O impacto da pornografia na saúde mental: perspectivas científicas

Compartilhe este conteúdo:

Na atual conjuntura da sociedade global, é incontestável a influência da indústria pornográfica no comportamento de consumo de jovens e adultos. Com o advento da tecnologia, como explicam Baumel et. al (2019), a disseminação de conteúdos sexualmente sugestivos ou mesmo explícitos ganhou ainda mais força, através principalmente da internet, que possibilitou a criação de inúmeros chats, sites e plataformas com essa proposta.

Conceituando pornografia, Postal et. al (2018) definem esse fenômeno como todo tipo de conteúdo que apresenta como principal finalidade estimular excitação sexual em quem consome, através da utilização de materiais sexualmente explícitos. Dias e Oliveira (2016) descrevem pornografia como um sistema de expressão de ideias que mimetiza a realidade, gerando entretenimento através da composição teatral, cenográfica ou performática da sexualidade.

No atual cenário brasileiro, como apontam Baumel et.al (2020) através de dados científicos sobre o assunto, quatro dos cinquenta sites mais populares do mundo são de conteúdo pornográfico. Dentro desse quadro, 71,6% dos acessos ao site Pornhub, o mais popular do gênero, ocorrem através de smartphones, e o Brasil aparece como o 12° país mais consumidor desse conteúdo.

Diante da perspectiva de intenso consumo no país, e também no mundo, há em pauta uma série de questões vinculadas às ideologias, visões de mundo e consequências psicológicas fomentadas pela indústria pornográfica. As discussões feministas, como apontam Dias e Oliveira (2016), atreladas aos movimentos antipornografia, problematizam esse consumo chamando a atenção para a objetificação dos corpos femininos, a promoção do abuso e violência, a erotização da submissão da mulher, entre outros.

No que tange à sexualidade, Postal et. al (2018) explicam que, ao longo do desenvolvimento humano, essa dimensão é permeada por uma série de influências biológicas, psicológicas e sociais. Considerando a importância da mídia e das tecnologias na sociedade atual, e levando em consideração a intrínseca ligação entre a indústria pornográfica e a utilização de ferramentas como a internet, é inegável dizer que há, nesse processo, uma direta influência dos construtos e símbolos gerados por essa indústria na elaboração da sexualidade humana, principalmente no que se refere à juventude.

Fonte: encurtador.com.br/jpr17

É possível afirmar que os jovens, expostos às situações performadas e representadas no contexto pornográfico, introjetam conceitos, opiniões, ideias e modelos a respeito do sexo e da sexualidade. A exposição do corpo feminino a situações degradantes, humilhantes, vexatórias e até mesmo vinculadas à banalização do estupro colabora com a internalização de comportamentos sexistas, que acabam por reverberar na vida adulta. Conforme Postal et. al (2018), uma pesquisa que analisou 304 vídeos pornográficos evidenciou a presença de inúmeras formas de agressão à mulher, como espancamentos, engasgos durante a prática do sexo oral, insultos, tapas, sufocamentos, etc.

Dias e Oliveira (2016) também chamam a atenção para outros fenômenos potencializados pela constante exposição aos estímulos pornográficos. De acordo com as autoras, o vício em pornografia é uma consequência bastante comum, e geralmente sucedida pelo vício em sexo e outros distúrbios sexuais. Baumel et. al (2019) também reforçam o vício como uma consequência negativa, e citam também o isolamento social e dificuldade de cumprir atividades do dia a dia.

Outro artigo de Baumel et. al (2020), que consiste em uma revisão sistemática sobre o tema, evidenciou que 32% dos artigos sobre o assunto exploram as consequências da pornografia para a saúde, citando os aspectos mencionados no parágrafo anterior. Além disso, 31% deles falam sobre prejuízos no relacionamento. De acordo com os autores, o consumo de pornografia pode reduzir a satisfação sexual entre casais, promover segredos e infidelidade, reduzir a intimidade, entre outros.

Alguns aspectos socioculturais, ainda de acordo com Baumel et. al (2020), devem ser considerados. Como explicam os autores, a idealização dos corpos e da performance sexual é um fenômeno promovido pelo consumo de conteúdos pornografios, quando os indivíduos são influenciados a crer que, para ter relações sexuais, é necessário ter um tipo específico de porte físico e um determinado desempenho com o (a) parceiro (a). Essa particularidade do consumo exacerbado de pornografia reflete diretamente na autoestima dos sujeitos, principalmente jovens.

É indiscutível o impacto da indústria pornográfica na saúde mental dos espectadores. Os dados aqui levantados evidenciam não só os efeitos psicológicos desse consumo, mas também sociais e culturais. Torna-se urgente, a cada dia, que essa pauta seja cada vez mais discutida, para que as consequências desse fenômeno sejam levadas a conhecimento geral e entendidas como pertencentes a uma problemática que deve ser combatida.

REFERÊNCIAS:

BAUMEL, Cynthia Perovano Camargo et. al. Atitudes de Jovens frente à Pornografia e suas Consequências. Psico-USF, Campinas, v. 24, n. 1, p. 131-144, Jan. 2019;

BAUMEL, Cynthia Perovano Camargo et. al. Consumo de pornografia e relacionamento amoroso: uma revisão sistemática do período 2006 – 2015. Minas Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 13(1), 2020;

DIAS, Carolina Bouchardet; OLIVEIRA, Adriana Vidal. Impactos da pornografia na saúde dos adolescentes: uma análise a partir dos direitos fundamentais. Departamento de direito, 2016.

POSTAL, Aline Stefane et. al. Possíveis consequências da pornografia na sexualidade humana. Vivências. Vol. 14, N.27: p. 66-75, Outubro/2018;

Compartilhe este conteúdo:

Mesa Redonda do CAOS 2020 discute os diversos contextos da Avaliação Psicológica

Compartilhe este conteúdo:

O CAOS 2020 tem como tema Psicologia e Profissão: a avaliação psicológica em destaque. O evento iniciou no dia 3 de novembro e vai até o dia 7 do mesmo mês.

No dia 3 de novembro, das 19h às 21h, durante a realização do Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia (CAOS 2020), a psicóloga e professora do curso de psicologia Ruth Cabral (CRP 23/1690) mediou a mesa redonda intitulada Contextos da Avaliação Psicológica, transmitida ao vivo no YouTube pelo canal do Curso de Psicologia do CEULP/ULBRA e composta pela psicóloga Amanda Carolina (CRP 09/9748), especialista em Análise do Comportamento aplicada à educação; por Larissa Machado (CRP 09/10542), especialista em Neuropsicologia, e pelo psicólogo Lucas Dannilo (CRP-21/433), doutor em Avaliação Psicológica.
A mediadora introduziu o momento apresentando brevemente o tema e o currículo dos participantes da mesa. Em seguida, passou a palavra ao psicólogo Lucas Dannilo, que se aprofundou no tema da avaliação psicológica no contexto jurídico. O profissional destacou a diferença da análise feita por meio de avaliação psicológica para fins jurídicos da análise em contexto clínico, destacando o impacto das decisões pautadas pelo processo avaliativo, que reverberam diretamente em contextos como o de adoção, perfil criminal, abandono ou alienação parental, entre outros.

Fonte: Breno Leonardo

O doutor Lucas Dannilo ressaltou também a importância de serem levados em consideração os diversos contextos da vida do analisando, evitando generalizações de resultados de testes. A importância do rigor técnico e científico no processo de avaliação e construção do laudo também foi citada.
Logo após a participação do profissional, foi a vez da psicóloga Ana Carolina debater a respeito das particularidades da avaliação psicológica no contexto do autismo. Citou alguns instrumentos de testagem importantes na área, entre eles, o VB-MAPP, ABLLS-R, AFLS, PEAK e AIM. Dando enfoque à perspectiva da análise do comportamento aplicada à avaliação psicológica em casos de autismo, Amanda Carolina ressaltou a importância da escolha adequada do instrumento, considerando inúmeras variáveis, como o tempo de intervenção, nível de linguagem da criança, familiaridade com o teste, entre outros.
A psicóloga também atentou para o fato de que o profissional atuante na área de avaliação psicológica, em face à análise do comportamento aplicada, deve estar preparado para atuar não somente na clinica, mas também em espaços como domicílio e escola, considerando os diversos contextos de vida da criança atendida.

Fonte: Breno Leonardo

Por último, a mesa redonda foi conduzida pela psicóloga Larissa Machado, que trouxe informações a respeito da área de avaliação neuropsicológica. A profissional sintetizou as principais características da Neuropsicologia enquanto área de atuação, lançando luz à influência das neurociências na teoria e prática desse campo. Falou sobre a abrangência de faixas etárias contempladas pelo serviço, de crianças a idosos, e sobre a diversidade de demandas trabalhadas pela área, como casos de dificuldades de aprendizagem, demências, paralisia cerebral, tumores, parkinson, etc.
Larissa evidenciou os propósitos da avaliação neuropsicológica, apontando para a atuação voltada à avaliação dos construtos psicológicos (linguagem, atenção, memória, raciocínio lógico, entre outros), a partir da perspectiva de diagnóstico destes, bem como o acompanhamento de suas evoluções.

Fonte: Breno Leonardo

O CAOS 2020 tem como tema Psicologia e Profissão: a avaliação psicológica em destaque. O evento iniciou no dia 3 de novembro e vai até o dia 7 do mesmo mês. Contará com palestras, rodas de conversa, minicursos e sessões técnicas. A inscrição é gratuita e deverá ser feita no link http://ulbra-to.br/caos/edicoes/2020#programacao.

Compartilhe este conteúdo:

Desafios de uma estudante negra no curso de psicologia: (En)Cena entrevista Gabriela Fernandes

Compartilhe este conteúdo:

Pensando na importância de discutir as pautas antirracistas e seus impactos no contexto acadêmico, em adesão à campanha #SaudeMentaldaPopulaçaoNegraImporta!, da Associação Nacional de Psicólogos Negros e Pesquisadores (ANPSINEP), o curso de Psicologia, do período de 15 de agosto a 15 de setembro, tem se dedicado à divulgação e produção de conteúdos voltados às questões raciais.

Dessa forma, entre os materiais produzidos, três entrevistas foram organizadas com mulheres negras que, de alguma forma, são vinculadas à psicologia. Levando em consideração a implicação do curso no tema, e pensando na importância de voltar a atenção para a situação da própria instituição no que tange às práticas antirracistas, a presente entrevista convidou a acadêmica Gabriela Fernandes Pereira Filha, de 23 anos, do oitavo período do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, para expor suas percepções e vivências como estudante negra:

(En)Cena: Qual a sua percepção, como acadêmica de psicologia, a respeito da pauta racial no corpo teórico e científico da profissão? Acredita que essa problemática é contemplada nos estudos, pesquisas e artigos desenvolvidos pela ciência psicológica?

Gabriela: É fato que a pauta racial não é contemplada na academia. As teorias são brancas, ou seja, construídas para contemplar as pessoas brancas. As pessoas que estudam, publicam artigos e projetos voltados pras questões raciais são de fato estudantes e profissionais de psicologia negros. A academia não vê como relevante abordar esse assunto nas disciplinas. Geralmente pegam todos esses conteúdos voltados para questões sociais e jogam em uma ou duas matérias. Uma ou outra ação é feita e em épocas bem específicas, mas não com o intuito de promover algo que saia do discurso, mas para acalmar os animos de quem reivindica, método esse que na verdade é bem antigo, métodos de controle.

(En)Cena: Como você avalia, no atual contexto, a presença das pessoas negras na academia? Acredita que essas pessoas compõem uma parcela significativa na docência e corpo discente?

Gabriela: A presença das pessoas negras na academia não é nem de longe uma parcela significativa. Extremamente desproporcional em relação a presença de pessoas brancas. No nosso curso, por exemplo, a quantidade de docentes negros já diz muita coisa, são 2 professores negros para 11 brancos. Nossa presença na academia é muito importante, é uma marcação politica, mas o acesso a esse lugar é marcado por obstáculos estruturais muito fortes.

Fonte: encurtador.com.br/qyIRZ

(En)Cena: Quais dificuldades e impasses você, como mulher negra, vivenciou e ainda vivencia no percurso como estudante de psicologia? Quais são seus sentimentos a respeito disso?

Gabriela: Desde o começo, tenho um sentimento de não pertencimento. É um incômodo muito grande estar em um ambiente onde há poucos negros. Uma das minhas maiores dificuldades dentro disso é perceber que há uma neutralidade muito grande nesse ambiente acadêmico de psicologia e que é pensado de forma muito consciente com o intuito de uma manutenção dessas estratégias de poder para que nós de fato não nos sintamos bem nesse lugar.

(En)Cena: Na sua opinião, o debate racial recebe a devida atenção no espaço de ensino universitário, como um todo?

Gabriela: Não. Como eu havia citado antes, eventos muito pontuais sobre temáticas raciais e cartazes na semana da consciência negra pelos corredores da universidade, não constroem academicamente profissionais com compromisso social.

(En)Cena: No que tange à representatividade negra nos diversos espaços da profissão, como você avalia a situação da Psicologia, atualmente? As pessoas negras estão recebendo as posições de destaque que merecem como pesquisadoras e autoras da prática psicológica?

Gabriela: Nós temos já há algum tempo uma articulação desses profissionais e estudantes de psicologia para ocupar mais espaços dentro dessa profissão. Apesar disso, pessoas negras brilhantes não recebem o destaque que de fato merecem, apenas são chamadas quando o assunto é relacionado à temática racial. Há uma tendência em reduzir os conhecimentos desses profissionais apenas a esse ponto.

Compartilhe este conteúdo:

Jeremias da Turma da Mônica: reflexões sobre a negritude representada nas histórias em quadrinhos brasileira

Compartilhe este conteúdo:

Ao longo dos anos, com a intensificação das discussões sobre o racismo, diversos âmbitos da sociedade passaram a sofrer lentas modificações para contemplar as narrativas vinculadas à negritude. Nesse processo, o conceito de representatividade ganhou força, denotando a necessidade de que pessoas negras fossem incluídas em espaços de trabalho, cultura, lazer, mídia etc.

Essa demanda impulsionou, no âmbito do entretenimento, a criação de filmes, seriados e personagens voltados às raízes étnicas, culturais e religiosas da população negra. Isso, inevitavelmente, refletiu no processo criativo da série de histórias em quadrinhos Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, que, em 2017, introduziu uma personagem negra chamada Milena, que viria a assumir em algumas histórias o papel de protagonista.

