Por Trás da Loucura

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Os loucos, doidos, insanos, sandeus, desassisados, dementes ou alienados mentais, assim eram considerados os portadores de transtornos psicológicos no passado, ditas pessoas que não tinham compreensão sobre si e eram incompreensíveis para os outros. (BENKE; SANTOS; MALACARNE, 2019). Assim como na história da histeria, a loucura já passou por diversos tipos de olhares no passado, modos de se enxergar. Ela perpassa através do tempo por períodos imemoriais, sendo abordada e observada socialmente através das lentes da Filosofia, da religião, da Medicina, em que nesta última pode-se subdividir as maneiras em que se enxergava os considerados insanos. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Afinal, o que é ser considerado um louco? Existiram diferentes concepções do que seria loucura no passado, onde são contextualizadas nas próximas linhas.

A loucura no passado

Os ditos loucos eram tratados de diversas formas dependendo do período em que viviam, as causas da loucura já foram bastante ligadas ao sobrenatural. Uma teoria bastante aceita era de que esse sobrenatural dominasse o corpo da pessoa, a cura da doença seguia pela expulsão do espírito maligno para fora do corpo, e isso consistia em um caminho físico para a saída do espírito. Em tempos antigos, na Idade da Pedra, os achados da arqueologia e antropologia  mostram evidências de uma prática chamada trepanação, essa prática consistia em realizar um furo no crânio do sujeito para que os espíritos assim saíssem do seu corpo. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003).  Na idade média, eles eram considerados como casos de possessão demoníaca, onde haveria duas possibilidades, a possessão do corpo, tomando o controle dele, e a outra, a alteração das percepções e emoções do indivíduo. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Se usava de diversas maneiras para retirar ou acalmar o demônio no corpo de alguém, músicas, orações, e até substâncias que induzem o enjôo e vômito. Nos períodos seguintes, os maus tratos com fins de cura consistiam na submersão na água fervente ou água gelada, no espancamento, em deixar o indivíduo sem ter o que comer e a tortura. “Uma das soluções era a de tornar as coisas tão desagradáveis quanto possível ao diabo, para o levar a fugir.” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). p.1031). Os tratamentos desumanos que recebiam não faziam com que o demônio saísse ou em outras palavras, o indivíduo se curasse. Por conta dos diversos procedimentos que acometiam o dito louco, seu quadro de saúde acabava piorando, além de serem submetidos a outros tipos de torturas, os que eram considerados com alto nível de periculosidade pela sociedade acabavam sendo mortos (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003.

Quando se passa o período da Idade Média, os conceitos defendidos por Hipócrates sobre a loucura prevalecem, de que a loucura tem o delírio como marca da insanidade, “sendo as perturbações intelectuais a condição principal para o diagnóstico da loucura”. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014, p.124). A loucura vai deixando de ser considerada por grande parte da sociedade como algo que provém de causas sobrenaturais e passa a ser objeto de tratamento da Medicina. Isso inaugurou na Medicina a Psiquiatria como especialidade em 1801, com Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Após a saída desse universo que abordava a loucura na visão mágica e religiosa, entrou-se em outro universo onde aborda a loucura como um objeto que tinha causas naturais, uma doença. Mas assim como nos períodos anteriores, a sociedade não tinha e não tem um histórico de simpatia com os ditos loucos, na melhor das hipóteses eles eram considerados como um incômodo, e nas piores uma ameaça, e por isso parecia que poderiam estar numa situação melhor se fossem segregados. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003).

Trepanação – Trepanação. Crânio pré-histórico trepanado, encontrado no Peru. Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.

Assim os hospitais específicos foram fundados que tinham como objetivo o “tratamento” da “loucura”, eles passaram a ser construídos em toda a Europa, e sua função era segregar os loucos do resto da sociedade, mas não só os loucos, como também “criminosos, vadios, idosos, epilépticos, doentes incuráveis de toda a espécie e os mentalmente transtornados” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Como dito anteriormente, os tratamentos não melhoraram com esse modo de olhar a loucura como doença com causas naturais. Os tratamentos eram bastante desumanos, um relato sobre um dos maiores hospitais para mulheres em Paris no século XIII segundo Gleitman, Fridlund, Reisberg (2003, p. 1032 apud FOUCAULT, 1965, p. 72). As mulheres loucas, com ataques de violência, são acorrentadas como cães às portas das celas e isoladas do pessoal e visitantes, por um longo corredor protegido com uma grade de ferro; por esta grade, passa a comida e a palha em que dormem; parte da imundície que as rodeia é limpa por meio de forquilhas.

Neste período, as pessoas achavam que os loucos eram como animais selvagens, por isso deveriam ser enjaulados por serem considerados perigosos. Assim, alguns hospitais começaram a tratar os pacientes como espetáculos de circo. Eles passaram a ser exibidos e haviam pessoas na época dispostas a pagar por uma visita. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Portanto, a história por trás da loucura traz relatos onde se pode ver todos os tipos de tratamento que os ditos loucos recebiam, na maioria das vezes desumanos, onde se causava a segregação, a humilhação, a tortura ou a morte.

A loucura e a extinção dos manicômios

Na Europa e EUA, após a segunda guerra, inicia uma perspectiva mais humanista na forma de tratamento da loucura,  onde surgem movimentos contrários à forma tradicional de lidar com ela. Os movimentos antipsiquiatria se engrandeciam principalmente na França e na Inglaterra. Já no Brasil, iniciou-se um movimento em 1970, a partir da presença de violência em asilos e condições péssimas de trabalho dentro das clínicas e manicômios. A proposta que a loucura trazia tradicionalmente, fazia com que houvesse uma institucionalização dela, e que fosse somente objeto de estudo da medicina fazendo com que o médico fosse  seu guardião. Mas nos anos seguintes, com a reforma caminhando, houve a inserção do psicólogo nas instituições de saúde pública, a desospitalização progressiva, e tratamentos mais humanizados foram ganhando força a partir dos movimentos, em destaque o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Com a realização do I Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, fica mais evidente a luta antimanicomial e o progresso nas diretrizes para realizar mudanças. Não só o Psicólogo foi inserido nas instituições, mas também terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, pois o tratamento deveria ser multidisciplinar. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).

Hospitais Psiquiátricos na Espanha – Obra: (Asilo de Loucos, c. 1 8 1 0, Francisco Goya, Accadernia S. Fernando, Madrid; gentileza do Art Resource). Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.

Ainda no Brasil, o fim da era manicomial vai ganhando mais força com o passar dos anos.  Desenvolve-se um jeito de lidar com  loucura em um outro contexto, criando uma maior acessibilidade e atendimento para pessoas que possuem algum transtorno mental severo, e também para que tenham condições de ter uma vida melhor. Logo, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) foram criados para dar um outro tipo de tratamento a essas pessoas. Com o primeiro CAPS inaugurado em 1987 e o NAPS em 1989, as instituições de atenção rompem com a maneira tradicional que entendia o sofrimento psíquico perante as doenças mentais, e traz uma atenção maior ao sofrimento psicológico do sujeito, com enfoque no indivíduo (SURJUS; CAMPOS, 2011).

Os portadores de doenças mentais já sofreram bastante no passado, alvos de humilhações, da segregação e morte, todos esses acontecimentos decorrem da maneira como a loucura era conceitualizada. Os tratamentos selvagens que recebiam tanto pela visão religiosa e mágica como também pelas instituições de tratamento da loucura faziam com que a saúde dos portadores fossem afetadas de maneira mais grave, não ocasionando em uma melhora. Com movimentos realizados nos EUA, Europa e Brasil tentando trazer essa visão mais humana, cria-se no Brasil instituições de atenção voltadas à saúde mental com o progresso da extinção dos manicômios. Tudo isso ocorre em um enorme espaço de tempo.

Portanto, com o fim da era manicomial há um início da desconstrução da imagem dos portadores de transtornos mentais, desconstrução dos tratamentos e um novo conceito de atenção à saúde mental é criado, trazendo mais humanidade e maior qualidade de vida, pois o  louco também é humano.

“Por uma sociedade sem manicômios”.

REFERÊNCIAS 

GLEITMAN, H.; FRIDLUND, A. J.; REISBERG, D. Psicologia. 6º ed. Lisboa, 2003.

BENKE, B. C.; SANTOS, E. S.; MALACARNE, V. I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico. Diaphonía, 2019, v. 5, n.1. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/diaphonia/article/view/22783. Acesso em: 08 Jul. 2021.

FIGUEIRÊDO, M. L. R.; DELEVATI, D. M.; TAVARES, M. G. Entre Loucos e Manicômios: História da Loucura e a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Maceió, 2014. v. 2 – n.2 – p. 121-136. Nov. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/1797. Acesso em: 08 jul. 2021.

LIMA, L. T.; CAMPOS, Silva S. R. O. A avaliação dos usuários sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Campinas, SP. Campinas, 2007. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, março 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/JpZJRGK7JZJJFmYHQWsfqvq/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 18 jul. 2021.

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Como surgiu a instituição manicomial?

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Fazendo um breve levantamento, na Idade da Razão (séc. XVIII), época da Revolução Francesa, processo marcado por inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, influenciou, e influencia até hoje, na forma de compreender a saúde mental.  Philippe Pinel (pai da psiquiatria) foi extremamente participativo e atuante nos acontecimentos da Revolução Francesa, tendo seu nome atrelado a alienismo (AMARANTE, 2011).

O Hospital, enquanto instituição de saúde, principal espaço do exercício das ciências médicas, nasceu em meio a Revolução Francesa. Anteriormente a realidade e a finalidade dos hospitais eram outras. Amarante (2011) relata que o hospital foi criado na Idade Média e era uma instituição médica, e sim uma instituição de caridade, pois o objetivo era dar abrigo, assistência religiosa e alimentação aos pobres, desabrigados e doente.

Rosen (1994), aponta que no nível primitivo de conhecimento, as explicações e a prática quase sempre se baseavam no sobrenatural. Este cenário mundo com a medicina moderna, originando questionamentos baseadas em dados empíricos de investigação e observação, diferenciando sintomas e buscando explicações racionais.

Os médicos antigos e medievais, em geral, não distinguiam as diferentes doenças e se preocupavam, ao invés, com vários grupos de sintomas. Explicavam-se as evidências de desordem na saúde por meio de teorias sobre a mistura anormal dos fluidos do corpo (humoralismo) ou acerca dos estados, construídos ou relaxados, das partes sólidas do corpo (solidismo). Enquanto essas concepções de saúde prevaleciam, os médicos não podiam concentrar-se em sítios da enfermidade. (p.33)

A Revolução Industrial beneficiou muito o desenvolvimento das cidades, ni entanto houve também um maior acúmulo de lixo, o que acarretou doenças e todo o tipo de mazela social. Era necessário para o bem comum, livrar-se de todo o refugo social e “limpar” as cidades. Devido toda a constituição econômica, cultural e social na idade Medieval, era comum a aglomeração de pessoas. Visto que a maioria da população que constituía essas cidades conservava hábitos do campo, dentre eles, a criação de animais de pequeno e grande porte, o que facilitava o acúmulo de sujeira e excrementos resultantes de tal prática (ROSEN, 1994).

Fonte: encurtador.com.br/aflqG

Diante de tal cenário, o crescimento de instituições hospitalares deu-se de forma importante. As cidades cresceram, práticas de saneamento foram sendo retomadas, era necessário varrer as ruas de toda imundície produzida, e nesse aspecto considerava-se inclusive as mazelas humanas (ROSEN, 1994). Como forma de resolver o problema, criaram-se hospitais e abrigos para homens, mulheres e crianças, leprosos, prostitutas, alienados, órfãos, criminosos, todos considerados a escória da sociedade.

Deviat (1999) diz que oito mil pessoas foram hospitalizadas, ao mesmo tempo, na Salpêtrière, uma das instituições que compunham o Hospital Geral de Paris. O objetivo era varrer as ruas te toda mazela que retratava a realidade de descaso e miséria. E o autor cita a lista dos perfis: Os mendigos e vagabundos,  os criminosos, os rebeldes políticos, as prostitutas, os libertinos, os sifílicos, os alcoólatras, os loucos, os idiotas, os maltrapilhos, as esposas molestas, as filhas violadas. O autor ainda diz que através ´´dessa limpeza“, os perfis citados se tornaram invisíveis, ou seja, indigentes e sem valor algum para a sociedade.

Rousseau disse que “o homem nasce livre e por toda parte vive acorrentado”, o que retrata bem como era o tratamento oferecido aos doentes mentais no séc. XVIII: trancafiados em prisões, casas de correção, asilos e hospícios. Rosen (1994) diz que  a insanidade era interligada ao pecado, ou seja, era vista como atributos de alguém que praticava atividades do diabo. Dessa forma, o tratamento era cheio de ´´ignorância, superstição e condenação moral de maneira forma insana (ROSEN, 1994, p.117).

Fonte: encurtador.com.br/dkY06

Este cenário de enclausuramento começou a mudar com o advento da Revolução Francesa e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Estes trouxeram consigo as noções de democracia, cidadania e república, o que refletiu no modo de se relacionar. Essa nova ordem social passou a exigir uma nova compreensão acerca da loucura, uma compreensão científica, mensurável, observada através de uma prática médica para além da caridade.

