrevivências imediatas e dos valores descartáveis, descartáveis tais como os produtos expostos nas vitrines, produtos que consomem uma enorme variedade de recursos extraídos da natureza, que não são oferecidos como necessidades, mas como fetiche, como substitutos de egos, que se tornaram emblemáticos na sociedade de consumo que se traduz como democrática, pois teoricamente, todo esse poder ter está ao alcance dos ricos e dos pobres.

Dessa forma, ao pensar a existência humana no planeta Terra, entende-se que esta encontra-se diretamente relacionada às condições ambientais do lugar em que vive. E que a ganância em possuir mais riqueza, tem feito com que os indivíduos literalmente queimem suas próprias vidas.
No Brasil, as disputas de lados políticos tem cegado os cidadãos. Tal cegueira tem os impedido de verem que não importa se você é de direita, esquerda ou centro, no final, todos estarão sujeitos às consequências da destruição dos recursos ambientais.

Fonte: encurtador.com.br/cilqK

Frente a isso, vale a pena observar-se as ações que já foram feitas contra o meio ambiente nesses 8 meses do novo governo. Começando pelo desmonte do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que está sendo alvo constante das ações impensadas do presidente Jair Messias Bolsonaro. Tais atitudes de Bolsonaro tem colaborado para a diminuição das fiscalizações, o que consequentemente tem aumentado o desmatamento de áreas que antes estavam sob proteção do órgão.

Além disso, o presidente também iniciou uma liberação em larga escala de vários agrotóxicos que há muito tempo tinham seu uso proibido por causa da alta nocividade ao ecossistema e aos seres humanos. Essa decisão foi por ele justificada com a necessidade de impulsionar o agronegócio brasileiro, considerando tal lucratividade muito mais importante do que a saúde e bem-estar do povo brasileiro.

Como se não bastasse o estrago que já vem sendo feito, o governo trouxe a tona a questão do trabalho infantil como sendo bobagem, alegando que não existe trabalho infantil e que isso é só mais uma falácia de pessoas “vagabundas” que tem preguiça de trabalhar. Mais uma vez o lucro e o dinheiro são colocados como mais importantes, não importando o custo necessário para obtê-los.

Diante de tudo isso, a pergunta que precisa ser feita é “Até quando o sujeito capitalista colocara o lucro acima de tudo e todos?”. A resposta para essa pergunta envolve uma reflexão profunda, que acarretará na consciência de que se a destruição do meio ambiente continuar, a vida humana também será destruída. E qual o objetivo de tudo isso? Se o fim será falta de qualidade de vida, poluição e morte.

REFERÊNCIAS:
SOARES, Bernardo Elias Correa; NAVARRO, Marli Albuquerque; FERREIRA, Aldo Pacheco. Desenvolvimento sustentado e consciência ambiental: natureza, sociedade e racionalidade. Ciências & Cognição, Ilha do Fundão, v. 02, n. 1, p.42-49, jul. 2004. Disponível em: <http://cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/29>. Acesso em: 26 ago. 2019.

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E se a busca excessiva pela felicidade nos torna infelizes?

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Adotar pensamentos positivos de sucesso e felicidade, livrar-se dos negativos, esquecer-se de fracassos e viver sob a lógica de “você atrai o que você pensa” ou sob o culto ao “evangelho” do otimismo parece não chegar à solução desejada.

Pergunte a si próprio se você é feliz, e você deixa de sê-lo.
John Stuart Mill

Em uma sociedade obcecada pela busca da felicidade, somos paradoxalmente fracassados para encontrá-la. Ao contrário do que se imagina, a vida moderna pouco contribui para o aumento da felicidade da população. O acréscimo do capital das grandes nações e toda a facilidade advinda dos meios tecnológicos parece não ter ocorrido concomitante ao aumento do bem estar das pessoas. Talvez, sejamos a sociedade mais deprimida e cansada de todos os tempos.

Os adoecimentos psíquicos de hoje com alta prevalência tais como depressão, burnout, TDAH são, na perspectiva do filósofo contemporâneo Byung-chull Han, efeitos de uma sociedade da positividade, que se alimenta do excesso de tudo que maximize o desempenho das pessoas:  superprodução, superdesempenho e supercomunicação. Essa sociedade, na visão do filósofo, consequencia em uma geração vítima de infartos psíquicos: esgotamento e depressão. E este mesmo sujeito, esgotado e deprimido, encontra-se em uma busca desesperada por liberdade, maximização do desempenho, prazer e felicidade (HAN, 2017).