Entretanto, apesar de ser recorrentemente referida como a primeira personagem negra da turma, há um outro, criado e desenvolvido por Maurício de Sousa antes mesmo dos protagonistas da turminha (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali). Trata-se de Jeremias, personagem inicialmente introduzido no ano de 1960, antes da própria criação da Turma da Mônica como hoje é conhecida.

Fonte: encurtador.com.br/sFI56

De acordo com Agostinho (2017), as primeiras aparições do personagem datam dos anos 1960.  Seu papel nas histórias era quase sempre de coadjuvante, e, ao longo dos anos, passou a ocupar o espaço de figurante. A caracterização inicial de Jeremias era feita com tinta nanquim, quando as histórias ainda eram impressas em preto e branco. Posteriormente, após a década de 1970, com a criação da Turma da Mônica e o advento da impressão colorida, o personagem seguia sendo retratado com a coloração em nanquim, o que, nas palavras do autor, configura o fenômeno do blackface, que expressa a exageração dos traços negros com o intuito de estereotipar ou até mesmo, de modo velado ou não, ridicularizá-los.

Ao longo de sua trajetória como personagem, Jeremias nunca havia apresentado uma identidade sólida. Suas aparições pareciam atender à necessidade de incluir um personagem negro na história, e comumente, em diferentes histórias, o personagem era retratado de diferentes formas, variando suas características e comportamentos, o que denotava a ausência de uma personalidade construída.

Fonte: encurtador.com.br/gV135

Em uma história publicada em 1987, chamada Jeremim em O Príncipe que Veio da África, o personagem teve seu primeiro momento de protagonismo. A narrativa gira em torno do contexto histórico da escravidão, e posiciona o personagem como um príncipe africano levado para trabalhar como escravo. É um dos primeiros momentos da Turma da Mônica se apresentando como um veículo impactado pelos movimentos antirracistas, e nesse ponto, Jeremias era representado alternadamente com a cor nanquim ou em marrom, num movimento de ajuste do processo criativo das histórias, rumando às alterações suscitadas pela discussão racial.

Ao final da década de 1980, o tom de pele de Jeremias passou a ser retratado apenas na cor marrom, sem alternâncias com o nanquim, e assim permaneceu até hoje. Apesar de nítidas evoluções na caracterização e utilização do personagem nas histórias, Jeremias seguiu sendo ignorado em muitos contextos, e utilizado em outros em que precisava-se de um personagem negro. Em 2009, uma historinha chegou a retratá-lo como presidente do clubinho da turma, aludindo ao contexto histórico vigente na época, com a eleição de Barack Obama para presidente dos Estados Unidos.

Fonte: encurtador.com.br/corA3

Participando em diferentes produções de Mauricio de Sousa, o personagem poucas vezes chegou a ser desenvolvido claramente. É possível problematizar essa situação, partindo do pressuposto de que as criações culturais brasileiras muito foram e ainda são impactadas pelas intercorrências explícitas e veladas do racismo, o que reflete diretamente na construção e representação de personagens negros.

Entretanto, apesar do processo de invisibilização do personagem, reforçado pela introdução de Milena com a premissa de ser a primeira personagem negra da turma, há uma produção da Maurício de Sousa Produções (MSP), em formato de Graphic Novel, que merece atenção por abordar o personagem Jeremias de um modo até então jamais feito. Trata-se de Jeremias – Pele, lançada em abril de 2018, que o retrata como protagonista de uma história de luta contra o racismo. A graphic novel, pela qualidade e seriedade com que abordou a temática, chegou a ganhar o Prêmio Jabuti de Histórias em Quadrinhos.

Fonte: encurtador.com.br/mBF45

Levando em consideração a importância do conceito de representatividade, e pensando no público alvo dos gibis da Turma da Mônica, é imprescindível que personagens como Jeremias e Milena ganhem cada vez mais espaço e desenvolvimento. Para isso, é importante também que tais personagens não tenham suas narrativas circunscritas à questão racial, como se suas personalidades fossem definidas exclusivamente por isso, mas que cada vez mais sejam reconhecidos por suas paixões, aspirações, conquistas e particularidades, colaborando não só com a disseminação da representatividade, mas também com o rompimento de estereótipos vinculados à negritude que muitas vezes são refletidos nós âmbitos culturais.

Referência:

AGOSTINHO, Elbert de Oliveira. Que “negro” é esse nas histórias em quadrinhos?: uma análise sobre o Jeremias de Maurício de Sousa. Rio de Janeiro, fevereiro de 2017.

Compartilhe este conteúdo:

Utilização do sistema sensorial como prática inclusiva para pessoas com necessidades especiais

Compartilhe este conteúdo:

Apesar de algumas iniciativas em prol da inclusão social e escolar de pessoas com deficiência terem sido desenvolvidas, ao longo da história do Brasil e do mundo, um grande marco na garantia de direitos desse público se deu através da Declaração de Salamanca

Os conceitos e práticas referentes à inclusão escolar permeiam uma série de condicionantes históricos e sociais. Machado, Almeida e Saraiva (2009) explicam esse fenômeno como fortemente influenciado por um funcionamento social que data de séculos, enraizado em práticas de exclusão e preconceito. Mantoan (2003) entende essa lógica como um conjunto de regras, crenças e valores que norteiam o comportamento da sociedade durante um determinado período, ou seja, paradigmas. Dessa forma, trabalhar a inclusão significa, necessariamente, reconhecer e quebrar com paradigmas e ações individuais, sociais e institucionais promotoras de exclusão.

Quanto à inclusão de pessoas com deficiência, entendendo os paradigmas que fundamentam a exclusão desse público, Castro (2015) fala sobre o papel de pesquisas e práticas ocidentais que, durante vários períodos históricos, segregaram e promoveram violência a essas pessoas, construindo saberes e conhecimentos pautados apenas no viés biológico da deficiência, contribuindo para o desenvolvimento de práticas de medicalização e internação compulsória. Essa visão, ainda influente na sociedade, desconsidera os condicionantes sociais, psicológicos, culturais e até mesmo institucionais que permeiam o fenômeno da deficiência, o que, sem dúvidas, dificulta a implementação de práticas inclusivas.

 Apesar de algumas iniciativas em prol da inclusão social e escolar de pessoas com deficiência terem sido desenvolvidas, ao longo da história do Brasil e do mundo, um grande marco na garantia de direitos desse público se deu através da Declaração de Salamanca, em 1994, na Espanha, que se trata de um acordo estabelecido entre 92 países e 25 organizações internacionais a respeito do direito da pessoa com deficiência (CASTRO, 2015). Dessa forma, todas as crianças, independentemente de quaisquer diferenças que possam ter entre si, possuem o direito de conviver e interagir no mesmo espaço escolar, usufruindo dos mesmos direitos.

No que tange à educação de pessoas com deficiência intelectual e múltipla, no Brasil, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), fundada em 1954 no Rio de Janeiro, segue sendo a principal instituição responsável por realizar a inclusão escolar desse público. Pensando na importância das ações desenvolvidas pela APAE, e levando em consideração a inserção da psicologia nesse campo, o presente trabalho foi desenvolvido a partir de práticas e intervenções em uma unidade da APAE de Palmas – To, na Rua 706 Sul Alameda 14.

O foco da intervenção foram os alunos de uma sala da unidade da APAE. O principal aspecto trabalhado foi a integração sensorial, sendo o objetivo principal a utilização e desenvolvimento destes aspectos. Lira (2014) reforça a importância da aquisição e regulação das habilidades sensoriais para o desenvolvimento da interação social e comunicação no ambiente escolar, principalmente no que tange às crianças com transtornos cognitivos e comportamentais, para que possam se relacionar melhor com o ambiente e processar as demandas deste com mais facilidade e adaptação.

Visto que o preconceito e exclusão de pessoas com deficiência segue sendo uma realidade no Brasil, este trabalho inseriu acadêmicos de psicologia em um campo promovedor da inclusão a fim de ampliar a visão destes e propor uma intervenção de qualidade. Segundo Mantoan (2003), faz-se necessário implantar uma nova ética no âmbito escolar, que provém da individualidade e do social. Desse modo, a intervenção não foi composta somente para os professores e pedagogos, que estão diariamente sendo desafiados pela proposta inclusiva, mas também para os alunos da instituição, que são aqueles que mais estão expostos ao preconceito e à exclusão por parte da sociedade.

Trilha metodológica

Este trabalho é uma pesquisa aplicada, de campo, com objeto metodológico exploratório de natureza qualitativa, via relato de experiência. Para a elaboração deste, primeiramente houve o estudo por meio de aulas expositivas, utilizando principalmente o espaço da sala de aula para discussões e buscas na literatura sobre práticas inclusivas que abordavam principalmente o meio educacional de pessoas com deficiência, expondo os desafios e dificuldades da inserção de uma prática inclusiva em escola de ensino regular e porque as políticas educacionais ainda resistem em adequar essa prática. Posteriormente, deu-se início à confecção do projeto.

Como já apresentado, o presente trabalho é uma pesquisa aplicada, cuja prática é guiada pela amenização de determinadas demandas que o campo apresenta, este sendo o local (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE) onde ocorreu a pesquisa e a coleta de dados. Além disso, a pesquisa é do tipo exploratória, que tem como objetivo propiciar uma maior proximidade com a demanda a fim de levantar hipóteses.  Teve a adequação de uma pesquisa qualitativa, que, segundo Córdova e Silveira (2009) possui preocupação com as questões da realidade que não podem ser quantificadas, tendo foco principal na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais e procedimentos de uma Pesquisa-ação, baseada em um relato de experiência. Esta, como define Thiollent (apud SILVEIRA; CÓRDOVA, p.40, 2009),

(…) é um tipo de investigação social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

Além do método da observação, foi utilizado um diário de campo para o registro de informações referentes à demanda e a proposta de intervenção que está presente no cronograma deste projeto. Os encontros aconteceram uma vez por semana, na quinta-feira, no período das 10:00 às 11:00 Este horário poderia estar sujeito a alterações ao longo do semestre, pois a instituição possui um cronograma próprio, podendo acontecer atividades internas no mesmo horário das intervenções. O principal público-alvo desta intervenção foram os alunos da instituição.  Cada grupo de acadêmicos de Psicologia foi sorteado a ficar em uma sala para levantar demandas, para que posteriormente pudessem delinear um projeto que se adequasse aos alunos daquela sala. O projeto que foi delineado está presente no cronograma das atividades realizadas no tópico 3 deste trabalho.

Encontros de Observação

O início das atividades no campo, logo após o encontro com o psicólogo da APAE, se deu nos dias 5 e 12 de setembro, quando os estagiários tiveram contato direto com as atividades de sala de aula programadas pela instituição. Foi possível estabelecer vínculo facilmente com a professora responsável pela turma foco da intervenção. Em ambas as datas, o levantamento de dados foi o eixo principal do trabalho realizado. A princípio, três alunos foram apresentados aos estagiários: L., S. e W., que, no primeiro dia, mostraram-se tímidos.

Durante os dois dias, especialmente no primeiro, os minutos de encontro foram utilizados principalmente para conhecer o ambiente da sala de aula, bem como a rotina da professora, sua interação com os alunos e suas possíveis dificuldades naquele contexto. A comunicação com os alunos aconteceu de maneira mais significativa no segundo dia de observação, quando foi possível estreitar vínculos com os três. Durante os dias de observação, algumas demandas foram levantadas explícita e implicitamente no contexto da sala de aula, como a necessidade de melhorar o ambiente, tornando-o mais lúdico e confortável, além de demandas implícitas psicológicas e relacionais, atreladas às necessidades de trabalhar as relações interpessoais entre alunos, envolvendo também a professora. Algo bastante presente nos dois dias de observação foi a temática sensorial, pois o aluno L. possui diagnóstico de paralisia cerebral, além de ser deficiente auditivo e mudo. Sua comunicação ocorre principalmente por meio do toque, o que afugenta e assusta alunos e visitantes, dificultando o processo de interação, socialização, e consequentemente, de inclusão desse aluno.

A necessidade de trabalhar aspectos sensoriais na sala de aula também foi levantada a partir da percepção dos estagiários a respeito de hábitos alimentares disfuncionais relatadas pelo aluno W, que disse “já ter comido um pote inteiro de Arisco” (sic). Dessa forma, a integração sensorial foi pensada para ser trabalhada privilegiando as sensações táteis e gustativas. Quanto às relações interpessoais, pensando principalmente na aluna S., percebeu-se que esta possui uma grande necessidade de se comunicar e interagir. Tem apreço pelos colegas e pela professora, além de ser extremamente afetiva, prestativa e alegre. Apesar dessas características, o vínculo entre S. e seus colegas pareceu frágil, principalmente devido a dificuldades de comunicação com estes, especialmente com L., que é surdo e mudo. Dessa forma, despertou-se nos estagiários o interesse em trabalhar aspectos interpessoais de convívio e interação.

Encerrando os dois encontros de observação, três eixos principais foram pensados para a intervenção:

  1. Trabalho dos aspectos sensoriais, com foco no tato e paladar;
  2. Trabalho das relações interpessoais entre alunos e professora;
  3. Decoração e planejamento de uma sala de aula mais lúdica e confortável.

1º encontro

No primeiro dia de atividades de intervenção, os estagiários levaram para a sala de aula um pote de brigadeiro. A atividade inicial, além de possuir como intuito secundário a aproximação entre estagiários, professora e alunos, foi pensada para estimular os últimos a tocar nos alimentos, fazendo as bolinhas e colocando-as nas forminhas. Lira (2014) ressalta que, no ambiente escolar, é possível propiciar um espaço onde os alunos tenham suas habilidades sensoriais estimuladas e/ou moduladas, de modo a promover aprendizagem.

Desse modo, a atividade programada foi pensada para o contato direto com o alimento por meio das sensações, entretanto, a professora não permitiu o toque, alegando que os alunos poderiam sujar os materiais. Além disso, no dia do encontro, uma atividade com o corpo de bombeiros havia sido programada pela instituição e foi necessário que os alunos participassem. Sendo assim, os estagiários agilizaram a intervenção, servindo o brigadeiro aos alunos com colheres.

Apesar do objetivo de a atividade não ter sido atingido de maneira íntegra, os alunos degustaram o alimento, e foi possível orientá-los quanto ao modo de consumo. W., o aluno cuja alimentação mostrou-se desregulada, foi orientado a comer devagar e levar colheradas menos cheias à boca. W. foi receptivo às orientações. O aluno L. ingeriu uma grande quantidade do doce, e a professora falou sobre sua compulsão por alimento. Maturana (2010 apud PERLS, 1947), ao tratar sobre a relação entre o sujeito e o objeto de alimentação, fala sobre o desajuste alimentar. De acordo com a autora, a relação banalizada com o alimento, seja por consumi-lo apenas para se satisfazer ou para suprir uma outra necessidade, caracteriza um comportamento pré-reflexivo, onde o indivíduo não se encontra presente na experiência, ou seja, mantém com a comida uma relação banal e instintiva. No caso de L., essa dinâmica é percebida principalmente por se tratar de um aluno cujo contato estabelecido com o meio é disfuncional e até mesmo inoperante.

