OKJA: senciência para quem?

“Lucy Mirando está alcançando o impossível, estamos nos apaixonando por uma criatura que planejamos comer” (Trecho do filme OKJA)

Produzido por Joon-Ho Bong e estreado em 2017, pela Netflix, OKJA é um filme para quem tem um grande afeto por animais e gosta de refletir sobre o seu estilo de vida. O drama enlaça essas duas temáticas revelando ao expectador uma realidade cruel que ele tende a negar, principalmente quando este assume uma posição utilitarista.

A trama inicia em 2007, em New York – USA, onde Lucy Mirando (Tilda Swinton) ao tornar-se a nova diretora executiva (CEO) da indústria agroquímica de sua família, e também a mais odiada mundialmente, coordena um projeto inovador que possibilitaria transformar tal aparência da corporação. O concurso do “Melhor Super Porco” é o milagre que Lucy pretende atingir a longo prazo, especificamente, em dez anos.

Fonte: https://goo.gl/FowVM1

Para alcançar este objetivo, a CEO engana seus futuros consumidores com a falácia de que o Super Porco foi encontrado milagrosamente numa fazenda chilena, que depois foram reproduzidos 26 animais, de forma “natural”, e distribuídos em 26 cidades diferentes ao redor do mundo, com sedes da corporação, para fazendeiros criá-los de acordo com sua cultura durante o tempo supracitado. Dessa forma, esta seria a solução para o combate à fome de modo sustentável, diminuindo o impacto no meio ambiente (excreção) e produzindo uma carne saborosa.

“ECO SUSTENTÁVEL; NATURAL; NÃO TRANSGÊNICO”. Fonte: http://filmspell.com/wp-content/uploads/2017/08/1-Introduction-Pictures-in-Pictures.png

Okja é uma super porca criada por Mikha (An Seo-Hyun) e seu avô em Sanyang, numa fazenda na Coreia do Sul, de forma tranquila e natural. Apesar de alguns comportamentos entre a menina e a Super Porca remeterem ao carinho com que os seres humanos tratam seus bichinhos de estimação, Okja ultrapassa essa linha, pois é a melhor amiga de Mikha desde seus quatro anos.

Apesar do fato de Okja ser um animal fictício, que por vezes aparenta ser a soma de características de vários animais comumente conhecidos, há uma alta probabilidade de que em algum momento do filme ela cause sentimentos empáticos a quem estiver lhe assistindo. Nisso, a protagonista demonstra habilidades de comunicação e estratégia, além de evidenciar que é um ser vivo dotado de senciência.

Fonte: https://goo.gl/Tm1WmS

Para Monlento (s/d, s/p) a sensciência é a “capacidade de ter sentimentos associados à consciência”, podendo ser comprovada no âmbito comportamental e/ou no biológico, e aponta que é preciso atentar ao fato que esta pode ter graus distintos em diferentes espécies do reino animal. E, nessa vertente, a Declaração de Cambridge sobre Consciência (2012) decretou que evidências mostram que o ser humano não é o único animal dotado de consciência. E, apesar de que os demais animais não apresentarem um neocórtex, eles experienciam estados conscientes através de substratos neuroanatômicos, neurofísicos e neuroquímicos e são capazes de ter comportamentos propositais.

Dessa maneira, um dos grandes desafios para Neurobiologia é comprovar que os animais não verbais possuem algum nível de consciência. Visto que a senciência caracteriza-se pela subjetividade, se faz necessário o uso de métodos seguros que conseguem acessar essa peculiaridade dos animais em teste, sem que a subjetividade do observador interfira nos resultados. Portanto, há uma alta probabilidade na fidedignidade destes (OLIVEIRA; GOLDIM, 2014).