A nova ordem social exigia uma conceituação de loucura e, acima de tudo, de suas formas de atendimento. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com o Contrato Social e a livre circulação de pessoas e mercadorias, a nova soberania civil tinha que refletir sobre a responsabilidade e os limites da liberdade. O grande enclausuramento descrito por Foucault, símbolo eloquente do absolutismo tinha que ser abolido (DESVIAT, 1999, p.16).

É importante ressaltar que o enclausuramento dos alienados não deixou de existir, mas ganhou uma nova explicação. Passou a ter caráter terapêutico e indispensável. Era necessário isolar os pacientes da sociedade, pois esse meio era considerado prejudicial às mentes perturbadas. Para curar os pacientes era preciso isolá-los, interná-los em lugares apropriados. Surgem os asilos, e desta maneira, a primeira especialidade médica: a psiquiatria, que trouxe consigo a justificativa legalmente plausível para o encarceramento da loucura, agora sob o nome de internação.  Ao considerar todas as características que constituíam essa nova sociedade democrática, fica bastante claro que o louco não era um sujeito de direito, pois era considerado irresponsável por seus atos, por sua conduta social.

Fonte: encurtador.com.br/nvFI8

Essa aliança entre a psiquiatria e o direito perdura até nossos dias atuais. Os paradigmas de periculosidade, criminalidade e cronicidade continuam tão presentes em nossa sociedade quanto na época de Pinel.

“Essas idéias iriam fundamentar a psiquiatria, ao lado dos conceitos de periculosidade, incurabilidade e cronicidade, com graves consequências até hoje… Loucos, criminosos, alcoólatras, revolucionários e artistas ficaram sob a suspeita de sofrer de distúrbios mentais degenerativos.” (Desviat, 1999, p.18)

A prática da psiquiatria produziu saberes nos hospitais, e através de estratégias disciplinares possibilitou o agrupamento das doenças, sua classificação através da observação do isolamento dos pacientes. Segundo Desviat (1999) o reconhecimento da subjetividade e certa racionalidade apresentada pelos alienados possibilitaram uma intervenção terapêutica, constituindo as bases do tratamento moral.

Para Amarante et al (2003, p. 17) Pinel discordava de que toda alienação era incurável, para ele, o papel do alienista seria o de “ajudar as forças naturais nesta reação salutar do organismo”. Ou seja, era preciso ´´trazer o alienado a realidade“, e isto acontecia por meio do controle de seus impulsos, ilusões e delírios.  Para isso, estratégias de tratamento moral foram desenvolvidas. Acreditava-se que o trabalho moral dentro dos asilos poderia resgatar o real interesse pelo mundo objetivo e racional, pois a disciplina estava atrelada ao sentido terapêutico, pois a ordem e disciplina ajudaria a mente desregrada para que pudesse  novamente encontrar seus objetivos e verdadeiras emoções e pensamentos.

O objetivo final do tratamento moral era obter a cura para os males da mente. Se antes os hospitais era um espaço destinado a caridade, tanto que era comum a próprias freiras liderando hospitais, pela primeira vez os hospitais tornaram-se um lugar de tratamento, e não mais um lugar que acolhe para aguardar a morte e ser salvo em Cristo. Por outro lado, as e instituições manicomiais tornaram-se depósito de pessoas que passaram a ser tratadas de forma desumana e cruel por não se “enquadrarem” no que os padrões sociais definiam como “comportamento normal”, ou seja, fora da linha de pureza imposta pela sociedade (BAUMAN, ).

Fonte: encurtador.com.br/dhloQ

Há questões que merece destaque, através do novo modelo hospitalar supracitado, aconteceu a descoberta dos medicamentos psicotrópicos, o desenvolvimento da psicanálise e também o desenvolvimento da saúde pública. Tais pontos foram essenciais para o inicio de uma reforma psiquiátrica, que iniciou na Europa, tendo como destaque a postura adotada pela Itália, o que fez o que o Brasil seguisse os passos.

Referências:

AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

____________. Saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.

ROSEN, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo, Ed. Unesp, 1994

DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

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Com que critério definimos o que é a loucura?

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Quem nunca teve medo da loucura que atire a primeira pedra. Mas, afinal, o que é loucura? Eu sempre me questionei, desde pequena, e a cada questionamento mais medo eu tinha. Logo, cresci com um receio exagerado de ficar louca. Hoje como estagiária de psicologia em uma unidade de saúde mental contarei um pouco da minha experiência. Mas você deve estar se questionando ‘como uma pessoa que diz ter tanto medo da loucura escolhe logo tal área de atuação?! Esta pessoa deve ser louca!’. E na verdade talvez eu seja.

No meu primeiro contato com um paciente em crise e totalmente embotado eu senti todos os sintomas de ansiedade. Tive taquicardia, falta de ar, dormência no corpo, ânsia de vômito e tontura. Isto por que eu fiquei em contato por no máximo 5 minutos com a pessoa, mas pareceram 5 horas. Durante este ocorrido eu pensava a todo momento ‘O que eu estou fazendo aqui, eu só posso ser louca, vou surtar e logo eu que estarei internada neste local’. Caro leitor, a minha vontade era de sair correndo, e o ditado ‘se ficar o bicho pega e se correr o bicho come’ nunca me fez tanto sentido. Isto por que se eu ficasse em contato com o paciente eu poderia surtar, mas se eu saísse correndo eu já não estaria surtada?!

Fonte: encurtador.com.br/qwFP5

As minhas 3 primeiras semanas foram as mais difíceis, pois eu internalizava alguns sintomas dos pacientes. E a cada dia o medo aumentava e até então eu já estava a me ‘diagnosticar’ com TAB – Transtorno Afetivo Bipolar, esquizofrenia etc. Pesadelos eram constantes, o medo de enlouquecer parecia me controlar, eu já não tinha mais vontade de estar no meu ambiente de estágio, era masoquismo. Até que, depois de muitos questionamentos e estudo, eu parei de negar tanto a loucura, e hoje tenho prazer em ir ao meu ambiente de estágio e a cada paciente que atendo eu percebo o quão estreito é o limiar entre a loucura e a sanidade mental, e deve ser por isto que ela amedronta tantos. Afinal, qualquer um pode surtar a qualquer momento.

A loucura seria alguém adoecido? Mas o que é saúde? Canguilhem (1943) diz que estabelecer uma norma para o que se é doença e o que se é saúde é uma utopia do ideal, isto por que o ideal levaria a perspectiva do perfeccionismo, e a perfeição não existe. Ou seja, é um ideal inalcançável. O autor complementa que se existe a doença, é por que primeiro existiu um doente, e este mesmo se queixou de algo que o incomodava.

Levando para um olhar psicanalítico, Freud (1976) diz que um sujeito saudável é aquele que tem a capacidade de se ajustar ao meio. Diante disto, um sujeito acometido por algum sintoma considerado doença pode se ajustar a mesma e viver tranquilamente. Poderia então um esquizofrênico e paranoico se ajustar aos seus sintomas e viver de acordo com os critérios de pureza da sociedade em que vive? Um exemplo é o matemático John Forbes Nash que ganhou o Nobel de matemática. O gênio afirmou que acreditava em aliens e que estes lhe deram uma missão de salvar o mundo. Forbes declarou: “As minhas ideias sobrenaturais vieram da mesma maneira que as matemáticas. Por isso, decidi levar as duas igualmente a sério”.

John-Forbes-Nash
Fonte: encurtador.com.br/pIW02

Mas o que é normal e o que é anormal? Canguilhem (1943) afirma que normalizar seria impor uma exigência a uma existência. O anormal, do ponto de vista lógico, deve ser posterior à definição do normal, designando a negação deste. E complementa que a ausência de normalidade não constitui o anormal. Isto por que o patológico também seria normal, já que a doença está inclusa na experiência do ser vivo.

Isto me gerou outro questionamento: ‘A bíblia foi escrita por quem?’. Pelo próprio Jesus e por apóstolos usados por Deus, e estes mesmos declararam que Jesus os havia enviado para cumprir uma missão. Atualmente existem religiões em que se pode falar com mortos e que se tem diversas práticas sobrenaturais. E lhes pergunto: De acordo com o CID 20, não seriam estas pessoas esquizofrênicas? Por que multidões acreditam e respeitam os ditos apóstolos que nem mesmo conheceram e os toma como enviados de Deus, e atualmente a população zomba de pessoas que dizem terem recebido uma missão do próprio Jesus Cristo?

Em 2017 o jovem Bruno Borges, de 24 anos escreveu 14 livros escritos à mão. O jovem tinha em seu quarto um quadro em que era tocado por um extraterrestre e o mesmo falava para a mãe que estava escrevendo 14 livros que iriam mudar a humanidade de forma positiva. Nas redes sociais alguns hipotetizavam que ele seria a reencarnação do filósofo Giordano Bruno, já outros acreditavam que ele seria louco. E você, o que acha? Qual a diferença dos enviados com missões sobrenaturais de época em relação aos atuais?

Fonte: encurtador.com.br/fswy6

Canguilhem (1943) afirma que o estado patológico também é uma forma de viver. E assim como Freud, o sociólogo acredita que saúde é a capacidade de adaptar-se ao meio. O que seria o normal então? Para Canguilhem “o normal é viver num meio onde flutuações e novos acontecimentos são possíveis” (p.188). Logo, conceituar um ´´ideal normal“ acontece por meio da estatística. Sendo assim, o conceito de normal é singular e depende da concepção, ressignificação e tolerância de cada um, pois o todo faz parte da estatística, mas a maioria de cada pesquisa é vista como a ideal.

Bauman (1998) diz que aquele que não se adequa ao critério de pureza, o ideal social, é impuro. Logo a sociedade, na maioria das vezes, julga que a impureza corrompe o ideal social. O que ajuda a explicar o porquê da existência de manicômios. É uma maneira, aceita socialmente, de elimina-los como sinônimos da desordem. O sociólogo afirma:

A pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas. Sem essa visão, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a distinção entre pureza pode ser sensivelmente delineada. (BAUMAN ,1998, pp.13-14)

Desta forma, o que desvia da linha da ideal causa medo, assim como o desconhecido. Você já se questionou que o porquê dos vestibulares de Medicina, Direito e Psicologia são tão disputados? Eu me atrevo a dizer que é por que o médico detém de certa forma o poder da vida, o advogado o poder da persuasão, o psicólogo o poder sobre a mente. São formas de ter o saber para ter o controle sobre o outro, mas tudo em nome da ciência. Ao meu ver o homem sempre gostou de ter o controle, tenta formular uma teoria para tudo, pois o inexplicável é angustiante, logo não é controlável, medido e explicado. É como se tivesse um estranho no meio. Para Bauman (1999, p.64), “o estranho é um membro… da família dos indefiníveis…”.

Fonte: encurtador.com.br/oUWX5

Como já foi supracitado, para afirmar a existência de determinada doença, primeiro precisou existir o doente. Ou seja, cada doença existente foi estranha um dia. Segundo Bauman (1998, p.27):

[…] cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia (…) se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos.

Seria então a loucura plástica, em que muda com o tempo e depende das necessidades de cada comunidade, sociedade ou país? Antes a depressão era vista como loucura, era um tabu. Hoje em dia a visão tem mudado, isto por que muitas pessoas são acometidas pela mesma. Desta forma o social uniu forças e  técnicas de se ajustar ao meio são formalizadas. É até comum se ouvir: ´´quem nunca teve depressão?“. Há 13 anos  eu ouvia frequentemente que psicólogos eram para loucos, e hoje já ouço que psicólogos são justamente para quem não quer enlouquecer. 

Diante do que foi exposto, não quero anular a existência das doenças, muito pelo contrário, quero abrir um leque de reflexões sobre ´´nossas certezas“ em julgar que uma pessoa acometida por alguma psicopatologia deva ou não viver em sociedade. E sigo a me questionar o que é loucura, e se algum dia a esquizofrenia e o TAB acometerão tantas pessoas quanto a depressão, e dessa forma será aceita socialmente. Afinal, quem é estranho, a maioria ou a minoria? Sendo assim, seguimos ´´descobrindo novas loucuras“ e normalizando outras? Eis a questão. 

Fonte: encurtador.com.br/gmDN8

Referências

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pósmodernidade. – Rio de Janeiro, RJ:Jorge Zahar Editor, 1998.

F20-F29 Esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes. Encontrado em < http?//www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/f20_f29.htm > acessado em 01/05/2019

FULGÊNCIO, C., G1 AC — Rio Branco. Jovem deixou 14 livros escritos à mão e criptografados antes de sumir, diz mãe. Encontrado em < https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/jovem-deixou-14-livros-escritos-a-mao-e-criptografados-antes-de-sumir-diz-mae.ghtml > acessado em 01/05/2019.

FREUD, S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976. 

JULIO, R.A. A linha entre loucura e genialidade é mais tênue do que se imaginava. Encontrado em < https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2014/10/linha-entre-loucura-e-genialidade-e-mais-tenue-do-que-se-imaginava.html > acessado em 01/05/2019.

SERPA, O. (2003). Indivíduo, organismo e doença: a atualidade de “o normal e o patológico” de Georges Canguilhem. Psicologia Clínica, 15(1),121-135.

