Tomorrowland: utopia, empreendedorismo e crença na redenção tecnocientífica

“A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente” Soren Kierkegaard


Dirigido por Brad Bird, a ficção “Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível” (2015) conta a estória de Casey Newton (Britt Robertson), uma adolescente com enorme curiosidade pela ciência e que num fatídico dia encontra uma pequena peça que permite que se transporte automaticamente para uma realidade paralela, criada por Frank Walker (George Clooney), um ex-garoto prodígio que hoje está desiludido. No longa, eles embarcam, com a ajuda de uma robô, numa missão repleta de perigos para finalmente desvendar os segredos do enigmático local, “em algum lugar no tempo e no espaço conhecido como ‘Tomorrowland’”.

A produção de Walt Disney é uma homenagem ao fundador (homônimo) da bilionária franquia de entretenimento dos EUA, considerado um dos ícones do empreendedorismo e que, como tal, conseguiu manter um grande senso de propósito durante toda a sua vida, uma confiança inabalável no futuro, além de uma disposição para os processos criativos e, claro, uma enorme esperança na redenção da humanidade através do avanço tecnocientífico. Estes são “ingredientes”, inclusive, que já começavam a povoar o imaginário da América antes mesmo das duas grandes guerras mundiais, e que desembocou no que hoje se convencionou chamar de “via empreendedora”. O estímulo, manutenção e perpetuação (de tais estados de “compreensão” do mundo) são alguns dos desafios de líderes e profissionais de toda ordem, notadamente os de Recursos Humanos, como psicólogos, por exemplo.

A produção “perdeu” o time e, em certa medida, como percebeu o público, levou muito tempo (duas horas de filme) para contar pouca coisa. Além disso, o longa também pode causar estranheza de parte do expectador brasileiro, que, dentre outras coisas, associa a dinâmica empreendedora com o discurso religioso.

Numa referência a Weber, conforme lembram Mauricio C. Serafim e Simone Ghisi Feuerschütte, no artigo “Movido pelo transcendente: a religiosidade como estímulo ao ‘espírito empreendedor’”, este “desconforto” surge porque as estruturas religiosas se apropriam do discurso empreendedor (ou seria o contrário?), pela racionalidade instrumental, notadamente nas esferas da legitimação da busca de oportunidades, da perseverança, do desafio constante, do “agir com coragem, não ser acomodado e ter iniciativa” (SERAFIM; FEUERSCHÜTTE – 2014).]

Há no Brasil, no entanto, uma visão paradoxal em relação ao empreendedorismo (defendido por uns, através do liberalismo, e atacado por aqueles que defendem um estado intervencionista). O resultado é que apesar de o país de ser uma das nações com forte cultura empreendedora, ainda é um dos locais mais difíceis para ter/manter o próprio negócio, como constata o Ranking Global do Empreendedorismo, lançado no final de 2014, ao apontar que entre 130 países analisados, o gigante sul americano está na 100ª colocação, atrás de nações como Ruanda, República Dominicana e, pasmem, Irã, dentre outros.

Por tudo isso, pode-se entender o porquê, a priori, a linguagem simbólica (ou mesmo explícita) de “Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível” causa uma reação de antagonismo no público, compelido por estruturas comparativas conflitantes.

Passada esta primeira – e necessária – análise, parte-se para a forte mensagem utópica contida no filme. E por utopia não nos apeguemos à clássica definição que se refere ao “que não está em nenhum lugar (topos)”, ou no sentido de sociedade perfeita em todos os níveis, logo, inalcançável. A abordagem está mais para “a possibilidade de uma utopia concreta”, onde há, sim, “espaço para novas alternativas”, mas mantendo-se o “lastro no mundo”.

De acordo com o filósofo Rogério Baptistella, em referência a Ernest Bloch (1885-1977), “parece que a utopia é algo histórico e intrínseco ao ser humano. Logo, não pode ser algo infundado, irrefletido, mas encontra o seu fundamento no fato de o homem constituir-se em ser inacabado, aberto”. Negar esta dinâmica, portanto, seria uma negação da própria vida. Não por menos, em “Tomorrowland” parte dos projetos que um dia já foram utópicos (ou inalcançáveis, na visão comum), atualmente estão incorporados (naturalizados) no cotidiano.