Dez anos depois, o zoologista Dr. Johny Wilcox (Jake Gyllenhaal), averigua pessoalmente que Okja é a melhor super porca, consequentemente, a leva para New York. Após descobrir que a corporação negou a venda de Okja ao avô e que a levaram embora, Mikha começa a sua saga para salvar a melhor amiga. E é ajudada pela Frente de Libertação Animal (ALF, sigla em inglês) que planeja usar Okja como uma cobaia, colocando-lhe uma câmera para gravar as atrocidades que fazem com esses animais no laboratório.

Fonte: https://goo.gl/wpcFpG

A ALF, uma entidade aberta e composta por ativistas anônimos, objetiva libertar os animais em condições de sofrimento, mantendo-os em lugares seguros e apropriados para posteriormente devolvê-los ao seu hábitat natural. Nesse contexto, suas ações são ilegais e infringem os locais e métodos das organizações que fazem exploração animal, ocasionando boicotes e déficits financeiros nas mesmas. Desse modo, segundo suas diretrizes, revelam as atrocidades acometidas nesses ambientes e agem com precaução para que nenhum animal seja colocado em situação de risco, sejam eles humanos ou não (BITE BACK MAGAZINE, s/d).

Entretanto, esse preceito diverge das práticas do filme, pois o plano expõe Okja a uma situação de risco. Ao chegar no laboratório em NY, ela é colocada para acasalar com um super porco macho, além de retirarem amostras de sua carne para experimentação. Perplexos com a cena gravada, um dos integrantes do ALF confessa que mentiu a tradução em relação à autorização da Mikha. Diante disso, o líder do grupo ressalta quão a tradução é sagrada, fato esse demonstrado pelo uso de língua distintas no filme, espanca-o e o bane da organização. Tal comportamento ironiza com o ideal de “não violência e proteção”, diverge da conduta entre seus próprios membros.

Em entrevista à Agence France-Presse (AFP), Ben Zipperer, do Economic Policy Institute, afirma que a mão-de-obra imigrante nos EUA é de aproximadamente 25 milhões de pessoas (AFP, 2017). No longa, esse aspecto é evidenciado quando apresentam os funcionários da corporação que estão na linha de produção, em sua maior parte, como latino-americanos. Pode-se inferir, deste modo, que o funcionamento dessas organizações, ligadas à produção e consumo de animais, tem contribuição de pessoas de outras culturas, além dos estadounidenses.

Em suma, Joon-Ho Bong faz diversas críticas sociais e políticas, uma delas deu-se por meio do posicionamento de Nancy Mirando (a irmã gêmea de Lucy), que apesar da corporação ter suas barbáries expostas, não se omite e manda lançar o produto no mercado, afirmando que se o custo for baixo as pessoas irão consumir. Essa cena alude na peripécia de que meio social sofre um fenômeno de “perda” de memória recente, particularmente se não se sente prejudicado diretamente pelas situações desagradáveis que vivencia.

Fonte: https://goo.gl/TN3NgD

Ainda nessa ótica, é válido ressaltar que a carne animal como um produto é comercializada de uma forma que não seja atrelada ao animal vivo (WEBSTER, 2005). Logo, nenhuma novidade é acrescentada quanto à realidade contemporânea, mas o produtor utiliza-se de um personagem fictício para relembrar-nos do infausto sofrimento que compactuamos para termos nossas “suculentas“ refeições diariamente.

A reflexão, filosofia, teoria ou estudo que é realizado da moral, chama-se ética (TAILLE, 2010) e objetiva avaliar se os comportamentos (costumes) instituídos são aceitáveis, de modo que não ocasione danos ao outro. A partir desse preceito é necessário avaliar de que modo a ética voltada para esses seres não-humanos, ou melhor, a bioética, está sendo praticada pelos seres humanos, nos âmbitos individual, social e profissional:

A forma como diferentes profissionais tratam os animais é extremamente importante para o desenvolvimento de programas de educação, por meio da utilização de diferentes inferências e aplicação de instrumentos diversificados, cuja atuação em distintas frentes adequadas a um público diverso, vise conscientizar todos os segmentos da sociedade da necessidade de procedimentos éticos no uso dos animais (FISCHER; TAMIOSO, 2016).

Fonte: https://goo.gl/nhvftY

Por fim, apesar de Okja não ter tido o mesmo fim que os demais super porcos, sua liberdade, quase fracassada, é uma vitória para seus semelhantes. Estes rugem como forma de comunicação enquanto ela vai embora, levando consigo um filhote entregue pelos próprios pais. Silva (2012) aponta que para a dinâmica da ética utilitarista é conveniente abater determinados animais de forma rápida e indolor, desde que seja justificável.

Nesse ínterim, o desfecho do filme incita questionamentos inquietantes, para se analisar ao longo do dia ou da vida, como: o que diferencia Okja dos demais super porcos? Ter uma compradora que a quer viva? O que distingue o seu pet do animal que você cria ou compra para consumo? Por que nos chocamos tanto quando sabemos que em algumas culturas é normal comerem cachorros, mesmo tendo uma variedade de animais em nossa mesa?

Fonte: https://goo.gl/BUUGN9

“O maior erro da ética é a crença de que ela só pode ser aplicada em relação aos homens”
ALBERT SCHWETZER (Prêmio Nobel da Paz, 1952)

Nota: este texto não prioriza fazer com que o leitor torne-se vegetariano ou até mesmo vegano, mas que este reflita seu modo de vida e o seu posicionamento bioético em relação aos animais não-humanos.

FICHA TÉCNICA
OKJA

Fonte: encurtador.com.br/gjBD9

Diretor:  Joon-Ho Bong
Elenco: Seo-Hyun Ahn, Tilda Swinton, Jake Gyllenhaal
Gênero:  AventuraFicção científicaDrama
Ano: 2017

REFERÊNCIAS

AFP. (2017). A economia dos EUA pode crescer sem imigrantes? Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/afp/2017/02/06/a-economia-dos-eua-pode-crescer-sem-imigrantes.htm. Acesso em 16 de novembro de 2017.

FISCHER, M. L.; TAMIOSO, P. Bioética ambientalconcepção de estudantes universitários sobre ouso de animais para consumotrabalhoentretenimento e companhia. Ciências &Educação, v. 22, n. 1, 2016.

LA TAILLE, Yves de. Moral e Ética: uma leitura psicológica. Psic.: Teor. e Pesq. [online]. 2010, vol.26, n.spe, pp.105-114. ISSN 0102-3772. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722010000500009.

LEVAI, Laerte Fernando. Artigo Os animais sob a visão da ética. Publicada pela Alpa – Associação Leopoldense de Proteção dos Animais. In revista Brasileira de Direito Animal de 2006.

MAGAZINE, Bite Back. Who is the ALF?. West Palm Beach, Florida. Disponível em: <http://www.animalliberationfront.com/ALFront/ALF_leaflet_biteback.pdf >.  Acesso em 16 de novembro de 2017.

MOLENTO, Carla Forte Maiolino. (s/d). Senciência Animal. Disponível em: <http://www.labea.ufpr.br/PUBLICACOES/Arquivos/Pginas%20Iniciais%202%20Senciencia.pdf>. Acesso em 12 de novembro de 2017.

OLIVEIRA, Elna Mugrabi; GOLDIM, José Roberto. Legislação de proteção animal para fins científicos e a não inclusão dos invertebrados – análise bioética. Rev. bioét. (Impr.). 2014; 22 (1): 45-56.

SILVA, J. M. Do senciocentrismo ao holismo ético: perspectivas sobre o valor a bioesfera. In: BARBOSA, A. et al. (Ed.). Gravitações bioéticas. Lisboa: Centro de Bioética, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2012. p. 123-145.

The Cambridge Declaration on Consciousness. In: Francis Circk Memorial Conference; 7 Jul. 2012; Cambridge. Consciousness in human and not human animals. [Internet]. Cambrigde: The Memorial; 2012. Acesso em 12 novembro de 2017. Disponível: <http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf>

WEBSTER, J. Animal welfare: limping towards eden. Oxford: Blackwell, 2005.