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Psicologia hospitalar: acolhimento ao doente mental

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O campo de atuação denominada saúde mental surgiu com o objetivo de oportunizar o trabalho de uma equipe multidisciplinar, com participações em ações sociais, com o intuito de tratar e respeitar o paciente de maneira singular

O tratamento para a loucura surgiu no século XIX através de uma proposta terapêutica do médico Philippe Pinel, colaborando para a eclosão da psiquiatria. Antes de Pinel, qualquer pessoa que representasse risco social era enclausurada sem assistência médica. Tais pessoas eram: loucos, mendigos, ladrões, leprosos, mães solteiras e órfãos. Isto por que a cura era buscada através do isolamento social, e caso não acontecesse, o destino era a exclusão (FOUCAULT, 1997).

Através da movimentação de Pinel e do cenário de castigo e exclusão, abre portas para diversos movimentos, com o intuito de denunciar as péssimas condições de trabalho, precariedade dos ambientes, condições insalubres, isolamento em celas e tratamento violento como forma de punição. Assim como a Reforma Psiquiátrica Brasileira (AMARANTE, 1995), que por influência da Reforma Democrática Italiana, foi instaurada no Brasil na década de 70.

Fonte: encurtador.com.br/mBHNY

O campo de atuação denominada saúde mental surgiu com o objetivo de oportunizar o trabalho de uma equipe multidisciplinar, com participações em ações sociais, com o intuito de tratar e respeitar o paciente de maneira singular (NETO, 2008). Logo, o paciente passou a ter voz. A partir da necessidade de dar a voz do saber ao paciente, para buscar melhor entendimento, e resultar em um tratamento mais eficaz, abrangendo o psicossocial e descentralizando o modelo biomédico, surge os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

[…] são serviços de saúde municipais, abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dessas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários (BRASIL, 2005, p. 27)

A participação do psicólogo na equipe multidisciplinar se torna fundamental, visto que o psicólogo promove escuta terapêutica individual e grupal, assim como trabalha na produção de informações de tratamento e redução de danos, direcionada ao doente, a família e a sociedade em que o doente está inserido.

Fonte: encurtador.com.br/tX179

É sabido que transtornos mentais, neurobiológicos e/ou problemas sociais decorrentes do uso e abuso de álcool e outras drogas é um problema social grave. Quando um indivíduo necessita de cuidados especializados, que não se enquadram aos serviços oferecidos no CAPS, o encaminhamento hospitalar é realizada. A internação é realizada em uma Unidade Psiquiátrica situada em Hospitais Gerais. A ala psiquiátrica é composta por profissionais de diferentes áreas, como psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistes sociais, entre outros (COLITO, 2016).

Por fim, é importante ressaltar que nem sempre existiu o termo Psicologia Hospitalar no Brasil. O surgimento ocorreu em 1970, com a primeira investigação biopsicossocial de um paciente da ala de ortopedia de um hospital de São Paulo. Segundo Castro e Bornholdt (2004) a terminologia é inexistente em outros países. É importante diferenciar a psicologia hospitalar e a psicologia da saúde. A primeira faz parte da segunda, no entanto tem um campo delimitado, o ambiente hospitalar. “Psicologia Hospitalar é o campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento” – aquele que se “dá quando o sujeito humano, carregado de subjetividade, esbarra em um ‘real’, de natureza patológica, denominado doença…” (SIMONETTI, 2004, p. 15 apud MOSIMANN; LUSTOSA, 2011). Já a segunda tem uma maior amplitude, pois abarca desde escolas a hospitais. “A Psicologia da Saúde é a ciência que busca responder questões relativas à forma como o bem-estar das pessoas pode ser afetado pelo que se pensa, sente e faz” (STRAUB, 2005, apud MOSIMANN).

Acolhimento psicológico ao doente mental na ala psiquiátrica

O acolhimento deve estar presente em qualquer situação de humanização da saúde. No atendimento não tem um local específico de realização, visto que ele pode ser no corredor, no leito e/ou no consultório. O intuito é acolher e dar suporte ao paciente de acordo com suas queixas e necessidades físicas e psicológico.

[…] postura ética que implica na escuta do usuário em suas queixas, no reconhecimento do seu protagonismo no processo de saúde e adoecimento, e na responsabilização pela resolução, com ativação de redes de compartilhamento de saberes. Acolher é um compromisso de resposta às necessidades dos cidadãos que procuram os serviços de saúde […]. (BRASIL, 2015, S/P)

A preparação do psicólogo é importante, pois o mesmo precisa planejar a intervenção considerando, além dos fatores psíquicos, os fatores sociais em que o paciente está inserido e que pode ser potenciador do adoecimento (SIMONETTI, 2016). Não é trabalhado a cura completa, visto que paciente internado, pode ter um longo histórico de internação e/ou de experiências de crises, que podem deixar sequelas, impossibilitando o alcance do reajuste psíquico anterior. Desta forma, novos reajustes são/podem ser feitos, com o intuito ter uma melhor qualidade de vida diante da limitação psicológica.

Fonte: encurtador.com.br/wyKS5

É importante que o psicólogo se mantenha calmo, para que possa passar tranquilidade e segurança ao paciente, visto que o acolhimento não é um ambiente de agitação. Isto por que um paciente em crise geralmente é agitado, e o psicólogo precisa saber o momento certo de fazer a contenção de ansiedade (SIMONETTI, 2016). O paciente em crise, geralmente, é inundado por um real simbólico, e a intensidade dos sintomas pode ser ´´assustadora“ para o profissional que está iniciando, o que aumenta a importância de uma preparação antes de se iniciar em tal campo.

Inicialmente, se faz necessário que o psicólogo faça um breve exame do estado mental, investigando informações do paciente para ter ideia do grau de adoecimento psíquico. O exame do estado mental é a pesquisa sistemática de sinais e sintomas de alterações do funcionamento mental, realizado durante a entrevista psicológica e psiquiátrica. É analisado: Consciência, Atenção, Orientação, Memória, Afetividade, Pensamento, Juízo Crítico, Linguagem, Cognição, entre outros. Comorbidades também são comuns, logo o psicólogo precisa analisar com cautela a queixa do paciente, e saber diferenciar sintomas do transtorno mental, do medicamento, de algum outro transtorno (não diagnosticado) e/ou de alguma doença orgânica.

Pode acontecer de alguns pacientes em crise não conseguirem se localizar no tempo e no espaço, assim como não ter juízo crítico da doença, e/ou retardo mental, etc. Tal cenário fomenta a importância do atendimento a família, a fim de obter informações que auxiliem no tratamento do paciente. Muitas vezes o acolhimento da família também se faz necessário como forma de promover escuta terapêutica e/ou de educar a família quanto aos sintomas e tratamento da doença. Pois pode ser o primeiro surto e/ou internação, e o parente não se enxergar capaz de passar pelo enfrentamento da situação, não entender a doença e/ou o tratamento, se culpar, negar e ter medo. Pode acontecer, também, de o parente já estar esgotado fisicamente e mentalmente, visto que cuidar de um doente mental não é uma tarefa fácil, e exige muita paciência e gasto de energia.

Fonte: encurtador.com.br/fmtH0

Por fim, o psicólogo precisa delimitar o foco, que é ajudar o paciente e/ou familiar a passar pelo processo de adoecimento, enquanto houver internação. Desta forma os atendimentos são breves, objetivos e informativos. A duração de internação do paciente cabe a necessidade de cada paciente, podendo durar dias ou semanas. É responsabilidade, também, do psicólogo de frisar a importância da continuação do tratamento após a alta, informando que existe uma rede de apoio, fora do ambiente hospitalar, que o doente e família pode recorrer.

Referências

AMARANTE, P. (1995). Loucos pela vida: A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz.

BRASIL. Ministério da Saúde. Dicas em saúde: acolhimento, 2015.

Brasil. (2005). Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. Brasília, DF. http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/relatorio_15_anos_caracas.pdf.

CASTRO, E. K. & BORNHOLDT, E. Psicologia da Saúde x Psicologia Hospitalar: Definições e Possibilidades de Inserção Profissional. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 24, n. 3, p. 48-57, 2004. Acesso em: 22 mar. 2017.

COLITO, Eliana, A. Assistência à pacientes portadores de transtornos mentais em unidades de emergência e urgência: capacitação dos profissionais de saúde. 2016. 20 f. Monografia (Especialização em Linhas de Cuidado em Enfermagem – Atenção Psicossocial) – Curso de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

FOUCAULT, M. (1997). A história da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva.

LUSTOSA, M. A. A difícil tarefa de falar sobre morte no hospital. Rev. Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 203-227, 2011.

MOSIMANN, Laila T.; LUSTOSA, Maria Alice. A Psicologia hospitalar e o hospital. Santa Casa da Misericórdia do RJ-CESANTA. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v.14, n.1, jun. 2011.

KUBO, O. M., & BOTOMÉ, S. P. (2001). Formação e atuação do psicólogo para o tratamento em saúde e em organizações de atendimento à saúde. InterAÇÂO, 5, 93-122. Recuperado em 26 ago., 2009, de http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/psicologia/article/viewFile/3319/2663.

SIMONETTI, A. Manual de Psicologia Hospitalar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. PERES, Girlane Mayara e LOPES, Ana Maria Pereira. Acompanhamento de pacientes internados e processos de humanização em hospitais gerais. Psicol. Hosp. (São Paulo), v.10, n. 1, p. 17-41, 2012.

SIMONETTI, Alfredo. Manual de psicologia hospitalar: o mapa da doença. 8. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2016.

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Garota Interrompida: transtornos da personalidade antissocial e borderline

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As particularidades e manifestações de ambos os transtornos vivenciados pelas duas jovens emergem no convívio dentro do manicômio, gerando atritos em relacionamentos e dificuldades interpessoais.

O filme “Girl, Interrupted”, “Garota, Interrompida”, em português, dirigido por James Mangold e lançado em 1999, narra a trajetória de Susanna Kaysen, uma jovem de 18 anos em conflito existencial e posteriormente diagnosticada com transtorno de personalidade limitante (atualmente, mais conhecido como transtorno limítrofe ou borderline). Após tentar suicídio, durante uma conversa com seu psiquiatra, Susanna assina seu protocolo de internação e passa meses sob cuidados profissionais em uma instituição manicomial.

No local, conhece várias outras mulheres que também tiveram o curso de suas vidas interrompido por um transtorno, entre elas Lisa, uma jovem diagnosticada como sociopata. Oscilando entre momentos de extrema angústia e satisfação, Susanna constrói vínculos no lugar e vive as dificuldades de seu transtorno, além de se envolver em diversas situações conflituosas durante seu tempo de internação.

Focado na percepção da jovem em relação ao mundo, o filme aborda as peculiaridades de uma personalidade afetada por um transtorno, as dificuldades e especificidades das relações interpessoais do sujeito diagnosticado e também traz reflexões sobre os tratamentos manicomiais e psiquiátricos, conforme o contexto histórico da trama, que se passa nos anos 60, perpassando o conceito de loucura vigente na época e ainda hoje reforçado.

Susanna, interpretada pela atriz Winona Ryder, tem 18 anos e mora com seus pais. Contando apenas com o seu diário para externalizar seus pensamentos e emoções, a jovem, no auge de seus conflitos internos, desconhecendo as motivações de suas tristezas e inquietações, tenta suicídio ingerindo diversas pílulas. O incidente a leva a consultar um psiquiatra, que propõe a ela que tire um tempo de sua vida para descansar afastada do convívio social dentro de uma casa de repouso, ou seja, em uma instituição psiquiátrica. Alencar, Rolim e Leite (2013), numa revisão histórica sobre o conceito de loucura, falam sobre as primeiras práticas asilares pensadas para tratar o que viria a ser chamado de transtorno ou disfunção mental, logo durante o surgimento da psiquiatria (alienismo) no século XVIII.

Fonte: encurtador.com.br/rtBGT

É exposto pelas autoras que, com o advento dessa área, o conceito de loucura/doença mental sofreu várias alterações. Entre elas, trazendo uma contribuição positiva, pode-se ressaltar o distanciamento entre a instância psíquica e questões espirituais, algo defendido pela sociedade como um todo. Explicações metafísicas sobre a doença mental foram sendo substituídas por estudos científicos, e o fenômeno passou a ser visto como uma condição médica passível de cura. Entretanto, de acordo com Júnior e Medeiros (2007), muitos teóricos de saúde mental alegam que as contribuições da psiquiatria para o entendimento dos transtornos mentais são reducionistas e biologicistas, colaborando para, muitas vezes, intensificar no indivíduo o que é chamado pela sociedade de loucura.

Os autores afirmam que esse conceito, analisado pelas lentes dos estudos em psicologia e saúde mental, é mais abrangente e engloba uma série de condicionantes sociais e culturais, indo além de explicações meramente orgânicas. A estigmatização social imposta ao indivíduo considerado louco, para essas abordagens teóricas, constitui a própria condição mantenedora do transtorno, que é carregado de rótulos e estigmas legitimados pela prática da psiquiatria (JÚNIOR e MEDEIROS, 2007). Apesar das concepções acerca do conceito de loucura e doença mental terem sofrido alterações durante os séculos e as discussões e práticas direcionadas a cura de pacientes psiquiátricos terem ganhado força, o modelo de internação, ao longo da história, assumiu como principal finalidade retirar do convívio social o indivíduo considerado louco, não chegando, muitas vezes, a adotar uma perspectiva terapêutica propriamente dita. Essa dinâmica foi sendo modificada com o tempo, mas a segregação social promovida pelos manicômios e asilos continuou constituindo um pré-requisito para o tratamento da loucura, conforme exposto na trama.

