Psicóloga especializada em sexualidade humana fala sobre a transexualidade

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Priscila Junqueira, sexóloga e psicóloga destaca os pontos traumáticos na transição de gênero

Em “A Força do Querer”, a personagem Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte, está passando por momentos decisivos para descobrir sua verdadeira identidade de gênero. Acompanhada por uma psicóloga, a personagem irá perceber que, além de homem trans, ela também pode ser homossexual.

Segundo a sexóloga e psicóloga especializada em sexualidade humana, Priscila Junqueira, a identidade de gênero, diferente da orientação sexual, é o ato de se sentir pertencente à outra identificação, diferente da biológica, ou seja, uma criança pode nascer menina e se identificar com o feminino, ou não. Ou pode nascer um menino, e pode se identificar ou não com o masculino.

Apesar de parecer simples na teoria, a condição de ser “trans” é muito mais complexa na prática. Além de acarretarem problemas como a não aceitação na sociedade, problemas na hora de conseguir um emprego, conquistar a mudança de sexo e o nome social, existem outros obstáculos ainda mais graves que influenciam o fator psicológico.

O processo de descoberta, se dá através da disforia de gênero, que além de ser um sentimento de inquietude e incômodo ao ver que o corpo não reflete com o que realmente é, acarreta outros problemas como ansiedade, angústia, depressão, e até mesmo tentativa de suicídio, e automaticamente transforma os sentimentos internos em problemas familiares e profissionais, influenciando o preconceito diário.

Na trama esse conflito interno que Ivana sente vem desde criança, ela foi imposta pela mãe para viver uma feminilidade que não fazia parte do seu interior e com isso ela deixa de entender o real sentido da pessoa que  é. Segundo Priscila Junqueira, desde a infância os transexuais sentem que seu corpo foi trocado, ela explica uma parte essencial de como deve ser feito o tratamento psicológico: “Cabe ao profissional contribuir para que essa pessoa primeiro sinta-se acolhida na sua dor e assim poderão caminhar para um autoconhecimento e conflitos diminuídos. Com ajuda profissional a pessoa poderá entender o que está acontecendo, e ser orientado a buscar a terapia hormonal, e até mesmo a cirurgia de redesignação sexual, caso deseje, e receber orientações legais quanto a todo processo”.

Ivana se desespera na frente do espelho. Foto: João Miguel Júnior/ TV Globo. (Fonte: https://goo.gl/jX9AsT)

Na novela da Glória Perez, ela relata as diferenças, vemos isso com o personagem Nonato, interpretado por Silvero Pereira, que é um travesti que ama seu corpo e não tem problemas com sua identidade de gênero. Isso é abordado de forma nítida mostrando as diferenças.

 “O transexual é diferente de travesti. Os travestis irão usar roupas do sexo oposto durante parte da vida para ter uma experiência temporária ou permanente de ser do gênero oposto. Eles podem enfrentar os mesmos conflitos que os transexuais, além de encarar a falta de  respeito a diversidade sexual” – explica Junqueira.

Existe muita confusão com relação às diferenças de orientação sexual e identidade de gênero, mas a sexóloga pontua: “A orientação sexual irá fazer com que a pessoa busque relacionamentos afetivos-sexuais com pessoas do mesmo sexo (homo), sexo oposto (hetero) e ambos (bi). Já a identidade de gênero a questão é o sentir mulher ou homem”.

Apesar do tema ser discutido no horário nobre da televisão brasileira, ainda existe muitas barreiras ao falarmos sobre transexualidade, Para Priscila Junqueira, a educação é fundamental, pois se torna um incentivo falar sobre o assunto em vários lugares, permitindo que esse pré-conceito se quebre.

 

Sobre Priscila Junqueira

Priscila Junqueira. Foto: arquivo pessoal.

Priscila Junqueira, é Mestre em Ciências – Faculdade de Medicina da USP; Especialista em Sexologia – Faculdade de Medicina da USP; Especialista em Coordenação Grupoanalítica – Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo – SPAG-Campinas.
Além disso, é professora universitária e atende em consultório particular. Em 2009 recebeu o prêmio de melhor pôster com o tema: Qualidade de sono e qualidade de vida, comparação entre mulheres portadora de HIV e não portadoras. Priscila também teve participação em diversos capítulos de livros consolidados e participação em Congresso, como o XV Congresso Brasileiro de Sexualidade Humana.