 Os livros de autoajuda, talvez a apoteose da sociedade pós-moderna na busca pela felicidade, são repletos de conteúdos tais como: 10 passos para a felicidade, 7 hábitos de pessoas de sucesso, como influenciar pessoas, como ter uma mente milionária e como desenvolver liderança etc. Eles demonstram que a busca por soluções simplistas para os problemas complexos dos homens é bastante rentável e popular. Alguns autores chamam de regra dos 18 meses para explicar que a pessoa mais inclinada para comprar um livro de autoajuda é a mesma que 18 meses antes comprou um livro deste gênero que, obviamente, não solucionou seus problemas e não trouxe a desejada felicidade. Não há pesquisas, de rigor científico, que comprovem a eficácia desses conteúdos.

Paradoxalmente,  as tentativas de eliminar tudo o que é negativo, como os  fracassos, as incertezas, tristezas, sofrimentos e a ansiedade não só não resolvem o problema, como podem torná-los mais poderosos, gerando vidas sufocantes e sem sentido. O fracasso dessas tentativas é exemplificado pelo psicólogo Daniel Wegner (1994) e a teoria do processo irônico: nosso esforço para evitar e eliminar pensamentos  e comportamentos negativos os tornam predominantes. Não existe abordagem simples para a felicidade. A imersão no positivismo e otimismo não nos deixa mais felizes.

Sem o propósito de demonizar a busca por soluções práticas aos incômodos da vida (eventualmente, elas são bem-vindas e necessárias), a intenção é estimular a reflexão que essa busca excessiva da felicidade, centrada no culto ao otimismo e anulação do negativo, é contraproducente! Isto porque as estratégias utilizadas são baseadas em soluções simplistas e universais que não comportam os problemas humanos complexos. Contraditoriamente, podem produzir resultados indesejados, ou seja, pode gerar mais infelicidade e insatisfação. Adotar pensamentos positivos de sucesso e felicidade, livrar-se dos negativos, esquecer-se de fracassos e viver sob a lógica de “você atrai o que você pensa” ou sob o culto ao “evangelho” do otimismo parece não chegar à solução desejada.

O psicólogo Steve Hayes tem uma abordagem interessante para explicar como a fuga de situações emocionalmente difíceis pode ser uma armadilha e acabar aumentando o problema. A linguagem teria um papel protagonista nesse cenário, isto porque somos ensinados, desde criancinhas, a discriminar e nomear não apenas componentes externos do mundo objetivo, mas também pensamentos, memórias, sentimentos e sensações corporais, os denominados eventos privados (SKINNER, 2003) ou subjetivos.  Nossa cultura e sociedade nos ensina que a felicidade é cotidiana e almejada e a tristeza é ruim e deve ser evitada, e se nos sentirmos tristes é porque temos um problema que deve ser encontrado e eliminado (SABAN, 2015).

Por meio da aprendizagem, somos instruídos  a atribuir o status de causalidade à sentimentos e pensamentos para explicar porque estamos em um determinado estado ou porque fizemos o que fizemos. Hayes denominou de “silogismo lógico” o sistema em que esse processo ocorre, que funcionaria sob cinco aspectos de raciocínio. 1) Todo comportamento é causado; 2) razões são causas; 3) pensamentos e sentimentos são boas razões; 4) os pensamentos e os sentimentos são causas e, finalmente, 5) para controlar o resultado devemos controlar as suas causas. Logo, por associação, acabamos chegando ao resultado de para controlar o resultado devemos controlar os sentimentos e pensamentos. (HAYES, 1987). Assim, trazendo esse raciocínio para nosso tema específico, a felicidade (um efeito) seria produto (causa) de pensamentos e sentimentos positivos. Talvez o mercado dos livros de autoajuda e o evangelho do otimismo  e da motivação sejam fundamentados nessa perspectiva.

Mas esse caminho é cheio de armadilhas! Sentimentos e outros estados privados não são passíveis de controle direto. Um exercício bobo, porém didático, para ilustrar esse pressuposto: experimente não pensar, durante um minuto, em urso polar. Conseguiu? Eu imagino que não. Vamos tentar mais uma vez: agora imagine que você está conectado a um detector de mentiras de excelente precisão  e que pode captar qualquer reação de ansiedade sua. Então, você recebe a instrução de que você não pode de maneira alguma sentir ansiedade e, caso você sinta, levará um tiro na cabeça. Advinha o que você sentirá?