O psiquiatra de Susanna adota esse modelo de tratamento, trazendo atrelado a ele uma série de problemas que serão observados ao longo da trama, no que se refere ao modo como o transtorno mental é concebido dentro da instituição e como as práticas terapêuticas são conduzidas e aplicadas. Como uma dessas problemáticas, pode-se citar o fato da própria jovem desconhecer seu diagnóstico, somente entrando em contato com ele na metade do filme, quando ela e as outras garotas invadem a sala do psiquiatra e leem as pastas referentes ao caso de cada uma. Susanna passa meses de sua internação sendo submetida aos tratamentos de rotina sem de fato entender os motivos de estar tomando os remédios e estar frequentando as sessões, assim como o resto das pacientes.

As práticas dentro do manicômio da trama tornam-se, assim, mecânicas e vazias de sentido, privilegiando um modelo de assistência pautado na hegemonia e superioridade do profissional de saúde, que detém todo o conhecimento sobre a condição dos pacientes e segura em suas mãos o destino dessas pessoas. As garotas do filme, dessa forma, mostram-se totalmente alienadas quanto às suas condições de saúde, e possuem pouco ou nenhum controle do processo terapêutico que estão vivenciando. O engajamento nas atividades propostas pelos profissionais do local é incentivado e até mesmo exigido, entretanto, mesmo quando esse engajamento existe, as pacientes contribuem com o processo tendo em mente uma possibilidade de sair do local e serem curadas de uma condição que nem mesmo as próprias entendem ou conhecem.

Fonte: encurtador.com.br/iuyLX

Apesar dos inúmeros aspectos negativos inerentes às próprias práticas manicomiais presentes no filme, é preciso levar em consideração o contexto histórico em que se passa a trama. As discussões a respeito de saúde mental, nos anos 60, ainda eram frágeis e muito pautadas no discurso biologicista, e as contribuições da psiquiatria ajudavam, como já discutido anteriormente, a legitimar práticas desumanas. É possível também, olhando por outra perspectiva, observar vários pontos positivos no que tange ao manejo e cuidado das pacientes durante o filme.

Como uma prática que foge aos modelos de internação em que as pessoas são isoladas da sociedade, durante o filme, pode-se citar uma atividade promovida pela enfermeira Valerie, em que as pacientes saem do encarceramento e vivem uma espécie de dia de lazer fora das dependências do manicômio. Apesar de em alguns pontos perderem a sensibilidade com as mulheres, a maioria dos funcionários do local são colaborativos e desenvolvem afetividade pelas pacientes, como é o caso de Valerie, que, em várias cenas do filme, demonstra um enorme carinho tanto por Susanna quanto pelas outras garotas, até mesmo pelas consideradas mais problemáticas, como Lisa.

A partir dessas considerações, pensando também no contexto histórico e social do que é considerado loucura e como essa condição tem sido tratada ao longo dos séculos, podem ser tecidas algumas discussões a respeito dos transtornos de Susanna e Lisa.

Reflexões sobre saúde mental

Susanna e Lisa, vivida por Angelina Jolie, são as personagens principais do filme, ambas diagnosticadas com transtornos de personalidade distintos. Numa das primeiras aparições de Lisa no filme, ela é apresentada como sociopata, uma das categorizações dentro do chamado transtorno de personalidade antissocial. Já Susanna, alheia às motivações de seus sentimentos e comportamentos, só descobre seu diagnóstico quando acessa a sua pasta no consultório psiquiátrico.

Fonte: encurtador.com.br/adrtA

As particularidades e manifestações de ambos os transtornos vivenciados pelas duas jovens emergem no convívio dentro do manicômio, gerando atritos em relacionamentos e dificuldades interpessoais. Retomando as discussões anteriores, é possível afirmar, principalmente no caso de Susanna, que tanto a maneira como seus pais, a sociedade e os profissionais do manicômio encaram o seu transtorno é rotuladora, visto que seus conflitos poderiam ser abordados de outra maneira que não através da internação psiquiátrica.

O estigma de “louca” recai sobre a personagem como um peso, agravando, pode-se inferir, sua condição. Para entender o funcionamento das duas personagens no mundo e o modo como ambas interagem com este, com as pessoas e consigo mesmas, faz-se necessário tecer algumas reflexões a respeito dos dois transtornos e seus respectivos contextos históricos.

Atualmente, tanto o transtorno de personalidade borderline como o antissocial estão presentes no DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), encaixados na categoria dos transtornos de personalidade. Entretanto, as concepções e nomenclaturas a respeito dos transtornos psicológicos nem sempre foram bem definidas como na última década. O diagnóstico de borderline, por exemplo, foi estruturado apenas em 1980, na publicação do DSM-III (DALGALARRONDO & VILELA, 1999). A utilização do termo borderline pela primeira vez se deu em uma publicação de um autor chamado Stern, em 1938.

O transtorno era tido como uma espécie de esquizofrenia latente, onde haveria uma flutuação entre o estado de psicose e neurose. A categorização desse conjunto de sintomas como borderline se deu, definitivamente, pelos estudos de Robert Knight, em 1953, o que permitiu o surgimento das primeiras classificações desse transtorno nas edições do DSM e sua consequente desvinculação com a esquizofrenia, sendo tratado como um transtorno de personalidade (DALGALARRONDO & VILELA, 1999). A edição mais recente do DSM cita como uma das características próprias do transtorno de personalidade borderline a instabilidade nas relações, na autoimagem e uma impulsividade acentuada.

Fonte: encurtador.com.br/koqAL

Essas características são observadas no comportamento de Susanna ao longo do filme, principalmente durante suas explosões de raiva ou angústia movidas por impulsos. Como um exemplo da sua instabilidade nas relações, é possível citar seus padrões de relacionamentos amorosos, que são de curto prazo e desprovidos de apego emocional significativo. A impulsividade da jovem se manifesta em seus comportamentos autodestrutivos, como a tentativa de suicídio, que, inclusive, configura como um critério para o diagnóstico do transtorno, conforme o DSM-V. Também há prevalência de instabilidade no humor, o que é observado durante as explosões de raiva, tristeza e euforia da personagem.

Apesar de todas essas características, que certamente reúnem dados o bastante para ser firmado um diagnóstico, o próprio DSM-V alega que há um contexto cultural influente sobre indivíduos diagnosticados com borderline (principalmente adolescentes e adultos jovens), onde existe a presença de atitudes e vivências inerentes a questões existenciais experienciadas por esses indivíduos que são percebidas como possíveis sintomas de um transtorno, e assim patologizadas e tratadas. Como discutido anteriormente, no contexto histórico da trama, os conflitos e questões de ordem psicológica, ainda mais do que atualmente, eram diagnosticados e trabalhados a partir de um viés estigmatizador, reforçando a perspectiva manicomial, farmacológica e psiquiátrica, sem considerar a subjetividade do sujeito no processo.

Abrangendo esses fatores, pode-se então levantar a hipótese de que Susanna foi inserida nessa dinâmica, sendo rotulada e tratada como uma paciente psiquiátrica, ainda que não se encaixasse nessa classificação. Carneiro (2004) aponta para alguns problemas referentes a práticas que promovem o isolamento de pessoas com uma possível sintomatologia e diagnóstico de borderline, visto que o encarceramento de pessoas nessa condição pode reforçar crenças e pensamentos autodestrutivos além de problemas com a autoimagem, aproximando-as do “limite da loucura”. A autora classifica o transtorno como um estado transitório entre a loucura e a razão, sendo assim, tais práticas levariam o paciente a apresentar com mais frequências os sintomas (CARNEIRO, 2004). Isso é observado durante os primeiros momentos de Susanna na instituição, mas, com seus próprios esforços e com o apoio de colegas e funcionários, a jovem consegue reverter o contexto de seu transtorno e sair do isolamento manicomial, no final do filme.

Por outro lado, como antagonista da trama, há Lisa, uma jovem diagnosticada como sociopata. Susanna, antes mesmo de conhecê-la, descobre sobre sua enorme influência dentro da instituição, entrando em contato com o fato de que até mesmo uma ex-paciente do local havia cometido suicídio devido a ausência de Lisa (que, como fez anteriormente e continuou fazendo ao longo do filme, havia fugido da instituição). Conforme Hodara, a sociopatia é um dos vários desvios de personalidade incluídos dentro da classificação de Transtorno de Personalidade Antissocial. Como uma das características desse transtorno, pode-se citar o desprezo pelo sentimento dos outros (redução ou ausência de empatia) e por regras e normas da sociedade. (HODARA). O DSM-V aponta ainda, como um critério próprio do transtorno, a recorrência de episódios em que a agressividade é manifestada fisicamente e/ou verbalmente.

Fonte: encurtador.com.br/iwPY0

Lisa, durante todo o filme, demonstra o seu descaso para com todas as pessoas de seu convívio, sejam elas suas colegas da instituição ou os funcionários. Em uma das cenas mais fortes do filme, a personagem chega a servir de gatilho para que uma jovem, ex-paciente da instituição, cometa suicídio em sua própria casa, após desmoralizá-la verbalmente. O acontecimento se deu quando a personagem fugiu do manicômio e se hospedou na casa da jovem, levando com ela Susanna.

Sua reação ao suicídio da garota foi de total indiferença, enquanto Susanna se desestabilizava e chorava diante da cena. Em várias outras ocasiões, a personagem agiu com extrema crueldade e frieza ao tratar-se com os outros. Não só agressiva no sentido verbal, Lisa também mostrou ser capaz de usar da agressividade física, como quando os funcionários a trouxeram de volta para a instituição após uma de suas fugas. Os autores Pereira e Biasus ressaltam que, apesar dos aspectos de sociopatia e psicopatia estarem sob o prisma dos Transtornos de Personalidade Antissocial, nem todos os indivíduos diagnosticados com Transtorno de Personalidade Antissocial são necessariamente psicopatas ou sociopatas.

O que determina essa diferenciação, ainda de acordo com os autores, é a capacidade de controlar ou não os impulsos para a agressividade e hostilidade. Diagnosticada como sociopata, Lisa apresenta, como já discutido, uma grande tendência a manifestar em seus comportamentos traços das características citadas, sendo, de fato, relacionada às condutas referentes à psicopatia e sociopatia. Entretanto, uma das características mais marcantes da personagem, e também algo bastante manifestado em seu comportamento, citada também como uma das características próprias de indivíduos diagnosticados com TPAS, é sua capacidade de manipulação. Visando os próprios interesses, Lisa com frequência influencia as colegas de convívio a fazerem o que ela deseja. Até mesmo Susanna acaba sendo vítima dessa manipulação quando decide fugir da instituição junto da personagem. Em outra situação, quase no final do filme, Susanna recebe alta.

A informação chega a Lisa, que, buscando um meio de manter a colega no local provocando nela uma crise, expõe o diário da jovem às outras mulheres do local, cheio de desabafos e ofensas direcionadas às pacientes. Várias das mulheres, guiadas por Lisa, se juntam para intimidar Susanna. A personagem chega a se sentir mal e fica perto de ter uma crise, mas consegue devolver para Lisa todo o ódio destilado por ela. Assim, pela primeira vez, a antagonista sente na pele o peso das ofensas e humilhações, entrando em crise ao invés de Susanna. A cena revela um lado sensível da personagem, mantido em segredo atrás de muros de hostilidade construídos com o intuito de protegê-la do mundo (ou de si mesma). Nessa situação específica, Lisa utiliza seu poder de manipulação para um propósito bem mais abrangente do que apenas humilhar a colega. A intenção da personagem, pode-se afirmar, era manter Susanna na instituição, visto que a jovem havia construído com ela um vínculo, ainda que abusivo e mantido por relações de poder.

Fonte: encurtador.com.br/uyDNS

Conclusão

Garota, Interrompida” passa longe de ser um filme em que os transtornos mentais são estereotipados e banalizados. Apesar de nem todos os distúrbios apresentados pelas várias personagens serem trabalhados a fundo, há no filme um grande foco nas relações interpessoais desenvolvidas por indivíduos diagnosticados com um transtorno, principalmente os que se enquadram na categoria de desvio de personalidade.

Algo observado na trama, bastante pertinente para futuras discussões a respeito das psicopatologias, é a subjetividade dos sujeitos implicada em seus respectivos adoecimentos. Um exemplo disso se expressa por Lisa, que, apesar de ser diagnosticada com um transtorno cujas características são a falta de empatia e sensibilidade, consegue construir um vínculo interpessoal, ainda que frágil e sabotado, além de demonstrar momentos de vulnerabilidade emocional.