No caso de W., foi informado pela professora aos estagiários que sua relação com o excesso de comida ocorre por questões familiares. Maturana (2010) também cita a importância do processo familiar na dinâmica da alimentação. Conforme a autora, a família transmite regras e condutas específicas a respeito do ato de se alimentar, que também passam a constituir a personalidade do sujeito. O aluno em questão, de acordo com as palavras da professora, utiliza da alimentação desregulada como forma de enfrentar as regras impostas por seu contexto familiar, mantendo uma relação disfuncional com o alimento à medida que o “introjeta” de maneira agressiva.

Com essas informações, o encontro foi encerrado. A atividade com os bombeiros aconteceu de maneira paralela às intervenções dos estagiários no campo, desse modo, não foi possível integrar as duas programações.

2º encontro

No segundo encontro, os psicólogos em formação levaram para a intervenção alguns materiais, como letras do alfabeto e números em EVA, um painel e post-its para decoração da sala. Neste dia, apenas W. ficou na sala de aula, pois a professora mandou a maioria dos alunos para a aula de música. O intuito do encontro, a princípio, era trabalhar concomitantemente as três demandas levantadas: decoração da sala, integração sensorial e relações interpessoais. Como a maioria dos alunos não puderam estar presentes, a dinâmica do encontro girou em torno da interação dos estagiários com a professora a partir da decoração da sala.

De acordo com Miglioranza (2013), a promoção de atividades lúdicas para pessoas com deficiência intelectual é importante pois permite que estas explorem possibilidades até então desconhecidas, devido às limitações cognitivas. O uso de jogos, colagens, brinquedos e decorações chamativas pode propiciar um clima de aprendizagem onde o aluno é estimulado, sem que a atividade se torne penosa, punitiva ou cansativa. Sendo assim, os estagiários pensaram em decorar as paredes com letras e números em EVA, de modo a tornar o ambiente de sala de aula mais interativo. Em conjunto com a professora, também foi elaborado o “quadro dos pensamentos”, utilizando um painel e post-its. Este último instrumento foi pensado para ser utilizado a longo prazo na sala de aula, com o propósito de permitir que os alunos se expressem desenhando, escrevendo ou pintando a respeito de suas emoções, sensações, pensamentos e sentimentos.

A interação com a professora aconteceu de modo espontâneo e leve. Ela pôde se expressar a respeito da sua rotina, bem como conversar a respeito de assuntos relacionados ao seu contexto de trabalho, além de sua vida pessoal, o que reforçou o estreitamento de vínculo entre a profissional e os estagiários. Entretanto, os alunos não puderam participar da intervenção, o que resultou em certo prejuízo na realização das atividades. W., apesar de presente no ambiente, não quis participar da decoração da sala. Pareceu menos confortável e disposto a interagir com os estagiários.

3º encontro

No terceiro encontro, outra intercorrência aconteceu. A equipe da APAE levou todos os alunos para um passeio no parque, e essa atividade não foi informada a tempo aos estagiários. Entretanto, todos chegaram a tempo da intervenção. Para o encontro, foi levada uma geleca (slime), com o objetivo de continuar o trabalho sensorial desenvolvido. Os estagiários observaram que os três alunos, L., S. e W., chegaram agitados das atividades do parque. Para que todos interagissem de alguma forma, cada estagiário ficou responsável por um aluno, porém, nesse dia, a intervenção ganhou mais um componente, o aluno B., que até então não havia sido apresentado nem comparecido aos encontros anteriores.

Foi possível perceber que L. possui uma forma particular de aprender, que é a partir da observação e imitação. Melo-Dias e Silva (2019) caracterizam esse tipo de aprendizagem como fundamental para a sobrevivência, pois, desde os mais remotos tempos, os seres observam-se mutuamente e repetem esquemas e padrões de comportamento de modo a garantir a própria segurança. Trazendo para o contexto em questão, L., apesar de seu comprometimento cognitivo, é capaz de reproduzir o que vivencia no dia a dia. A própria professora relatou que o aluno, desde o seu primeiro dia na instituição, aprendeu a adequar seu comportamento à medida que participava das aulas e convivia com outros alunos. Sendo assim, as interações com L. foram permeadas por representações gestuais e não-verbais, de modo que o aluno conseguisse adquirir novos repertórios comportamentais que se adequassem à sua maneira de aprender.

A aluna S., como dito anteriormente, é extremamente afetiva e alegre. Sua afetividade foi visível com os estagiários, que construíram um vínculo forte de amizade com esta. Ao longo do encontro, S. os presenteou com um desenho caracterizando-os, e também demonstrou afeto a partir de abraços. Conforme Mattos (2008), o trabalho da afetividade em contextos escolares de inclusão mostra-se imprescindível, visto que constitui um dos combustíveis necessários para o bom funcionamento cognitivo. Esse fator também serve como canal facilitador da aprendizagem. Levando em conta essas particularidades, os estagiários utilizaram do contato afetivo para estimular a aluna a participar das atividades e a relacionar-se com os colegas, promovendo a aproximação entre todos.

Quanto ao trabalho sensorial com a geleca, foi possível perceber que cada aluno interagiu e reagiu de maneira diferente ao objeto. L. demonstrou estranhamento e repulsa a partir de suas expressões faciais e mãos, enquanto S. e W. brincaram sem restrições. No caso da aluna, esta utilizou o brinquedo para escondê-lo, jogando caça ao tesouro com os estagiários. Sua dedicação à brincadeira foi reforçada, de modo que ela se empolgou e quis continuar brincando.

O aluno B., apesar de ter se mostrado levemente retraído, conseguiu manter uma comunicação de qualidade com os estagiários, e assim o vínculo foi estabelecido sem problemas. Percebeu-se que B é afetivo e inteligente. Conversou com os estagiários a respeito de assuntos como faculdade e política, demonstrando ser atento às notícias e atualidades.

4º encontro

No quarto encontro, ao chegar na sala, os estagiários perceberam a ausência da professora e dos alunos, com isso saíram para localizá-los. Ao encontrar a professora, ela os informou que estava cuidando de um aluno em outro ambiente, assim, os alunos pelos quais ela é responsável estavam em outras salas.  Os estagiários foram à procura dos alunos, e ao encontrá-los, os convidaram a irem para sala onde aconteceria a intervenção. Assim, as atividades desenvolvidas foram o uso de massinha com intuito de trabalhar a criatividade e também aspectos sensoriais, além do uso de uma atividade imprimível contendo um labirinto na folha de papel, com objetivo de trabalhar as habilidades motoras, sendo que, somente S. desenvolveu essa atividade, ainda assim demonstrando  dificuldade em encontrar a saída do labirinto. Souza, França e Campos (2006) considera que a solução desse teste envolve a operacionalização da intenção de movimentar-se para alcançar um objetivo. A estabilização do desempenho pode indicar a utilização de estratégias cognitivas e formação de um programa de ação.

Com o aluno L., trabalhou-se também o desenvolvimento motor. Com a utilização de uma folha em branco, um dos estagiários desenhou a mão do aluno na expectativa deste repetir a ação. Com isso, foi possível observar que L. acompanhou atentamente os movimentos do estagiário durante a prática do desenho, e em seguida tentou fazer o mesmo, ou seja, houve uma tentativa de repetição do desenho, o que reforça o que os estagiários haviam percebido anteriormente a respeito da aprendizagem do aluno em questão.

5º encontro

Os estagiários programaram uma atividade de adivinhação para os alunos e a professora da sala. Levaram uma venda para os olhos e alguns objetos como pena, urso de pelúcia, pincel, etc., e balões para animar o clima da sala de aula, com o intuito de trabalhar aspectos sensoriais do tato. Cardoso (2013) ressalta que o contato por meio dos órgãos sensoriais promove aprendizagem e gera conhecimento. Cita o processo sensório-perceptivo como basilar para o desenvolvimento psíquico e biológico, caracterizando esse tipo de aprendizagem como antecedente às abstrações científicas, filosóficas e racionais. Sendo assim, explorar o corpo e o ambiente, ainda conforme Cardoso (2013), promove retorno a um nível de abstração primário do ser humano, possibilitando que a aprendizagem aconteça de maneira íntegra. A respeito disso, Dusi, Neves e Antony (2006) alegam que o aprender significativo é aquele que integra as dimensões cognitivas, sensoriais e motoras do indivíduo, numa perspectiva holística de compreensão do ser humano.

Assim, no contexto em questão, a intervenção realizada permitiu trabalhar as potencialidades da deficiência de cada um, possibilitando que cada aluno pudesse, dentro de suas capacidades, apreender a experiência sensorial e incorporá-la como aprendizado. Os alunos B. e W., por exemplo, surpreenderam a todos com suas capacidades de adivinhação a partir do tato. Conseguiram acertar sem dificuldades os objetos que tocaram em um tempo razoável. No caso de L., apesar de não conseguir raciocinar ou verbalizar sobre a experiência, notou-se que o aluno, ao ser vendado, reagiu com estranheza. Pareceu se divertir após a remoção da venda, sorrindo e ficando agitado quando os colegas participavam da brincadeira.

Todos os alunos estavam presentes e juntamente com os estagiários, encheram os balões e colaram na parede. A professora se animou bastante e até pegou outros objetos de outras salas para a brincadeira continuar. Até os estagiários e a própria professora participaram, dando até a ideia de chamar outras salas para entrarem na brincadeira em encontros futuros. Após o fim da brincadeira, os estagiários se despediram e foram embora.

É possível afirmar que houve aprendizagem de todas as partes envolvidas no processo: professora, alunos e estagiários. A experiência propiciou a vivência de relações íntimas com o ambiente a partir do tato, e consequentemente, o estabelecimento de relações interpessoais entre os indivíduos. Dusi, Neves e Antony (2006) definem como contato toda a experiência que ocorre entre indivíduos ou entre indivíduo e meio e possibilita crescimento pessoal, a partir da apreensão do novo. Dentro dessa dinâmica, pode-se dizer que o contato ocorreu com qualidade, propiciando aprendizagem e estreitamento de vínculos entre todos.

6º encontro

Neste encontro, a principal proposta foi uma dinâmica, que consistia em um leque de elogios com os alunos, além da confecção de um porta-retrato com palitos de picolé. Devido ao ônibus da instituição estar quebrado, apenas 2 alunos compareceram. Durante a dinâmica, o aluno B. teve dificuldade ao fazer as dobraduras do leque, então com o auxílio da estagiária, ele fez, e assim, deu-se início a rotação. Cada leque iria passar por todas as pessoas da roda e cada uma delas teria que escrever um elogio ou algo que poderia melhorar. A execução da dinâmica foi possível pois apenas os alunos B. e W. estavam presentes, e ambos possuem um nível cognitivo satisfatório para a leitura e escrita.

Melo (2010), no que tange à comunicação com pessoas com deficiência, especialmente as do tipo intelectual, cognitiva ou múltipla, orienta que a fala seja carregada de afeto e atenção. Além disso, ressalta a importância de serem evitadas condutas de superproteção e infantilização desses sujeitos, deixando que estes se manifestem de maneira autônoma e apenas sejam auxiliados quando realmente houver necessidade. Dessa forma, durante a atividade, os estagiários e a professora deixaram que os dois alunos presentes, B. e W., dobrassem o leque e escrevessem os adjetivos. Foi necessário auxiliar o aluno B. na atividade, pois este tinha dificuldade para ler. Entretanto, estagiários e professora incentivaram o aluno a desenvolver sua autonomia, apoiando-o e incentivando-o.

Todos pareceram estar se divertindo e gostando dos elogios. Dantas e Martins (2009) falam sobre a importância do desenvolvimento de relações interpessoais construtivas entre pessoas com deficiência no ambiente escolar, sejam destas com seus colegas, com profissionais, funcionários ou professores. De acordo com as autoras, o contato com o outro propicia desenvolvimento inter e intrapessoal, pois é a partir da mediação social que o sujeito pode se constituir como pessoa. A troca de elogios entre professora, estagiários e alunos propiciou diversão e afeto, aumentando a interação entre todos.

No fim da dinâmica, os estagiários pediram para os alunos fazerem desenhos, e assim, começarem a fazer os porta-retratos. Inicialmente, seriam fotos para compor os porta-retratos, mas como um dos alunos não estava na foto, foi de maior valia fazer um desenho. Nenhum estagiário interferiu no desenho dos alunos, de modo a permitir que cada um pudesse se manifestar autenticamente a partir de suas potencialidades, indo ao encontro com o que Melo (2010) postula a respeito do manejo de pessoas com deficiência intelectual.

7º encontro

Para este encontro, foi planejado fazer pinturas na pele dos estudantes e estes fazerem pinturas nos estagiários, para que todos tivessem um maior contato sensorial. Os estagiários levaram tinta para pintura na pele e pediram primeiramente a permissão da professora para poderem realizar a atividade. Conforme Guero (2013), os órgãos sensoriais são imprescindíveis para a aprendizagem. Sabe-se que o aluno L. possui deficiência auditiva e possivelmente visual, além de seu comprometimento cognitivo, entretanto, consegue apreender o mundo e os objetos a partir de outras maneiras, como pela sensação tátil. Neste encontro, apenas W. e este aluno compareceram. A atividade foi realizada de modo que ambos pudessem sentir o contato da tinta no corpo, tocá-la e cheirá-la. Guero (2013) refere-se a esse tipo de interação sensorial como sensações exteroceptivas, ou seja, pertencente a estímulos externos que ativam onde há a utilização dos sentidos (paladar, tato, olfato, audição e visão).

Uma das estagiárias desenhou no braço de W. o que este havia pedido, uma aranha com seu nome embaixo. O aluno demonstrou interesse e empolgação com a atividade, e se comprometeu em pintar as duas estagiárias. Matera e Leal (2016) falam sobre o papel da arte na educação inclusiva, ressaltando que esta abre caminhos para novas experiências, permitindo a superação de limitações e desenvolvimento de habilidades. A aprendizagem artística foge aos padrões convencionais de educação e promove inclusão à medida que possibilita que cada aluno se expresse de maneira única e autêntica.