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Ficção e Homossexualidade na Tv Brasileira: de Eduardo e Hugo à Félix

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Não é segredo que a telenovela ocupa um espaço importante na produção cultural brasileira. Mesmo entre os mais radicais frankfurtianos e dialéticos é necessário reconhecer o papel que a teledramaturgia, nas últimas décadas exerceu (e ainda exerce), nas representações sobre a sociedade brasileira. Muito se falou e escreveu sobre a telenovela no Brasil. Trabalhos acadêmicos, artigos em revistas e jornais e nas conversas do dia-a-dia, as opiniões e análises sobre esse produto televisivo são algo constante nos espaços eruditos e populares.

Nos últimos anos a telenovela se ocupou em inserir temas que procuram englobar questões sociais e que para os escritores de teledramaturgia seriam pertinentes. Esses temas são inseridos muitas vezes de forma didática, buscando uma conscientização do público receptor sobre essas temáticas propostas. Dependência química, transplante de órgãos, alcoolismo, tráfico de pessoas, desaparecimento de crianças são exemplos de temáticas que os escritores de telenovela inseriram em suas produções teleficcionais. Esse processo é conhecido como merchandising social, termo considerado como controverso, pois se tornou naturalizado no campo televisivo, porém criticado no espaço acadêmico.

Uma das temáticas que conseguiu um alcance relevante foi a da homossexualidade, discutida na telenovela Insensato Coração (2011), escrita por Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Em seu histórico na construção do folhetim televisivo, esses escritores abordaram muitas questões como a corrupção, o comportamento das elites brasileiras e até mesmo questões morais. Essas questões estão presentes em novelas como Vale Tudo (1988), Pátria Minha (1994), Celebridade (2003) e que mostram as propostas realizadas pelos escritores em inserir temáticas para possíveis discussões.

Em Insensato Coração os escritores repetem essa fórmula, utilizando-se do melodrama e o reatualiza para alcançarem seus objetivos. Para ampliar suas intenções, ou mesmo seguir as demandas da indústria cultural, G. Braga e R. Linhares inserem o tema da homossexualidade, aproveitando o agendamento do tema, presente em discussões na sociedade civil e também em instituições religiosas, jurídicas e políticas.

A questão da homossexualidade é um tema polêmico e multidimensionado, pois envolvem relações de poder, práticas culturas e históricas, experiências sociais e interesses institucionais e de grupos. Nos últimos tornou-se uma questão de discussão pública na sociedade brasileira, pois com o fortalecimento da luta pelos direitos das minorias (como categoria sociológica) a “questão gay” se consolidou no debate público. A igualdade de direitos, como o reconhecimento da união homossexual, a adoção de crianças também por casais homossexuais são “bandeiras” – que é muito mais do que isso, pois são direitos e não privilégios – encampadas pelo movimento GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros).

Os escritores de Insensato Coração “aproveitando” o agendamento público da temática homossexual inseriram na narrativa ficcional questões sobre a orientação sexual, especificamente a “questão gay”. Eles procuraram se afastar dos velhos estereótipos que a própria telenovela utilizou durante anos para representar os homossexuais. “Bichas” afetadas, gays violentos, paranoicos e infelizes são exemplos de como durante muito tempo a televisão representou os homossexuais.

Em Insensato Coração os escritores também utilizaram algumas dessas representações ao inserirem personagens afetados e afeminados como Rony (Leonardo Miggiorin) e Xicão (Wendel Bendelack). Porém, inseriram alguns personagens que não adotaram esses estereótipos, procurando adotar estratégias que politizem e didatizem a temática da homossexualidade. Pode-se perceber nessas estratégias duas questões que para os escritores se tornaram pertinentes. A primeira é o uso de personagens que não possuem comportamentos afetados e afeminados, como o Eduardo (Rodrigo Andrade) e o Hugo (Marcos Damigo) que adotaram o comportamento da “normalidade”. A outra questão foi a discussão sobre a homofobia com o objetivo de discutir a criminalização das práticas homofóbicas.

Eduardo e Hugo – Insensato Coração

Para tentar “educar” o público e destacar a importância do relacionamento homossexual dentro de uma possível normalidade, os escritores decidem optar por concentrar no relacionamento de dois jovens bonitos, pertencentes a classe média (Hugo e Eduardo). Um deles é professor universitário no curso de direito e outro é filho de uma comerciante que possui um quiosque na praia do Leblon (cidade do Rio de Janeiro) e que apoia a causa homossexual. G. Braga e R. Linhares assumem o discurso da heteronormatividade, ao procurar dar “voz” a novas representações sobre a homossexualidade.

