O grupo composto pelos acadêmicos Elisete, Iolanda, Rísia e Wagner apresentaram a obra de Goldhill, que discorre como a Grécia Clássica influencia nos modos de ser, até hoje. A dinâmica ocorreu dentro da disciplina de Antropologia. O grupo introduziu o tema através de uma encenação, na qual Iolanda e Wagner dialogavam sobre Platão, Sócrates e seus ensinamentos.
Grupo encenando. Foto: Sabrinne Silva.
Durante o diálogo, foi abordada a bibliografia de Platão e suas correntes filosóficas. Trata-se de um grande filósofo, discípulo de Sócrates, que estudou leitura, escrita, poesia, pintura e música. Já Sócrates, foi considerado um dos principais pensadores gregos, tendo influenciado profundamente a filosofia ocidental. Defendeu seus ideais e, segundo o grupo, morreu em função deles, uma vez que optou por permanecer na prisão para enfrentar a execução.
Sócrates questionava as visões tradicionais e defendia a vontade do povo. Acreditava que a democracia partia de três princípios básicos, sendo eles a responsabilidade, igualdade e liberdade. A responsabilidade dizia respeito ao poder público em executar suas funções. A igualdade dizia respeito aos direitos iguais perante a lei. E a liberdade ao direito de expressão sem censura. Após abordar estes conceitos, foi transmitido um vídeo ao qual conceituava democracia e sua evolução, enquanto poder da população.
Fonte: https://goo.gl/894kV8
De acordo com o grupo, existem diferenças entre o sistema antigo e o moderno de democracia. No sistema Ateniense, dizia-se a vontade do povo, porém, as decisões eram restritas a uma Assembleia soberana, que representava um grupo particular desta comunidade. Enquanto o sistema moderno propõe a democracia como poder do povo, no qual cada cidadão exerce seu poder de escolha através de mecanismos como o voto. Assim, a eleição de um representante, embora o partido escolha os representantes a serem votados, partem de programas coletivos, constituindo assim as opções às quais os cidadãos têm como escolha.
Baseado em Platão, há uma justificativa para o sistema moderno democrático, que consiste na crença de que o eleitorado não possui habilidade suficiente para votar diretamente sobre temas complexos, havendo assim, a necessidade de um representante que o faça. Já na contemporaneidade, o eleitorado não elege representantes em prol de uma figura que o represente. Foram apresentados três fatores que podem estar associados à escolha de representantes, são eles: ignorância, interesse próprio e volatilidade. O que demonstra que atualmente os representantes são escolhidos em prol desses fatores, e não pelo bem coletivo, tal como proposto no sistema ateniense.
A partir dessas reflexões, chega-se aos questionamentos feitos por Simon Goldhill: “O que você pensa que é?”, “Aonde pensa que vai?”, “De onde pensa que vem?”, dentre outros. A reflexão trazida é que a contemporaneidade é cercada por pensamentos disseminados no passado. Devemos utilizar do conhecimento antigo para que os mesmos erros não sejam cometidos. Para Simon Goldhill, ignorar a história é impedir a evolução, portanto, deve-se fugir da amnésia histórica, educacional e artística, para que então possamos compreender o presente e evoluir enquanto sociedade.
Simon Goldhill. Fonte: https://goo.gl/mwNPQu
Após a conclusão, foram narradas algumas frases que demonstram os pensamentos de Sócrates e Platão. Houve ainda a realização do sorteio de um livro, onde o integrante Wagner escolheu aleatoriamente um número e através da lista de chamada disponibilizada pelo professor, a aluna Lorena correspondia ao número escolhido e foi sorteada.
Nesse ínterim, foi uma apresentação enriquecedora, uma vez que o grupo utilizou de vários recursos para prender a atenção dos demais colegas. Houve um grande empenho em repassar o conteúdo de forma dinâmica, ao qual foi demonstrada uma excelente habilidade de encenação. O conteúdo foi apresentado de forma leve, o que facilitou a absorção das ideias e pensamentos dos autores estudados. Foi uma experiência inovadora, gratificante e envolvente.
Finalização da apresentação. Foto: Sabrinne Silva.
Nota: A apresentação sobre esta temática ocorreu na sala 203, no dia 08 de novembro de 2017, no período noturno, na disciplina de Antropologia do curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra.
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Os percursos da Democracia: reflexão, crítica e conflito
A democracia é, atualmente, uma forma de governo que abrange todo o Ocidente. De origem grega, o termo designa o poder que é exercido pelo povo (demos: povo; kratía: poder). O presente trabalho aborda, sobretudo, a perspectiva de Goldhill (2007), para compreender o contexto de desenvolvimento desse sistema, bem como contrastá-lo com a democracia moderna. O contexto social da Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, no século VI a.C., contribuiu para a adoção de diversas medidas políticas, estas culminando em uma forma de governo democrático.
As sociedades ocidentais afirmam constantemente a relevância de uma política fundamentada na democracia. Esta é compreendida como a melhor estrutura de governo, desprezando-se aquelas que lhe são opostas, tais quais os regimes ditatoriais. Mais que mero exercício popular do poder, a democracia implica em reflexão, crítica e conflito [1]. Desde o seu surgimento “A discussão era indispensável […]. O povo ateniense queria que cada questão lhe fosse apresentada sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras” [2].
Fonte: http://zip.net/bptHNj
Considerando seu emprego usual nos discursos políticos de grande parte das sociedades, convém voltar-se aos primórdios da democracia para além da origem conceitual. A exploração histórica que remete a Atenas de 2.500 anos atrás se justifica ao passo que “Os democratas precisam questionar que forma deve tomar seu governo, e como ele se compara com outras formas de autoridade, hoje e no passado” [1]. O panorama fornecido pela Grécia Antiga permite que se compreenda os rumos que a democracia tomou no decorrer dos séculos, bem como suas possibilidades e limitações.
Primórdios da democracia
Atenas era governada por uma classe privilegiada de aristocratas, os quais detinham o poder político e econômico. Antes de a democracia ser implementada de fato, Goldhill destaca dois nomes que a influenciaram positiva e negativamente. O primeiro, Sólon, foi líder da cidade-Estado em 590 a.C. De acordo com o autor, dentre as medidas adotadas, destaca-se o direito de todos os cidadãos em recorrer a um júri, e a servidão tornou-se ilegal quando implicava em empréstimos feitos pelos abastados aos mais pobres. Tais ações foram positivas visto que favoráveis às classes populares.
O segundo líder, Pisístrato, tornou-se um ditador em 560 a.C. Sua influência é considerada negativa devido a liderança de um grupo de homens das colinas, visto que “A tirania era o trunfo desse […] grupo” [1]. Apesar de ser reconhecido como um tirano, o autor mencionado revela que Pisístrato realizou grandes obras que contribuíram ao desenvolvimento cultural de Atenas.
Bustos de Sólon e Psístrato, respectivamente.
Após a queda de Pisístrato e seus liderados, entra em cena a figura principal a firmar a estrutura para o estabelecimento da democracia: Cleistenes. Em 508 a.C., ele conquistou a liderança de Atenas e propôs
[…] a completa reorganização da política referente ao espaço de Atenas, e com isso o senso de pertencimento, de cidadania. Ele requeria que todo cidadão – cidadãos emancipados do sexo masculino, maiores de 18 anos – se registrasse em uma deme. […] O importante impacto político dessas bases se dava no estabelecimento de estruturas de autodeterminação em cada uma das comunidades, concedendo a elas um senso de responsabilidade por tudo o que acontecia ali [1].
As demes eram como distritos, porém, constituídas com base no sentimento de pertencimento de cada cidadão que a habitava. Atenas organizava-se em dez conjuntos de demes, formando tribos que autogeriam-se e possuíam estruturas religiosas e financeiras próprias [1]. A responsabilidade tratada acima se relaciona ao fator de grande destaque na democracia ateniense: o poder concedido aos homens, que de forma igualitária tomavam as decisões referentes a cidade-Estado. Por meio da Assembleia e das cortes populares, Cleistenes contribui à participação popular na tomada de decisões políticas, retirando da autocracia os privilégios quanto a tais questões.
A participação ativa na política era um sinônimo de cidadania, algo sobremodo relevante para os atenienses. No entanto, estabeleceu-se às custas da exclusão de mulheres, homens escravos, menores de idade ou aqueles que não fossem atenienses (nascidos em Atenas, bem como os seus genitores). Betthany Hughes destaca em documentário [3] que, “De cada três pessoas que moravam em Atenas uma era escrava. Os atenienses eram vigorosos democratas porque tinham […] os prisioneiros de guerra feitos escravos para realizar o trabalho sujo”. Corroborando com a ideia de Aristóteles quanto ao servilismo inato de determinadas classes [1], tem-se uma das bases inconvenientes sob as quais a democracia se desenvolveu.
Cleistenes. Fonte: http://zip.net/bvtHx7
Apesar dos aspectos negativos dessa democracia, a partir de Cleistenes,
Pela primeira vez, o povo de um Estado estava comprometido com a autodeterminação, com a autonomia e a responsabilidade para tomar decisões – a tarefa de governar. Cleistenes estabeleceu os princípios estruturais por meio dos quais a democracia ainda funciona: cidadania baseada em afiliações locais e nacionais, instituições administradas por e para os cidadãos, estruturas de poder combinadas e responsáveis, num sistema de controle mútuo das repartições governamentais [1] .
Estrutura democrática ateniense versus democracia moderna
O funcionamento da democracia na antiga Atenas revela o quão engajado estava o cidadão ateniense no agir político da cidade-Estado. Ali, a participação era o estandarte. Assim, é delineado o contraste entre o agir democrático em seus primeiros tempos com o dos tempos hodiernos, onde os indivíduos limitam-se a assistirem passíveis o desenrolar político de sua comunidade.
O significado de cidadania unia os cidadãos atenienses, independentemente da posição social que eles tivessem. Aos que eram das classes mais baixas e não tivessem condições financeiras para participar de certa atividade política, como uma eleição, outorgava-se lhes dinheiro para que pudessem ir ao local no qual exerceriam papel de sujeitos democráticos. O ideal era que todos participassem enquanto sujeitos que conheciam e se importavam com seu sistema de tomada de decisões.
O modo pelo qual eram escolhidos os oficiais – exceto o posto de General –, através de seleção aleatória ou pela sorte, deixava claro que todo e qualquer cidadão poderia ser um personagem importante no agir político de sua cidade. Assim sendo, essa forma de seleção dava enorme possibilidade a grande parte dos cidadãos atenienses de atuarem em cargos públicos. Goldhill [1] ressalta que, numa década, “[…] entre um quinto e um décimo de todos os cidadãos serviria no Conselho […]”, onde eram deliberados assuntos importantes ao povo.
Fonte: http://zip.net/bvtHyk
O sujeito democrático ateniense era ativo, poderia (e deveria) decidir acerca de todos os temas importantes para a comunidade, desde as leis até iniciativas de guerras. O indivíduo se envolvia em questões cujos desfechos inevitavelmente afetariam sua vida. É evidente o contraste com as democracias ocidentais modernas, cujos cidadãos são aficionados por direitos e, de modo geral, limitam-se a somente verem seus representantes tomarem decisões por eles, muitas vezes sem consultar seu eleitorado.
Na democracia ocidental moderna, uma parcela reduzida de indivíduos é tida como apta para o agir político; na antiga, todos os cidadãos poderiam desenvolver em si o sujeito democrático, sendo personagens ativos e determinantes. Mesmo o cargo de general, ou a magistratura – postos mais elevados, sendo esta última determinada pelo sorteio de uma lista final –, “[…] permaneceram estritamente sob a autoridade da Assembléia, e não podiam dirigir ou instruir a Assembléia ou o Conselho” [1].
Ainda que distinta da incipiente democracia grega, o atual sistema assemelha-se àquela no que tange a três princípios, a saber: a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e a responsabilidade. O primeiro implica na liberdade que todo cidadão tem para falar, expressar-se nos eventos públicos ou governamentais. Embora o referido princípio subsista até os dias de hoje, é perceptível que na prática não ocorra da forma que deveria ser. Muitos cidadãos vivem uma falsa liberdade, onde são tolhidos e induzidos pelas classes superiores a não expressarem-se.
A igualdade perante a lei, como o termo sugere, indica que, em julgamento, um cidadão não deve ser privilegiado em detrimento de outro, ou da lei publicada. As reformas de Sólon, no que tange ao direito de apelação a corte, seguidas das ações de Cleistenes, contribuíram com o decrescimento da estrutura hegemônica autocrática.
Diferentemente das cortes modernas, não havia juízes ou advogados profissionais […]. Cada reivindicador tinha de falar por si próprio, e era julgado pelos colegas. […] Esse era um processo em aberto, debatido e anotado publicamente, regulamentado pelo estatuto da lei publicada. A seleção aleatória dos jurados evitava o suborno e decisões políticas tendenciosas […] [1].
Embora atualmente encontre-se prerrogativas tais quais o foro privilegiado em determinadas instâncias políticas, em suma, a isonomia prevalece como um princípio fundamental da democracia.
Fonte: http://zip.net/bqtH4d
A responsabilidade, por sua vez, implica em que “[…] todo homem [deve] […] se responsabilizar pela coletividade de cidadãos. Isso significa que cada homem é responsável por seu voto e suas ações, e que ele pode ser responsabilizado” [1]. Reforçando o que foi mencionado, sabe-se que a democracia grega funcionava com base em uma população restrita, excluindo escravos, mulheres e menores de idade. A democracia atual, no entanto, sobressai-se – com algumas reservas – pela conquista do direito ao voto, independente de gênero ou classe social. Contudo, Goldhill questiona determinada inércia dos cidadãos modernos, bem como o desagrado com a estrutura democrática vigente.
Críticas ao modelo democrático
Para explicar os caminhos que a democracia atual tomou, o autor citado propõe uma análise das críticas a tal sistema, principalmente aquelas feitas por Platão. Suas influências a democracia moderna residem principalmente em proposições quanto a especialização necessária para se atuar em determinado cargo, incluindo os políticos. Platão criticava a não exigência de preparo técnico e intelectual dos governantes, bem como alegava a incapacidade dos cidadãos para decidir acerca de temas políticos.
A oposição de Platão “[…] à democracia em nome da lei e da ordem continua a prover uma autoridade intelectual fundamental para governos totalitários (e democracias nervosas)”. Para o filósofo, a democracia ateniense aproximava-se da anarquia, enquanto Esparta, conhecida por um sistema social e leis rigorosas, era o modelo ideal de governo fundamentado na “ordem social” [1].
Soldados espartanos. Fonte: http://zip.net/bntG6J
Tratando-se de ordem social, outro filósofo aparece como influente no modelo atual de democracia. Sócrates, segundo afirma Goldhill, “[…] foi executado pela Atenas democrática, devido àquilo em que acreditava. O que ele ensinava, e como o fazia, parecia muito perigoso para ser tolerado pela sociedade”. O autor expressa a relação de Sócrates com a fragilidade do sistema democrático, no que tange ao “[…] equilíbrio entre a liberdade de expressão e as exigências da ordem social” [1].
Platão e Sócrates ainda hoje movem questões clássicas de democracia e liberdade de pensamento. De certo modo, ambos apresentam posições distintas, porém, mobilizam a reflexão já proposta anteriormente: a democracia implica em crítica, conflito entre “liberdade individual e a regulamentação da comunidade” [1] e divergência de opiniões. O percurso histórico acerca da democracia revela as potencialidades e fragilidades, tanto nos primórdios quanto atualmente. Winston Churchill afirma que “A democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras” [4]. Apesar de ter se expandido como uma estrutura de governo desejável, percebe-se que ela implica, inevitavelmente, em que haja constante discussão, tanto sobre suas bases quanto sobre os rumos a serem tomados.
É notável que a democracia moderna ampliou alguns de seus princípios, no entanto, outros decresceram no decorrer do tempo. O engajamento percebido nos atenienses, por exemplo, bem como seu grande poder de decisão política são exemplos de aspectos nos quais os cidadãos modernos mostram-se estagnados. Algumas sociedades atuais, ditas democráticas, sequer contam com a participação de parcelas significativas da população para a escolha de seus líderes. Assim como Platão afirmava, supostamente deve-se confiar as decisões mais importantes a sujeitos capacitados.
Fonte: http://zip.net/bftG35
O descontentamento com a democracia atual, conforme abordado, pode ser analisado de acordo com diversos pensamentos, dentre eles os dos filósofos Sócrates e Platão. Além das reflexões anteriores quanto a dinâmica da democracia, as proposições desses filósofos fornecem lentes para se avaliar o sistema atual, bem como os seus impasses com a ordenação social. Considerando o posicionamento de Churchill, bem como o de Goldhill, para que se mantenha a democracia deve-se sempre questioná-la e compará-la com os modelos anteriores, ou seja, implica em conhecer sua história.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, J. B. Grécia – a caminho da democracia. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_2/Jeronimo_Basil.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2017.
[1] GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Tradução Cláudio Bardella. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Parte III, cap. 1-5.
[2] COULANGES, 2004, p. 356 apud ALMEIDA, s.d., p. 25.
[3] A HISTÓRIA da democracia (Athens: The Truth About Democracy). Apresentação: Betthany Hughes. 2007. (95 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3yVRkvP-w4>. Acesso em 01 mar. 2017.
O texto Fédon é um dos marcos em que a “oposição complementar” dos filósofos pré-socráticos é veementemente contestada por Sócrates/Platão. Nesta obra, marcada por traços de refutação, há um passo importante na mudança de eixo do objetivo de investigação filosófica, que vai do cosmológico (ainda com forte influência do mitológico, e com todo o pluralismo que o compõe) para o ontológico (já com vistas ao antropológico).
Sócrates, lançando mão do típico método de investigação, que utiliza o diálogo como forma de “forçar” uma reflexão e (re)descoberta por parte do interlocutor, conduz para algo que até então não havia sido levantado pelos filósofos: a apresentação de um ponto de partida que remete à unidade, do qual todas as questões podem ser levantadas, e para o qual, com as devidas proporções, toda a estrutura cosmológica passaria a fazer sentido. Nesta tentativa, estabelece-se o conceito de espírito, esse suprassumo associado à razão e que, por si só, define esta “unidade” sob a qual os demais processos de busca poderiam se ancorar.
Além disso, em Fédon, há a possibilidade de expandir esse conceito de “ser que transcende” a todas as coisas, criando-se assim a ideia de causa universal, que abarca também as circunstâncias que desencadeiam os fenômenos. Certamente, há nesta explicação uma posição que destoa sobremaneira dos pré-socráticos, com ênfase nos estoicos – e também uma rejeição dos sofistas -, pois “enterra” a possibilidade de haver uma inter-relação de condições que se sobrepõem (relativismo) e que, assim, resultariam nos fenômenos. O espírito, aqui como a concretização da ordem de tudo o que existe, já seria o centro de tais indagações.
Mais à frente com Schopenhauer e Nietzsche, esse legado de relativismo dos pré-socráticos é “ressuscitado”, quando se leva em conta que a busca da unidade distorce a verdadeira natureza do ser, que seria multifacetada ou, no mínimo, a expressão das características de Apolo (ordem) e de Dionísio (caos), cabendo ao homem/mulher encontrar na mediação desses extremos (inevitáveis e necessários, para Nietzsche) uma maneira adequada de lidar com as demandas.
Voltando a Fédon, há de se destacar a ideia de que, se levada ao cabo o relativismo reinante nos sofistas, e também em algumas assertivas estóicas, seria impossível (para Sócrates) obter um conhecimento seguro. A dúvida nutrida de questionamentos, neste caso, não deveria ser utilizada incessantemente, sem um objetivo claro. Antes, portanto, deveria ter como meta a busca da certeza. Isso seria uma espécie de “natureza última” do ser, que também é “una” e expressa o próprio cosmos.
Este ponto de vista acima volta a ser questionado mais recentemente pelos existencialistas, ao apontarem que a “certeza” descansa sob bases maleáveis, mutáveis e que, portanto, altera a percepção na mesma medida em que o questionador (o ser) também muda sua construção de “certo”. Há, aqui, um retorno ao “ser” como fruto de representações, e não como um espírito já dotado de certas características. Assim como em Schopenhauer, esta visão de mundo como representação, que precisa ser continuamente ponderado para que não haja distorções entre a “projeção” de “verdade” e o objeto/alvo a ser atingido, descarta a possibilidade de unidade defendida por Sócrates.
Mas Sócrates não via nenhuma contradição no conceito de unidade e, mais ainda, não via sequer a possibilidade de destruição conceitual desse tipo de construção. Isso porque, para o ateniense, o espírito detém características “supramundanas” e é dotado de movimento. Neste caso, há uma percepção de “ser” que se sobrepõe à observação/constatação dos aspectos do cotidiano, alguns estáticos, pois ele [este ser] ordenaria as causas e condições (e estaria além dos sentidos). Sendo assim, o espírito, por ele mesmo, já seria o suficiente para racionalizar a existência como ela verdadeiramente é.
Nas “Meditações” de Descartes (trecho de “Da Natureza do Espírito Humano”) há uma aproximação com os conceitos apresentados por Sócrates/Platão. O reconhecer a unidade como um ponto fixo que, a partir dele, todas as aferições seriam possíveis é um dos aspectos de maior convergência entre os filósofos.
Há em Descartes a introdução da dúvida metódica, sendo que assertivas oriundas da falta de questionamento são logo descartadas. Não se deve, no entanto, confundir essa dúvida metódica nem com o ceticismo extremado nem com o empirismo. Ou seja, em Descartes há de se preocupar em “filtrar” toda a gama de informações (e pré-concepções), descartando àquelas que se mostram duvidosas e reforçando as que não deixam “dúvidas”. Desta forma, o filósofo francês vê na auto-percepção (“Eu duvido, eu penso, eu sou, eu existo”) a única verdade totalmente desprovida da dúvida.
É obvio que conceitos como os apresentados na fenomenologia de Heidegger são, em certo aspecto, influenciados por Descartes. Há, neste contexto, a tentativa de identificar o ser como extensão do seu cotidiano, logo, além de ser pensante (e que efetivamente existe), há um ser “dissolvido” em suas relações, ideais diversos e papéis sociais. Um ser que, antes de tudo, “estar no mundo”. Esse ser “lançado no mundo” é ainda mais abrangente do que a própria percepção de “ser” como decorrência de um processo de (auto) questionamento (“Penso, logo existo!”).
Em Descartes, há a necessidade de se conhecer as “verdades absolutas”. Para tanto, a dúvida deve ser utilizada apenas temporalmente (veja que a ciência se utilizou muito desse método), podendo ser descartada em seguida, quando se acreditar atingir a verdade. Em Nietzsche, isso seria impossível, tendo em vista que a verdade é inacessível e, portanto, mesmo que se tenha contato com uma de suas partes [desta “verdade”], esta(s) não abrangeria(m) a totalidade.
Nas suas “Meditações”, Descartes chegou a conclusão que este ser que “pensa e, logo, existe”, está além da imaginação pura e simples. Assim, não necessariamente mantém-se “refém” dos sentidos, mesmo que a maioria das pessoas insista em reconhecer as impressões de mundo apenas pelos sentidos.
Há, em Descartes, uma clara divisão entre “mente” e “corpo”. Para a mente, caberia essencialmente o pensar. Já para o corpo, estava reservado o próprio ato de expressão do existir. Mas a mente estaria além do corpo e, neste contexto, apresenta-se com características supramundanas, semelhante ao conceito de espírito defendido em Fédon.
Percebe-se, indutivamente, uma abordagem que coloca a mente em posição de destaque frente ao corpo. Afinal, a mente teria qualidades perenes (movimento), já o corpo perece, morre… Além disso, se o homem é essencialmente pensante e a mente é diferente do corpo, pressupõe-se que o corpo seria apenas uma expressão dessa mente, que é essência e, logo, a “verdadeira” característica do ser.
As assertivas acima levam ao famoso “dualismo” de Descartes, que exerceu e ainda exerce grande influência no Ocidente, em que a substância corpórea (físico), apesar de complementar à substância espiritual, no fundo seria essencialmente diferente do imaterial.
Referências:
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora Edipro, 2011.
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche – Biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
SIMMEL, Georg. Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
STRATHERN, Paul. Descartes em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1997.