No caso de L., o aluno reagiu inicialmente de modo estranho à sensação da tinta em seu corpo. Com a acomodação da experiência, conseguiu até mesmo espalhar a tinta pelo corpo, divertindo-se e interagindo com o estagiário à medida que este o pintava. O contato com o novo é um processo que abala o campo inter-relacional entre indivíduo e meio. L., ao entrar em contato com o elemento tinta, abriu várias possibilidades de aprendizagem. Dusi, Neves e Antony (2006) explicam o ciclo do contato como um processo de várias etapas onde podem ocorrer diversas formas de relacionamento com o meio. No caso de L., o contato inicial com a experiência aconteceu com fixação, houve resistência e medo. Entretanto, à medida que a situação foi assimilada e acomodada, maior foi a fluidez do processo, e o aluno pôde experimentar sensações e agregá-las à sua totalidade. Em dado momento, L., energizado pela experiência, conseguiu partir para a ação, repetindo os movimentos do estagiário e pintando-o.

Como dito anteriormente, L. é um aluno que aprende predominantemente por imitação e observação. Aguiar (1998) salienta que esse modelo de aprendizagem não é meramente uma cópia de um símbolo externo, mas uma reorganização individual de um significado. Dessa forma, apesar de seu comprometimento neurocognitivo, o aluno apresenta um funcionamento próprio no que tange à exploração do meio, o que pôde ser reforçado através da atividade de pintura.

O final do encontro foi marcado por outra experiência sensorial entre o estagiário e o aluno L. Este foi higienizado com água e sabão, de modo a se limpar da tinta. Foi colaborativo com o estagiário e demonstrou apreço pela limpeza, divertindo-se com a água. A interação do aluno com a limpeza reforçou a observação dos estagiários da importância das sensações táteis para L. O outro aluno, W., desejou continuar pintado. Pode-se dizer que ambos, em suas próprias maneiras, apreenderam a experiência e ampliaram o contato com o ambiente e com o outro, um dos objetivos do encontro.

8º encontro

Para o último encontro, foi planejado dar um feedback para a professora de todas as atividades realizadas durante o semestre, juntamente com um lanche e uma lembrancinha. Os estagiários, ao invés de dar uma lembrancinha para cada um, se juntaram e compraram um jogo onde todos da sala poderiam jogar juntos. O jogo em questão é o pula-pirata, onde ao colocar as espadas no barril do pirata, é acionado um mecanismo onde o pirata pula. O brinquedo foi pensado para que todos os alunos brinquem juntos, o que propiciaria maior interação entre todos. A escolha levou em conta as particularidades do aluno L., que, como citado anteriormente, possui o tato como sentido mais aguçado, além de aprender principalmente por observação. Mafra (2008) aponta que o processo de brincar é fundamental para pessoas com deficiência, pois o papel principal do lúdico nesse contexto é de facilitar e promover a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, neurológico, afetivo e social desses sujeitos. Dessa forma, a presença de um brinquedo a mais no ambiente de sala de aula, sendo ainda um brinquedo que requer interação, mostra-se de grande contribuição.

Os acadêmicos fizeram um apanhado de todos os encontros, desde a principal demanda que levantaram, até às reações dos alunos e da professora. Esta deu um feedback bastante positivo em relação aos encontros. Disse que L., que possui deficiência na fala, audição e cognição, teve melhoras positivas em suas relações interpessoais. Ela, que antes dizia que este não se comunicava, começou a perceber que ele se comunica com as outras pessoas de um modo diferente, que é a partir do toque, da observação. Os estagiários levaram pipoca como lanche de despedida. Além da própria professora, apenas L. estava presente.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se constatar que as atividades propostas foram concluídas encontro após encontro, atingindo os objetivos propostos no início do projeto. O foco das intervenções foi se adaptando conforme as demandas foram se apresentando. É importante salientar que nem todas as atividades planejadas pelos estagiários foram efetivadas por motivo de intercorrências no campo, visto que este já possuía um cronograma estabelecido para o semestre, no entanto, as atividades foram adaptadas no momento para que fossem concluídas.

Os alunos que obtiveram maior benefícios das intervenções foram S. e L., respectivamente pelas demandas de relacionamento interpessoal e comunicação não verbal. Os estagiários conseguiram desenvolver vínculo com a turma onde realizaram o relato e em relação aos objetivos alusivos à integração sensorial, com a utilização de atividades que envolviam esse aspecto, foram adaptados para determinados momentos e finalizados. Desse modo, é possível concluir e reafirmar a importância da Psicologia em espaços que dizem promover a inclusão, pois esta ciência está em constante evolução, propõe um olhar acolhedor e empático, além de possuir como uma das premissas a prática inclusiva.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, J. S. Aprendizagem Observacional. Revista de Educação, PUC-Campinas, v.3, n.5, pg. 64-68, nov/1998.

CARDOSO, D. S. Despertar da percepção na educação infantil: caminhos para uma aprendizagem totalizante. 2013. 111f. Monografia (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2013.

CASTRO, F. M. O papel da APAE frente à inclusão de estudantes com deficiência na rede pública de ensino em Carinhanha-BA. 2015. 47 f. Monografia (Especialização em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar)—Universidade de Brasília, Universidade Aberta do Brasil, Brasília, 2015.

DANTAS, D. C. L; MARTINS, L. A. R. Pessoas com deficiência intelectual na escola regular: a educação inclusiva é possível. V Congresso Brasileiro Multidisciplinar de Educação Especial, 3 a 6 de novembro de 2009, Londrina, Paraná, Brasil.

DUSI, M. L. H. M; NEVES, M. M. B. J; ANTONY, S. Abordagem gestáltica e psicopedagogia: um olhar compreensivo para a totalidade criança-escola. Universidade de Brasília, Paidéia, 2006, pg 149-159.

GUERO, M. G. Capítulo I: 1 – Deficiência Intelectual; Áreas do Desenvolvimento; Área Cognitiva; Sensação. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de Educação. Os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva do Professor PDE. 2014. Curitiba: SEED/PR., 2016. V.1. (Cadernos PDE).

LIRA, A. V. A. Noções de Integração Sensorial na Escola: Orientações para Inclusão. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 2014.

MACHADO, A. M.; ALMEIDA, I. & SARAIVA, L. F. O.  Rupturas necessárias para uma prática Inclusiva. In Educação Inclusiva: experiências profissionais em psicologia (pp. 21-36). Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2009.

MAFRA, S. R. C. O Lúdico e o Desenvolvimento da Criança Deficiente Intelectual. SEED/PDE-Programa de Desenvolvimento Educacional, 2008.

MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer?. São Paulo: Moderna, 2003.

MATERA, V. S. M; LEAL, Z. F. R. G. ARTE E DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: caminhos, possibilidades e aprendizagem. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de Educação. Os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva do Professor PDE. 2016. Curitiba: SEED/PR., 2016. V.1. (Cadernos PDE).

MATTOS, S. M. N. A afetividade como fator de inclusão escolar. TEIAS: Rio de Janeiro, ano 9, nº 18, pp. 50-59, julho/dezembro 2008.

MATURANA, V. Reflexões acerca da relação entre a alimentação e o homem. Revista IGT, v. 7, nº 12, 2010, p. 176-219.

MELO, F. R. L. V. Interações com pessoas com deficiência: algumas orientações básicas. Natal, RN: Comissão Permanente de Apoio a Estudantes com Necessidades Educacionais Especiais, 2010.

MELO-DIAS, C; SILVA, C. F. Teoria da Aprendizagem Social de Bandura na Formação de Habilidades de Conversação. PSICOLOGIA, SAÚDE & DOENÇAS, 2019, 20(1), pg. 101-113. ISSN – 2182-8407. Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde – SPPS.

MIGLIORANZA, S. J. Capítulo II: 2 – O Lúdico na Aprendizagem e o Papel do Professor. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência de Educação. Os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva do Professor PDE. 2014. Curitiba: SEED/PR., 2016. V.1. (Cadernos PDE).

SILVEIRA, D. T.; CÓRDOVA, F. P. Métodos de pesquisa. [organizado por] Tatiana Engel Gerhardt e Denise Tolfo Silveira; coordenado pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação Tecnológica – Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

SOUZA DE; FRANÇA FR; CAMPOS TF. Teste de Labirinto: Instrumento de Análise na Aquisição de uma Habilidade Motora. Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN – Brasil. Rev. bras. fisioter., São Carlos, v. 10, n. 3, p. 355-360, jul./set. 2006.

Compartilhe este conteúdo:

Garota Interrompida: transtornos da personalidade antissocial e borderline

Compartilhe este conteúdo:

As particularidades e manifestações de ambos os transtornos vivenciados pelas duas jovens emergem no convívio dentro do manicômio, gerando atritos em relacionamentos e dificuldades interpessoais.

O filme “Girl, Interrupted”, “Garota, Interrompida”, em português, dirigido por James Mangold e lançado em 1999, narra a trajetória de Susanna Kaysen, uma jovem de 18 anos em conflito existencial e posteriormente diagnosticada com transtorno de personalidade limitante (atualmente, mais conhecido como transtorno limítrofe ou borderline). Após tentar suicídio, durante uma conversa com seu psiquiatra, Susanna assina seu protocolo de internação e passa meses sob cuidados profissionais em uma instituição manicomial.

No local, conhece várias outras mulheres que também tiveram o curso de suas vidas interrompido por um transtorno, entre elas Lisa, uma jovem diagnosticada como sociopata. Oscilando entre momentos de extrema angústia e satisfação, Susanna constrói vínculos no lugar e vive as dificuldades de seu transtorno, além de se envolver em diversas situações conflituosas durante seu tempo de internação.

Focado na percepção da jovem em relação ao mundo, o filme aborda as peculiaridades de uma personalidade afetada por um transtorno, as dificuldades e especificidades das relações interpessoais do sujeito diagnosticado e também traz reflexões sobre os tratamentos manicomiais e psiquiátricos, conforme o contexto histórico da trama, que se passa nos anos 60, perpassando o conceito de loucura vigente na época e ainda hoje reforçado.

Susanna, interpretada pela atriz Winona Ryder, tem 18 anos e mora com seus pais. Contando apenas com o seu diário para externalizar seus pensamentos e emoções, a jovem, no auge de seus conflitos internos, desconhecendo as motivações de suas tristezas e inquietações, tenta suicídio ingerindo diversas pílulas. O incidente a leva a consultar um psiquiatra, que propõe a ela que tire um tempo de sua vida para descansar afastada do convívio social dentro de uma casa de repouso, ou seja, em uma instituição psiquiátrica. Alencar, Rolim e Leite (2013), numa revisão histórica sobre o conceito de loucura, falam sobre as primeiras práticas asilares pensadas para tratar o que viria a ser chamado de transtorno ou disfunção mental, logo durante o surgimento da psiquiatria (alienismo) no século XVIII.

Fonte: encurtador.com.br/rtBGT

É exposto pelas autoras que, com o advento dessa área, o conceito de loucura/doença mental sofreu várias alterações. Entre elas, trazendo uma contribuição positiva, pode-se ressaltar o distanciamento entre a instância psíquica e questões espirituais, algo defendido pela sociedade como um todo. Explicações metafísicas sobre a doença mental foram sendo substituídas por estudos científicos, e o fenômeno passou a ser visto como uma condição médica passível de cura. Entretanto, de acordo com Júnior e Medeiros (2007), muitos teóricos de saúde mental alegam que as contribuições da psiquiatria para o entendimento dos transtornos mentais são reducionistas e biologicistas, colaborando para, muitas vezes, intensificar no indivíduo o que é chamado pela sociedade de loucura.

Os autores afirmam que esse conceito, analisado pelas lentes dos estudos em psicologia e saúde mental, é mais abrangente e engloba uma série de condicionantes sociais e culturais, indo além de explicações meramente orgânicas. A estigmatização social imposta ao indivíduo considerado louco, para essas abordagens teóricas, constitui a própria condição mantenedora do transtorno, que é carregado de rótulos e estigmas legitimados pela prática da psiquiatria (JÚNIOR e MEDEIROS, 2007). Apesar das concepções acerca do conceito de loucura e doença mental terem sofrido alterações durante os séculos e as discussões e práticas direcionadas a cura de pacientes psiquiátricos terem ganhado força, o modelo de internação, ao longo da história, assumiu como principal finalidade retirar do convívio social o indivíduo considerado louco, não chegando, muitas vezes, a adotar uma perspectiva terapêutica propriamente dita. Essa dinâmica foi sendo modificada com o tempo, mas a segregação social promovida pelos manicômios e asilos continuou constituindo um pré-requisito para o tratamento da loucura, conforme exposto na trama.

O psiquiatra de Susanna adota esse modelo de tratamento, trazendo atrelado a ele uma série de problemas que serão observados ao longo da trama, no que se refere ao modo como o transtorno mental é concebido dentro da instituição e como as práticas terapêuticas são conduzidas e aplicadas. Como uma dessas problemáticas, pode-se citar o fato da própria jovem desconhecer seu diagnóstico, somente entrando em contato com ele na metade do filme, quando ela e as outras garotas invadem a sala do psiquiatra e leem as pastas referentes ao caso de cada uma. Susanna passa meses de sua internação sendo submetida aos tratamentos de rotina sem de fato entender os motivos de estar tomando os remédios e estar frequentando as sessões, assim como o resto das pacientes.

As práticas dentro do manicômio da trama tornam-se, assim, mecânicas e vazias de sentido, privilegiando um modelo de assistência pautado na hegemonia e superioridade do profissional de saúde, que detém todo o conhecimento sobre a condição dos pacientes e segura em suas mãos o destino dessas pessoas. As garotas do filme, dessa forma, mostram-se totalmente alienadas quanto às suas condições de saúde, e possuem pouco ou nenhum controle do processo terapêutico que estão vivenciando. O engajamento nas atividades propostas pelos profissionais do local é incentivado e até mesmo exigido, entretanto, mesmo quando esse engajamento existe, as pacientes contribuem com o processo tendo em mente uma possibilidade de sair do local e serem curadas de uma condição que nem mesmo as próprias entendem ou conhecem.

Fonte: encurtador.com.br/iuyLX

Apesar dos inúmeros aspectos negativos inerentes às próprias práticas manicomiais presentes no filme, é preciso levar em consideração o contexto histórico em que se passa a trama. As discussões a respeito de saúde mental, nos anos 60, ainda eram frágeis e muito pautadas no discurso biologicista, e as contribuições da psiquiatria ajudavam, como já discutido anteriormente, a legitimar práticas desumanas. É possível também, olhando por outra perspectiva, observar vários pontos positivos no que tange ao manejo e cuidado das pacientes durante o filme.