O casal homossexual protagonista da novela assume as representações da normalidade heterossexual, isto é, os escritores apenas replicam no comportamento dos personagens as práticas da normativa heterossexual. Hugo e Eduardo se aproximam, se apaixonam, surgem algumas turbulências com a família (no caso de Eduardo) e para concretizarem a felicidade resolvem se casar, conciliando com todos: família, amigos e de certa forma com a sociedade.

Mesmo que os escritores queiram abandonar estereótipos que foram e ainda são representados na televisão, eles acabam adotando representações da família tradicional, heterossexual, moderna e burguesa. Outras questões que os escritores inserem é a judicialização constante da homossexualidade e principalmente da homofobia. Utilizando a estratégia do merchandisingsocial, eles utilizam a lei e a punição como forma de reduzir a prática homofóbica. Em alguns momentos torna-se pedante o uso didático para convencer o público que praticar homofobia é crime. O problema é que reduzem apenas a questões jurídicas, não percebendo as outras práticas presentes nesse processo.

Entretanto, em Insensato Coração os escritores procuraram ampliar as “vozes” homossexuais. O relacionamento desse mesmo casal homossexual, a inserção de personagens de classe média, com empregos estáveis, sem trejeitos afetados e/ou afeminados como um jornalista dois advogados e um estudante universitário. O estereótipo do homossexual, porém permanece, quando os escritores inserem a personagem Araci (Cristiana Oliveira) como “lésbica” usando “trejeitos” masculinizados.

Crô – Fina Estampa

Após a exibição de Insensato Coração as telenovelas exibidas no horário das 21 (vinte e uma) horas da Rede Globo com receio de não centralizar a polêmica sobre a homossexualidade resolvem “frear” a discussão. Na novela posterior Fina Estampa (2011-2012) o escritor Aguinaldo Silva insere um personagem homossexual Crô – Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado) e que possui os “velhos” estereótipos homossexuais representados nas novelas: afetado, afeminado e com o toque cômico, com intenção apenas de entreter.

Félix – Amor à Vida

No momento atual a telenovela Amor à Vida (2013) de Walcyr Carrasco possui alguns personagens homossexuais. O personagem Félix (Mateus Solano) homossexual ou bissexual é um dos protagonistas da novela. Um outro núcleo homossexual é composto por Eron (Marcelo Antony) e Niko (Thiago Fragoso) que mantém um relacionamento estável e que estão adotando um criança através de um processo de “aluguel de uma barriga”. Questão também que está sendo discutido na sociedade brasileira (e também em muitos outros países) sobre a adoção de crianças por casais homossexuais. Esse casal de personagens de Amor à Vida também possui quase o mesmo perfil do casal de Insensato Coração, classe média, brancos e adotam a normalidade heteronormativa.

Eron e Niko – Amor à Vida

A telenovela cumpre uma função social ao discutir temas pertinentes às demandas da sociedade contemporânea no Brasil? Para muitos ela realiza um desserviço, pois ao discutir temas tidos como sociais e polêmicos, a telenovela os mercantiliza, pois opera dentro do processo da indústria cultural. O próprio termo merchandising social seria uma forma de apresentar esses temas, como a homossexualidade, a partir da lógica de ganhos de audiência e consequentemente aumento de publicidade e lucratividade.

Contudo, reduzir o papel que a ficção televisiva possui em mero produto mercadológico é negar décadas de interação com a sociedade brasileira. Nessa interação, as matrizes hegemônicas que predominam principalmente as dos escritores estão concatenadas com o eixo Rio-São Paulo. Outras realidades ou lógicas culturais brasileiras são pouco representadas e quando são estão carregas de estereótipos. Porém, não podemos reduzir o escopo da análise num economicismo que muitas vezes é estéril e pedante.

Para entender como a telenovela consegue operar nos códigos da cultura brasileira e de certo modo manter uma relação de décadas devemos perceber como ela consegue se reinventar, reinventando principalmente sua principal matriz narrativa: o melodrama. É na reinvenção do melodrama que abre a possibilidade dos escritores inserirem temas do cotidiano, perspectivas políticas e interesses ligados às da emissora. A discussão de questões da sociedade brasileira pela ficção televisiva é uma herança que está além do melodrama, recebendo também influências da literatura e do teatro, pelo menos na especificidade da teledramaturgia no Brasil.