Desta forma, “ter sonhos” é parte indispensável para uma sociedade que quer ser referência na geração de conhecimento de ponta. A América conhece bem este pré-requisito. O próprio presidente Barack Obama, em recente discurso para jovens empreendedores, reforçou o apoio do estado à via empreendedora. Fez isso, presume-se, porque representa um projeto de nação que reconhece o homem como alguém que, “em seu trabalho e por meio dele, é constantemente remodelado, […] está constantemente à frente, topando os limites que já não são mais limites”. Assim, “tomando consciência deles, ele [o homem] os ultrapassa” (BAPTISTELLA, apud BLOCH, 2005).

Numa análise mais detalhada, há pontos de contato entre formas de utopias e certo aspecto de “transcendência” (como busca de completude/complementaridade); há também aproximações com o messianismo e sua visão de esperança, destemor e “avanço constante” (sem levar em conta, claro, a abordagem milenarista).


No mais, “Tomorrowland – Um Lugar Onde Nada é Impossível” evidencia uma profunda crença numa redenção humana através dos aspectos tecnocientíficos. Teóricos da Escola de Kyoto, contudo, já denunciaram os perigos de tal abordagem, por considerarem que, no percurso, se negligenciam as dinâmicas imanentes do mundo (e o caráter contingente da vida). A princípio, como “efeito colateral” de uma sociedade que confia demasiadamente na ciência está, dentre outras coisas, a falta de capacidade de introspecção e de delineação do que seja, de fato, algo que possa ser considerado genuinamente humano. [Este humano] passa a ser visto não como um fim em si,  confundindo-se então com a própria técnica (que é, essencialmente, instrumentalizada).

Para este tema, vale recorrer à filosofia de C.S. Lewis, que não era contra a ciência, deixe-se claro. Ele julgava [a ciência] profundamente importante e de especial impacto na vida das pessoas. No entanto, combatia o cientificismo, que é “a ideologia segundo a qual só a ciência é fonte válida de conhecimento, e que acaba transformando a ciência inclusive na fonte da moralidade”. Isso fica claro em “Tomorrowland”, quando um dos personagens rechaça a possibilidade de mudanças estruturais através da religião ou da política, deixando implícita a superioridade da ciência sobre as demais abordagens. Vale ressaltar, no entanto, que não se deve confundir cientificismo com positivismo, tema que merece um artigo à parte.


Por fim, como disse C. S. Peirce, “um homem deve ser definitivamente maluco para negar que a ciência fez muitas descobertas verdadeiras”. No entanto, a ciência “não é de modo algum algo perfeitamente bom. Ao contrário, como todos os empreendimentos humanos, é inexoravelmente falível e imperfeita. No máximo, seu progresso é irregular, desigual e imprevisível” (HAACK, 2012, pág. 4).

Essa reverência aos aspectos tecnocientíficos, que salta aos olhos em “Tomorrowland”, incorre no problema de se apropriar de um discurso “excessivamente entusiástico, [e de obter] uma incapacidade de reconhecer ou admitir sua falibilidade, suas limitações”. Sobre isso, nas palavras de C.S. Lewis, para que a humanidade não se “desumanize”, é necessário evitar cair nos extremos (seja do secularismo, seja do fundacionismo).

Desta forma, torna-se indispensável o uso da equidade de que fala Heidegger, para quem “ao ver nossa vida apenas em termos dos projetos nos quais estamos envolvidos, perdemos uma dimensão mais essencial da existência”. Para viver de forma autêntica, portanto, além de projetar-se para o futuro (numa utopia que gera os lastros para o progresso, com a ajuda da ciência) é necessário manter conexões com elementos essenciais da existência. E estas conexões parecem estar além dos sonhos ou das técnicas.

FICHA TÉCNICA

TOMORROWLAND – UM LUGAR ONDE NADA É IMPOSSÍVEL


Título Original: Tomorrowland
Ano de Lançamento: 2015
Gênero: Ficção
País de Origem: EUA / Espanha
Duração: 130 minutos
Direção: Brad Bird
Estúdio/Distrib.: Disney
Idade Indicativa: 10 anos

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.