Como uma prática que foge aos modelos de internação em que as pessoas são isoladas da sociedade, durante o filme, pode-se citar uma atividade promovida pela enfermeira Valerie, em que as pacientes saem do encarceramento e vivem uma espécie de dia de lazer fora das dependências do manicômio. Apesar de em alguns pontos perderem a sensibilidade com as mulheres, a maioria dos funcionários do local são colaborativos e desenvolvem afetividade pelas pacientes, como é o caso de Valerie, que, em várias cenas do filme, demonstra um enorme carinho tanto por Susanna quanto pelas outras garotas, até mesmo pelas consideradas mais problemáticas, como Lisa.

A partir dessas considerações, pensando também no contexto histórico e social do que é considerado loucura e como essa condição tem sido tratada ao longo dos séculos, podem ser tecidas algumas discussões a respeito dos transtornos de Susanna e Lisa.

Reflexões sobre saúde mental

Susanna e Lisa, vivida por Angelina Jolie, são as personagens principais do filme, ambas diagnosticadas com transtornos de personalidade distintos. Numa das primeiras aparições de Lisa no filme, ela é apresentada como sociopata, uma das categorizações dentro do chamado transtorno de personalidade antissocial. Já Susanna, alheia às motivações de seus sentimentos e comportamentos, só descobre seu diagnóstico quando acessa a sua pasta no consultório psiquiátrico.

Fonte: encurtador.com.br/adrtA

As particularidades e manifestações de ambos os transtornos vivenciados pelas duas jovens emergem no convívio dentro do manicômio, gerando atritos em relacionamentos e dificuldades interpessoais. Retomando as discussões anteriores, é possível afirmar, principalmente no caso de Susanna, que tanto a maneira como seus pais, a sociedade e os profissionais do manicômio encaram o seu transtorno é rotuladora, visto que seus conflitos poderiam ser abordados de outra maneira que não através da internação psiquiátrica.

O estigma de “louca” recai sobre a personagem como um peso, agravando, pode-se inferir, sua condição. Para entender o funcionamento das duas personagens no mundo e o modo como ambas interagem com este, com as pessoas e consigo mesmas, faz-se necessário tecer algumas reflexões a respeito dos dois transtornos e seus respectivos contextos históricos.

Atualmente, tanto o transtorno de personalidade borderline como o antissocial estão presentes no DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), encaixados na categoria dos transtornos de personalidade. Entretanto, as concepções e nomenclaturas a respeito dos transtornos psicológicos nem sempre foram bem definidas como na última década. O diagnóstico de borderline, por exemplo, foi estruturado apenas em 1980, na publicação do DSM-III (DALGALARRONDO & VILELA, 1999). A utilização do termo borderline pela primeira vez se deu em uma publicação de um autor chamado Stern, em 1938.

O transtorno era tido como uma espécie de esquizofrenia latente, onde haveria uma flutuação entre o estado de psicose e neurose. A categorização desse conjunto de sintomas como borderline se deu, definitivamente, pelos estudos de Robert Knight, em 1953, o que permitiu o surgimento das primeiras classificações desse transtorno nas edições do DSM e sua consequente desvinculação com a esquizofrenia, sendo tratado como um transtorno de personalidade (DALGALARRONDO & VILELA, 1999). A edição mais recente do DSM cita como uma das características próprias do transtorno de personalidade borderline a instabilidade nas relações, na autoimagem e uma impulsividade acentuada.

Fonte: encurtador.com.br/koqAL

Essas características são observadas no comportamento de Susanna ao longo do filme, principalmente durante suas explosões de raiva ou angústia movidas por impulsos. Como um exemplo da sua instabilidade nas relações, é possível citar seus padrões de relacionamentos amorosos, que são de curto prazo e desprovidos de apego emocional significativo. A impulsividade da jovem se manifesta em seus comportamentos autodestrutivos, como a tentativa de suicídio, que, inclusive, configura como um critério para o diagnóstico do transtorno, conforme o DSM-V. Também há prevalência de instabilidade no humor, o que é observado durante as explosões de raiva, tristeza e euforia da personagem.

Apesar de todas essas características, que certamente reúnem dados o bastante para ser firmado um diagnóstico, o próprio DSM-V alega que há um contexto cultural influente sobre indivíduos diagnosticados com borderline (principalmente adolescentes e adultos jovens), onde existe a presença de atitudes e vivências inerentes a questões existenciais experienciadas por esses indivíduos que são percebidas como possíveis sintomas de um transtorno, e assim patologizadas e tratadas. Como discutido anteriormente, no contexto histórico da trama, os conflitos e questões de ordem psicológica, ainda mais do que atualmente, eram diagnosticados e trabalhados a partir de um viés estigmatizador, reforçando a perspectiva manicomial, farmacológica e psiquiátrica, sem considerar a subjetividade do sujeito no processo.

Abrangendo esses fatores, pode-se então levantar a hipótese de que Susanna foi inserida nessa dinâmica, sendo rotulada e tratada como uma paciente psiquiátrica, ainda que não se encaixasse nessa classificação. Carneiro (2004) aponta para alguns problemas referentes a práticas que promovem o isolamento de pessoas com uma possível sintomatologia e diagnóstico de borderline, visto que o encarceramento de pessoas nessa condição pode reforçar crenças e pensamentos autodestrutivos além de problemas com a autoimagem, aproximando-as do “limite da loucura”. A autora classifica o transtorno como um estado transitório entre a loucura e a razão, sendo assim, tais práticas levariam o paciente a apresentar com mais frequências os sintomas (CARNEIRO, 2004). Isso é observado durante os primeiros momentos de Susanna na instituição, mas, com seus próprios esforços e com o apoio de colegas e funcionários, a jovem consegue reverter o contexto de seu transtorno e sair do isolamento manicomial, no final do filme.

Por outro lado, como antagonista da trama, há Lisa, uma jovem diagnosticada como sociopata. Susanna, antes mesmo de conhecê-la, descobre sobre sua enorme influência dentro da instituição, entrando em contato com o fato de que até mesmo uma ex-paciente do local havia cometido suicídio devido a ausência de Lisa (que, como fez anteriormente e continuou fazendo ao longo do filme, havia fugido da instituição). Conforme Hodara, a sociopatia é um dos vários desvios de personalidade incluídos dentro da classificação de Transtorno de Personalidade Antissocial. Como uma das características desse transtorno, pode-se citar o desprezo pelo sentimento dos outros (redução ou ausência de empatia) e por regras e normas da sociedade. (HODARA). O DSM-V aponta ainda, como um critério próprio do transtorno, a recorrência de episódios em que a agressividade é manifestada fisicamente e/ou verbalmente.

Fonte: encurtador.com.br/iwPY0

Lisa, durante todo o filme, demonstra o seu descaso para com todas as pessoas de seu convívio, sejam elas suas colegas da instituição ou os funcionários. Em uma das cenas mais fortes do filme, a personagem chega a servir de gatilho para que uma jovem, ex-paciente da instituição, cometa suicídio em sua própria casa, após desmoralizá-la verbalmente. O acontecimento se deu quando a personagem fugiu do manicômio e se hospedou na casa da jovem, levando com ela Susanna.

Sua reação ao suicídio da garota foi de total indiferença, enquanto Susanna se desestabilizava e chorava diante da cena. Em várias outras ocasiões, a personagem agiu com extrema crueldade e frieza ao tratar-se com os outros. Não só agressiva no sentido verbal, Lisa também mostrou ser capaz de usar da agressividade física, como quando os funcionários a trouxeram de volta para a instituição após uma de suas fugas. Os autores Pereira e Biasus ressaltam que, apesar dos aspectos de sociopatia e psicopatia estarem sob o prisma dos Transtornos de Personalidade Antissocial, nem todos os indivíduos diagnosticados com Transtorno de Personalidade Antissocial são necessariamente psicopatas ou sociopatas.

O que determina essa diferenciação, ainda de acordo com os autores, é a capacidade de controlar ou não os impulsos para a agressividade e hostilidade. Diagnosticada como sociopata, Lisa apresenta, como já discutido, uma grande tendência a manifestar em seus comportamentos traços das características citadas, sendo, de fato, relacionada às condutas referentes à psicopatia e sociopatia. Entretanto, uma das características mais marcantes da personagem, e também algo bastante manifestado em seu comportamento, citada também como uma das características próprias de indivíduos diagnosticados com TPAS, é sua capacidade de manipulação. Visando os próprios interesses, Lisa com frequência influencia as colegas de convívio a fazerem o que ela deseja. Até mesmo Susanna acaba sendo vítima dessa manipulação quando decide fugir da instituição junto da personagem. Em outra situação, quase no final do filme, Susanna recebe alta.

A informação chega a Lisa, que, buscando um meio de manter a colega no local provocando nela uma crise, expõe o diário da jovem às outras mulheres do local, cheio de desabafos e ofensas direcionadas às pacientes. Várias das mulheres, guiadas por Lisa, se juntam para intimidar Susanna. A personagem chega a se sentir mal e fica perto de ter uma crise, mas consegue devolver para Lisa todo o ódio destilado por ela. Assim, pela primeira vez, a antagonista sente na pele o peso das ofensas e humilhações, entrando em crise ao invés de Susanna. A cena revela um lado sensível da personagem, mantido em segredo atrás de muros de hostilidade construídos com o intuito de protegê-la do mundo (ou de si mesma). Nessa situação específica, Lisa utiliza seu poder de manipulação para um propósito bem mais abrangente do que apenas humilhar a colega. A intenção da personagem, pode-se afirmar, era manter Susanna na instituição, visto que a jovem havia construído com ela um vínculo, ainda que abusivo e mantido por relações de poder.

Fonte: encurtador.com.br/uyDNS

Conclusão

Garota, Interrompida” passa longe de ser um filme em que os transtornos mentais são estereotipados e banalizados. Apesar de nem todos os distúrbios apresentados pelas várias personagens serem trabalhados a fundo, há no filme um grande foco nas relações interpessoais desenvolvidas por indivíduos diagnosticados com um transtorno, principalmente os que se enquadram na categoria de desvio de personalidade.

Algo observado na trama, bastante pertinente para futuras discussões a respeito das psicopatologias, é a subjetividade dos sujeitos implicada em seus respectivos adoecimentos. Um exemplo disso se expressa por Lisa, que, apesar de ser diagnosticada com um transtorno cujas características são a falta de empatia e sensibilidade, consegue construir um vínculo interpessoal, ainda que frágil e sabotado, além de demonstrar momentos de vulnerabilidade emocional.

Susanna, apesar de sua condição existencial limitante, consegue reverter muitos de seus impasses e se direciona à autorrealização. A mensagem final, e talvez a mais importante, consiste em olhar para o indivíduo não como um depósito de sintomas e rótulos psicopatológicos, mas como um sujeito além de estereótipos, dotado de uma subjetividade capaz de proporcionar mudanças. Para que esse entendimento de ser humano seja alcançado, ainda é necessário um longo e árduo trabalho de conscientização, lutando contra os conceitos generalizantes de loucura e normalidade e as perspectivas manicomiais de internação. É um caminho a ser trilhado e um desafio a ser abraçado pelos profissionais de saúde mental e pela sociedade como um todo.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

GAROTA INTERROMPIDA

Título original: Girl, Interrupted
Direção: James Mangold
Elenco: Winona Ryder, Elisabeth Moss, Angelina Jolie
País: EUA, Alemanha
Ano: 2000
Gênero: Drama,Biografia

Referências

ALENCAR, A.V. ROLIM, S.A.; LEITE, P.N.B. A história da loucura. Revista de Psicologia, novembro de 2013, vol.1, n.21, p. 15-24. ISSN 1981-1189.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (2013).
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition. Arlinton, VA: American Psychiatric Association.
CARNEIRO, Lígia.
Borderlineno limite entre a loucura e a razão. Ciências & Cognição, 2004; Vol 03: 66-68.
DALGALARRONDO, Paulo; VILELA, Wolgrand.
Transtorno borderline: história e atualidade. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., II, 2, 52-71, 1999.
HODARA, Ricardo.
Sociopatia.
JÚNIOR, Francisco; MEDEIROS, Marcelo.
Alguns conceitos de loucura entre a psiquiatria e a saúde mental: diálogos entre os opostos? Psicologia USP, 2007, 18(1), 57-82.
PEREIRA, Lucas; BIASUS, Felipe.
Transtorno de personalidade antissocial: um estudo do estado da arte.

Compartilhe este conteúdo:

Bird Box: o apocalipse e os sentidos além da visão

Compartilhe este conteúdo:

Muito mais do que apenas uma história de suspense, Birdbox chama a atenção por sua carga dramática, além de fugir de narrativas usuais ao nos apresentar uma história em que o perigo é desconhecido tanto aos personagens como ao próprio espectador

Lançado no final do mês de dezembro, o filme “Bird box”, baseado no romance homônimo de Josh Malerman, sob a direção de Susanne Brier e estrelado por Sandra Bullock, nos apresenta uma história permeada por muito suspense e drama. Seguindo boa parte da narrativa do romance, Bird box constrói, logo no começo do filme, uma atmosfera de tensão que é sustentada até o momento do clímax.

As vivências da personagem principal ao longo das duas horas de filme são intensas e caóticas, e acompanhamos sua evolução ao longo de toda a história, perpassando sua vida antes dos eventos retratados no filme, suas vivências durante e após esses eventos e, como um dos focos principais da história, sua jornada durante a travessia a barco no rio.

Muito mais do que apenas uma história de suspense, Bird box chama a atenção por sua carga dramática, além de fugir de narrativas usuais ao nos apresentar uma história em que o perigo é desconhecido tanto aos personagens como ao próprio espectador, que possui a liberdade de formular teorias a respeito dos eventos do filme. Conservando a fidelidade à história de Josh Malerman, mas adicionando novos elementos que agregam ainda mais suspense à narrativa, o filme acerta em diversos pontos e nos permite também tecer algumas reflexões, que serão discutidas ao longo do texto.

Fonte: https://bit.ly/2F4mqgA

Resumo do Filme

*Os parágrafos a seguir contém spoiler, se você ainda não assistiu ao filme pode seguir para o próximo tópico.

A história gira em torno de uma catástrofe que, progressivamente, acomete o mundo inteiro: uma força ou entidade desconhecida que, quando entra em contato com os seres humanos através da visão, os leva à loucura e consequentemente ao suicídio. A personagem principal, Malorie, ainda no início do filme, se vê no meio de uma situação caótica e extremamente perigosa após sair de uma consulta com sua irmã, para tratar de sua gravidez.