Ao proporem a discussão sobre homossexualidade em Insensato Coração, G. Braga e R. Linhares procuram se conectar com as demandas da sociedade brasileira. Mas, não se pode esquecer que essa conexão não é mecânica, pois os escritores são condicionados por representações sociais, bem como o público que assiste e comenta a telenovela. Podemos perceber na quantidade de postagens que os internautas fizeram durante o período de exibição da novela, nas mídias sociais.

As mídias sociais talvez seja hoje o principal termômetro em que os escritores e as emissoras utilizam para avaliar a produção televisiva. A polêmica sobre a homossexualidade fez os escritores de novela, após Insensato Coração, possivelmente por pressão da maior emissora (Rede Globo) atenuar as discussões. Em Amor à Vida Wlacyr Carrasco utiliza estratégias para abordar o tema da homossexualidade. O escritor procurou estereotipar o personagem gay Félix para contrabalancear a discussão sobre o tema da adoção de um filho em que o casal homossexual Eron e Niko está realizando.

O escritor procura realizar uma polêmica mais “soft” e também para agradar o público estereotipa um personagem gay com ações de vilão, realizando coisas supostamente desagradáveis e condenáveis. O escritor apresenta o personagem Félix com problemas de caráter, insinuando uma relação entre comportamento e orientação sexual. Essa intenção talvez procure agradar pessoas que se opuseram a defesa da “causa gay” por Insensato Coração e que defendem a tão questionada “cura gay”. Como o sentido escapa da ação, talvez não seja a intenção do escritor, porém o significado interpretado poderia ser esse.

As postagens nas mídias sociais mostrou um caleidoscópio de representações sociais presentes nos posts dos internautas. Um elemento pertinente na análise desses posts é a insistência dos internautas em escrever sobre como a homossexualidade foi abordada em Insensato Coração. Mesmo que muitas aceitem e até defendem o direitos dos homossexuais de ter direitos e respeitem a suas orientações sexuais é necessário mais do que isso.

Citando um fala da filósofa Marilena Chauí é necessário uma revolução antropológica para que a revolução sexual realmente se estabeleça. Os escritores de Insensato Coração tiveram o mérito de problematizar uma temática complexa num produto cultural de alcance nacional e que possui tensões e interesses diversos. Na telenovela Amor à Vida, o tema da homossexualidade retoma como uma das questões centrais da narrativa. Muitos sentidos atravessam a temática, comportamento, moralidade e direitos civis. A família é uma instituição que atravessa a narrativa, principalmente o modelo nuclear e tradicional. Porém, para que essa mudança antropológica ocorra e que a liberdade sexual seja respeitada e vivida é necessário mais do que 185 capítulos de ficção.

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Luiz Fernando Carvalho: “o público não é burro”

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Foto: Divulgação / Canal Brasil

Cineasta e diretor de televisão, Luiz Fernando Carvalho de Almeida (Rio de Janeiro, 28 de julho de 1960) estudou Arquitetura e Letras. Aos 18 anos, fez seus primeiros trabalhos em cinema, ainda como estagiário para, pouco depois, começar a trabalhar no núcleo Usina de Teledramaturgia da Rede Globo, onde conheceu o diretor de fotografia Walter Carvalho com quem realizou diversos trabalhos. Nesse núcleo, foi diretor assistente das minisséries O Tempo e o Vento (1985) e Grande Sertão: Veredas (1985).

Durante seu trabalho na Rede Globo, pôde conviver com muitos diretores, com os quais teve conhecimento teórico e prático. Com eles aprendeu o enquadramento de câmera e produção até a direção de grandes atores. Segundo Carvalho (2002, p. 18),

[…] Avancini foi uma figura importante também na minha formação prática, porque veio nesse momento em que eu buscava fazer essa transfusão entre cinema e televisão, o que eu poderia receber como um ensinamento de uma linguagem e de outra, sem ser preconceituoso: Ah, televisão é ruim, cinema é bom… Eu não acredito nisso. No caso específico da dramaturgia, eu percebo que existem coisas boas tanto num veículo quanto no outro, e coisas ruins tanto num como no outro […].

Durante esta época, Carvalho abandonou definitivamente a faculdade de Arquitetura e foi cursar Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), pois acreditava que essa escolha podia ajudá-lo no seu percurso.

Em 1986, escreveu e dirigiu o curta-metragem A Espera, baseado no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Esse filme recebeu os prêmios de Melhor Filme, melhor atriz (Marieta Severo) e melhor fotografia (Walter Carvalho) no Festival de Gramado, melhor curta metragem (Concha de Oro) no Festival de San Sebastian, Espanha e o Prêmio Especial do Júri no Festival de Ste Therèse, Canadá.