Hayes (1987) assinala que não precisamos mudar sentimentos e pensamentos para modificar outros comportamentos ou ter uma vida bem sucedida. O problema, na verdade, não seriam os pensamentos e sentimentos, mas nossa tentativas de controle e nossa fugas que visam eliminar vivências subjetivas aprendidas como “negativas” tal como a tristeza, o oposto da felicidade.

Quantas decisões tomamos na tentativa de eliminar incômodos, desconfortos, incertezas?  Vivências subjetivas estas que aprendemos serem negativas e contraditórias à felicidade. É claro que fugir de eventos difíceis e dolorosos (os aversivos!) têm um valor importante para nossa sobrevivência. No entanto, se dependermos de eliminar tudo o que é negativo para sermos felizes, jamais seremos. E negar esse “lado” da experiência humana pode resultar em alívio imediato (um reforço negativo), mas em longo prazo produz vidas de desespero, medo, ansiedade e, conforme bem colocou Sidman (1995, p. 231) “esmaga a engenhosidade e a produtividade, transforma a alegria em sofrimento, confiança em si em medo e amor em ódio.” As coisas dão errado, relacionamentos acabam, demissões acontecem e as pessoas morrem! A vida não é um laboratório! Uma porção de eventos são incontroláveis e nos esquivar de tudo que é ruim e tentar cultivar sempre pensamentos positivos não parece produzir os resultados que são vendidos por aí.

Viver plenamente, na abordagem do psicólogo Hayes, não significa não vivenciar sentimentos, pensamentos, sensações corporais e memórias, mas vivenciá-los como de fato são: sentimentos, pensamentos, sensações corporais e memórias que se transformam em um fluxo contínuo de experiências e contextos. Ou seja, seus pensamentos e sentimentos fazem parte de você, mas  não são você.

 Precisamos superar a ruminação e planejar saídas reais para o que nos paralisa, para o que nos torna infelizes. Aprendemos a primeiro nos sentir motivados e com vontade de agir para, então, agir, mas que sentido tem esperar se sentir como se estivesse fazendo algo ANTES de fazê-lo? Somos tão incrivelmente dinâmicos e versáteis e temos a capacidade de coexistir com a “vontade de não fazer” e, ainda assim, fazer, por exemplo.

Para além do que já foi discutido, não podemos deixar de lado a existência de uma “indústria da felicidade” que associa o consumo de bens à experiências felizes e produz lucros gigantescos para o capitalismo. A Coca-Cola indica: abra a felicidade! O Magazine Luiza chama: vem ser feliz! E o Baú da Felicidade está há 50 anos associando produtos e dinheiro à felicidade. Através da mídia, somos bombardeados de narrativas e imagens de pessoas alegres, sorridentes e esteticamente consistentes com o padrão cultural vigente e suas histórias de sucesso e  felicidade emparelhadas a roupas, calçados, celulares, cerveja, carros, status social etc. Em contrapartida, a “felicidade” gerada pelo consumo de bens parece não ter duração e profundidade em sua natureza. Ao que é possível perceber, é, na verdade, instantânea,  frágil e fugaz. Pegando emprestado o termo de Bauman sobre a sociedade pós-moderna, é possível compreender que esse tipo de felicidade (se é que podemos denominar assim) é, na verdade, líquida: ela escorre pelas mãos e não tem durabilidade. Citando a psicóloga Lauriane Santos em seu post em uma rede social: sapatos novos calçam pés, roupas novas vestem corpos. Nenhum deles traz felicidade… talvez tragam uma euforia pontual, a qual é dissolvida na próxima coleção primavera-verão.

Ser feliz é uma meta? Certamente, muitas pessoas responderiam que sim. Quando somos questionados sobre o que desejamos da vida é comum a resposta: ser feliz! Ou mesmo, ter dinheiro e ser bem sucedido, muitas vezes concebidos como sinônimos de felicidade.

Metas são objetivos a serem alcançados e são planejadas com tempo pré-definido para ser operada e gerar os resultados. Mas se a felicidade é uma meta, e metas têm prazos de validade, estaria a felicidade condicionada ao eterno cumprimento de metas? Eleger a felicidade como meta talvez não seja efetivo. O filósofo Han é categórico ao afirmar que  “o sentimento de ter alcançado uma meta definitiva jamais se instaura […] não é capaz de chegar à conclusão. A coação do desempenho o força a produzir mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação” (2015, p. 85). Nos aniversários, nas festas de réveillon, nas mudanças e conquistas, desejar felicidade ao outro faz parte de uma prática verbal culturalmente estabelecida e mantida.  E aqui cabe mais uma reflexão: a felicidade parece estar sempre em algum lugar que não seja o presente; parece que habita não o agora, mas um futuro que custa chegar (ou nunca chega). Parece que as coisas que mais tememos e desejamos se encontram em um lugar não vivido: o futuro.

Essa é mais uma armadilha da felicidade. É óbvio que podemos (e devemos) planejar e prever situações futuras que nos gerem boas vivências subjetivas. O problema reside no fato de estarmos demasiadamente presos às expectativas de felicidade futura e nos resignarmos do único momento que nos pertence: o agora.

Outra “face” da felicidade é a segurança, que seria consequência de controle, previsibilidade e rigidez. No entanto, há um erro importante já explorado anteriormente: o controle é frágil e a busca desenfreada por segurança pode até nos deixar mais inseguros. A única constante da vida é sua impermanência! E se viver é estar em um constante fluxo de experiências, interações com outrem e com coisas, alternâncias entre perdas e ganhos, dor e gozo… se a vida é, em uma inerência, finita, talvez o que nos paralisa, o que nos entristece não seja essa “sentença”, mas a tentativa contraproducente de eliminá-la e de fugir dela. Mais uma vez reitero que a busca por segurança também tem um valor importante para a sobrevivência, a questão discutida são os excessos do controle de processo naturais da vida, mas que são aprendidos como negativos e acabam se tornando alvos de esquivas, como as tristezas e ansiedades.

E então, o que deixa as pessoas felizes? A famosa pesquisa de Harvard do Departamento de Desenvolvimento Humano,  respondeu ao questionamento sobre o que faz as pessoas felizes e saudáveis.  Por 75 anos, monitoraram 724 homens. Dois grupos: secundaristas de Harvard e garotos de um dos bairros mais pobres de Boston. A abordagem da pesquisa envolveu desde questionários e conversas com familiares, a exames de sangue e tomografia dos  cérebros. Não é a fama, a riqueza, ou trabalhar mais e mais, a mensagem mais clara é: bons relacionamentos nos mantém felizes e saudáveis.  Conexões sociais com a família, comunidade e amigos são importantes e a solidão mata. Não se trata da quantidade de pessoas próximas e não é casual estar em um relacionamento amoroso ou casado produzir, necessariamente, felicidade. O importante é a qualidade dos relacionamentos de proximidade que as pessoas nutrem (MINEO, 2017).

No leito de morte, é provável que seja difícil encontrar alguém que deseja ter passado mais tempo trabalhando, por exemplo. Em síntese, relacionamentos íntimos de qualidade são melhores preditores de felicidade e saúde do que genes, QI, status social e dinheiro (MINEO, 2017). É uma conclusão que vai ao encontros de sabedorias antigas e confronta o culto vigente da felicidade condicionada a consumo de bens.

“O dinheiro não traz felicidade!” Talvez Bill Gates e um morador de rua tenham visões diferentes ante essa afirmativa. A questão que fica é: tendo suas necessidades básicas contempladas,  o dinheiro traz felicidade? No Japão, uma das maiores potências  do mundo, é um país rico, mas infeliz. A “obsessão “ dos japoneses pelo desenvolvimento econômico pode ter sua raiz na necessidade de reerguer o país após destruição da Segunda Guerra Mundial. A questão é que o índice de suicídio e overworking (morte por excesso de trabalho, originalmente conhecido lá como “karoshi”) são assustadores e ascendentes. As pessoas estão morrendo de tanto trabalhar! (GORVETT, 2016)

Paralelamente, o pequeno país Butão concebe a felicidade como responsabilidade do governo, que tem o dever de dispor condições favoráveis a ela para sua população. Lá foi criado a Felicidade Interna Bruta (FIB) como indicador de desenvolvimento da nação, pautada em valores de colaboração, convivência com a comunidade, respeito a natureza, espiritualidade. É um modelo alvo de algumas críticas, no entanto, apresenta parâmetros na direção de sérias pesquisas sobre a felicidade como sendo uma consequência não do consumo de coisas, mas de relações de qualidade.

A Dinamarca, nação com alto padrão de vida e igualdade social, com educação gratuita até a faculdade e saúde universal para toda a vida é um dos países mais felizes do mundo. Para além disso, o que deixa realmente os dinamarqueses felizes, de acordo com o economista Cristian Bjonrskov, é o alto nível de confiança que as pessoas têm entre si e nas instituições (PREVIDELLI, 2014).

Por fim, este texto não tem a pretensão de esgotar as discussões sobre a felicidade nos tempos atuais e outras perspectivas, não abordadas aqui, podem dialogar e até mesmo apresentar posicionamentos contrários ao que foi exposto. O diálogo é bem vindo e deve acontecer. Mas por ora, é isto! E para finalizar, gostaria de levar o leitor a uma última reflexão: imagine a felicidade de algo muito bom te acontecer, como realizar um grande sonho…

Ainda terá sentido se você não tiver alguém importante para compartilhar?

Happiness only real when shared (Into the wild, 2008)

REFERÊNCIAS: 

GORVETT, Z. ‘Morrer de tanto trabalhar’ gera debate e onda de indenizações no Japão. BBC News, 2016. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-37463801>. Acesso em 01 dez. 2016.

HAN, B. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

HAYES. S. C. A Contextual approach to therapeutic change. In N. Jacobson (Ed.) Psychotherapists in clinical practice: Cognitive and Behavioral Perspectives. New York: Guilford, 1987, p. 327-387. Tradução experimental Adriana C. B. Barcelos; Verônica Bender Haydu. Disponível em: <http://www.uel.br/grupo-estudo/analisedocomportamento/pages/arquivos/Hayes_%20Texto%20ACT.pdf>. Acesso em 20 mar. 2017.

MINEO, L. Goog genes are nice, but joy is better. The Harvard Gazette. Health & Medicine. 2017. Disponível em:<https://bsc.harvard.edu/links/good-genes-are-nice-joy-better>

SABAN, M. T. Introdução à Terapia de Aceitação e Compromisso. Belo Horizonte: Artesã. 2015.

SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SIDMAN, Murray. Coerção e suas Implicações. Campinas: Psy. 1995.

PREVIDELLI, A. O que torna a Dinamarca o país mais feliz do mundo. Abril, 2014. Disponível em:<https://exame.abril.com.br/mundo/o-que-torna-a-dinamarca-o-pais-mais-feliz-do-mundo/>. Acesso 01 dez. 2018.

WEGNER,  .D. M. Ironic processes of mental control. Psychol Rev. 1994 Jan;101(1):34-52. Disponível em:<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/8121959>. Acesso em 02 dez. 2018.

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Epidemia de Doenças Mentais em Tempos de Capitalismo Ultraliberal

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Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será que ampliamos tanto o espectro do que é considerado “patológico” que transformamos quase tudo em doença mental?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda assim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

 

Fonte: https://goo.gl/hx2jx7

A novela Machadiana, O Alienista, ilustra bem esse incômodo ético. Simão Bacamarte é o médico que envereda pelo ramo da psiquiatria e que, autorizado pelo rigor da sua ciência, acaba por internar todos os cidadãos de Itaguaí, até que só resta ele mesmo fora do hospício. Publicada pela primeira vez em 1882, o texto de Machado de Assis nos soa mais como uma profecia. Hoje, o DSM – Bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo que está na sua V edição – transforma quase todos os nossos mal-estares em patologia.

Mas, diante das três questões que levantei no início do texto, defendo que, a última responda mais ao que temos tomado como direção em nossos tempos de capitalismo ultraliberal. Ampliamos sobremaneira o limite utilizado para diagnosticar os males que atormentam nosso ser, transformando-os em alguma doença, de preferência medicalizável. E seria ingenuidade pensar que isso se deve a um suposto avanço científico que “descobriu” novas doenças. A verdade é que “fabricamos” novas doenças, e para um propósito muito simples, para que sejam vendidas no mercado.

Fonte: https://goo.gl/BkZ6x2

Dany Dufour – em A arte de reduzir as cabeças – vai dizer que, o avanço do capitalismo, representa a morte do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano; ambos sujeitos modernos. Ele nos lembra que, tal como formula Lacan quando nos diz que “o inconsciente é a política”, esse Outro que já está posto aí quando chegamos ao mundo não é um organismo fixo, ele modifica ao longo do tempo, o que, consequentemente, interfere no tipo de sujeito que irá emergir em determinada época. Assim sendo, o sujeito dos nossos tempos – balizado pelo Outro da política do capitalismo ultraliberal – seria o sujeito pós-moderno; um sujeito sem limites. Na busca da radicalidade da sua “liberdade” tal sujeito rejeita se submeter a qualquer tipo de categoria ou determinação, seja no campo da sexualidade, da identidade ou da geração. Ao rejeitar o recalque como estratégia, acreditando que assim teria mais garantia de satisfação, o sujeito pós-moderno favorece a plenitude do capitalismo, afinal, quanto menos barreiras (externas ou internas), mais interessante a esse modelo político-econômico. Se o sujeito que faz mover o capitalismo é o consumidor, ele é tanto mais interessante quanto mais flexível, descontruído e mutante for. O novo capitalismo, dirá Dufour, tem como objetivo principal destruir sistematicamente todas as instituições e todas as referências culturais e simbólicas que possam entravar a livre circulação das mercadorias.

Mas, voltando ao tema dessa nossa psiquiatria que serve ao mercado de consumo, é curioso que, em tempos de defesa irrestrita a tantas “liberdades individuais”, as diferenças que emergem sejam cada vez mais capturadas pelo mercado, incluindo o de diagnósticos e medicamentos. Atenta a tanta diversidade, a indústria farmacêutica – uma das três mais poderosas do mundo – não para de crescer e de se diversificar. Todo dia há uma nova pílula para cada novo mal-estar do ser.

Fonte: https://goo.gl/g2z98E

E enquanto o sujeito freudiano tinha interesse em decifrar seu mal-estar, interrogá-lo para saber mais sobre seus sintomas e o véu que os encobria, o sujeito pós-moderno não quer saber nada sobre isso, na medida em que não acredita que haja qualquer simbólico que o anteceda e o determine de algum modo. O sujeito pós-moderno parece querer viver sem referências, ou seja, sem passado, usa o seu presente para consumir e o futuro para pagar a fatura do cartão. E, sem uma barreira identitária ou simbólica que o marque e que o determine em seu passado, temos sujeitos que não se sentem impelidos a escolher entre uma coisa e outra, já que eles podem, tranquilamente, querer as duas coisas. E se sabemos que desejar implica em escolher entre uma coisa e outra, o sujeito que interessa ao nosso tempo não deseja, pois ele quer tudo. Então, que consumidor maravilhoso ele se tornou!

Para esse mal-estar sem passado, sem recalque e sem desejo, resta a prateleira de medicamentos, que serve muito bem à nossa epidemia de doenças do ser, chamadas de mentais, quem sabe apenas para caber no discurso da ciência. Talvez não seja possível resgatar o sujeito freudiano, mas, talvez seja necessário sustentar uma ética do desejo, tal como a psicanálise propõe. Isso significa escutar o sintoma como algo que diz da matéria-prima da qual fomos feitos e que serve, sobretudo, para nos manter desejantes. Tal ética inaugurada por Freud nos alerta que é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.

Nesse sentido, o deprimido de nossos tempos, talvez, seja menos doente do que supomos. Quem sabe seja apenas esse sujeito que foi alijado do desejo e que, consumindo a si mesmo, nos denuncia que consumir não é a saída?

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Como se sentem os professores do mundo líquido-moderno?

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No presente ensaio, pretende-se explorar através do conceito de mundo líquido-moderno criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um panorama entre a dinâmica social atual e a realidade profissional dos professores da Educação Básica no Brasil. Em paralelo, a visão do sociólogo Richard Sennett e o conceito de corrosão do caráter serão empregados para elucidar a as relações de trabalho no capitalismo atual.

A sociedade pós-moderna tem como características principais a fluidez nas relações e a rapidez como as mudanças acontecem. Para viver na sociedade atual, os indivíduos devem, portanto, se adaptar rapidamente às mudanças e a capacidade de consumo sob o risco de serem ‘descartados’ como lixo caso não provem sua utilidade dinâmica. Porém, tamanha flexibilidade exigiria um custo sobre os valores pessoais dos indivíduos e seu caráter.

Assim como outros profissionais, os professores da Educação Básica no Brasil estão inseridos em tal dinâmica, que pode ser causadora de conflitos e adoecimento. A dinâmica atual se apresentaria como paradoxal para esses profissionais uma vez que, ao mesmo tempo que impelidos pela sociedade a buscar flexibilidade, volatilidade, satisfação imediata e consumo; encontram uma realidade com longas carreiras, um sistema rígido de normas e muitas vezes com baixa remuneração; estabelecendo um mal-estar generalizado, que favoreceria o acometimento por enfermidades mentais.

Fonte: https://goo.gl/7tB2xc

Professores do mundo líquido-moderno: um panorama de mal-estar

A sociedade atual se encontra em constante mutação, e a todos que vivem nela cabe uma parte nessas transformações. Vivemos em condições precárias de incerteza constante. A rapidez com que ocorrem as relações atuais torna a ideia de estar parado ou “ficar para trás” algo insuportável. Logo, todo aquele que não se recria, é descartado como lixo (BAUMAN, 2009).

Diante de tal realidade, a vida se torna algo cada vez mais desafiador, uma vez que pode ser comparada a uma dança das cadeiras. Os ganhadores do jogo garantiriam (mesmo que temporariamente) a chance de não ser descartados, enquanto os perdedores entram na categoria de “destruídos” (BAUMAN, 2009). Tal dinâmica também se aplica ao âmbito profissional.

Diante de uma tônica de descartabilidade, os compromissos revogáveis e fluidos orientam os engajamentos em novos contratos (BAUMAN, 2009). O capitalismo atual vive um momento caracterizado pela natureza flexível, que questiona as formas burocráticas e os significados da antiga dinâmica das relações de trabalho. A flexibilidade causaria uma sensação de constante ansiedade, uma vez que riscos e caminhos podem não ser compensados (SENNETT, 2009).

Fonte: https://goo.gl/EhQyhp

A flexibilidade causaria, portanto, um impacto no caráter pessoal, uma vez que este seria compreendido como um “aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional […] expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro” (SENNETT, 2009, p. 10). Para tanto, as novas dinâmicas de trabalho favoreceriam aspectos contrários aos definidos como caráter: como relações de curto prazo, compromissos voláteis, e busca de satisfação imediata.  No mundo líquido-moderno, lealdade é motivo de vergonha (BAUMAN, 2009).

Nesse panorama, como é estar na linha tênue entre a fluidez e ser um profissional em áreas que ainda exigem longas carreiras em uma mesma função? Que exigem lealdade e compromisso mútuo? Que valorizam o conceito de “caráter”? Esse é o caso de professores (as) da educação básica no Brasil.

Uma pesquisa realizada em 2015 pela especialista em educação, Ieda Benedetti, com professores da rede municipal, estadual e particular de Presidente Prudente (SP) apontou que a cada dez profissionais, dois tiveram que se afastar por problemas de saúde. Segundo a pesquisa, dos 1.203 trabalhadores, 276 deixaram de atuar por afastamento médico, cerca de 23%. Entre os profissionais estudados, a pesquisadora registrou que 26% dos afastamentos se deve por questões psiquiátricas, como estresse, fobias e síndrome do pânico. Para a pesquisadora, o principal motivo seriam os estresses causados ao longo dos anos em sala de aula (G1, 2015).

Fonte: https://goo.gl/yHy8Ai

Transformações sociais, políticas e econômicas de maneira brusca, lançaram novos desafios ao sistema de ensino e particularmente aos professores. Sua capacidade de resposta a uma realidade mutável e exigente, cobra dos professores um ajustamento às exigências sociais, profissionais e tecnológicas. A reação à realidade pós-moderna ‘colorida’ e ‘fluorescente’ seria de surpresa no inicio, mas depois, de tensão, desconcerto e agressividade, uma vez que esses profissionais não têm consciência da origem de tais mudanças (PICADO, 2007).

As instituições de confinamento dos corpos estariam sofrendo uma crise na relação com o mundo de fluidez e aceleradas desterritorializações, onde o homem disciplinado passa ao consumidor. A escola passaria para a qualidade de um mercado de serviços, projetos e produtos para seus usuários, sendo a capacidade de consumo dos modelos a referência para a ascensão ou fracasso no meio social. Na sociedade de ‘(in)formação’, os vetores sociais redimensionados são a aceleração, o isolamento, a individualização e a competitividade; de modo que o controle social se dá por meio das tecnologias de informatização e marketing, bem como  capitalismo empresarial na lógica de curto prazo e mutante (HECKERT; ROCHA, 2012).

O novo capitalismo teria a capacidade de afetar o caráter dos indivíduos, não oferecendo condições lineares de vida (SENNETT, 2009), porém, exigindo uma vida de consumo, que molda o julgamento de tudo que existe como objetos a serem consumidos. Para tanto, os próprios indivíduos devem se apresentar como mercadorias, uma vez que demonstrar seu próprio valor de uso seria a única maneira de poder ter acesso a vida de consumo (BAUMAN, 2009). Tais aspectos se demonstram um problema na realidade atual de professores que tem perspectivas longas de carreira e salários aquém da realidade voraz de consumo.

fonte: https://goo.gl/wqZCNM

Segundo levantamento realizado pelo Inep no ano de 2017, Os professores da educação básica pública ganhavam, em média, R$ 3.335 no País, em 2014. A rede municipal, que concentra 59% dos professores da educação básica, é a que tem a menor média salarial, de R$ 3.116,35 por carga horária de 40 horas semanais. Porém, para Priscila Cruz, diretora do Movimento Todos pela Educação, os números médios em educação em um país de realidades diversas não dizem muito, pois colocaria no mesmo lugar professores iniciantes com profissionais de longa carreira, de modo a não retratar a realidade (ESTADÃO, 2017).

Os conflitos identitários envolvendo a carreira, a dicotomia em relação à configuração social e a configuração escolar, e uma possível inadequação à dinâmica de consumo geram consequências para o mal-estar docente. De acordo com Picado (2007) entre as decorrências da angustia dos professores estão, o desconforto e insatisfação frente aos problemas da prática docente; Desenvolvimento de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal com o trabalho; Desejo de abandonar a docência; Esgotamento e cansaço físico permanente; Ansiedade, depressões, estresse e enfermidades mentais; e auto-depreciação e auto-culpabilização frente à incapacidade para melhorar a educação.

As visões de Bauman e Sennett sobre sociedade, capitalismo e trabalho, frente à realidade dos professores da Educação Básica no Brasil, refletem um panorama cada vez mais global e generalizado, o mal-estar. As inconstâncias passaram a ser a tônica da vida, e a nível profissional, afetando as mais diversas áreas.

Fonte: https://goo.gl/eCJuox

O não-ajustamento à dinâmica social atual fomentaria um sentimento de angústia generalizada, frente à impossibilidade de acompanhar as mudanças repentinas e bruscas, bem como a dinâmica capitalista atual de consumo extremo. O mal-estar docente frente a esses aspectos se torna um fator contribuinte para o aparecimento de transtornos e acometimentos psicológicos, minando a saúde mental desses profissionais da educação, causando consequências óbvias para a qualidade de ensino.

Políticas públicas que favoreçam a promoção de saúde mental para os professores da educação básica poderiam diminuir esse sentimento de mal-estar. A atuação de psicólogos nas escolas públicas com trabalhos voltados à saúde mental dos professores, mesmo que com diversas realidades, poderia ser fomentadora de autonomia e individuação para esses profissionais através de uma visão social-comunitária, uma vez que essa crise tem bases em aspectos sociais. Para tanto, é necessário que haja um engajamento com a realidade desses sujeitos, que há muito se encontram em situação de negligência perante o poder público.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Zahar, p. 7-55, 2009.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: impactos pessoais no capitalismo contemporâneo. São Paulo, Record: p.10-53, 2009.

HECKERT, A. L; ROCHA, M. L. A maquinaria escolar e os processos de regulamentação da vida. Psicologia & Sociedade 24 (n.spe): p. 85-93, 2012.

PICADO, L. ANSIEDADE, BURNOUT E ENGAGEMENT NOS PROFESSORES DO 1º CICLODO ENSINO BÁSICO: O Papel dos Esquemas Precoces Mal Adaptativos no Mal-Estar e no Bem-Estar dos Professores. Lisboa, Universidade de Lisboa: p. 61-73, 2007. Disponível em: < http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/970/1/18809_ulsd_re146_Ansiedade.pdf>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

G1 Presidente Prudente. Estresse é a principal causa de afastamento entre professores. Globo Comunicação e Participações S.A, 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2015/08/estresse-e-principal-causa-de-afastamento-entre-professores.html>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

Estadão. Professor ganha em média R$ 3.335, diz Inep. Grupo estado, 2017. Disponível em: <http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,professor-ganha-em-media-r-3335-diz-inep,70001854727>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

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