As ruas estão tomadas pela loucura e o desespero, carros capotam, colidem uns nos outros, e pessoas cometem suicídio de maneira desenfreada. Em um dado momento, sua irmã, que estava dirigindo, enxerga alguma coisa antes de lançar o carro com força no asfalto e capotar. As duas sobrevivem ao acidente, mas a irmã de Malorie se atira em frente a um caminhão em movimento. Desnorteada, Malorie vaga pelas ruas e segue uma multidão de sobreviventes até chegar a uma casa cheia de pessoas refugiadas. Os próximos dias de sua vida passam a ser totalmente condicionados a sobreviver, utilizando vendas para proteger a visão, fechando todas as portas e janelas, e nunca saindo de casa, a não ser para buscar suprimentos.

Fonte: https://bit.ly/2H2gx5w

Com o passar dos dias, mais pessoas chegam até a casa, entre elas, Olympia, outra mulher grávida, e, mais tarde, Gary, um homem que diz ter sido vítima de pessoas que andam pelas ruas sem vendas e não são afetadas. Malorie estabelece uma relação de afeto principalmente com Tom, que assume a postura de liderança do grupo, e com Olympia, dividindo com ela os momentos de gravidez. Um dos momentos mais importantes do filme se dá quando, numa visita ao mercado para buscar suprimentos, Malorie e os outros sobreviventes encontram uma caixa de pássaros que fazem barulho quando sentem o perigo por perto. Malorie leva a caixa para o seu novo abrigo.

Um após outro, ao longo do filme, seus amigos são acometidos pelo mal das ruas, uns tentando descobrir a origem da situação, outros durante a busca de suprimentos, e, a maioria deles por causa de Gary, que revela ser uma das pessoas que não se afetam com a loucura, provavelmente por já serem loucos. Enquanto Olympia e Malorie entram em trabalho de parto, Gary força os moradores a encararem o mundo de fora, abrindo as janelas e desprotegendo seus olhos. Todos acabam morrendo, com exceção de Tom, que consegue deter Gary, matando-o. A filha de Olympia passa a ficar sob os cuidados de Malorie, que a assume também como filha.

Anos depois, Tom e Malorie desenvolvem uma relação romântica e passam a traçar um plano para chegar até um abrigo onde supostamente haveria mais suprimentos e melhores condições de vida, conforme informado através de uma transmissão radiofônica. Malorie treina as crianças para identificar sons e andar vendados. Após algumas pessoas invadirem o lugar onde Tom e Malorie haviam buscado suprimentos, ele pede que ela fuja com as crianças e enfrenta os invasores, conseguindo deter todos antes de ser acometido pela loucura e cometer suicídio.

As cenas do rio, que ganham foco ao longo do filme, mostram Malorie e as crianças fugindo de barco para chegar até ao abrigo, levando também a caixa de pássaros. Os três enfrentam muitos perigos, incluindo o ataque de uma das pessoas que andam sem vendas. Após dias de uma viagem exaustiva, os três chegam à terra firme. Em um dado momento, Malorie se separa de seus filhos. Vários sussurros ao redor da floresta orientam as crianças a tirarem suas vendas, muitas vezes imitando a voz de Malorie. Numa cena emocionante, Malorie consegue se reunir com as crianças antes que estas fossem enganadas pelos sussurros. Os três são perseguidos pela força desconhecida, até que conseguem chegar ao abrigo.

Fonte: https://bit.ly/2AtEEUR

O final do filme nos presenteia com cenas carregadas emocionalmente. Descobrimos que o abrigo é, na verdade, uma escola para cegos. Ryan, o homem responsável pelo lugar, assim como outros sobreviventes, é cego. A cena final, a cereja do bolo do filme, mostra Malorie libertando os pássaros da caixa e nomeando seus filhos pela primeira vez, como uma homenagem a seus falecidos companheiros: Olympia e Tom.

Os sentidos além da visão

Um dos temas mais interessantes tratados em “Birdbox” é, sem dúvidas, a utilização dos sentidos além da visão, que é, na maior parte do tempo, nossa fonte principal de informações do ambiente. Malorie e os sobreviventes precisam confiar em seus outros sentidos, principalmente o tato e a audição, para se deslocarem com segurança fora do abrigo. A constante ameaça de um perigo desconhecido para todos é um dos maiores fardos que os personagens carregam na história, com o acréscimo de não poderem enxergar o mundo e suas formas como haviam feito durante toda a vida, a não ser dentro da segurança de seus lares e abrigos.

Trazendo para a realidade, é compreensível a dificuldade em se adaptar com a ausência da visão. Para quem conhece o mundo com os olhos, a ideia de não poder enxergar pode ser horripilante. Expostos a essas condições, os filhos de Malorie, anos após os eventos, se submetem a um exaustivo treinamento imposto pela mãe com o objetivo de se adaptarem ao ambiente utilizando os outros sentidos. Com um faro apurado, uma audição funcional e detalhista e uma capacidade de reconhecer objetos e coisas com o toque, as crianças de Malorie passam a conhecer o mundo como se, de fato, a visão não fosse uma opção.

Privados de sair de casa, suas vidas por quatro anos eram limitadas ao ambiente do abrigo, e o que havia fora desse espaço, todas as formas, cores e aspectos do mundo, eram elementos desconhecidos a seus repertórios. O contato com o ambiente externo, durante a jornada pelo rio, foi o desafio final da família, onde suas habilidades com os outros sentidos foram colocadas à prova uma última vez.

Fonte: https://bit.ly/2VoJ8VA

O maior perigo de todos, silencioso e permeado por mistério, não seria uma ameaça desde que a visão dos sobreviventes estivesse protegida. Entretanto, atravessar um rio em que algumas partes há correnteza, no meio de uma floresta, expostos não só a predadores como também às pessoas que andam desvendadas, é uma jornada extremamente perigosa por si só.

Confiando em seus sentidos, Malorie e as crianças conseguem enfrentar cada um dos desafios que surgem à medida que avançam em direção ao destino final. Uma das cenas que mais demonstram o laço afetivo que une os três, muito além da relação entre mãe e filhos, mas contemplando um vínculo de sobrevivência e interdependência, retrata Malorie chamando por seus filhos, perdidos na floresta e prestes a serem enganados por vozes que enganam seus sentidos. Usando nada além de sua voz para guiar os filhos, Malorie consegue trazê-los para seu lado novamente, demonstrando a minuciosidade da audição das crianças, que conseguem distinguir a verdadeira voz da mãe das vozes da floresta.

A sobrevivência de Malorie e dos outros personagens do filme depende da utilização dos outros sentidos para suprir a falta da visão, e essa condição que os mantém vendados é um dos pontos altos da trama. O modo com que as crianças aprendem a viver sob condições adversas para garantir a própria sobrevivência é, sem dúvidas, tocante. Traçando paralelos com a realidade, é possível estabelecer comparações com pessoas cegas, tanto as que nascem sem a visão como as que perdem esse sentido durante a vida. Em ambos os casos, faz-se necessária a aprendizagem de novos repertórios comportamentais de modo a melhorar a adaptação ao ambiente, assim como representado na trama.

Fonte: https://bit.ly/2BX61Xq

As Crianças do Apocalipse

Outro tópico presente no filme que nos leva a refletir, é o modo como as crianças da história conhecem o mundo e se desenvolvem nele. Privadas de uma infância normal e saudável, apenas condicionados a sobreviver, os filhos de Malorie nunca tiveram a oportunidade de ver e explorar o mundo, brincar com outras crianças e conhecer o que havia além do ambiente do abrigo. Os poucos momentos de descontração que viveram, ainda sob um clima de tensão, foram os partilhados com Tom, que, mesmo em condições caóticas, tentava trazer às crianças um resquício de esperança e um resgate de uma possível infância saudável, contando histórias sobre o mundo antes da situação apocalíptica em que eles se encontravam.

O modo como Malorie tratava os filhos, no entanto, quebrava os momentos de doçura proporcionados por Tom, trazendo o gosto amargo da luta pela sobrevivência, algo que se tornou essencial, indispensável e prioritário na vida de qualquer um após os eventos que devastaram a humanidade na história do filme, incluindo as crianças.

A maneira como Malorie decidiu criar os filhos, apesar de não reservar muito espaço para a afetividade, demonstra sua preocupação maior com o futuro destas. Sua postura ríspida, autoritária e exigente retira delas o que há de mais instintivo no ser humano: a autopreservação e o desejo de sobreviver. Podem ser tecidas críticas acerca desse modo de lidar com os filhos, que, apesar de sobreviventes de um apocalipse, continuam sendo crianças acima de tudo, mas é inegável que Malorie, do seu próprio modo, priorizou a sobrevivência dos filhos, demonstrando assim sua preocupação e amor com eles, o que se torna ainda mais claro durante a cena em que os três se reencontram na floresta, abraçando-se com afetividade.

O fim da luta pela sobrevivência se dá quando Malorie e os dois chegam ao destino final, a escola para cegos. É o primeiro momento em que as crianças podem tirar suas vendas sem a preocupação de sofrerem com os horrores do mundo tomado pelas criaturas. Assim como os pássaros são soltos da caixa, as crianças também tornam-se livres, nesse momento, para serem crianças. É o ponto da trama onde percebemos que Malorie, muito além do que poderia desejar ou fazer para criar seus filhos com afeto, precisou ser rígida e menos amável com os dois para que pudesse viver uma vida construída com relações afetuosas posteriormente, quando não houvesse uma questão maior em jogo. Medidas drásticas e urgentes, mas necessárias dentro do contexto em que as crianças estiveram expostas durante todos os anos.

Fonte: https://bit.ly/2LTcyXG

Crítica

O filme, apesar de apresentar novos elementos à trama, consegue se manter fiel à história do livro. Inicialmente a duração de duas horas pode assustar, mas o enredo flui de maneira coesa, de modo que elas não parecem tão longas quando o filme chega ao fim. Um dos pontos altos é, sem dúvidas, a cena apocalíptica do começo do filme, onde Malorie perde a sua irmã.

Nesse momento, somos presenteados com uma grande dose de suspense e ação, o que atiça nossa curiosidade e eleva o interesse pela história. Os próximos minutos, nas cenas do abrigo, podem parecer mais lentos, pois a ação dá lugar a uma atmosfera de mistério que deverá ser explorada ao longo da história, mas são momentos essenciais para a trama, pois Malorie conhece o lar onde deverá morar pelos próximos quatro anos e também as pessoas que dividirão a casa com ela.

Para quem nunca leu o livro, as cenas da travessia do rio podem parecer, a princípio, deslocadas e confusas, pois o fato delas serem intercaladas com as cenas do passado podem deixar o espectador confuso quanto ao momento em que elas se passam, mas não é um grande problema para o desenrolar da trama, visto que fica nítido ao longo do filme que as cenas do rio se passam após os eventos do abrigo. Uma grande sacada do filme e também um elemento que não estava presente no livro, é o momento em que Malorie e os filhos descem do barco e adentram a floresta. São cenas de tensão onde o destino dos personagens está por um fio. A resolução do problema, que se dá quando os três chegam ao destino final, encerra a história com maestria e emoção, exatamente como no livro.

Um dos tópicos que poderiam ser melhor explorados no filme, que estavam mais presentes na história do livro, é a culpa que Malorie sentia ao tratar os filhos da maneira que tratava. Entretanto, esse sentimento fica nítido em alguns momentos, como no final do filme, quando a personagem dá nome aos filhos pela primeira vez.

O sucesso de Bird Box se deve, entre outros fatores, ao clima de suspense e mistério que permeia a história, que prende tanto quem nunca leu o livro e/ou não conhece a história como os que já leram. Apesar de dividir opiniões, o filme gera curiosidade, o que, sem dúvidas, levou as massas a consumi-lo. A liberdade de criar teorias e explicações sobre os eventos do filme também divide as opiniões de quem assiste, além de acentuar o interesse geral pela história. É inegável dizer que Birdbox encerra 2018 deixando um legado, positivo para uns e negativo para outros, mas, sem dúvidas, um marco de uma história carregada de suspense e mistério, além de trazer uma proposta pouco vista até então, que deverá influenciar futuramente outras histórias.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

BIRD BOX

Título original: Bird Box
Direção:
Susanne Bier
 Elenco:  Sandra Bullock, Vivien Lyra Blair, Julian Edwards, Trevante Rhodes;
País: Estados Unidos
Ano: 2018
Gênero: 
Drama, Suspense

Compartilhe este conteúdo:

Preciosa: reflexões sobre o abuso sexual e a educação como instrumento de ressignificação do sofrimento

Compartilhe este conteúdo:

Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro

Lançado em fevereiro de 2010, sob a direção de Lee Daniels, o filme Precious, “Preciosa”, em português, aborda a vida de Claireece “Preciosa” Jones, uma jovem de 16 anos inserida num contexto familiar extremamente abusivo desde a sua infância. Violentada pelo próprio pai e abusada fisicamente e psicologicamente pela mãe, Preciosa cresce permeada por traumas e questões psicológicas oriundas das situações vivenciadas durante toda a sua vida, incluindo o nascimento de duas crianças, fruto de uma série de abusos sexuais.

Carregado de um conteúdo extremamente dramático e pesado emocionalmente, o filme trata explícita e implicitamente sobre diversos temas, como gordofobia, violência intrafamiliar e estupro, além de questões referentes à psiquê do sujeito, como problemas de autoestima e as consequências psicológicas e comportamentais de abusos de diversas naturezas. Durante o filme, somos convidados a mergulhar a fundo na história da personagem e em sua profundidade psicológica, e, em determinado ponto da trama, somos apresentados a uma nova dinâmica na vida da jovem a partir da educação, aspecto que será discutido ao longo dessa análise juntamente dos outros mencionados anteriormente.

Fonte: https://bit.ly/2DWoLHs

Resumo do Filme

Preciosa mora no bairro do Harlem, em Nova York com sua mãe e sua história se passa no ano de 1987. As primeiras cenas do filme mostram a jovem em seu ambiente escolar, onde não interage com os colegas nem com os professores, além de sofrer provocações por conta de seu peso e aparência. Após uma situação na sala de aula, ela recebe um chamado da diretora, que demonstra preocupação com a jovem por conta da gravidez, por não ser a sua primeira, algo preocupante devido principalmente a sua idade.

Preciosa acaba sendo retirada do ambiente escolar por decisão da diretora, que a visita posteriormente em casa apresentando a oportunidade de estudo em uma escola alternativa, chamada “Cada Um Ensina Um”. Nessa cena, conhecemos a dinâmica familiar problemática de Preciosa, que é humilhada pela mãe pelas coisas mais triviais possíveis. Flashbacks mostram as memórias da personagem do estupro sofrido por ela. É o primeiro contato que temos com o fato de que as duas gestações da jovem foram oriundas dos abusos de seu próprio pai.