Seguindo uma tendência de levar obras literárias às telas, dirige, em 1987, ao lado de Denise Saraceni, a telenovela Helena, na Rede Manchete, adaptação assinada por Mário Prata, Dagomir Marquezi e Reinaldo Moraes. Também dirigiu a telenovela Carmen (1987), Vida Nova(1988), e esteve na equipe de direção da telenovela Tieta (1989). Depois disso, teve uma fase produtiva na televisão em que trabalhou na equipe da minissérie Riacho Doce (1990), das novelas Pedra sobre Pedra (1992), Renascer (1993) e O Rei do Gado (1996) e os especiaisOs Homens Querem paz (1991), Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995).

Cena de O Rei do Gado

Com Lavoura Arcaica (2001), baseado no romance homônimo de Raduan Nassar publicado em 1975, recebeu muitos prêmios no Brasil e no exterior. A exploração do texto é, segundo Carvalho, parte para a construção imagética, a começar pela equipe de produção, com o auxílio de especialistas sobre a obra em construção. A minissérie Os Maias (2001) foi construída a partir de tais cuidados: a pesquisa sobre a obra de Eça de Queirós, a discussão com especialistas na obra, a viagem aos lugares descritos na obra literária. Nessa minissérie, houve uma atenção especial para a composição dos cenários que começou desde a limpeza dos monumentos e reformas na casa do “Ramalhete” e a preparação do figurino da minissérie seguiu a mesma linha do processo de criação.

Cena de Lavoura Arcaica

Ainda na televisão, na área da transposição de textos literários para o audiovisual, vale destacar a microssérie Hoje é Dia de Maria (primeira e segunda jornadas), de 2005. De acordo com o sítio da emissora, estas minisséries apresentaram-se como inovadoras, já que, para compor a história da menina Maria, os realizadores buscaram elementos folclóricos e míticos presentes em contos populares compilados por Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Sílvio Romero. E mais: a história é repleta de metáforas e simbolismo, com linguagem, estrutura narrativa e estética baseada nos sonhos. Neste caso, Luiz Fernando Carvalho assinou a direção e também o roteiro, sendo também muito premiado.

Foto: Divulgação da minicrossérie Hoje é Dia de Maria

Em 2005, surge a primeira realização do projeto Quadrante: Pedra do Reino. A minissérie foi filmada em 16 mm e finalizada em alta definição, o roteiro foi assinado por Braulio Tavares, Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho, que também foi o responsável pela direção da trama. O projeto Quadrante foi idealizado para mostrar a diversidade cultural do país, a partir da adaptação de obras literárias nacionais filmadas na região onde se passa a história original, com a participação de elenco e mão-de-obra locais. O projeto visa a descentralizar o processo artístico e de produção, além de ajudar na formação de novos profissionais, criando um viés educacional. A Pedra do Reino teve como cenário a cidade de Taperoá, no sertão da Paraíba.

O Quadrante foi o primeiro projeto de teledramaturgia da TV Globo trabalhado em multiplataforma, com conteúdos complementares exibidos em diferentes mídias. O canal GNT realizou um documentário sobre a vida e a obra de Ariano Suassuna. O Multishow exibiu uma edição especial do Revista Bastidor, mostrando o processo de criação, entrevistas e o dia-a-dia das filmagens. E o Sistema Globo de Rádio transmitiu entrevistas com os atores da minissérie e artistas ligados ao Movimento Armorial.

A segunda produção do projeto Quadrante foi Capitu. O roteiro foi assinado por Euclydes Marinho, mas o texto final e a direção por Luiz Fernando Carvalho. Ao inserir elementos modernos como os aparelhos de mp3 usados pelos dançarinos para ouvir a valsa na cena do baile, assumir a tatuagem no braço da protagonista Letícia Persiles (Capitu jovem) e adotar músicas clássicas, samba, rock e músicas de bandas internacionais e nacionais, a direção quis reforçar o caráter atemporal e universal da obra de Machado de Assis, reafirmando sua modernidade. Também foi uma tentativa de investir no público jovem, desfazendo o preconceito que muitos têm sobre o escritor. Temas como modernidade, costumes, feminilidade, maternidade, amor, ciúme, homoafetividade, crueldade, ambiguidade e dúvida foram discutidos pelos seguintes profissionais: o pesquisador e escritor Antônio Edmilson Martins Rodrigues; os psicanalistas Carlos Byington, Luiz Alberto Pinheiro de Freitas e Maria Rita Kehl; o jornalista e escritor Daniel Piza; e os ensaístas Gustavo Bernardo e Sergio Paulo Rouanet.