Susanna, apesar de sua condição existencial limitante, consegue reverter muitos de seus impasses e se direciona à autorrealização. A mensagem final, e talvez a mais importante, consiste em olhar para o indivíduo não como um depósito de sintomas e rótulos psicopatológicos, mas como um sujeito além de estereótipos, dotado de uma subjetividade capaz de proporcionar mudanças. Para que esse entendimento de ser humano seja alcançado, ainda é necessário um longo e árduo trabalho de conscientização, lutando contra os conceitos generalizantes de loucura e normalidade e as perspectivas manicomiais de internação. É um caminho a ser trilhado e um desafio a ser abraçado pelos profissionais de saúde mental e pela sociedade como um todo.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

GAROTA INTERROMPIDA

Título original: Girl, Interrupted
Direção: James Mangold
Elenco: Winona Ryder, Elisabeth Moss, Angelina Jolie
País: EUA, Alemanha
Ano: 2000
Gênero: Drama,Biografia

Referências

ALENCAR, A.V. ROLIM, S.A.; LEITE, P.N.B. A história da loucura. Revista de Psicologia, novembro de 2013, vol.1, n.21, p. 15-24. ISSN 1981-1189.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (2013).
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition. Arlinton, VA: American Psychiatric Association.
CARNEIRO, Lígia.
Borderlineno limite entre a loucura e a razão. Ciências & Cognição, 2004; Vol 03: 66-68.
DALGALARRONDO, Paulo; VILELA, Wolgrand.
Transtorno borderline: história e atualidade. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., II, 2, 52-71, 1999.
HODARA, Ricardo.
Sociopatia.
JÚNIOR, Francisco; MEDEIROS, Marcelo.
Alguns conceitos de loucura entre a psiquiatria e a saúde mental: diálogos entre os opostos? Psicologia USP, 2007, 18(1), 57-82.
PEREIRA, Lucas; BIASUS, Felipe.
Transtorno de personalidade antissocial: um estudo do estado da arte.

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Loucura, desatino e delírio em Michel Foucault

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Qual a relação entre loucura e razão? Elas têm algo em comum ou não?  E o desatino por sua vez, trata-se de uma característica da loucura ou pelo contrário, é o caminho para razão? E o delírio e o seu parentesco com o sonho. Como é visto nesse contexto? Qual o novo sentido da loucura no mundo moderno? Existe um novo sentido? É sobre essas questões que o filósofo francês Michel Foucault se desdobrará em sua obra “História da Loucura”, na sua terceira parte. A qual analisaremos nesse trabalho.

Na introdução da terceira parte de “História da Loucura” ele aborda a questão da loucura, do desatino e do delírio. Em seguida abordará a questão do grande medo, depois nos apresentará a nova visão a cerca desse problema, em seguida a questão do bom uso da liberdade, depois falará do nascimento do asilo e por fim do círculo antropológico. Nesse sentido é importante salientar a diferença que o autor fará entre loucura, desatino e delírio. Estes dois últimos é muitas vezes vistos na modernidade como características da loucura. Tanto que quem desatina logo é taxado de louco. Será mesmo?

Fonte: http://zip.net/bstHZV

Segundo Foucault (1978) “é do próprio fundo do desatino que nos podemos interrogar sobre a razão. E está novamente aberta a possibilidade de reconquistar a essência do mundo no torvelinho de um delírio que totaliza, numa ilusão equivalente à verdade, o ser e o não-ser do real”. Logo podemos afirmar que o desatino não é o mesmo que loucura. É preciso, portanto para não cair nesse erro e se libertar das noções patológicas a cerca do deliro do desatino, o que é recorrente na visão positivista da loucura. Foucault, portanto nos apresentará uma nova visão da loucura partindo dos seguintes problemas:

Por que não é possível manter-se na diferença do desatino? Por que será sempre necessário que ele se separe de si mesmo, fascinado no delírio do sensível e encerrado no recuo da loucura? Como foi que ele se tornou a tal ponto privado de linguagem? Qual é, então, esse poder que petrifica os que uma vez encararam-no de frente, e que condena à loucura todos os que tentaram aprovação do Desatino? (Foucault, 1978; 386).

Essas são as questões centrais que o autor abordará e que analisaremos nesse trabalho.

HISTÓRIA DA LOUCURA – TERCEIRA PARTE

O Grande Medo:

O desatino ainda não pode ser totalmente compreendido no século XVIII. Sendo ainda visto não a partir da “interrogação secreta, é apenas o hábito social: as roupas rasgadas, a arrogância em farrapos, a insolência que se suporta e cujos poderes inquietantes são calados através de uma indulgência divertida”. (Foucault, 1978; 387). Dessa deficiência em interpretar o desatino corretamente é que surge o grande medo.  Medo que surgi de uma vizinhança estranha que lhes trazem um traço de quase-semelhança e por conseguinte um duplo, onde ao mesmo tempo se reconhece e se anula. O medo se espalha, sobretudo com o aparecimento das casas de internação, sobretudo por que qualquer pessoa está sujeita a ser taxada de louca, já que não há claramente uma distinção se se trata ou não de uma doença, do que é ou não loucura ou desatino.

Fonte: http://zip.net/bytH6j

A falta de conhecimento é um campo aberto para proliferar e espalhar o medo. Foucault (1978) alerta:

Todas essas formas do desatino que haviam ocupado, na geografia do mal, o lugar da lepra e que se havia banido para bem longe das distâncias sociais, tornaram-se agora lepra visível, e exibem suas chagas comidas à promiscuidade dos homens. O desatino está novamente presente, mas agora marcado por um indício imaginário de doença atribuído por seus poderes aterrorizantes.

Percebe-se, portanto que esse grande medo que assola o século XVIII não tem fundamentação na ciência. Não será através da medicina que procuraram resolver as doenças, mas no fantástico, isto é, no não-real. Dessa forma não buscavam saber em que medida o desatino é patológico. Nessa linha Foucault ressalta:

É importante e talvez decisivo para o lugar que a loucura deve ocupar na cultura moderna que o honro medicus não tenha sido convocado para o mundo do internamento como árbitro, para fazer a divisão entre o que era crime e o que era loucura, entre o mal e a doença, mas antes como um guardião, a fim de proteger os outros do perigo confuso que transpirava através dos muros do internamento.

Logo podemos afirmar que a questão da loucura não foi abordada como se deveria, tal como tantas outras questões aonde a repressão vem antes da política. Percebe-se que no século XVIII o que se imperava era um grande medo, de que aquilo contaminasse toda a sociedade e em vez de encarar o problema resolveu-se reprimi-lo, isola-lo, trancafia-lo.

Fonte: http://zip.net/bgtHF2

Segundo Foucault (1978):

Na época clássica, a consciência da loucura e a consciência do desatino não se haviam separado uma da outra. A experiência do desatino que guiara todas as práticas do internamento envolvia a tal ponto a consciência da loucura que a deixava, ou quase, desaparecer, em todo caso arrastava-a por um caminho de regressão onde ela estava prestes a perder o que tinha de mais específico.

É só a partir do final do século XVIII com a publicação de obras de pensadores que tratavam a cerca desse tema que essa realidade foi se modificando e começou-se a perceber que era necessário fazer certas diferenciações – nem todos que eram internados eram de fato loucos.

Fonte: http://zip.net/bwtHcp

A loucura e a liberdade, a loucura mercantil, a loucura, a civilização e a sensibilidade são alguns aspectos que foram analisados. Segundo Foucault (1978) a loucura no século XVII foi descoberta,

na perda da verdade: possibilidade inteiramente negativa na qual a única coisa em questão era essa faculdade de despertar e de atenção no homem, que não é da natureza, mas da liberdade. O fim do século XVIII põe-se a identificar a possibilidade da loucura com a constituição de um meio: a loucura é a natureza perdida, é o sensível desnorteado, o extravio do desejo, o tempo despojado de suas medidas; é a imediatez perdida no infinito das mediações.

No século XIX Foucault ressalta:

a loucura se tornou possível em virtude de tudo aquilo que o meio pôde reprimir, no homem, que dependia da existência anima. A partir de então, a loucura se vê ligada a uma certa forma de devir do homem. Enquanto era sentida como ameaça cósmica ou iminência animal, ela dormitava ao redor do homem ou na noite de seu coração, dotada de uma eterna e imóvel presença. (Foucault, 1978; 409)

A partir dai, logo percebemos o surgimento de uma nova concepção da loucura, que passará a não ser mais a perda absoluta da verdade, mas sim a sua verdade. Essa virada se dá no final do século XVIII.

Do Bom Uso da Liberdade;

Para Foucault a loucura volta a ser devolvida a solidão. Não a solidão que lhe era peculiar até a renascença, mas uma solidão que levava para uma zona neutra e vazia. Assim percebemos portanto que no século XVIII o que desaparece não é a forma desumana como o louco é tratado mas sim a evidência da internação. Foucault (1978) coloca que a era do internamento se encerrou. No entanto permanece apenas uma detenção onde se colocam, lado a lado, criminosos condenados ou possíveis criminosos e os loucos.

Tal fato se deu por que como bem ressalta o autor “Durante muito tempo, o pensamento médico e a prática do internamento haviam permanecido estranhos um ao outro”. Nessa linha apesar dos avanços que ocorreram “se se prescrevia aos pobres válidos a obrigação de trabalhar, se se confiava às famílias o tratamento dos doentes, estava fora de cogitação deixar que os loucos se misturassem à sociedade”. (1978; 466).

Fonte: http://zip.net/bbtHyF

Os loucos são tratados como outros prisioneiros. Nesse contexto percebe-se a farsa do internato. Os interesses do mercado se sobrepõem as questões sociais, logo as saídas apresentada pelo campo da caridade não conseguem responder aos problemas satisfatoriamente. Dai que o internato toma um novo caráter tornando-se,

um espaço de verdade quanto espaço de coação, e só deve ser este para poder ser aquele. Pela primeira vez é formulada essa ideia que tem um peso único na história da psiquiatria até o momento da liberação psicanalítica: a ideia de que a loucura internada encontra nessa coação, nessa vacuidade fechada, nesse “meio”, o elemento privilegiado no qual poderão aflorar as formas essenciais de sua verdade. (1978; 476).

É com o surgimento da psicologia que teremos uma nova abordagem a cerca dessa questão “propondo uma nova descrição das relações do homem com as formas ocultas do desatino”.  Foucault ressalta, no entanto que tal psicologia não surgiu a partir de uma preocupação da humanização da justiça, mas sim por uma questão moral – uma espécie de estatização dos costumes. Esta psicologia é, antes de mais nada, a imagem invertida da justiça clássica. (Foucault, 1978; 490).

Segundo Foucault (1978) nesse contexto, a loucura não é mais uma coisa que se teme, ou um tema indefinidamente renovado do ceticismo. Tornou-se objeto. Mas com um estatuto singular. No próprio movimento que a objetiva, ela se torna a primeira das formas objetivastes: é através disso que o homem pode ter uma ascendência objetiva sobre si mesmo. Com isso passa-se a ter uma perspectiva enigmática o que persiste não apenas no século XIX como também na modernidade. A esse respeito Foucault (1978) afirma “para o pensamento do século XIX, para nós ainda, ela tem a condição de uma coisa enigmática: inacessível, de fato e no momento, em sua verdade total, não se duvida, contudo, que ela um dia se abra para um conhecimento que poderá esgotá-la”.

Nascimento do Asilo:

Fonte: http://zip.net/bbtHyL

O retiro é visto como um aparelho fundamental para recuperação dos loucos como também a quebra das correntes. Para isso o positivismo contribuirá ao defender que “todo domínio objetivo sobre a loucura, todo conhecimento, toda verdade formulada sobre ela será a própria razão, a razão recoberta e triunfante, o desenlace da alienação”. Nessa linha o autor ressalta:

as correntes estão se rompendo, o louco é libertado. E, nesse momento, recupera a razão. Ou melhor, não: não é a razão que reaparece em si mesma e por si mesma; são espécies sociais já constituídas que dormitaram durante muito tempo sob a loucura, e que se levantam em bloco, numa conformidade perfeita com aquilo que representam, sem alteração nem caretas. (Foucault, 1978; 521).

Percebemos, portanto que não há triunfo da razão sobre a loucura, pelo contrário, mas sim uma espécie de conformismo, alienação. Logo portanto, o retiro nada mais é do que um espaço de segregação, de dominação da razão sobre a loucura – para tanto a religião contribui de forma significativa. O asilo, no entanto não deixa de gerar medo tal como a internação no século XVIII. Foucault afirma (1978) que vigilância e Julgamento: já se esboça uma nova personagem que será essencial no asilo do século XIX.

Fonte: http://zip.net/bstHZ7

E para Foucault não só a religião cumpre um papel central como também os cientistas positivistas. “À medida que o positivismo se impõe à medicina e à psiquiatria, singularmente essa prática torna-se mais obscura, o poder do psiquiatra mais milagroso e o par médico-doente mergulha ainda mais num mundo estranho”. (1978; 552). Na contramão dessa visão surgi Freud. Para Foucault (1978) Freud desmistificou todas as outras estruturas do asilo: aboliu o silêncio e o olhar, apagou o reconhecimento da loucura por ela mesma no espelho de seu próprio espetáculo, fez com que se calassem as instâncias da condenação.

O Círculo Antropológico

Acerca dessa questão Foucault ressalta que Pinel ou Tuke não deram nenhuma liberdade ao louco, além da que ele já tinha. É por isso que ele afirma que:

E essa liberdade que o internamento, no momento de suprimi-la, apontava com o dedo? Libertando o indivíduo das tarefas infinitas e das consequências, de sua responsabilidade, ele não o coloca, nem de longe, num meio neutralizado, onde tudo seria nivelado na monotonia de um mesmo determinismo. É verdade que muitas vezes se interna para fazer alguém escapar ao julgamento: mas interna-se num mundo onde o que está em jogo é o mal e a punição, a libertinagem e a imoralidade, a penitência e a correção. (1978; 556)

Essa afirmação de Foucault é fundamental para que compreendamos como a questão da loucura é abordada ainda nos dias atuais. Apesar de todos os avanços é inegável que ainda prevalece uma visão moralista a esse respeito. Logo podemos afirmar que há uma enorme carga repressiva nesse processo.

Fonte: http://zip.net/bptJl0

O autor vai destacar portanto a visão antropológica que passa a dominar sobre o tema da liberdade do louco – “A loucura sustenta agora uma linguagem antropológica visando simultaneamente, e num equívoco donde ela retira, para o mundo moderno, seus poderes de inquietação, à verdade do homem e à perda dessa verdade e, por conseguinte, à verdade dessa verdade”. (Foucault, 1978; 560). O que coloca o problema da loucura no campo da linguagem. Mas uma linguagem diferente do que era compreendida no período clássico, apesar de reaproximar delírio e sonho.

O louco se coloca como um objeto de estudo e se transforma portanto em coisa. Percebe-se então no correr do século XIX uma visão dualista a cerca da loucura. Porém vão surgindo ao longo da história diferentes abordagens e perspectivas de como se deve encarar essa questão. Por exemplo, Foucault destaque essas diferentes concepções e os conflitos decorrentes que vai desde o conflito entre uma concepção histórica, sociológica, relativista da loucura; Conflito entre uma teoria espiritualista, que define a loucura como uma alteração da relação do espírito consigo próprio e um esforço materialista para situar a loucura num espaço orgânico diferenciado; Conflito entre a exigência de um juízo médico que mediria a irresponsabilidade do louco pelo grau de determinação dos mecanismos em atuação nele e a apreciação imediata do caráter insensato de seu comportamento; Conflito entre uma concepção humanitária da terapêutica, à maneira de Esquirol, e o uso dos famosos “tratamentos morais” que fazem do internamento o meio maior da submissão e da repressão. (1978; 566 e 567).

Fonte: http://zip.net/bltG8z

Foucault concluirá a terceira parte de sua “História da Loucura” abordando filósofos e artistas famosos que enlouqueceram. Analisando a questão da loucura com a obra desses autores. Nesse sentido ele afirma que “a loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o momento constitutivo de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a margem exterior desta, a linha de desabamento, o perfil contra o vazio”. (1978; 583). A obra e a loucura, uma contra a outra, mas uma se alimentando da outra. Dai que não se pode ater a seus traços patológicos, pois elas estão em consonância com o tempo do mundo. Isso, é, são frutos da sociedade. Logo cabe a sociedade o papel de regenerar obra e loucura.

Foucault salienta (1978) “ali onde há obra, não há loucura; e, no entanto a loucura é contemporânea da obra, dado que ela inaugura o tempo de sua verdade. No instante em que, juntas, nascem e se realizam a obra e a loucura, tem-se o começo do tempo em que o mundo se vê determinado por essa obra e responsável por aquilo que existe diante dela”. Cabe, portanto não despreza-la, mas conservar o seu legado, pois tanto uma como a outra não podem ser apagadas da história da humanidade. Isso mostra o triunfo da loucura – e esse triunfo se dá justamente através dessas obras. Dai que para Foucault não é a psicologia que deve se preocupar em avaliar ou julgar a loucura, é o contrário.

Uma análise do conceito foucaultiano no filme “Bicho de Sete Cabeças”

 

Na terceira parte de seu livro, “A História da Loucura”, Foucault descreve as condições presentes da “loucura” na segunda metade do século XVIII ao início do século XIX. Fazendo um paralelo com o filme “Bicho de Sete Cabeças” (2001), dirigido por Laís Bodanzky, podemos observar algumas ideias em comum.

Fonte: http://zip.net/bdtH9G

Foucault na parte 3 de seu livro descreve a passagem de uma experiência moderna da loucura, objetivando o sujeito louco e interpretando a loucura como uma doença mental, ele não enxerga mais uma ausência do ser, mas uma alteração das faculdades humanas, uma alienação da verdade do homem. Assim como na visão foucaultiana, o filme mostra através de seu protagonista, jovem chamado Neto, um alienado sendo aprisionado, castigado e submetido a mecanismos de remodelação simplesmente por não fazer parte da “normalidade” imposta por aqueles que estão no poder.

O “Bicho de Sete Cabeças” relata um retrato duro e cruel da realidade vivenciada pelos internos de hospitais psiquiátricos. Este filme conta a história de um jovem (Neto) que é internado contra sua vontade pelo pai após ter sido flagrado com cigarro de maconha. Adolescente, vivendo uma fase tão conturbada de sua vida seus pais nem sequer tentam dialogar com o rapaz para entender o que se passa em sua mente e é simplesmente deixado em um manicômio. Internado, Neto é submetido à administração de medicamentos e procedimentos que o reduzem à condição animal sendo tratado de maneira agressiva, impiedosa e desumana. Enfermeiros usavam de violência fazendo uso de camisa de força, quarto “forte” e eletrochoque.

Para justificar a internação, a imposição do padrão de normalidade, assim referida na terceira parte do livro de Foucault “A História da Loucura”, foi utilizada pelos pais. Para seus pais, Neto fugia do padrão da normalidade da sociedade e por isso deveria ser internado. Dessa forma, a família passa a ser responsável pela vigilância do alienado, impedindo que este cometesse desordens. Assim, o louco continua sem liberdade, ele se encontra sob as ordens da família.

No filme, assim como retratado por Foucault na terceira parte de seu livro, a figura do médico é de autoridade competente. Com a psicanálise, o louco agora pode falar, ao contrário do período anterior, mas é tratado como objeto de estudo e não como um ser coberto de razão. O louco continua a ser vigiado e confinado pela razão. Os médicos, serão a autoridade que atua sobre os loucos, ditam o poder da razão em confinar a loucura. O que vemos é a razão exercendo poder sobre a loucura, como se a tudo o que o louco estivesse falando houvesse o julgamento da razão. Superar a autoridade psiquiátrica seria superar a razão.

Pode-se também fazer uma comparação do filme com o período que é abordado no livro em sua terceira parte, em relação ao papel a que se destinavam os hospitais. Na parte 3 do livro, no século XVIII, assim como no filme o hospital se apresenta como um meio de exclusão social, onde se internavam loucos, prostitutas, leprosos, criminosos, entre outros. Lá dentro estas pessoas eram “docilizadas” e disciplinadas, controladas constantemente. Nesse período, o hospital passa a assumir a responsabilidade de uma instituição destinada a promover a cura, diferente da Idade Média que o hospital não era visto como meio de cura. Apesar da coerção física e os maus-tratos contra a loucura estarem mais camuflados e maquiados, o conceito social que trouxe uma relação de dominação à loucura permanece e permeia a nossa sociedade até os dias atuais.

Mesmo após ser liberado da internação Neto ainda sofre sequelas de tudo que viveu ali dentro. Ele não consegue se adaptar ao modelo imposto pela sociedade e pela família, e é novamente encarcerado no hospício. A cada vez que ele é internado ele sofre mais, perde a razão, a liberdade, é degradante. Ele somente consegue sair depois de incendiar a cela em que está, e finalmente chamar a atenção do pai. No final do filme vemos Neto envelhecido pela dor e sofrimento.

Em sua obra, Foucault atentou para as condições de possibilidade para o aparecimento da psicologia, fato cultural que é próprio do mundo ocidental desde o século XIX e produziu o louco do mundo moderno. O filme também revela possibilidades do surgimento da insanidade mental surgida no louco moderno e é representada por Neto. E mesmo que essa “insanidade mental” não tenha partido do interior de Neto o filme aborda todo um envolto psicológico para tratar do assunto. O “Bicho de Sete Cabeças” é um filme que nos faz refletir sobre tudo que Foucault escreveu em sua obra e nos dá subsídio para estudar melhor a psicologia.

Percebemos que em “História da Loucura”, o Filósofo Michel Foucault mostra como a questão da loucura vem sendo abordada ao longo da história. Sendo que nessa terceira parte da sua obra ele falará como esse problema era visto no século XVIII e XIX até chegar à modernidade. A esse respeito é importante ressaltar a confusão que se tinha a cerca  da loucura, especialmente no inicio do século XVIII – onde o que predominava era uma visão fantasiosa. O caminho da internação levou ao que ele denominou de o grande medo – que surge justamente da falta de clareza e da perspectiva fantasiosa com que a loucura era vista. Nesse contexto há uma grande confusão entre loucura e desatino, que como vimos que não se trata da mesma coisa. É em fins do século XVIII que surge, portanto uma nova divisão a cerca da loucura.

Fonte: http://zip.net/bttJmw

Segundo Foucault (1978) A loucura encontrou uma pátria que lhe é própria… algo que isola a loucura e começa a torná-la autônoma em relação ao desatino com o qual ela estava confusamente misturada. O que vem com a descoberta de que os internatos de nada serviam, a não ser para repressão e perseguição. Nesse contexto o positivismo acaba influenciando fortemente a cerca de uma nova abordagem a cerca da loucura. Já com a psicologia vemos um retorno à concepção clássica, preocupando-se, ao contrario do positivismo, com questões mais humanistas, não a cerca da justiça, mas da moral – assim investe a concepção clássica. Nesse contexto o autor falará a cerca do surgimento do asilo no século XIX, que surge em contraposição a internação, mas o que se percebe é que os asilos apesar de não haver mais correntes, não dá a liberdade prometida.

Por fim vimos a questão do círculo antropológico, a liberdade do louco, a tentativa de resumir a loucura a questão da linguagem, e as diversas concepções conflitantes que foram surgindo no final do século XVIII e durante o século XIX. Vimos a grande contribuição de Freud desmistificando várias questões a cerca da loucura e por fim vimos à relação entre loucura e a obra de diversos autores. E é nessa relação que percebemos o triunfo da loucura, dai que não adianta a psicologia buscar avalia-la ou justifica-la. As obras estão aí servindo justamente para que a sociedade busque redimir a loucura. Muito esforço foi feito nesse sentido, mas nenhum conseguiu dá uma resposta pronta e acabada. Pelo que vimos será mesmo necessários essa resposta? Uma coisa é fato, não confundindo loucura com desatino, alienação entre outros que a compreenderemos. É claro, se é que ela possa ser compreendida.

REFERÊNCIA:

FOUCAULT, Michael. História da Loucura. Tradução – José Teixeira Coelho Netto. Editora Perspectiva S.A. – São Paulo – Brasil; 1978. Págs. 376 a 584.

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A loucura submissa à razão em Foucault

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A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa.
Michel Foucault

O modo de o homem lidar com a loucura, passou por várias transformações ao longo dos séculos, e a forma como a mesma foi vista pelos olhos da razão também. Foucault descreve a loucura, em sua narrativa desde o Renascimento até a sua consolidação na sociedade. Tendo início com a disseminação da lepra, através das cruzadas. Estas, iam até o Oriente, onde era o foco dominante de contaminação da enfermidade, sendo trazida para a Europa, onde se espalhou rapidamente, atingindo numerosas pessoas.

A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton (FOUCAULT, 1972, p. 07).

O desaparecimento da lepra não foi efeito de práticas médicas, mas um resultado natural, da consequência do fim das cruzadas, e o rompimento com os focos orientais de infecção. Com a retirada da lepra, os lugares lúgubres que não eram usados para tratá-la, mas sim para fixá-la a uma distância sagrada, se tornam sem utilidade.

A Nau dos Loucos de Hieronymus Bosch. Fonte: http://zip.net/bgtHr3

Existindo para permanecer ainda, muito mais que a lepra, fazendo com o personagem do leproso excluído, fosse esquecido, à margem, retirados do mundo e da visibilidade da comunidade da igreja.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual (FOUCAULT, 1972, p.10).

De acordo com Foucault, a lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Porém as mesmas não terão tamanha importância, como a lepra e a loucura tiveram, sendo depois incorporadas à outras doenças mais comuns. No entanto, as pessoas acometidas pelas doenças venéreas, precisavam ser internadas para ter tratamento, o que os levaram à exclusão, junto aos leprosos e loucos. Eles foram considerados por Foucault, os excluídos da sociedade. Que precisaram desaparecer urgentemente da visibilidade das pessoas. Carregando marcas da exclusão e discriminação.

Quadro de Bosch. Fonte: http://zip.net/bdtHXM

Foucault (1972, p.12) diz que, de fato, a verdadeira herança da lepra tem que ser buscada em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Porém, será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.

O que se tinha, nesta fase, é a loucura, imersa nos jogos de semelhanças entre micro e o macrocosmo da Renascença, como espelho da experiência trágica da pequenez do homem diante da infinitude do universo, em sua proximidade constante com a morte. É o que ilustram os quadros de Bosch, de Brueghel, de Thierry Bouts e Dûrer ao mostrarem, não só a loucura, mas a própria realidade do mundo, absorvida no universo de imagens fantásticas, atravessado pela ameaça da fome, da tentação, da fatalidade e das guerras (SILVEIRA & SIMANKE, 2008 p. 27).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

Segundo Foucault (1972, p.88), “a Igreja católica, bem como para os países protestantes, a internação representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições, nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar”.

Fonte: http://zip.net/brtHsL

Ainda de acordo com Foucault (1972, p.89),

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas.

“Do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer” (FOUCAULT, 1972, p. 90). Com isso, é evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude.

Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais”; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura quanto cega — aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. (FOUCAULT, 1972, p.90).

Assim, o desatino aparece, com todas as significações que o Classicismo nele elaborou, como um campo de experiência, demasiado secreto sem dúvida para ter sido alguma vez formulado em termos claros, demasiado combatido também, da Renascença à era moderna, para receber o direito à expressão, mas bastante importante para ter sustentado não apenas uma instituição como a do internamento, não apenas as concepções e as práticas referentes à loucura, mas todo um reajuste do mundo ético. É a partir dele que se torna necessário compreender a personagem do louco tal como ele surge na época clássica e a maneira pela qual se constitui aquilo que o século XIX acreditará reconhecer, entre as verdades imemoriais de seu positivismo, como a alienação mental.

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte:http://zip.net/bgtHr5

Nesse campo, a loucura, da qual a Renascença tivera experiências tão diversas a ponto de ter sido simultaneamente não-sabedoria, desordem do mundo, ameaça escatológica e doença, nesse campo a loucura encontra seu equilíbrio e prepara essa unidade que se oferecerá, talvez de modo ilusório, ao conhecimento positivo; a loucura encontrará desse modo, mas através de uma interpretação moral, esse distanciamento que autoriza o saber objetivo, essa culpabilidade que explica a queda na natureza, essa condenação moral que designa o determinismo do coração, de seus desejos e paixões.

Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de 122 solo para nosso conhecimento “científico” da doença mental. Através desse distanciamento, através dessa dessacralização, a loucura atinge uma aparência de neutralidade já comprometida, dado que só é alcançada nos propósitos iniciais de uma condenação. (FOUCAULT, 1972, p.121).

Nosso saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos, dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o desatino. Nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam a grande Internação da “liberação” de Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1972, p.122). 

“Em todo caso, é dessa liberação que data o momento em que o homem europeu deixa de experimentar e compreender o que é o desatino — que é também a época em que ele não mais apreende a evidência das leis do internamento.” (FOUCAULT, 1972, p.123).

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtw

Foucault vê que seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já periclita no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a obseda com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.

De fato, essa ausência de cuidados médicos, exceção feita à visita prescrita, põe o Hospital Geral quase na mesma situação de uma prisão. As regras nele impostas são em suma aquelas que a ordenação criminal de 1670 prescreve para a boa ordem de todas as casas de detenção; se há um médico no Hospital Geral, não é porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados. Teme-se a famosa “febre das prisões”. Na Inglaterra, gostavam de citar o caso de prisioneiros que tinham contaminado seus juízes durante as sessões do tribunal; lembrava-se que os internos, após a libertação, haviam transmitido a suas famílias o mal contraído nas prisões (FOUCAULT, 1972, p.128).

O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais, como demonstram essas estranhas fórmulas jurídicas que não entregam os insanos aos cuidados do hospital, mas os condenam a uma temporada neles (FOUCAULT, 1972, p. 129).

Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtx

O essencial, portanto, é saber se a loucura é real e qual o seu grau: quanto mais profunda for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente. Pelo contrário, no mundo do internamento pouco importa saber se a razão está de fato atingida; caso esteja, e seu uso está com isso impedido, é sobretudo por uma flexão da vontade que não pode ser inteiramente inocente, pois não pertence à esfera das consequências.

O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento. Aquilo de que se trata é todo um obscuro relacionamento entre a loucura e o mal, relacionamento que não mais é considerado, como na época da Renascença, como relacionado com todos os poderes ocultos do mundo, mas com esse poder individual do homem que é sua vontade. Assim, a loucura lança raízes no mundo moral (FOUCAULT, 1972, p.156).

A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco (FOUCAULT, 1972, p. 156).

 Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana.

Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa. Experiência contraditória, se se quiser, e bastante distanciada das definições jurídicas da loucura, que procuram estabelecer a divisão entre a responsabilidade e o determinismo, entre a falta e a inocência. Distanciada também dessas análises médicas que, na mesma época, prosseguem em sua análise da loucura como um fenômeno da natureza.

Fonte: http://zip.net/bntHt9

No entanto, na prática e na consciência concreta do Classicismo existe esta experiência singular da loucura, percorrendo num átimo toda a distância do desatino; baseada numa escolha ética e, ao mesmo tempo, inclinada para o furor animal. Dessa ambiguidade o positivismo não conseguirá sair, ainda que de fato ele a tenha simplificado: retomou o tema da loucura animal e sua inocência numa teoria da alienação mental como mecanismo patológico da natureza (FOUCAULT, 1972, p.180).

E mantendo o louco nessa situação de internamento que a era clássica havia inventado, ele o manterá, de modo obscuro e sem o admitir, no aparelho da coação moral e do desatino dominado. 181 A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica, mas contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.180).

A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conheci-. mentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.181).

Para Silveira (2008, p.34), a loucura é fragmentação da articulação corpo-ama, afetada pelas paixões descontroladas, no desequilíbrio das causalidades mecânicas, na contrução da conduta irracional e de um campo de irrealidade.

Fonte: http://zip.net/bxtJkL

Segundo López (2006):

A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto, um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.

A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (FOCAULT, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a história de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à história de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar (LÓPEZ, 2006).

REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Éditions Gallimard, 1972.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.

SILVEIRA, Fernando de Almeida. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. – Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/118/283> Acesso em 13 de março de 2017.

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Loucura: configurações e roupagens ao longo da história

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Muito se fala sobre loucura e suas formas de manifestações nos nossos dias. Entretanto, esse debate, ao decorrer dos tempos, foi se apresentando de diversas maneiras e configurações. Em seu livro “A história da loucura na Idade Clássica” (1972), Michel Foucault apresenta quatro tipos de consciência da loucura que permearam o coletivo social. Vale ressaltar que esses tipos de consciência acerca da loucura não desapareceram, mas em determinados tempos históricos se sobrepuseram uns aos outros. Essas quatro formas de consciências da loucura não são solitárias. Cada uma delas possui como anteparo outra, justificando-se e retroalimentando-se.

Fonte: http://migre.me/wjJiO

A consciência crítica da loucura não chega a ser uma definição da forma de enxergar a loucura, mas uma denúncia da loucura. Como cita Foucault (1972), essa consciência da loucura tem certeza de não estar louca, baseando-se, portanto, em certa racionalidade que foge a debates pois se vê incapacitada de argumentar mais fortemente. A segunda forma de consciência da loucura é a consciência prática. Aqui, o louco, o portador da loucura, é visto como um ser inferior à razão, sendo assim uma ameaça à ordem que a racionalidade impõe. A desordem que o louco pode provocar num sistema rigidamente estruturado é sentida como um estranho poder que deve ser silenciado. “(…) dela resta apenas a tranquila certeza de que é preciso reduzir a loucura a silêncio” (FOUCAULT, 1972).

A consciência enunciativa da loucura pode ser entendida como o “saber instintivo” que permite apontar e dizer: é um louco! Não se pode cair no erro de classificar essa forma de consciência como desqualificação ou rotulação negativa da loucura, ou do indivíduo louco. É somente o indicativo do reconhecimento da existência irrecusável e inegável da loucura em um indivíduo. É a percepção da loucura, sem que haja necessariamente um debate de valores associado a essa percepção. Por último, Foucault cita a consciência analítica da loucura. É o olhar que procura dominar a loucura.

Ao se enxergar como ser que pode distinguir a loucura, quem a percebe de forma analítica passa a eliminar o misticismo que a envolve, erradicando os supostos perigos que a loucura pode causar à ordem instituída pela racionalidade. Essa consciência analítica da loucura é a base para todos os saberes objetivos que se tem sobre a loucura nos dias atuais.

Betlhem Royal Hospital. Fonte: http://migre.me/wjKeo

Neste livro, Foucault também aborda o processo histórico da loucura, trazendo uma reflexão sobre loucura e razão do século XVIII, uma sociedade que em sua origem já caminhava para um olhar estereotipado onde emoções desordenadas eram advindas do homem irracional. Algumas questões foram postas a argumentação como: O que seria louco diante dos homens da razão? Como classificar o louco em um século em suas origens? Como apontar sem errar?

De acordo com Bauman, no pós-modernismo o homem passa a estruturar sua vida, sua trajetória de vida. À luz da racionalidade dessa nova sociedade, as escolhas desse homem que transpusessem a linha da normalidade eram classificadas como sinal de loucura. O conceito de loucura como algo que rompe a barreira da normalidade é mantida culturalmente até os dias atuais. 

Tendo como consequência dessa lógica, no capítulo da obra intitulado O Louco no Jardim das Espécies, é evidente um processo classificatório em que diversas doenças ditas mentais, cerebrais e espirituais foram classificadas arbitrariamente. Frente a essa atividade classificadora houve um choque, pois, dividir as formas de loucura conforme seus signos e suas manifestações gerava uma contradição, como se a relação de loucura com aquilo que pode apresentar de si, não fosse essencial, nem houvesse uma relação de verdade.

“Desobedecer”, Henry David Thoreau. Fonte: http://migre.me/wjJBM

Quanto à relação de loucura apresentar uma relação de verdade, cabe aqui ressaltar um “louco” que não se limitou as ordens impostas por uma sociedade capitalista da qual discordava, seu nome era Henry David Thoreau. Ele não se avalia quanto à razão da sociedade civil, mas o que julga ser correto. A verdade expressa por Thoreau é dita de forma simples em uma de suas palavras “A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer em qualquer tempo o que julgo ser correto”. Ou seja, diante do modelo capitalista, se atreveu a abandonar a cidade, a família, o luxo, as tecnologias para viver na floresta, apenas com aquilo que a natureza lhe oferecia, como os primitivos. Uma verdade expressa de acordo com suas particularidades. 

À reflexão proposta por Foucault “O que seria louco diante dos homens da razão?” cabe salientar Bauman e alguns conceitos que predominam na pós-modernidade, como o puro: considerado aquele que é civilizado; impuro: aquele que não está dentro dos conceitos da sociedade moderna, (ex: o louco), não controla as emoções e o estranho: não consegue ser visualizado, é fonte de mal estar, é o sujeito que escapa à lógica classificatória de uma sociedade.

E, além disso, é preciso repensar quanto à liberdade do sujeito, pois a sociedade caminha para um modelo classificatório dicotômico, estigmatizado e estereotipado, visualizado segundo Foucault a partir de uma percepção marginal, um ponto de vista enviesado, através de uma espécie de raciocínio instantâneo, indireto e ao mesmo tempo negativo. A loucura é o lado despercebido da ordem. Assim não cabe à sociedade o papel de julgar e classificar segundo suas próprias convicções, pois o olhar de certo ou errado transpassa gerações, culturas, lógicas políticas e sociais. A diversidade simultânea não é a única: maiores são as variações de um século para outro. Os valores éticos podem se transformar, assim como a sociedade se transforma (VALLS, 1994).

Fonte: http://zip.net/bctGR3

Em Voltaire “chama-se de loucura as doenças dos órgãos do cérebro”. Dictionnaire philosophique, verbete «Loucura», Benda, I, p.285. No século XVIII havia várias formas de pensar sobre a loucura. Os casuístas e teólogos a tinham como um afastamento de alma e corpo, com isso haveria uma salvação para o louco, pois de certa forma sua alma estava distante durante o período da loucura.

Para os juízes, a opinião era a mesma, pois não era criminalizado o ato da loucura. Ambos acreditavam que durante esse período de demência, a personalidade do indivíduo se conservava intacta. Nos discursos médicos, a loucura era vista como uma perturbação da sensibilidade e os sentidos eram os culpados das loucuras. Para Voltaire, as entradas da alma estavam na forma original, e quem estava doente é o morador.

Segundo Foucault (1972) na loucura há duas estruturas que se desenvolvem em dois ciclos: causalidade e ciclo da paixão e da imagem, que seriam na essência o momento da loucura, onde há uma alteração mecânica, o demente faz coisas inimagináveis, ações feitas apenas nesses momentos, e, alterações químicas, se tornando agitados. Essas são as chamadas causas proximais, é a parte que se pode ver da doença. São as manifestações físicas das coisas internas. Na parte invisível da manifestação da doença são internalizadas imagens distorcidas que ocasionam desordens na fala e nos gestos.

Muitas pesquisas foram desenvolvidas para encontrar a causa da loucura. Bonet (1679) afirma que para cada tipo de doença era reconhecida uma forma diferente do tecido cerebral. Passando-se o tempo, novas visões foram surgindo. Para Foucault, (1972) no mundo as variações e os excessos podem provocar a loucura. Nisso, por um grande período de tempo o desatinado foi internado, para separar os considerados sensatos dos insensatos. Segundo Foucault (1972) nesse período eles eram tidos como “nada” eles não “eram” simplesmente. Com o aprisionamento, muitos perdiam a vontade de viver. O internamento não era, portanto, no sentido de aprisionar a loucura, mas sim de aprisionar uma pessoa que perdera sua qualidade de ser.

Fonte: http://zip.net/bctGR4

Foucault aborda a loucura sobre diversas perspectivas, onde o mesmo cita as formas e os níveis que cada uma se apresenta, encaixando-as de acordo com suas características peculiares. No século XVIII e começo do séc. XIX, ele observou que as figuras da loucura podiam ser divididas em grupos, a saber: da demência, mania e melancolia, histeria, hipocondria. “[…]. Tentaremos mostrar como se situaram no interior da experiência do desatino; como aí conseguiram, cada uma delas, uma coesão própria e como chegaram a manifestar de modo positivo a negatividade da loucura”. (FOUCAULT, 1972, p.278).

A demência é uma das figuras da loucura caracterizada pela perda de algumas capacidades essenciais que o indivíduo precisa tanto para resolução de problemas como em relações interpessoais. Segundo o autor ela tem permanecido sobre a perspectiva da negatividade, o que a impede de ter uma representação como figura característica. De acordo com Foucault (1972) num certo sentido, a demência é, dentre todas as doenças do espírito, a que permanece mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral, da loucura experimentada em tudo aquilo que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade”.

O autor ainda ressalta “Ela não tem sintomas propriamente ditos, é antes a possibilidade aberta de todos os sintomas possíveis da loucura.” Ou seja, a demência, em sua particularidade pode apresentar-se com um leque de sintomas. Sendo assim, diversas são as causas que podem manifestar-se provocando esse estado de loucura. Ainda trazendo a questão do que pode causar a demência, seus sintomas e causas, o autor ressalta “Se o cérebro é, isoladamente, a causa da doença, pode-se procurar as origens disso inicialmente nas próprias dimensões da matéria cerebral, […]”.

A demência não organiza suas causas, ela não as localiza, não especifica suas qualidades segundo a figura de seus sintomas. Ela é o efeito universal de toda alteração possível. De certo modo, a demência é a loucura menos todos os sintomas particulares a uma forma da loucura: uma espécie de loucura em filigrana da qual transparece pura e simplesmente aquilo que a loucura é na pureza de sua essência, em sua verdade geral. A demência é tudo o que pode haver de desatinado na sábia mecânica do cérebro, das fibras e dos espíritos (FOUCAULT, 1972, p. 282).

Michel Foucault irá abordar a mania tendo como característica a audácia e o furor, já a melancolia é marcada pela tristeza, pelo medo e pensamentos fixados em um único objeto. “Enquanto o espírito do melancólico se fixa num único objeto, impondo-lhe, apenas a ele, proporções irracionais, a mania de forma conceitos e noções; ou então perdem sua congruência, os seus valores representativos são falseados, […]”. (FOUCAULT, 1972, p. 298). A histeria e hipocondria também remetem a figuras de loucura.

Torrente de Loucos, Portinari. Fonte: http://migre.me/wjJNP

Sobre a histeria, cita-se que é ardorosa por natureza, o que lhe confere uma associação mais imagética do que de enfermidade. A hipocondria está mais comumente associada a alucinações. Essas eram as figuras consideradas manifestações da loucura no séc. XVIII, às vésperas do século. XIX, onde por loucura, entendia-se a cegueira para os próprios excessos da sensibilidade (FOUCAULT, 1972, p.294).

No capítulo Médicos e Doentes, há uma reflexão sobre as doenças e curas durante o século XVIII e que a natureza era praticamente a responsável pela a cura dos males que importunavam os habitantes desse século passado. De acordo com o autor, as enfermidades que surgiram na idade média eram curadas com a panaceia (remédios extraídos da natureza), tudo que era preciso para estabelecer uma cura em qualquer indivíduo se extraia do meio ambiente.

Até mesmo o uso dos vegetais e dos sais logo era reinterpretado numa farmacopeia de estilo racionalista e colocado numa relação discursiva com as perturbações do organismo que se acredita poder curar. Logo, o que existe no mundo sendo mal haverá um antídoto para esse mal, porque ele não existe em estado simples; é sempre compensado: “Antigamente, a erva era boa para o louco e ruim para o carrasco” (FOUCAULT, 1972).

Um paciente e Asclépio entre Hermes e as Três Graças: Medicina, Panacéia e Higéia. Fonte: http://migre.me/wjOnj

Segundo Foucault, é muito estranho explicar essa loucura de medicamento, sendo que na era clássica encontravam-se fármacos em humanos e em minerais, mesmo contrariando a vontade da medicina da época que não aceitava o que a maioria dessas antíteses, instituídas todas pela loucura, não são de norma vegetal, mas de âmbito humano ou do reino mineral. “Fenômeno da alma e do corpo, estigma propriamente humano, nos limites do pecado, signo de uma decadência, mas igualmente lembrança da própria queda, a loucura só pode ser curada pelo homem e seu envoltório mortal de pecador.” (FOUCAULT, 1978, p. 333).

Nesse contexto, o autor afirma que os médicos do século XVIII protestaram contra a medicina de curandeiros, enquanto as técnicas aprendidas pelos doutores muitas vezes eram desprezadas, como veremos nessa citação em 1772, um médico de Lyon publica um texto significativo, L’Anarchie médicinale

A maior parte da medicina prática está nas mãos das pessoas nascidas fora do seio da arte; as curandeiras, as damas de misericórdia, os charlatães, os magos, os vendedores de roupa usada, os hospitaleiros, os monges, os religiosos, os droguistas, os ervatários, os cirurgiões, os farmacêuticos, tratam maior número de doentes e dão mais remédios do que os médicos (GILIBERT ,1772, p.3-4).

Para os médicos algumas das ideias terapêuticas que organizaram as curas da loucura eram a consolidação, a purificação, a imersão, a regulação do movimento. Uma vez que a loucura tanto pode ser paralisada abafada e fixação obstinada, quanto desorganização e fricção, a cura consiste em eclodir no doente um movimento que seja ao mesmo tempo regular e real, no sentido de que deverá obedecer às regras dos processos do mundo. Em visto disso, ao mesmo tempo em que é uma prática, toda cura é uma reflexão rápida sobre si mesma, sobre a doença e sobre a convivência que se estabelece entre uma e outra.

Casa de Loucos (1808/1812), Francisco de Goya. Fonte: http://migre.me/wjJWo

Que a loucura permeia a humanidade, suas nuances e performances provocando medos, misticismos, pavor e tentativa de dominação, isto é sabido. Estas configurações, entretanto, foram se modificando e assumindo novas roupagens durante o passar dos séculos. Para Foucault, o século XIV mostrou-se sensível à indefinição da loucura, acolhendo com certa indulgência (e por vezes grande curiosidade) os reveses da existência da loucura. 

Os séculos XIX e XX, ao contrário, trouxeram uma inquietação inquisitiva sobre a existência da loucura. Era preciso procurar arduamente a verdade final, a causalidade da loucura. Era preciso entendê-la, conhecê-la, revirá-la… para enfim, dominá-la. Na idade clássica, entretanto, a experiência da loucura foi rigidamente polarizada. Por um lado, tinha-se a consciência crítica e a consciência prática. Por outro, as formas de conhecimento e de reconhecimento (FOUCAULT, 1972).

Nesse ínterim,  conhecer então, esse percurso, é conhecer sobre a forma como enxergamos o louco e a loucura ao decorrer dos séculos, nos permitindo refletir sobre a estigmatização deste indivíduo e abrindo novas possibilidades de convivência e integração dele e de toda a simbologia que ele representa.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972/1978.

GILIBERT, J.E. L’Anarchie médicinale. Neufchâtel, 1772, II, p.3-4.

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 1997.

VALLS, Álvaro L. M. O Que é Ética. Coleção Primeiros Passos: Editora Brasiliense, 1994.

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A mulher e a arte em Nise – O Coração da Loucura

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Nise da Silveira é um nome forte quando o assunto é revolução. Mais especificamente revolução no modelo tradicional de psiquiatria e tratamento da loucura. De forma merecida, essa mulher espetacular recebeu uma homenagem em forma de filme. Nise: O Coração da Loucura é uma produção brasileira, lançada em 2016, que conta a trajetória da transformação provocada por essa psiquiatra alagoana (1905-1999), cuja é representada pela atriz Gloria Pires.

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O filme inicia com a volta de Nise para o hospital psiquiátrico Engenho de Dentro. Nesse momento, ela presencia uma cena marcante e, infelizmente, comum nos centros psiquiátricos entre os anos de 1936 e 1956. Se trata da lobotomia e da eletroconvulsoterapia. De acordo com Masiero (2003):

A lobotomia e leucotomia foram utilizadas em pacientes de instituições asilares brasileiras, entre 1936 e 1956. Também chamadas de psicocirurgias, eram intervenções que consistiam em desligar os lobos frontais direito e esquerdo de todo o encéfalo, visando modificar comportamentos ou curar doenças mentais. A técnica, idealizada pelo neurologista português Egas Moniz em 1935 e aperfeiçoada pelo americano Walter Freeman, chegou ao Brasil por intermédio de Aloysio Mattos Pimenta, neurocirurgião do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, logo seguido por outros médicos. Esta medida foi aplicada em mais de mil pacientes internados não só para fins curativos, mas também para aprimorar tecnicamente a cirurgia, uma vez que os experimentos preliminares com animais eram escassos. No Brasil, a técnica foi adotada até 1956, passando a ferir o Código de Nuremberg, de 1947, concebido para regulamentar e conter os abusos da experimentação médica em seres humanos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.

E é justamente esse tratamento abusivo, experimental e desumano que Nise se recusou a aplicar. Como a ciência considerada em evolução na época se dava por meio dessas técnicas, a psiquiatra foi colocada no setor abandonado de terapia ocupacional. E, mesmo com muitas dificuldades, como a não aceitação de seus métodos e até certo preconceito por ser mulher (visto em vários momentos do filme, mas, principalmente, em um trecho em que um de seus colegas fala que é difícil trabalhar com mulheres), deu início a uma revolução magnânima.

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Com toda a delicadeza e cuidado femininos, Nise torna esse setor mais agradável e acolhedor, ensinando que no local não há pacientes, mas clientes, pois ela e seus colegas estão ali a serviço deles e que a melhor forma de intervenção é tratando-os como humanos. A força, a coragem, a resistência e a persistência de Nise também são marcantes, mostrando esse aspecto que caracteriza a mulher em geral.

Contando com a ajuda do artista plástico Almir Mavignier, Nise implanta a arte-terapia no tratamento de doenças mentais. Indivíduos que antes eram tratados como farrapos, passaram a serem vistos como artistas. Interessada na trajetória das pinturas de cada cliente, Nise enxerga nelas um pouco da psicologia analítica, pois, muitas lembravam mandalas ou traziam formas circulares.

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Segundo Carl Gustav Jung (1875, apud Romano, 2015):

[…] ao fazermos uma mandala ocorre uma descarga de tensão e é comum surgir imagens espontâneas internas enviadas pelo inconsciente. Quando criamos uma mandala estamos produzindo nosso próprio espaço sagrado. A circunferência é um campo delimitado que remete à proteção, e o centro nos leva a olharmos para nós mesmos, saindo do externo, de tudo que nos tira do contato com nosso EU.

O que Jung fala fica bem claro nas obras produzidas pelos clientes de Nise. No início, as pinturas eram abstratas, sem formas. Depois, conforme o tratamento da arte-terapia ia evoluindo, as pinturas também foram ganhando formas e vida, mostrando que esses indivíduos de fato expressavam o seu mundo interno, ora bagunçado e assustado, ora organizado e tranquilo. Essas obras estão expostas hoje no Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.

Fonte: http://migre.me/wbMs4
Fonte: http://migre.me/wbMs4

Nise da Silveira deu voz à loucura. Diferente de todos os envolvidos naquele lugar hostil, ela não tinha medo dos indivíduos que estavam sob os seus cuidados. Ela permitiu que eles se expressassem e, o mais importante, fossem tratados com dignidade e humanidade. Seu nome marca uma revolução e a história na psiquiatria brasileira, além da implantação da arte-terapia como tratamento para as doenças mentais e da abordagem junguiana no país. Mas, além de tudo, ela marca uma história de mulheres que fizeram a diferença, não se conformando com o que havia de errado em seu meio e lutando para conseguir melhorias e transformação.

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“Meu medo é não saber morrer como um gato, embora a morte propriamente não me faça medo. É não saber como morrer como os gatos sabem. É isso que peço que eles me ensinem. Um gato, quando não quer saber de uma pessoa, levanta a cauda e sai. Não parece que esteja com emoção de raiva como eu fico às vezes. Desprezo. Sutileza completa. Eles são grandes mestres.” – Trecho de entrevista com Nise da Silveira.

REFERÊNCIAS:

SANTOS, L. G. P.   Nise da Silveira – Entrevista. Scielo Brasil, Psicol. cienc. prof. vol.14 no.1-3 Brasília 1994. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931994000100005.Acesso em 04 mar 2017.

VELOSO, A. M. A.  Quem foi Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil.  HuffPost Brasil, 27/01/2017. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2016/04/19/quem-foi-nise-da-silveira_n_9671732.html Acesso em: 04 mar 2017.

MASIERO, A. L. A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros. Scielo Brasil, Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.10 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2003. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702003000200004.Acesso em: 04 mar 2017.

ROMANO, C. T. Mandalas: a expressão do inconsciente. Clínica de Psicologia Relacional. Disponível em: http://terapiarelacional.com.br/mandalas-a-expressao-do-inconsciente. Acesso em: 04 mar 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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NISE – O CORAÇÃO DA LOUCURA

Diretor: Roberto Berliner
Elenco: Glória Pires, Fabrício Boliveira, Roberta Rodrigues, Augusto Madeira
País: Brasil
Ano: 2015
Classificação: 12

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