A visita da diretora desperta na jovem, que já era interessada nos estudos, principalmente em matemática, a vontade de se matricular na escola, mas sua mãe, irritada com a visita, a ofende de diversas maneiras, até mesmo colocando em pauta o abuso sexual sofrido pela filha, culpando-a pelo acontecido e alegando que ela havia “roubado seu marido”.

A desaprovação da mãe não impede Preciosa de buscar a escola sugerida pela diretora. Ela visita o local e faz a prova para se inscrever. Em outra cena, pela manhã, Claireece não encontra nada na geladeira. A fome e a indiferença da mãe a levam a roubar uma lanchonete, fugindo logo após para a escola em que havia se matriculado. No local, Preciosa é chamada pela professora para a sala e inicialmente relutante em participar da aula, a jovem acaba cedendo e conhece suas colegas, todas mulheres com histórias de vida diferentes. Chegando em casa, a jovem segue sendo humilhada pela mãe, que recusa a comida preparada por ela e obriga a própria filha a comer. Somos apresentados ao fato de que o peso de Claireece pode ter, inclusive, influência dos abusos da mãe.

Fonte: https://bit.ly/2T5Ijmg

Não bastando o contexto familiar desorganizado e problemático, a mãe de Preciosa, conforme mostrado em flashbacks, ensaia uma vida perfeita para receber a visita da assistência social, de modo a não perder o auxílio financeiro. O teatro organizado por ela é desmontado pela jovem, que, a pedido da mãe, vai à assistência social, mas é clara com a assistente quanto aos problemas em sua casa. Descobrimos também que a filha de Claireece nem mesmo mora em sua casa, sendo criada pela avó, que age passivamente frente aos comportamentos da filha, ou seja, mãe de Preciosa.

Várias cenas são exibidas ao longo do filme retratando a jovem imersa em introspecções e sonhos onde ela se vê feliz com o próprio corpo e aparência. Em uma delas, a imagem que ela vê refletida no espelho é completamente diferente da sua, mostrando uma mulher totalmente encaixada nos padrões de beleza. Entretanto, a baixa autoestima, o histórico de abusos e agressões e a dinâmica familiar desestruturada tornam-se cargas mais leves à medida que a jovem passa a frequentar mais as aulas em sua nova escola.

A empatia da professora com Claireece abre portas para a aprendizagem, e a jovem começa não só a ler melhor como também a produzir textos. No auge de sua gravidez, ela entra em trabalho de parto durante uma aula e é levada ao hospital. A assistência de sua professora e de suas colegas durante todo o processo mostra a força dos laços construídos durante as aulas. Apaixonada por sua criança, mas ainda sem uma estrutura familiar adequada para criá-la, Preciosa se vê em mais um impasse em sua vida. Ela retorna, um tempo depois, a sua casa, levando consigo seu filho recém nascido. A reação de sua mãe é extrema, mais do que nunca. Ela chega ao ponto de jogar a criança no chão e agredir fisicamente a jovem, que foge com o filho nas mãos. Num último ato de loucura, a mulher joga uma televisão nos dois, que conseguem escapar do ataque. Então Blu Rain, sua professora, num dos gestos mais humanos exibidos durante o filme, entra em contato com vários números e encontra um lar, ao menos provisório, para a jovem, na casa de um casal de mulheres, que a acolhem junto da criança.

A dedicação de Preciosa na escola, cada vez mais, começa a lhe trazer frutos. Ela chega a ser premiada por sua história e evolução por meio da educação. Entretanto, pendências de seu passado continuam a permear seu presente, com o agravante de uma notícia certamente perturbadora: a de que o pai da jovem, seu estuprador, havia falecido com o vírus da AIDS. Um exame acaba por revelar que Claireece também é portadora do vírus. Ao desabafar sobre isso em sala de aula, sua professora oferece a ela seu apoio e a jovem rebate dizendo que o amor em sua vida só lhe trouxe coisas ruins. A professora então, em uma das cenas mais belas e simbólicas do filme, desconstrói o conceito de amor trazido por Preciosa, difereciando o sentimento dos abusos sofridos por ela durante toda a sua vida.

Fonte: https://bit.ly/2IrDTSv

Nas cenas finais, numa das últimas visitas à assistência social, Claireece recebe a visita de sua mãe, que confessa na frente da filha e da assistente que era ciente dos abusos sexuais que ocorriam sob o seu teto, além de dizer que esses abusos já aconteciam quando Preciosa ainda era uma criança de três anos. Seu discurso, totalmente carregado de mágoa e rancor, culpabiliza a jovem pelos abusos, como se Claireece fosse a responsável pela separação dos pais. A chocante cena encontra seu desfecho quando a jovem decide fechar a porta do seu passado, levando consigo suas duas crianças e uma série de vivências e sofrimentos resignificados.

Análise

Apesar de se passar nos Estados Unidos, a história de Claireece, uma jovem negra e pobre, representa uma parte da população brasileira ainda à mercê de situações de abusos sexual, da mesma faixa etária da personagem. O contexto familiar de Preciosa não é uma realidade distante: pode estar mais perto do que imaginamos. Uma pesquisa realizada por Dos Santos (2014) apontou que o perfil de crianças que sofrem abusos sexuais é predominantemente feminino. Dados da pesquisa também expressam que, na maioria das vezes, a violência é intrafamiliar e tendo o pai da vítima como o agressor, o que vai de encontro com a história. Considerando o contexto histórico do filme, pouco se falava sobre educação sexual nas escolas. Atualmente, muito se discute em relação a isso, principalmente no uso como ferramenta de trabalho na escola, visto que, no âmbito escolar, há a possibilidade do assunto ser abordado de maneira profissional e lúdica.

Conforme Spaziani e Maia (2015), o processo de educação sexual parte do pressuposto que a criança é um sujeito de direitos, principalmente no que tange à informação. Educar crianças e adolescentes nesse viés seria prevenir doenças, possíveis gravidezes precoces e abusos sexuais. A importância desse processo nas escolas é indiscutível. Trazendo para o contexto do filme, se o momento histórico e o ambiente escolar de Preciosa fossem propícios para a instauração de um debate acerca da educação sexual, sua situação de vulnerabilidade poderia ser investigada e repassada o quanto antes aos dispositivos de assistência social e psicológica. Esse tipo de discussão também é necessária no âmbito familiar, mas não deve ser de exclusividade deste, visto que, infelizmente, ainda em muitas famílias, a desinformação sobre o assunto é enorme, além dos inúmeros casos de abusos dentro do próprio contexto familiar, como no de Claireece.

Entendendo o ser humano como um organismo moldado por suas interações, é fácil compreender que abusos sexuais trazem inúmeras consequências para o desenvolvimento, principalmente em crianças. Tais consequências abrangem aspectos físicos, sociais, psicológicos e sexuais, e podem variar de intensidade de acordo com determinados fatores (FLORENTINO, 2015). O vínculo entre a vítima e o abusador, por exemplo, pode ser um agravante dessas consequências. Outro fator é a diferença de idade entre vítima e agressor. Deve-se considerar outros aspectos, como se houve uso de violência física além da violação sexual durante os abusos. De toda forma, as consequências são inevitáveis – apenas mudam de vítima para vítima e de caso para caso.

Fonte: https://bit.ly/2SMiPuS

No filme, Preciosa é abusada pelo próprio pai. De acordo com Florentino (2015), as consequências psicológicas do abuso intrafamiliar também são diversas e até mais duradouras, isso porque há uma alteração das imagens parentais. Não só a imagem do pai é modificada como também a da mãe. No caso de Claireece, sua relação com a mãe tornou-se ainda mais confusa e problemática, visto que ela era conivente e omissa com a violência e ainda assumia uma postura de culpabilizar a jovem. Para a criança ou adolescente vítima de abuso sexual intrafamiliar, o núcleo familiar deixa de ter uma conotação de segurança e afeto para ser um espaço de relações conflituosas, dor e sentimentos confusos, o que acarreta sérias consequências no desenvolvimento psicológico e social. Entre os prejuízos observados em crianças e jovens vítimas de abuso sexual, como a própria Claireece, está o retraimento social e a dificuldade em estabelecer vínculos e em confiar nas pessoas. (FLORENTINO, 2015). Isso é observado na personagem ao longo do filme, que não possuía relações sociais saudáveis e não se sentia confortável em compartilhar seus pensamentos e sua individualidade com as demais pessoas, como exemplificado na cena em que ela deveria se apresentar para as colegas de sua nova escola.

Gottardi (2016) também ressalta algumas consequências no âmbito psicológico. Entre elas, a baixa autoestima, característica também percebida na personagem. A relação da jovem com sua imagem corporal é de desprezo e insatisfação, não só como consequência dos abusos sexuais como também resultado das situações de violência psicológica sofridas por ela durante sua história de vida. Sua mãe, assim como várias pessoas ao seu redor, contribuíram para o desgaste emocional de Claireece, ao ponto de que a adolescente chegou a ver sua imagem alterada no espelho, em uma distorção que a encaixava nos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade.

No filme, a jovem Claireece, inserida num novo contexto escolar, desenvolveu novas habilidades, percepções e ressignificou várias vivências. Conforme Gonçalves (2014), o papel da escola no que se refere à educação de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual é imprescindível. O ambiente escolar é tido como uma extensão da família, e, quando a criança está inserida em um ambiente familiar problemático, é na escola que ela deve ter uma referência de apoio e afeto, muito além da relação professor-aluno de ensinar e aprender. A postura do profissional de educação nesse contexto é essencial para que os impactos dos abusos sejam minimizados, visto que as consequências dessa violência se estendem no contexto escolar, às vezes representadas por dificuldades de aprendizagem e concentração, outras vezes por problemas de socialização e conduta (GONÇALVES, 2014). A professora de Preciosa, Blu Rain, comprometeu-se com a jovem não só em prol de sua educação, mas pensando em trabalhar suas habilidades pessoais de modo a reduzir os danos do abuso. É visível o desenvolvimento da personagem durante o filme, que consegue formar vínculos e ressignificar várias situações de sua vida, inclusive seguir com a criação de seus dois filhos, frutos do abuso, e conviver com o HIV, numa época em que pouco se sabia sobre a doença.

Fonte: https://bit.ly/2Vbg1UW

Muito além de apenas um veículo de entretenimento, o cinema pode ser uma ferramenta despertadora de insights e reflexões. Esse caso se aplica a Preciosa – Uma História de Esperança, um filme carregado de lições e discussões sobre violência, educação e família. Trazendo para o contexto brasileiro, muito se precisa discutir ainda sobre esses temas, de modo que a vida de jovens e crianças vítimas de abuso não seja eternamente definida e marcada pela violência, mas pela esperança de um futuro transformado pela educação.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA

Título Original: Precious
Direção:
Lee Daniels
Elenco:
Gabourey Sidibe, Mariah Carey, Mo’nique, Paula Patton;
País:
EUA
Ano:
2010
Gênero:
Drama

REFERÊNCIAS:

DOS SANTOS, Creusa Teles. Abuso sexual com criança: uma demanda para o serviço social. 2014. 201f. Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2014.

FLORENTINO, Bruno Ricardo Bérgamo. As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Revista de Psicologia. v. 27, n. 2, p. 139-144, maio-ago. 2015. São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil.

GONÇALVES, Cássia de Oliveira. Implicações do abuso sexual no processo educacional: um olhar para a criança. 2014. 92f. Monografia – Universidade de Brasília, Brasília, Brasil, 2014.

GOTTARDI, Thaíse. Violência sexual infanto-juvenil: causas e consequências. 2016. 71f. Monografia – Centro Universitário UNIVATES, Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil, 2016.

SPAZIANI, Raquel Baptista; MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi. Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professores. Rev. Psicopedagogia, Bauru – SP. pg 61-71, 2015.

Compartilhe este conteúdo:

‘O Silêncio dos Inocentes’ e as relações humanas sob uma perspectiva fenomenológica-existencial

Compartilhe este conteúdo:

O filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta

Considerado um clássico do terror psicológico, ‘O Silêncio dos Inocentes’, lançado no início dos anos 90, apresenta uma narrativa extremamente cativante, capaz de prender o espectador com maestria durante duas horas de filme. A história, permeada de suspense, se desenrola e ganha intensidade a cada minuto até atingir seu clímax. Vencedor de cinco prêmios Oscar em 1992, a obra é, sem dúvidas, um dos grandes marcos e uma das maiores contribuições do diretor Jonathan Demme para o cinema.

Muito além de apenas uma narrativa de suspense e terror, “O Silêncio dos Inocentes” convida o espectador a refletir sobre a natureza humana e suas infinitas peculiaridades, apresentando personagens com perfis psicológicos complexos e bem trabalhados. Acompanhamos a dura trajetória de Clarice Starling, a tímida, mas forte e determinada detetive do FBI, durante o desenrolar do caso Buffalo Bill. Seus encontros com o psiquiatra e temido assassino em série Hannibal Lecter não só a tocam profundamente como contribuem para o próprio processo de investigação criminal.

Fonte: https://bit.ly/2XYcDij

Esses encontros desempenham um papel importante na trama e formam uma peça chave para entender como se dá na prática a relação fenomenológica entre dois sujeitos totalmente inversos em valores e vivências. O encontro entre a doçura e determinação da jovem Clarice e a postura intimidadora do sagaz e analítico Hannibal Lecter é o eixo narrativo que deverá pautar a discussão ao longo do texto, de modo a tecer considerações a respeito da fenomenologia existencial como base filosófica para compreender as relações humanas.

Resumo do Filme

Clarice Starling é uma estagiária do FBI que é designada para desempenhar um grande papel nas investigações do caso Buffalo Bill, um serial killer de mulheres cujas motivações seguem desconhecidas pelas autoridades. Como parte da investigação, ela é também a estagiária escolhida por seu superior para exercer uma tarefa um tanto quanto assustadora: visitar o terrível assassino Hannibal Lecter em sua cela, de modo a obter informações a respeito do caso. Na sua primeira visita, Clarice é intimidada e confrontada pelo psiquiatra, que chega a provocá-la com comentários irônicos e ofensivos, mas a jovem detetive consegue manter sua postura e conduzir a investigação sem demonstrar estar se sentindo atacada.

O diálogo entre os dois segue permeado por uma atmosfera de tensão, e Hannibal cada vez mais demonstra interesse pelas particularidades da personalidade da jovem detetive. A expectativa quanto ao interesse de Lecter em ajudar nas investigações era baixa, mas ele decide colaborar a seu próprio modo: utilizando-se de enigmas, anagramas, pistas e jogos mentais, envolvendo Clarice em sua teia de manipulação. Dessa forma, ele rejeita o questionário investigativo proposto pela detetive e faz sua primeira jogada, dando a ela a primeira pista sobre o caso, escondida atrás de um anagrama.