Cena de Capitu

Em 2010, Luiz Fernando Carvalho dirigiu a microssérie Afinal, o Que Querem as Mulheres? escrita por João Paulo Cuenca com a coautoria de Cecília Giannetti e Michel Melamed. Melamed é ainda responsável por interpretar o protagonista, André Newmann, um estudante de psicologia que pesquisa qual seria a resposta para a fundamental pergunta nunca respondida por Sigmund Freud: “Afinal, o que querem as mulheres?”, assunto de sua tese de doutorado.

O último trabalho de Luiz Fernando Carvalho exibido na televisão foi a microssérie Subúrbia (2012), produzida e exibida pela Rede Globo. A série foi escrita por Luiz Fernando Carvalho e Paulo Lins, com direção-geral de Carvalho.

O percurso trilhado por Luiz Fernando Carvalho na direção de suas obras revela uma atenção dispensada às obras literárias. Ele pertence a um momento em que surge uma geração de diretores ligada nas possibilidades expressivas do meio. Essa geração está voltada para o aprimoramento da linguagem televisiva, especialmente da teledramaturgia, trazendo a possibilidade da impressão de marcas de autoria na direção, efetivando a “TV de autor”.

O diretor explica o que entende por televisão no trecho retirado de uma entrevista concedida àFolha de São Paulo, na época em que estava sofrendo fortes críticas com relação ao suposto hermetismo de A Pedra do Reino. 

[…] Pertenço ao grupo daqueles que acreditam que o público não é burro, mas doutrinado debaixo de um cabresto de linguagem. Luto contra isso. Sabendo da dimensão que a televisão alcança no Brasil, tratá-la apenas como diversão me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo […] (www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1006200712.htm)

Carvalho surge como referência ou inspiração para os profissionais audiovisuais que estão à procura de uma nova forma de se fazer TV.

Foto: Divulgação/http://tvg.globo.com/programas/capitu/capitu/platb/2008/11/26/com-a-palavra-o-diretor/

Há, portanto, certa semelhança, ao menos no nível de discurso, entre os interesses da emissora e do diretor Luiz Fernando Carvalho: suas obras são, geralmente, influenciadas pelos grandes textos da literatura ou são adaptações destes. A alta qualidade estética e audiovisual de seus produtos convém, evidentemente, à emissora, que também é beneficiada pelo marketing, premiações nacionais e internacionais, parceria e lançamento de produtos em outras mídias.

Referências:

CARVALHO, Luiz Fernando. Sobre o filme Lavoura arcaica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

____. Capitu: minissérie. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

 

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O anjo pornográfico na Avenida Brasil

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Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros.
Nelson Rodrigues

Li todas as peças de Nelson Rodrigues, furtiva e escondida pelos cantos, ao longo da minha adolescência, o que me rendeu a alcunha, durante algum tempo, de insociável. Durante a vida assisti a algumas peças. Confesso que nem sempre a altura do texto sublime do autor. Em geral, as peças sempre me inquietavam e me deixavam embasbacada com o olhar irônico e sarcástico sobre o ser humano.

Há coisas que só se confessa num divã de psicanálise, à meia luz, ou numa confissão com o travesseiro. Eu confesso: acredito mesmo que todos nós temos algum tipo de perversão (confessos ou não), em maiores ou menores graus. Lembrando que a palavra perversão vem do latim perversione que corresponde ao ato ou efeito de perverter. Neste caso, a  utilizo para designar o ‘desvio’, por parte de um indivíduo ou grupo, de qualquer dos comportamentos considerados ‘normais ou ortodoxos’. E para enfrentar e sobreviver a esse insight, só mesmo lendo a escrita lúcida deste anjo, Nelson Rodrigues, para sermos inundados do sentimento catártico de ‘eu sou normal’ e para desvelar a vida como ela é.

Sempre me intrigou a designação de anjo pornográfico. Por que pornográfico? Muitos abominam Nelson Rodrigues e sua escrita maldita. Mas assistem, em horário nobre, ávidos a malfadada cruzada de Nina contra Carminha em “Avenida Brasil”, novela das nove. A casa de Tufão é uma casa à la Nelson Rodrigues, pra nenhum amante do teatro rodriguiano colocar defeito. E o triângulo amoroso? Melhor dizendo, qual triângulo amoroso!? Tufão, Carminha, Nina? Tufão, Carminha, Max? Carminha, Max, Ivana? Nina, Max, Jorginho? Nina, Tufão, Jorginho? Nilo, Mãe Lucinda, Santiago? Tessália, Leleco, Darkson? Tessália, Leleco, Muricy? Muricy, Leleco, Adauto? Jorginho, Débora, Iran? Olenka, Silas e Monalisa? E o que dizer de Cadinho e suas três mulheres: Noêmia, Verônica e Alexia?  E a união de Leandro, Roni e Suelen? Claro, não nesta mesma ordem, depende do dia da semana pode ser alternado. O troca-troca de casais movimenta a trama e torna os relacionamentos áridos fast-food.

Por isso, muitos perguntam sobre o nível das telenovelas. E eu pergunto: e o nosso nível? Afinal, há uma reciprocidade, as novelas são assim por que o telespectador também o é, isso explica o esplêndido e estrondoso sucesso da trama.

Desta forma, explicam-se os modismos durante e pós-novelas: cabelos, roupas, maquiagem, gírias e bordões, e, claro, comportamento. Bem, o que me chama atenção são os bordões que estão na cabeça e na boca das pessoas: ‘Assim você mata o papai’; ‘É tudo culpa da Rita!’; ‘Me serve, vadia’; ‘Ariranha’; ‘Piriguete’. E não é que a novela lançou a moda piriguete? Agora, temos um vasto repertório de estilo piriguete cool de norte a sul do país.

Embora Nelson Rodrigues sempre tenha afirmado desconhecer a obra de Freud e Jung, suas peças teatrais parecem ter sido cunhadas pelos complexos de Édipo e de Electra, facilmente observados na relação amorosa entre Leleco e Tessália, a música tema do casal “Assim você mata o papai” do grupo Sorriso Maroto, autoriza essa leitura.

E o tragicômico Leleco faz um contraponto com o personagem rodriguiano, Olegário, da peça “A mulher sem pecado” (1942). Na peça Olegário é um homem ciumento, mais velho, obcecado pela dúvida sobre a fidelidade de sua jovem e bela esposa, Lídia. Para testá-la, finge-se paralítico. No último ato, Lídia deixa uma carta e foge com o canalha Umberto, o chofer. Também, na peça fica clara uma referência ao complexo de Édipo, quando Olegário reclama da mania de Lídia de chamá-lo de ‘meu filho’.

Na trama televisiva, Leleco também é um homem mais velho que se casa com uma ninfeta, o que desencadeia uma crise de meia-idade e a dúvida sobre a fidelidade da moça. Leleco contrata um personal para tentar seduzir Tessália, no entanto as coisas se complicam quando o personal Darkson se apaixona por ela.

O mundo rodriguiano é o mundo imperfeito que se olha no espelho e não tem vergonha de se ver e de falar de si, e as telenovelas trazem uma representação da vida cotidiana, tanto na elaboração das personagens como dos cenários da vida privada. É o espelho que ora se aproxima do real ora se mostra distorcido, mas sempre em contraponto com a realidade circundante.

É na literatura, no teatro e nas telenovelas que encontramos a transgressão e provocação (Por que não dizer tentação?) dos limites do pensar a sexualidade e os sentimentos humanos.

Aplausos, então, para Nelson Rodrigues, gênio e poeta maldito, que durante mais de 20 anos, foi o único obsceno do teatro brasileiro, e para o autor João Emanuel Carneiro e sua atual galeria de personagens rodriguianas.

E do que precisamos? De outros anjos pornográficos para nos desmascarar, nos despir, nos espiar pelo buraco da fechadura e depois nos representar em suas peças.

Saiba mais:

BORELLI, Sílvia Helena Simões. Telenovelas Brasileiras: balanços e perspectivas. São Paulo em Perspectiva, 2001.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

RODRIGUES, Nelson. A mulher sem pecado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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Para os noveleiros de plantão e os noveleiros por acaso

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Sempre que pergunto, em sala de aula, se os alunos acompanham telenovelas, a resposta é sempre negativa. A maioria afirma que não perde tempo com isso e que o que veem na TV são filmes, documentários ou telejornais. Quando admitem que sabem o nome de alguma personagem, justificam dizendo que ouviu o comentário de algum parente ou que estava passando pela sala e viu uma cena de relance, ou que zapeava e acompanhou, por alguns instantes, um trecho desta ou daquela telenovela, ou ainda que ouviu comentários no cabeleireiro!

Por muito tempo também assim me comportava. Não era admissível, especialmente para uma estudante do curso de Letras, perder tempo com telenovelas, enquanto há tantos livros para ler. Durante muito tempo tive que esconder que acompanhava a todas as telenovelas da Globo.

Por que estou colocando o dedo na ferida? Só porque eu admito ser noveleira? Também por isso.

O debate em torno da televisão, em especial das telenovelas, por muitos anos, girava em torno do fato de as telenovelas apresentarem perigo porque seus enredos melodramáticos tinham objetivo de causar manipulação, evasão e alienação. Primeiro nas mulheres, depois em toda a família, que se tornando os humanos embebidos de sonhos e de lágrimas, vazios de vontades, plenos de ilusão. Além disso, as telenovelas eram (e ainda são) consideradas o reduto de maus comportamentos, trazendo más influências aos jovens.

Mesmo com todos esses argumentos de pais e professores quanto à influência no comportamento das crianças e dos jovens, quero chamar à reflexão para alguns pontos. Pensemos em Avenida Brasil, novela de João Emanuel Carneiro e que (posso imaginar!) vocês não estejam acompanhando. Com uma narrativa rápida, personagens surpreendentes e uma direção cuidadosa de Ricardo Waddington, a novela nos faz pensar em tipos que nos cercam. Carminha, por exemplo, usando a máscara da boazinha, comete atrocidades que deixam telespectadores estarrecidos. No primeiro capítulo, rouba o “marido” e abandona a enteada em um lixão. E ainda descola um casamento com um jogador de futebol. Sim, com ares de boa moça, inofensiva e devota cristã. Isso nos mostra como nós somos ludibriados, como o Tufão é: sem perceber. O que o autor nos traz é o retrato de nosso malogro.

Como já comentou Alexandre Garcia, o malogro nosso está em cada dia, na carga tributária que pagamos, na aceitação da corrupção nas várias esferas dos poderes públicos, no comportamento no trânsito, enfim, não vou enumerar mais para não ficarmos angustiados…

Por outro lado, a telenovela traz o que a narrativa traz: momentos de imersão em outro mundo, o mundo da ficção, o mundo do possível. E é no mundo do possível e com a popularidade que a narrativa televisiva possui é que a telenovela cumpre uma função social, a função de desenvolver o senso de tolerância no espectador brasileiro.

A telenovela também dialoga com grandes narrativas da literatura universal: neste momento, Carminha e Nina estão dialogando com Luísa e Juliana, de O Primo Basílio. Basta que fiquemos atentos para percebermos as intertextualidades que se estabelecem nas diversas narrativas televisivas.

Carlos Lombardi, autor de telenovelas como Pé na Jaca e Kubanacan, comentou, no encontro do Obitel (Observatório Iberoamericano de Ficção Televisiva) de 2010, que as telenovelas giram em torno de Hamlet, Romeu e Julieta e O Conde de Monte Cristo. Hamlet (tragédia de William Shakespeare, escrita entre 1599 e 1601) conta a história do filho, que busca vingar a morte de seu pai, explorando temas como a vingança, a traição, a moralidade, a corrupção. Romeu e Julieta (tragédia de William Shakespeare escrita entre 1591 e 1595) em que o amor dos jovens é considerado arquétipo do amor juvenil. O Conde de Monte Cristo (escrito por Alexandre Dumas concluída em 1844) conta a história de um homem que, ao ser preso injustamente, conhece um sacerdote de quem fica amigo. Quando este morre, o amigo escapa da prisão e toma posse de uma misteriosa fortuna. Agora rico, busca vingar-se daqueles que o levaram à vida de prisioneiro.

Enfim, as telenovelas estão cheias desses arquétipos. Basta observarmos. Basta conhecermos a literatura para percebê-la na telinha. E ter coragem para admitir que gostamos de televisão!

Saiba mais:

BORELLI, Sílvia Helena Simões. Telenovelas Brasileiras: balanços e perspectivas. São Paulo em Perspectiva, 2001. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/spp/v15n3/a05v15n3.pdf>

HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2000.

OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992.

SOUZA, M.C.J. (Org.) Analisando Telenovelas. Rio de Janeiro: E-papers, 2004a.

_____________. Telenovela e Representação social. Rio de Janeiro: E-papers, 2004b.

THOMASSEAU, Jean-Marie. O Melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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