Seguindo as orientações e pistas de Hannibal, Clarice chega a uma garagem e encontra o cadáver de um homem, tendo o primeiro êxito na investigação. Sua segunda visita à cela do psiquiatra é ainda mais reveladora, e o vínculo entre os dois começa a se desenvolver com mais propriedade. A vítima encontrada na garagem era conhecida por Hannibal, mas não havia sido assassinada por ele, mas sim pelo próprio Buffalo Bill, que já havia tido um laço amoroso com o homem. Enquanto isso, o serial killer segue atrás de vítimas. Ele consegue enganar e sequestrar a filha de uma importante senadora, o que moverá ainda mais as autoridades posteriormente na trama.

Fonte: https://bit.ly/2Cn02vM

Trazendo mais pistas para o caso, um dos corpos das cinco vítimas do assassino é encontrado. Durante a necrópsia, é identificado na boca da mulher um objeto um tanto quanto incomum: uma pupa de mariposa. Esse item torna-se um dos padrões observados em cada vítima, além do fato de serem mulheres de corpos grandes e de terem tido suas peles retiradas.

Quando o sequestro da filha da senadora torna-se de conhecimento público e surgem os primeiros indícios de que ela teria sido mais uma vítima de Buffalo Bill, as investigações ganham mais intensidade. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, Hannibal concorda em ajudar Clarice com mais pistas, sob uma condição: que ela exponha o mais íntimo de sua alma a ele. Inicialmente hesitante, a jovem detetive acaba por revelar uma importante parte da sua história a Lecter, contando sobre sua difícil infância. Órfã de pai aos dez anos, Clarice foi morar na fazenda de seu tio, mas uma situação fez com que ela fosse encaminhada para um orfanato: uma criação de ovelhas estava sendo mantida em cárcere para que tivessem suas peles posteriormente retiradas. Os gritos dos animais levaram a jovem Starling a tentar resgatar uma das ovelhas, mas, infelizmente, ela foi encontrada com o animal após fugir dos limites da fazenda. Hannibal, fascinado com a história, faz um paralelo entre a situação e o comportamento atual da detetive, que se vê obrigada a ajudar as jovens sequestradas pelo serial killer. O encantamento do psiquiatra com Clarice torna-se ainda mais evidente, e o vínculo entre os dois ganha mais força.

Em outra visita a cela de Hannibal, a jovem propõe outro acordo a ele: caso seus esforços para colaborar com a investigação e o resgate da filha da senadora sejam frutíferos, ele será presenteado com regalias especiais, como poder passar momentos numa ilha sob escolta policial. É organizado um encontro entre ele e a senadora, e mais informações são passadas. Ainda não convencida das intenções do psiquiatra, Clarice o visita uma última vez e tenta retirar dele a verdade sobre a identidade do serial killer, mas seu tempo com ele acaba e ela é retirada à força do local. Numa cena envolvida em tensão, dois policiais visitam a cela do psiquiatra para trazer comida, e ele consegue traçar uma estratégia de fuga, matando ambos e retirando a pele do rosto de um deles, para logo após trocar de roupa com ele, de modo a enganar as autoridades e a ambulância. É encontrado no teto do elevador um corpo com as roupas de Hannibal, mas é revelado que, na verdade, se tratava do corpo de um dos policiais. Dessa forma, o possível sobrevivente levado na ambulância era o próprio Hannibal, disfarçado com roupas de policial e com o rosto retirado da vítima. Com essa estratégia, Dr. Lecter consegue mais uma vez enganar as autoridades e fugir.

Fonte: https://bit.ly/2Favuz7

Enquanto isso, a jovem filha da senadora é atormentada por seu sequestrador, que a mantém presa dentro de um buraco. O serial killer, excessivamente maquiado e vestido com roupas femininas, faz uma grande pressão psicológica na vítima. Nas cenas que mostram seu esconderijo, entramos em contato com o fato de que Buffalo Bill é, na verdade, um transexual, ou que ao menos se enxerga dessa forma, e que o sequestro e assassinato das mulheres sempre teve como propósito usar suas peles para finalidades estéticas, de modo que ele conseguisse se sentir na “pele” de uma mulher. As pupas de mariposa, cuidadosamente alojadas na boca das vítimas, simbolizavam a transformação desejada pelo assassino e concretizada com a retirada das peles das vítimas.

As pistas dadas por Hannibal levam as autoridades a um caminho, mas Clarice, seguindo a sua intuição, decide continuar a investigação por si mesma. Ela visita a casa da primeira vítima do serial killer e descobre mais informações relevantes para o caso, inclusive o fato dele estar usando as peles para fazer suas próprias roupas. Reunindo pistas e informações, a detetive chega a casa do assassino, enquanto o FBI segue as orientações dadas por Hannibal e chega a outra casa. Clarice, sem ter ideia disso, conversa com o próprio Buffalo Bill buscando por mais informações, e só tem a certeza de que o homem em sua frente é o assassino que ela procura quando enxerga ao fundo uma mariposa exótica voando – a mesma espécie cujas pupas eram colocadas na garganta das vítimas. Inicia-se então o que pode ser classificado como o ápice do filme: a detetive persegue o homem dentro de sua própria casa e encontra a filha da senadora dentro do buraco.

Em um dado momento, as luzes são desligadas e somos levados a crer que o serial killer conseguirá matar Clarice, mas a jovem, com sorte, consegue mirar e atirar nele, encerrando de vez o caso e, finalmente, “silenciando as ovelhas”.  Clarice consegue muito prestígio e reconhecimento pelo FBI e pela sociedade, e, no final do filme, Hannibal lhe faz uma ligação, parabenizando-a pelo seu sucesso, deixando evidente sua admiração e carinho pela jovem detetive.

Fonte: https://bit.ly/2TC2nxv

Análise

‘O Silêncio dos Inocentes’ é, sem dúvidas, um prato cheio para o estudo da psicologia. Repleto de nuances que trabalham a complexidade da psique humana, o filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta, e questões para além do campo psicológico, como o machismo no ambiente de trabalho. Indo ainda mais além do que já foi citado, há presente no filme algo ainda mais delicado e complexo de se debruçar sobre: a relação entre Hannibal e Clarice.

O primeiro contato entre a detetive e o psiquiatra dá-se quando ainda há um grande distanciamento entre os dois, expresso não só pela cela que separa Hannibal da jovem, como também pela própria história, personalidade e universo de ambos. Os encontros, para Clarice, possuíam um único e claro objetivo: colher informações sobre o caso Buffalo Bill. Para Hannibal, a presença da detetive significava uma rotina já vivenciada por ele inúmeras vezes antes, repleta de interrogatórios, questionários e entrevistas. As percepções individuais de cada um dos polos envolvidos na relação, no caso, Hannibal e Clarice, refletem a história de vida de cada um, ou seja, seus modos de existir, o ser-no-mundo.

Para a fenomenologia existencial, o ser-no-mundo reflete a maneira de existir de cada ser humano, baseada em suas vivências e percepções (TEIXEIRA, 1997). As formas de existir estão atreladas a três tipos de relações: o homem com o meio que o cerca, o homem com o outro e o homem consigo mesmo. Trazendo para o contexto do filme, Clarice e Hannibal, com a soma de suas vivências individuais e suas vivências sociais com seus respectivos meios, se encontram na dimensão da relação eu-outro, construindo assim um vínculo inicial que se desenrolará ao longo da trama.

Conforme Teixeira (1997), o ser-no-mundo torna-se patológico quando as relações do indivíduo são infrutíferas no âmbito pessoal, ou seja, quando o ser é incapaz de adentrar seu mundo interno e estabelecer conexões saudáveis consigo mesmo. Partindo desse ponto, o indivíduo também seria incapaz de manter boas relações nas outras esferas (eu-outro e eu-meio). Essa dinâmica é observada em Hannibal, cujas atitudes e vivências no mundo foram conduzidas de modo a trazer sofrimento ao outro e satisfazer o próprio desejo.

Fonte: https://bit.ly/2HwMSjq

A incapacidade do indivíduo de tecer uma reflexão sobre as próprias atitudes ao relacionar-se consigo mesmo levaria à incapacidade desse mesmo indivíduo de se relacionar com o meio e com outras pessoas. Dessa forma, o primeiro encontro entre os dois personagens é permeado pelo fenômeno patológico de Hannibal, que se manifesta na relação através de comentários irônicos, sarcásticos e até mesmo ameaças contra a detetive. Essa dinâmica de relação pouco a pouco sofre alterações. De encontro a encontro, Clarice e Hannibal fortalecem o vínculo e passam a enxergar além dos rótulos de detetive e assassino para enxergarem a essência de cada um, o ser-no-mundo como ele é. Para isso, um elemento mostra-se indispensável.

De acordo com Silva (2013), o diálogo é a base para que a relação eu-outro seja construída e se desenvolva de maneira saudável. Sem a presença de uma relação dialógica, a dimensão eu-outro é ineficaz e não gera frutos. Como observado no filme, os diálogos entre Hannibal e Clarice, apesar de serem poucos e acontecerem em curtos períodos de tempo, servem como uma ponte entre o muro que os separa. A aproximação entre os dois personagens atinge o ápice quando o psiquiatra pede que a jovem conte sobre sua infância e seus traumas – dessa maneira, o rótulo “detetive” é substituído pela pessoa Clarice, e o foco da relação acontece no encontro entre duas pessoas, muito além do significado social da existência de ambos.

Feijoo e Mattar (2014) atentam para os preceitos filosóficos da fenomenologia de Sartre. Entre eles, as autoras citam um aspecto que norteia a visão fenomenológica como um todo: a importância de ver as coisas como elas são, para além da objetividade e subjetividade. O objeto, para a fenomenologia, deve ser apreendido pelo ser da maneira mais pura e reduzida possível, ou seja, sem um viés objetivo e prático e muito menos emocional, subjetivo ou individual. Enxergar o mundo dessa forma significa, em outras palavras, enxergá-lo como ele acontece – sem ideias pré-concebidas, sem o peso de uma análise. Em O Silêncio dos Inocentes, tanto Hannibal quanto Clarice sentem-se desafiados e até mesmo intimidados pela presença um do outro, e apreendem a realidade da relação entre eles de um modo carregado de análises, percepções e hipóteses.

A redução fenomenológica (epoché), ou seja, o ato de reduzir o fenômeno ao modo como ele acontece, puro e simplesmente, apresenta-se como um desafio durante a trama. O distanciamento evidente entre Hannibal e Clarice dificulta que a relação seja construída desprovida de estigmatizações e hipóteses. Entretanto, uma aproximação acontece entre os dois, ainda que tímida e com restrições, e nela o vínculo é formado. A curiosidade de Hannibal em conhecer a individualidade da jovem, mesmo servindo como uma forma de colher material para análise, o aproxima da essência de Clarice. Há, então, uma tentativa de chegar ao núcleo desse objeto (o outro), atravessando as inúmeras barreiras sociais entre os dois, a cela real e simbólica que os divide. É possível dizer que, após esse nível de percepção ter sido alcançado, Hannibal passa a enxergar Clarice como uma pessoa, humanizando-a. A relação do psiquiatra com o outro é baseada na desumanização.

Fonte: https://bit.ly/2u8Vl4m

Dessa forma, cria-se um distanciamento entre a sua pessoa e a pessoa da vítima, que é tratada por ele como um pedaço de carne, literalmente. Deve-se ao vínculo formado entre ele e Clarice e pela relação embasada no diálogo e na vivência real, sem interferência de elementos externos, o fato da jovem não se tornar um dos seus alvos no final do filme. A própria tem certeza de que não será perseguida pelo psiquiatra quando este consegue fugir.

Outro fenômeno relevante presente na trama, já mencionado anteriormente, é o modo como as vivências passadas de Clarice afetam seu aqui e agora. Barco (2012) conceitua o fenômeno da presentificação ou presentação como o ato de direcionar a consciência para o momento presente, agindo sobre o agora, ainda que os meios para chegar a esse estado sejam pela imaginação ou fantasia. Atrelada aos traumas de seu passado, é possível inferir, ainda que esse não seja o propósito de uma abordagem fenomenológica, que a detetive age no presente guiada por experiências de seu passado, como a morte do pai (por um assaltante) e seu insucesso em salvar as ovelhas que teriam as peles retiradas. Ambos os eventos podem estar diretamente relacionados com o contexto de sua vida adulta: sua atuação no FBI, guiada por um senso de justiça possivelmente despertado logo após a morte do pai e também dos animais, e sua atuação no caso Buffalo Bill, onde as vítimas tinham o mesmo propósito das ovelhas. A solução de seus conflitos do passado é presentificada e vivida na cena que conclui o caso, quando a detetive atira e mata o serial killer, fazendo justiça pelas vítimas e, em analogia, pelas ovelhas e seu pai.

Sem dúvidas, há uma complexidade de relações intra e interpessoais que são trabalhadas em O Silêncio dos Inocentes, e são inúmeras as possibilidades de interpretação dos personagens e eventos da trama. A aproximação de Hannibal e Clarice, inusitada pela diferença de valores e preceitos de cada um, convida o espectador a refletir.

O filme evidencia que, por mais diferentes que sejam os indivíduos, um encontro é possível – e a relação sempre terá como resultado um produto capaz de tocar a essência de cada sujeito que esteja em interação. Ser-no-mundo é individual e intrapessoal. Ser-com é um convite para o encontro, para o estabelecimento de relações interpessoais. E as duas maneiras de existir se completam para formar um produto que é dotado de possibilidades: o ser humano, com seus fenômenos e complexidades, capaz de transformar e de ser transformado.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: https://bit.ly/2TFfTR0

O SILÊNCIO DOS INOCENTES

Título original: The Silence of the Lambs
Direção: Jonathan Demme
Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins,  Ted Levine,  Scott Glenn;
País: EUA
Ano: 1991
Gênero: Suspense; Terror

REFERÊNCIAS:

BARCO, Aron Pilotto. A constituição do espaço na
fenomenologia de Husserl
.
109 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

FEIJOO, Ana Maria; MATTAR, Cristine Monteiro. A Fenomenologia como Método de Investigação nas Filosofias da Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa; Out-Dez 2014, Vol. 30, n. 4, pg. 441-447.

SILVA, Edna Maria. O ser na relação com o outro. Revista de Psicologia, Edição I. pg. 123-124, 2013.

TEIXEIRA, José A. Carvalho. Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV). pg 195-205. 1997.

Compartilhe este conteúdo: