Visita ao Centro Espírita

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Em relação a religião, no momento me encontro cética. Mas cresci em um lar cristão, em que tive o ensinamento de que a igreja ao qual eu pertencia era a verdadeira. E continuo acreditando que é a verdadeira, assim como as demais religiões, já que ao meu ver cada igreja tem sua verdade, pois as igrejas são constituídas por pessoas de fé, construídas por verdades subjetivas.

 Devido experiências particulares de ter crescido em um lar cristão, acabei construindo preconceitos com outras religiões. Mas com o amadurecimento pessoal, fui desmistificando e ampliando minha percepção, e resolvi me conceder a liberdade de conhecer outras religiões. Em uma das visitas tive a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a doutrina espírita, já que era uma das religiões que eu mais tinha preconceitos.

Escolhi a Federação Espírita do Estado do Tocantins. Cheguei ao local com 1 hora de antecedência, as 19h, pois eles prezam bastante pela pontualidade. Fui recebida pela Linda, uma senhora muito simpática e receptiva que logo me acomodou em uma cadeira dentro da sala onde aconteceria as atividades da noite. Enquanto não começava, conversei com Dona Juarama, quem me contou um pouco da história do Espiritismo. E ainda me esclareceu sobre a programação do dia, que seria: Música, oração, palestra, oração, música e passe.

No local da reunião conversei também com a senhora Esmeralda, uma das líderes, que me esclareceu algumas coisas, como: no Espiritismo não tem nenhum proibição, é apenas apresentado o que convém e o que não convém; Não se paga dízimos; não é obrigado fazer caridades; a mocidade toca em asilos e hospitais por se sentirem bem, e não por dever; e a mulher não tem papel definido no Espiritismo, ela faz o que acha ser melhor em sua vida.

Fonte: encurtador.com.br/hov15

Ao esperar o início da palavra do dia, como som ambiente tocava uma música muito aconchegante, constituída por notas calmas, que remetia a sons de natureza e que me confortou internamente. Em seguida, o senhor Edemar começou a palestra, que tinha como tema ‘Conhecendo a doutrina Espírita’. O senhor Edemar disse que o espiritismo não têm Allan Kardec como o superior, mas sim como um profeta, pois o superior é Deus. Continuou dizendo que  Kardec foi um Médium avançado, mas que todos nós somos médiuns, alguns evoluem mais que outros.

Falou ainda, sobre 4 correntes: 1ª – Materialista: tudo acaba, então a vida é para ser bem aproveitada sem se pensar nas consequências; 2ª – Panteísmo: ´somos` um pedacinho de Deus, depois que morremos voltamos para o mesmo; 3ª – Dogmática: a alma sobrevive, mas o espírito não evolui, não há a reencarnação; e 4ª – A Espírita, na qual o espírito evolui, desencarna e reencarna. É possível o recomeçar/refazer.

Edemar terminou a palestra dizendo que Deus não é a nossa imagem, mas nós que somos a imagem dele. Disse também           que a inteligência suprema é a causa primária de todas as coisas. Além de esclarecer que para o Espiritismo somos seres bidimensionais e que quando desencarnamos, não viramos anjos e nem demônios. Mas podemos ter vindo de outro mundo, poderemos até sermos ET´s, assim como, temos a possibilidade de futuramente nos reencarnamos em vidas de outros planetas, primários ou não. Complementou dizendo que hoje o homem conquistou o micro e o macro, mas não consegue conhecer a si mesmo, enfatizando que tudo na vida passa, só o espírito permanece.

Fonte: encurtador.com.br/twQR4

Depois da palestra teve uma oração feito por Jurama, que foi fervorosa ao pedir paz no coração de cada pessoa presente. Logo em seguida a banda começou a tocar e teve o início do passe, em que os idosos, crianças e famílias tinham preferência. Esperei minha vez e entrei na sala do passe. É uma sala pequena e com pouca luz, na qual tem cadeiras e atrás das cadeiras ficam  médiuns, membros do centro, que passaram energias positivas por meio de orações, pois o passe significa uma renovação de energias. O passe dura em torno de um minuto e na saída tem uma água fluidificada, na qual bebi e em seguida me despedi e deixei o local.

Valeu a perna ter visitado, pois pude quebrar preconceitos. A partir de tal visita, reafirmou em mim a ideia de que acredito em Deus, pai e espírito santo. E baseada na promessa divina da existência do paraíso/céu, na minha percepção, não existe uma única religião que será salva, e sim pessoas verdadeiras que serão salvas, e estas podem estar no vaticano ou em um terreiro de candomblé.

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My beautiful broken brain: o que te torna humano?

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Como você se sentiria se um dia acordasse em um mundo totalmente novo e diferente e tivesse dificuldade em entender o que está acontecendo? Será que você continuaria sendo você? Para onde teria ido a pessoa que você foi, tudo que construiu ao longo da vida? Seria frustrante perceber que tudo se perdeu ou você se agradaria com a ideia da possibilidade de um novo começo?

Esses questionamentos aparecem nos pensamentos de quem assiste ao documentário My beautiful broken brain, além dos respondentes comportamentais – aperto no peito e nó na garganta – misturados à angústia em perceber que tal situação pode acontecer com qualquer um, em qualquer momento e em qualquer lugar. Disponível na Netflix, o documentário é dirigido por Lotje Sodderland e Sophie Robinson, que também fazem parte do elenco.

Fonte: https://bit.ly/2MWXash

Lotje tinha um trabalho difícil como cineasta e documentarista, em que tinha que fazer várias coisas ao mesmo tempo e ser bem organizada. Sua vida era contar histórias através de suas gravações. Ela gostava disso, assim como gostava de ler muito. Sua sociabilidade e comunicabilidade eram notórias. Até que em um infortunado dia, Lotje acorda em um hospital e percebe que essas habilidades que ela tanto prezava e que a faziam ser ela, haviam sumido ou estavam bem prejudicadas. Lotje havia sofrido, dois dias antes, um grave acidente vascular cerebral (AVC), com hemorragia intracerebral.

Estando em um mundo novo, no qual adquiriu novas percepções da realidade, incluindo sons, cores e imagens bem mais intensas do que antes, Lotje apresentou uma reação que muitos não esperariam. Definindo sua situação como uma “viagem paralela esquisita”, teve o ímpeto de começar a gravar a sua rotina. Com a ajuda de Sophie, passou a contar a própria história. Ora com gravações que fazia com o próprio celular de si mesma, ora com gravações feitas por Sophie, o cotidiano de Lotje se tornou a pungente história vista no documentário.

Fonte: https://bit.ly/2putb1v

Tudo começou em um repente, com Lotje sentindo fortes dores de cabeça, náuseas, tontura, confusão. Passado algum tempo, foi encontrada desmaiada no banheiro de um hotel perto de sua casa, onde foi procurar por ajuda, mas não conseguiu porque não saía palavra de sua boca e nem escrita de suas mãos. Isso se deve a área do cérebro que foi atingida pelo AVC. Segundo o médico de Lotje, a situação dela é muito rara, sendo uma hemorragia na substância cinzenta do cérebro.

Com isso, o córtex cerebral que, dentre outras, tem funções cognitivas superiores, ficou vulnerável. Além disso, a hemorragia ocorreu no lobo têmporo-parietal do cérebro de Lotje. Lesões nessa área levam à afasia sensitiva transcortical que, segundo Higashi (2011) “leva a uma compreensão prejudicada, fluência preservada e associação com hemioanopsia (perda parcial ou completa da visão). Difere-se da afasia de Wernicke porque mantem a repetição preservada”.

Fonte: https://bit.ly/2pvF6Mt

Desse modo, Lotje consegue falar, mas apresenta dificuldade em formular frases totalmente corretas, sempre havendo troca de palavras ou não conseguindo lembrar delas ou reproduzi-las. Também não consegue escrever e nem ler e sua visão do lado direito ficou prejudicada. Essa situação a deixou bem frustrada, pois ela tem consciência do que está acontecendo e, segundo seu irmão, ela demonstra desejo de se comunicar melhor, mas não consegue. Em uma de suas falas embaraçadas, Lotje diz que “antes era bem ocupada, normal, inteligente. Agora é tudo estranho, começar do nada”.

Esse começar do nada reflete a impressão que o documentário passa, de que Lotje está aprendendo tudo de novo, como uma criança quando está começando sua caminhada no mundo das palavras faladas, lidas e escritas. Sua frustração se dissipou um pouco quando começou a participar de uma terapia experimental, que consistia em exposição intensa à palavras e repetição dessas. Entretanto, a frustração voltou quando os resultados apontaram pouco efeito e quando uma crise de epilepsia a atingiu, devido a intensidade do tratamento.

Fonte: https://bit.ly/2NzKDQD

O documentário foi gravado durante um ano, no qual Lotje passou por vários especialistas e terapias. Uma neuropsicóloga também atuou no caso, tendo ajudado Lotje a voltar a digitar, explicando que os caminhos entre essa atividade e a escrita diferem um pouco. Isso se deu porque, apesar da área cortical associativa terciária (que compreende funções motoras e sensoriais e funções cognitivas) ter sido atingida, suas funções motoras ficaram preservadas.

Passado esse tempo, depois de tantos tratamentos e algumas frustrações, Lotje se reencontrou na meditação. Se afastou um pouco do barulho e do excesso de informações da cidade. Há de se perceber que ocorreu uma mudança na vida de Lotje, entretanto, sua essência permanece, talvez até mais visível do que antes. Inclusive sua paixão como cineasta continua viva e ativa.

Fonte: https://bit.ly/2MQqcJW

“O cérebro precisa de silêncio para desempenhar suas funções. Me sinto muito mais próxima da minha consciência. Uma proximidade maior do meu eu, que é a minha essência. Se o corpo físico, o cérebro, for danificado, esse dano se estendeu ao “eu”? Preciso estar à vontade com a diferença sutil, ou como diriam alguns, a diferença nada sutil, entre quem eu era antes e quem eu sou agora. Na meditação descobri a fragilidade da mente e também seus recursos infinitos. Me sinto fortalecida com essa descoberta. O silêncio. A solidão. Apenas respire. Não entre em pânico. Se liberte do medo”. Lotje Sodderland, durante suas férias em Gilette, França.

Não se recomenda sofrer de um AVC para se descobrir, mas o que Lotje ensina com sua história é que não somos apenas um amontoado organizado de órgãos ambulante, mas que todos têm sua importância, sua essência e sua história não depende necessariamente do que se faz ao longo dela, mas o que se torna com ela. É isso o que nos faz ser humanos.

Nota: Este trabalho foi realizado como requisito de avaliação na disciplina Neuropsicologia, sob docência de Gabriela Ortega Coelho Thomazi.

Referências

HIGASHI, Rafael. Afasias e lobos cerebrais. Rio de Janeiro: Slideshare, 2011. 33 slides, color. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/RafaelHigashi/afasia-e-lobos-cerebrais>. Acesso em: 06 set. 2018.

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Estudo de Caso: a fenomenologia-existencial e o silêncio em adolescentes

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O presente trabalho objetiva apresentar as formas com as quais o psicoterapeuta que atua na abordagem fenomenológico-existencial pode lidar com a dificuldade de expressão verbal do adolescente em processo terapêutico, ou seja, o silêncio, onde nem mesmo contato visual é estabelecido. Compreendendo assim, por meio dos pressupostos teóricos fenomenológico-existenciais humanistas, no que consiste a utilização da empatia, congruência, a aceitação positiva incondicional, de como podemos acolher a maneira de ser-existir, que o adolescente encontrou de se mostrar para o mundo, compreendendo seu embotamento e retraimento como uma forma de expressar seus conflitos e experiências existenciais.

A fenomenologia-existencial surge como a terceira força dentro da psicologia é basicamente influenciada pelos pensamentos filosóficos visando, portanto, abordar o fenômeno como ele se apresenta, ou seja, o sujeito em sua atual experiência vivencial, diante de suas dificuldades e conflitos (ARAÚJO, 2010).

A fenomenologia é a ciência que procura abordar o fenômeno, aquilo que se manifesta por si mesmo. Ela tem a intenção de abordá-lo, interrogá-lo, procurando descrevê-lo e tentando captar sua essência. Ela estuda o fenômeno tal qual ele se apresenta a consciência. O método fenomenológico consiste numa descrição sistemática dos fenômenos até chegar a sua essência, ao ponto final e irredutível da percepção” (ARAÚJO, 2010, p. 2).

Torna-se necessário para o psicoterapeuta existencial, saber reconhecer que cada ciclo da vida acarreta suas dificuldades, para que assim a psicoterapia possa atender com total competência não apenas as queixas explícitas do seu cliente, mas sim acolhê-lo em sua completude existencial. Ou seja, o foco da psicoterapia existencial seja que o cliente experimente sua existência como real, tornando-se apto para suas potencialidades e assim saber agir sobre elas (GOMES; CASTRO, 2010).

Fonte: http://zip.net/bntL4V

Partindo dessa breve introdução nos atentaremos a descrever sobre o caso clínico de adolescente de 14 (quatorze) anos com dificuldades em verbalizar tanto em processo terapêutico como fora dele, tendo características estabelecidas de dificuldades de locomoção, rigidez, embotamento afetivo. Também descrevemos sobre o papel do terapeuta em sua abordagem fenomenológico-existencial, a postura clínica diante do silêncio em psicoterapia, considerando a adolescência como um período de crises e que muitas vezes podem se tornar patológico.

Método

O trabalho se desenvolveu em uma clínica-escola de Psicologia em uma universidade na cidade de Palmas – TO, iniciando no mês de agosto e se prolongando até o mês de outubro, no ano de 2016. Foram realizadas seis sessões de psicoterapia individual com duração de 50 (cinquenta) minutos cada, onde seguem a abordagem teórica embasada na técnica não diretiva das correntes fenomenológico-existenciais, que por sua vez são supervisionadas semanalmente.

Fonte: http://zip.net/bftNsz

A não diretividade utilizada nessa corrente teórica psicológica baseia-se no sentido de que o cliente tem direito sobre suas escolhas, sejam elas compatíveis ou não com a do profissional que lhe acompanha (AGUIAR, 2005). Para dar melhores condições ao atendimento foram utilizados de recursos lúdicos como jogos, papeis, canetas, lápis de cor, alguns tipos de brinquedos (família terapêutica, carrinhos), como meio de estabelecer contato/comunicação com o adolescente.

Apresentação do Caso

Adolescente, P.V (nome fictício), do sexo masculino, 14 anos e estudante, reside com os pais e mais três irmãos, configurando-se como uma família humilde e de baixa escolaridade. A mãe e a avó do adolescente procuraram o serviço psicológico na clínica-escola, pois segundo relato de acolhimento de ambas há cerca de oito meses o garoto apresenta comportamentos inadequados. Segundo a mãe, desde pequeno P.V sempre foi quieto e calado, porém nos últimos meses seu silêncio e apatia vêm deixando a família preocupada.

Ainda segundo relato da mãe, antes de se instaurar o quadro de queixas atuais, o adolescente era muito irritadiço, agressivo e ansioso, demonstrando-se desta forma sendo agressivo com os familiares, a partir desses comportamentos que a mãe resolve procurar ajuda profissional.

No ambiente escolar também existe queixas quanto ao seu comportamento, professoras relatam a pouca interação com o restante da classe, só verbaliza quando lhe é questionado algo, poucas vezes faz as atividades espontaneamente, porém não apresenta nenhum déficit de aprendizagem que seja relevante, considerando a situação em que o adolescente se encontra.

Atualmente o adolescente poucas vezes verbaliza em ambiente familiar, sempre se mantém de cabeça baixa, não manifesta nenhum contato visual, físico e afetivo com qualquer outra pessoa, em alguns momentos ocorre a diminuição do apetite, preferindo manter-se isolado de todos.

Anteriormente a ida ao psicólogo, P.V foi levado ao médico, devido às manifestações físicas de quadros prolongados de constipação intestinal, recusa a alimentação e dores no corpo. Diante do grau apresentado de abatimento físico e psíquico do adolescente, logo foi encaminhado ao atendimento psiquiátrico para averiguar outras demandas, como o quadro severo de embotamento, retraimento e não verbalização. Atualmente está utilizando o medicamento rispiridona prescrito pelo psiquiatra com o intuito de auxiliar em seu tratamento e que segundo a mãe, a medicação traz uma melhora no seu estado de ânimo, deixando um pouco mais acessível.

Já em acompanhamento psicológico, P.V está sendo trazido pela mãe, uma vez por semana para a psicoterapia individual. O adolescente comportou-se de maneira rígida, apática, com dificuldades de locomoção, sem verbalização e sem contato visual. As poucas vezes que se obteve algum contato com o garoto, foi por meio de perguntas diretas, onde ele respondia apenas gesticulando a cabeça com “sim” ou “não”. O tratamento tem como objetivo inicial, a compreensão de tal silêncio e embotamento como forma de se apresentar ao mundo e como isso pode está sendo visto como forma de enfrentar vida, e assim auxiliar por meio dos recursos não diretivos a sua melhoria, tanto psíquica como física.

Fonte: http://zip.net/bntNCY

Após alguns atendimentos com P.V sem muitas evoluções significativas, a mãe foi chamada novamente para uma sessão, tendo como objetivo conhecer o ambiente familiar e o atual contexto que o adolescente se encontra. A mãe relatou brevemente sobre o desenvolvimento do filho fazendo sempre uma comparação com os demais filhos, que se segundo ela se desenvolveram normalmente.

A responsável narrou também sobre a sua própria história de vida, contanto sobre episódios de violência doméstica por parte de seu padrasto quando ela – a mãe – ainda era adolescente. Conta ainda sobre seu casamento com o pai de P.V e o período que ele ficou fora de casa, relatando como um período complicado de sua vida. Ao falar sobre o marido, o pai de P.V, a mãe não se delonga muito em ressaltar sua participação na vida do filho adolescente, narrando com certo desconforto sobre a relação dos dois, e descreve que desde que P.V tem demonstrado tais comportamentos o pai se afastou bastante do filho.

Após o atendimento com a mãe ter sido enfatizado nos aspectos familiares, P.V teve duas faltas consecutivas, a primeira justificada pela mãe, devido problemas no trabalho, a segunda sem nenhuma satisfação. A estagiária retornou as ligações em busca de compreender tais faltas, porém não conseguiu contato com os responsáveis. Diante dos fatos e seguindo regras da clínica-escola, o cliente foi desligado do serviço psicológico tendo alcançado apenas seis encontros com a psicóloga estagiária.

A clínica fenomenológica-existencial e o atendimento com adolescentes

A formação em Psicologia Clínica perpassa por muitas inseguranças e modificações para lançarmos o nosso olhar sobre o outro, sabemos que muitas vezes o senso comum vê a atuação clínica como algo curativo, que pode proporcionar a diminuição total do sofrimento do sujeito e que coloca o terapeuta em uma posição onipotente. Sabe-se que não é bem assim, e para evitar tais pensamentos enquanto profissionais, especificamente da perspectiva existencial, deve-se dedicar a compreender o adoecimento e o sofrimento de cada sujeito, não lhes assegurando uma cura, mas uma tomada de consciência sobre sua real existência.

A clínica psicológica dentro dessa abordagem existencial propõe a respeitar todas as experiências do cliente e a sua autonomia para dar novo sentido a sua história de vida, sendo que para isso, o terapeuta deve ir além do ouvir as palavras ditas, utilizando-se da escuta ativa e empática para chegar ao significado contextual e simbólico do que está sendo dito pelo cliente. Para tornar mais sintetizado, o terapeuta se coloca em uma postura de facilitador das expressões de seu cliente, para isso não se utilizando da interpretação, mas sim, da compreensão existencial imediata do cliente (GOMES; CASTRO, 2010).

Sabe-se que em psicoterapia a maior ferramenta de trabalho é a fala, porém quando não possuímos essa atitude do cliente deve-se notar que a comunicação não é apenas verbal, podendo ser expressa também de um modo não-verbal onde o “falar” pode se ter um sentido mais amplo, em apenas “comportar-se”.

Mesmo se terapeuta e paciente iniciam a terapia pela fala, muitas mensagens são transmitidas de forma não verbal ao longo do processo, e cada um, paciente como terapeuta, aprende a “ler” e interpretar a linguagem silenciosa do outro no diálogo terapêutico. (FIGUEIREDO, 2005, p.32).

Miranda e Freire (2012), em seu artigo sobre comunicação terapêutica, nos traz um pensamento do próprio Rogers, que em seu livro “Tornar-se Pessoa” (1961-1997), relata seu entendimento sobre as maneiras de se comunicar, nos dizendo que, normalmente uma pessoa desajustada possui muitas dificuldades em falar, pois rompeu a comunicação consigo mesmo sendo, portanto o resultado disso o prejuízo com a comunicação com os outros.

Com base nos fundamentos teóricos sobre fenomenologia-existencial, considera-se que existencialmente a fase da adolescência e puberdade se configura em um modo de existe totalmente desconfortável. As cobranças familiares, sociais dentro desse processo acarretam diversas formas de sofrimento ao sujeito em transição, tanto no que se refere ao corpo físico, sua maneira de comportar e pensar, ou seja, percebe-se um verdadeiro conflito existencial (FERREIRA; ANASTÁCIO, 2012).

Fonte: http://zip.net/bltM22

É importante ressaltar antes de tudo que a adolescência por si só já se caracteriza como uma fase crítica e complexa no desenvolvimento humano, pois exige do sujeito que não é mais criança e ainda também não se reconhece como adulto, algumas atitudes, decisões, escolhas muito severas e até mesmo definitivas. Por isso torna-se necessário um contato mais sensível, sem cobranças e imposições para que o tratamento seja bem aceito pelo cliente (MIRANDA, 2012).

A falta de compreensão dessa fase do ciclo vital pode deixar as condições existenciais ainda mais densas e insuportáveis, fazendo com o jovem se feche completamente para o mundo exterior, silenciando seu sofrimento de maneira patológica. Tomamos uma definição de Silva et.al (2011), onde a autora considera as teorias de Piaget sobre o desenvolvimento humano, nos relatando que a adolescência é uma fase que se manifesta logo após a infância e antecede a juventude, momento de total insegurança, instabilidade e questionamentos. Caracterizando-se por uma intensa busca de si mesmo, encontrando-se constantemente com crises e contradições, além disso, os familiares, amigos e até mesmo a sociedade se prejudica com tal situação.

De alguma maneira a palavra adolescência nos remete a uma forma de adoecer e de sofrer, podemos confirmar tal pensamento tomando as ideias de Jerusalinsky (2004) quando ele fala sobre adolescência e contemporaneidade, relatando que o sofrimento pela falta da proteção da infância passa a se tornar uma exposição, exposição essa que por sua vez causa sofrimento e sentimentos de desamparo e angústia.

Diante de tais sentimentos nessa fase, é que de alguma forma o sofrimento psíquico vai se instalando de forma gradual, em nosso estudo de caso especificamente observamos uma maneira de se mostrar para um mundo em que o silêncio foi única saída para tais sensações de exposição.

O quadro de embotamento e o silêncio pode ser um comportamento apresentado por muitas pessoas com o intuito de fugirem do mundo externo e de suas experiências. Sabemos que o ser humano é afetivo e que precisa dessas manifestações para conviver de maneira saudável. Partindo-se da conceituação de afetividade descrita por Ballone (2005), para compreender melhor a sua importância. Portanto afetividade é como uma energia capaz de impulsionar o indivíduo para a vida, como uma energia psíquica dirigida ao relacionamento do ser com sua vida, como o humor necessário para valoração das vivências.

Quando essa energia já não é mais suficiente, nos deparamos muitas vezes com quadros graves de doenças psicológicas como a depressão, ou seja, a falta de vontade de enfrentar a vida é maior do que vontade de expressar seus conflitos e problemáticas a serem melhoradas. É por meio do se manter calado que sujeito, neste caso o adolescente, vai “enfrentando” as vicissitudes do seu processo de desenvolvimento (JERUSALINSKY, 2004).

O silêncio psicoterapêutico como manifestação do sofrimento

É recorrente ouvir-se falar sobre como o silêncio em psicoterapia se torna um momento angustiante, principalmente para o terapeuta em formação, que está em processo de estágio e que diante disso muitas vezes acredita não estar fazendo um bom trabalho. Como terapeutas existenciais entende-se o quão importante é a fala no processo de trabalho terapêutico, porém em alguns casos deparamos com a ausência dessa manifestação verbal e a partir daí temos uma nova forma de entrar em contato com o fenômeno, ou seja, por meio da compreensão empática dos comportamentos não verbais.

É preciso salientar que o terapeuta deve examinar e apreender a linguagem verbal e não verbal do cliente, sempre baseado no contexto. Nas palavras de Erthal (1995), o silêncio, a imobilidade ou qualquer outra forma de renúncia já em si uma comunicação” (ALMEIDA; NETO, 2012). De frente a tal dificuldade é necessário um olhar mais compreensivo do que interpretativo, e dar consciência ao cliente sobre essa experiência de se calar. Fazemos isso por meio de intervenções mais assertivas, ou seja, fazer com o que o cliente perceba os seus comportamentos, sinalizando para ele suas condutas e a sua forma de comunicação não verbal.

No caso clínico descrito nesse trabalho, o adolescente se recusa não apenas a se expressar, a sua recusa esta estabelecida também diante dos contatos afetivos e sociais, na sua alimentação, no seu modo de andar. Torna-se complexo para esse sujeito, colocar para fora, de modo literal, todas suas manifestações, a sua forma de existir consiste em está totalmente voltado para dentro, onde o mundo exterior não é aceito.

Fonte: http://zip.net/bjtNsS

Em busca dessa compreensão utilizamos do conceito da redução fenomenológica, ou seja, entrar em contato com o que é observado no fenômeno de maneira limpa, sem se utilizar de qualquer juízo de valor (époche), para dar significado às experiências do cliente (HOLANDA, 1997). Nesse sentindo a redução é observar o fenômeno do silêncio e apreender para além do não é dito, é considerar que sua totalidade existencial que vai além de uma hipótese diagnóstica e interpretativa e sim lançando um olhar para o sujeito integral que está em terapia.

Outra característica expressa por esse adolescente está em estabelecida por meio de um embotamento severo, onde o contato afetivo e social está sendo negado pelo sujeito, suas experiências estão se voltando para um mundo interno, impossibilitando o acesso do terapeuta por meio da fala. Tornando-se apenas possível estabelecer o contato e possível vínculo, por meio de perguntas diretas e objetivas, sendo correspondidas com “sim” ou “não” expresso por movimentos com a cabeça. Mediante isso, o papel do terapeuta é assinalar para o cliente que essa foi a maneira encontrada para lidar com o vazio.

Enquanto psicólogos clínicos existenciais, devemos compreender que cada sujeito vê grandes obstáculos em sua existência, cabendo a nós auxiliá-los a enxergar a vida como algo possível e real, fazendo isso por meio da tomada de consciência. E que em alguns momentos o calar-se não é um ato de covardia, mas sim de luta, muitas vezes contra si mesmo. Portanto, cabe a nós como profissionais aprendermos a lidar com o nosso próprio silêncio para que o processo terapêutico se torne um espaço em que possamos ouvir para além do que é dito, um espaço de acolhida, mesmo que a princípio não seja manifestado nenhuma fala.

Considerações Finais

Partindo das considerações expostas sobre o caso clínico, do papel do terapeuta que utiliza da abordagem fenomenológica-existencial diante do silêncio manifestado em psicoterapia, nos resta compreender que em qualquer problemática encontrada dentro da terapia existencial, torna-se necessário a aceitação do sujeito como ele se apresenta no momento imediato, ou seja, no aqui-e-agora, acolhendo o seu modo de se expressar pelo silêncio.

Fonte: http://zip.net/bttPcL

Com relação ao desligamento do caso torna-se importante pensar que não se trata de uma falha ou incapacidade do terapeuta em se vincular ao cliente ou vise e versa, em muitos casos a não adesão ao tratamento – principalmente em caso de menores de idade – a dificuldade de aceitar uma intervenção profissional parte dos pais ou responsáveis. Diante disso cabe ao terapeuta considerar as circunstâncias e entender que a percepção fundamental sobre o tratamento cabe ao cliente e não ao profissional, a escolha e responsabilidade sobre a terapia e dele e não nossa (AGUIAR, 2005).

O psicólogo tomando o seu papel de facilitador tem como função dar luz à consciência do cliente, dando meios para que a sua existência tome forma e sentindo, possibilitando uma nova perspectiva de ser e principalmente exaltando as suas potencialidades diante dos conflitos existenciais. Para que isso seja efetivado se torna necessário uma postura ativa e empática, compreendendo o contexto simbólico do que esta sendo expresso pelos comportamentos e pela forma que o cliente encontrou de ser no mundo.

REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Luciana. Gestalt- Terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Summus. 2005.

ALMEIDA, Elce Queiroz; NETO, Raquel. A clínica fenomenológica-existencial. Blog da Newton Paiva: Revista de Psicologia. Belo Horizonte, p. 1-2, 2012. Disponível em: < http://blog.newtonpaiva.br/psicologia/wp-content/uploads/2012/08/pdf-e2-13.pdf>. Acesso em: 20 setembro 2016.

ARAÚJO, Ariana Maria Leite. O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial. Revista IGT na Rede. v.7, n.13,p. 316-323, 2010. Disponível em: <www.igt.psc.br/ojs/include/getdoc.php?id=1678&article=289&mode=pdf>. Acesso em: 19 setembro 2016.

BALLONE, José Geraldo. Alterações da Afetividade. In: Psiqweb. 2005. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=128>. Acesso em: 20 setembro 2016.

FERREIRA, Luciana Neves; ANASTÁCIO, Fernando Dório. Adolescência e algumas questões existenciais. Revista de Psicologia. Belo Horizonte. p. 39-41, 2012. Disponível em: http://blog.newtonpaiva.br/psicologia/wp-content/uploads/2012/06/pdf-e3-10.pdf. Acesso em 30 nov 2016.

FIGUEIREDO, Evelyne Fauguet. Vínculos e Psicoterapia: a linguagem silenciosa. 2005. 55f. (Monografia em Psicologia) – Centro Universitário de Brasília, Brasília.2005.

GOMES, Willian Barbosa; CASTRO, Thiago Gomes. Clínica Fenomenológica: Do método de pesquisa para a prática psicoterapêutica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Porto Alegre, v.26, n. especial, p. 81-93, 2010. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ptp/v26nspe/a07v26ns.pdf>. Acesso em: 19 setembro 2016.

HOLANDA, Adriano. Fenomenologia, psicoterapia e psicologia humanista. Estudos de Psicologia. São Paulo, v.14, n.2, p. 33-46, 1997. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v14n2/04.pdf>. Acesso em: 21 setembro 2016.

JERUSALINSKY, Alfredo. Adolescência e Contemporaneidade. In: Conversando sobre adolescência e contemporaneidade. Porto Alegre: Libertos, 2004.p. 54-65.

MIRANDA, Carmen Silvia Nunes; FREIRE, José Célio. A comunicação terapêutica na abordagem centrada na pessoa. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro. p. 78-94,2012. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000100007>. Acesso em: 20 setembro 2016.

SILVA, Paulo Sérgio Modesto; VIANA, Meire Nunes; CARNEIRO, Stania Nágila Vasconcelos. O desenvolvimento da adolescência na teoria de Piaget. O Portal dos Psicólogos. p.1-13 2011. Disponível em: < http://www.psicologia.pt/artigos/textos/TL0250.pdf>. Acesso em: 20 setembro 2016.

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David Hume: o hábito como máxima

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Iremos abordar as principais ideias e estudos do importante filósofo escocês, historiador e empirista David Hume, que nasceu em Edimburgo, no ano de 1711. Hume foi conhecido por aplicar o padrão de que não há ideias inatas e que todo o conhecimento vem da experiência que nos permite saber sobre causa e efeito. Um dos principais objetivos do filósofo é o de encontrar limites do conhecimento humano, que para ele irão se revelar através das experiências, logo, passando a ter lugar central na filosofia do século XVIII.

Hume aponta para um novo cenário de pensamento ao introduzir os métodos experimentais aos fenômenos mentais. Para ele, todo o nosso conhecimento de mundo e o nosso processo de conhecimento se dão pelas percepções ou pelas ideias formadas por elas, baseando parte dos nossos raciocínios em acontecimentos que nossa experiência define como “prováveis”. Assim, ele diz que determinadas conclusões que chegamos sobre o mundo e as coisas não são fundamentadas na razão, mas, fundamentadas numa crença que obtemos pela regularidade com que as nossas experiências se repetem se tornando um hábito, um costume. As percepções são definidas como fenômenos que se dão pela mente através das sensações internas ou externas, garantindo assim a existência do objeto, logo que, ele só é percebido quando existe. Ele as subdivide em duas classes: impressões e ideias.

Fonte: http://zip.net

Segundo Hume (1992) as impressões caracterizam as percepções atuais que temos das coisas, as sensações vividas e fortes advindas de tal experiência. Segundo Hume, as impressões são “nossas percepções mais vividas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos, ou exercemos nossa vontade”. As ideias são caracterizadas como mais fracas e menos vivas, pois são consideradas cópias das impressões, tendo elas como base e origem. Para o filósofo, essa diferenciação entre impressões e ideias está relacionada entre o sentir e o pensar.

Hume, assim, foi um filósofo que soube explicar os problemas que se referem à natureza e limites do entendimento humano. Suas opiniões exercem influência na atualidade; problemas filosóficos difíceis e de profundidade foram expostos por ele de maneira clara e objetiva, exercendo fascínio, contagiando outros filósofos importantes. O empirismo pregado por Hume (1992) termina por alcançar sua obra, tornando assim uma Filosofia proclamada ceticista; a ciência fundamente-se caprichosamente de certas teorias tais como: o costume, o hábito, a associação de ideias, partindo do pressuposto de que qualquer coisa ou algo seja do jeito que é, por que acreditamos que é assim mesmo; exatamente partindo da ideia do costume e do hábito, das associações das ideias.

Contudo a dimensão ontológica de conceitos como substância e existência, na teoria proposta pela filosofia ceticista de Hume, em análise, ousamos pensar que perderam o sentido evaporando em simples, puras, e meras sensações. Apontando sempre para a razão, como fonte inquietante e agitada, mesmo diante de absurdos e proposições formuladas em qualquer época ou por qualquer Nação.

Fonte: http://zip.net

Para Matos (2007, vol.5, p.5), Hume define uma parte crucial dos processos cognitivos do ser humano em termos da relação deste com o ambiente, no qual, para ele, as crenças causais produzidas pelo hábito possuem um papel na sobrevivência e bem estar de seu portador. Marcondes (1997) sustenta a tese de que por força do hábito, acabamos com regularidade e mesmo por repetição projetando em nossa realidade, algo como se de fato existisse. Portanto, a causalidade seria tão somente uma maneira própria de percebermos o que é real, negando causalidade como parte do que seja naturalmente do mundo.

Era considerado por muitos como cético, porém seu pensamento indica nesse sentido ser descrito como naturalismo, por assim deixar claro que os impulsos humanos naturais, seria apenas uma maneira de descrever o conhecimento e não fundamentá-los; ressaltando ainda que sob essa ótica de Hume, tanto o ceticismo quanto o naturalismo andam de certa forma em compatibilidade, em consonância.

Hume reconheceu que a ciência está repleta de informações sobre o mundo, minunciosamente e detalhadas; para ele, essa mesma ciência está carregada com teorias, contudo nunca produzirá uma “lei da natureza” (HUME, 2011, p. 153). Com isso, o autor apresenta fortes convicções contra o racionalismo, afirmando que é a crença que está no centro de nosso desejo de ter o conhecimento, negando assim a supremacia da razão, e o hábito sim, seria o nosso guia para tais pretensões.

Fonte: http://zip.net

Assim o hábito funciona como um guia, se não existe uma justificativa digamos racional para uma posição indutiva, no caso o hábito poderia ser uma excelente guia, um direcionamento. Nesse ponto, o autor demonstra a sua preocupação ao adquirirmos tal “hábito mental”, sendo que a precaução se torna importante em sua aplicação; considerando-se que ao medirmos a causa e o efeito ocorridos nesses dois eventos, obviamente que a comprovação de sucessivos acontecimentos acorridos outrora, a julgar que são imutáveis e regularmente em sintonia entre os mesmos. Portanto, o hábito como um guia, nada mais é que a previsibilidade de que todo e qualquer acontecimento ocorrido no passado, invariavelmente acontecerá novamente, por outro lado, a causa de um não será necessariamente do outro, ainda que ambos devam estar em contato entre si.

 Vejo o sol nascer toda manhã. Adquiro o hábito de esperar o sol nascer toda manhã. Aprimoro isso no julgamento “o sol nasce toda manhã”. O julgamento não pode ser empírico porque não posso observar o nascer futuro do sol. Esse julgamento não pode ser uma verdade de lógica, pois é concebível que o sol não nasça (ainda que altamente improvável). Não tenho fundamento racional para minha crença, mas o hábito me diz que ela é provável. O hábito é o grande guia da vida. (HUME, 2011, p. 151). A filosofia defendida por David Hume assume inquietantes conclusões, posicionando nossas crenças de certa forma niveladas ao pensamento lógico, científico e conseguinte pela própria natureza das coisas do mundo. 

Fonte: http://zip.net/bgtHLz

Segundo Matos (2007) o pensamento de Hume se constitui a partir de como a natureza humana se relaciona com outras formas existentes da natureza, com outros humanos em particular, mas no geral com todo o ambiente, não incluindo apenas os seres vivos, mas bem como o próprio meio e suas condições. Essa relação, intermediada pela ultimação que o hábito leva o ser humano a compreender, aparece na forma de uma correspondência, ou harmonia, entre o ambiente e o comportamento do indivíduo que o conhece.

De acordo com Hume, tudo o que conhecemos tem por base as nossas experiências. Por isso, ele afirma que algumas conclusões que chegamos sobre o mundo e as coisas não tem por base a razão, mas o hábito. O hábito no empirismo humano é um princípio que opera sobre a imaginação, que contribui para entender os objetos conforme eles surgem na mente humana para formar ideias vivas e intensas. Portanto, o hábito auxiliará a mente com relação às concepções ao que se pode esperar do futuro. O hábito é uma disposição inata, uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio pode produzir ou evitar. Como é possível observar neste parágrafo:

Este outro princípio que leva a mente a fazer estas inferências causais sem estarem embasadas na observação e na experiência, é o costume (hábito). O hábito é tudo o que vem de uma repetição passada, sem acrescentar novo raciocínio ou conclusão, e nele toda crença humana se origina. Ele é um princípio de associação que não depende do raciocínio, tendo origem em experiências passadas de associação de impressões que tendem a se repetir, é um instinto que a natureza colocou no homem. É devido a este princípio que “a partir da simples sucessão conjugada, nós inferimos o nexo necessário” (COMTE, 2010, p. 220).

O fato de vermos regularmente uma relação entre A e B, por exemplo, faz com que sempre que vemos A, lembremo-nos de B. Além disso, o que é possível conhecer é fundamentado em relações de causa, ou seja, na causalidade; que é a ideia segundo a qual todo efeito deve ter uma causa. Sendo assim, este conhecimento é baseado na crença que adquirimos pela regularidade com que as nossas experiências se repetem, produzindo o hábito. Assim, é possível dizer que para Hume a mente humana mente é um grande acervo de percepções, pois todas as nossas ideias têm origem na impressão sensível; e que não estamos diante de uma conexão necessária na relação entre causa e efeito, mas diante de uma associação baseada na regularidade de eventos que ocorrem na experiência.

Fonte: http://zip.net/bptJrc

O hábito é também visto como um instrumento de sobrevivência, algo que está de acordo com sabedora da natureza e dele derivam os efeitos de causa. Estes efeitos ou inferências causais têm como estrutura instintos advindos da sabedoria da natureza. É necessário agir para sobreviver e ter instintivos para poder agir é fundamental. Sendo assim, evidencia-se que por através do hábito, a natureza impele o homem à ação.

Em sua teoria, Hume ao tratar a indução de maneira filosófica termina por abalar de certa forma, as estruturas do racionalismo, exatamente por ampliar a importância do papel do hábito sobre a crença e sobre a vida de todos nós.  Explanando sobre tema controverso, da indução, Hume acaba por influenciar outros pensadores que assim darão continuidade e sustentação da sua teoria: Kant que anunciou um despertar de dogmas, ao ler tais conclusões; e Karl Popper que assume a indução de Hume como uma certeza. Por conseguinte, a crença não poderá ser racionalizada, não será fundamentada, contudo sendo o hábito um bom e grande guia, tornarão prováveis e possíveis às evidências. Para Hume, o homem sábio regula o que acredita com o fundamento, ainda quando improvável.

REFERÊNCIAS:

ARANHA, M. L. de A. e MARTINS, M. H. P. Filosofando – Introdução à Filosofia. São Paulo, Ed. Moderna, 1993.

BERKELEY. G. e HUME, D. Os Pensadores – Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano: Tradução:  Antônio Sergio…[et al]. São Paulo, Nova Cultural, 1992.

CABRAL, C. A. Filosofia. São Paulo, Editora Pillares, 2006

MAGEE, B. História da Filosofia. São Paulo, Edições Loyola, 1999.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1997.

MATOS, J. C. M. Instinto e razão na natureza humana, segundo Hume e Darwin. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662007000300002. Acesso em: 2007. Vol. 05.

O Livro da Filosofia. Tradução: Douglas Kim. São Paulo, Globo, 2011.

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O impacto do contraste entre eterno e efêmero na percepção experiencial

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Nada é para sempre. Tudo o que possui início apresenta consigo o meio e o fim – ainda que de forma implícita, rejeitada ou ignorada. Esse evento pode ser expresso nas seguintes disposições: “…sem saber que o ‘pra sempre’ sempre acaba” (RUSSO, 1984) e “mesmo sabendo que um dia a vida acaba, a gente nunca está preparado pra perder alguém” (SPARKS, 2010). E, então, o que fazer diante de algo tão desafiador? Qual a forma mais adequada de lidar com as mudanças que a vida nos impõe? De que forma resistir a não retornar às fases de desenvolvimento anteriores, que contavam com a presença do objeto de amor perdido? Canguilhem (1966) afirma que, quanto mais maleável, adaptável e ajustável às transformações pertinentes à vida o indivíduo for, maior é sua manutenção de condição saudável.

O estado patológico é caracterizado exatamente pela normatividade (regularidade) da não-habituação à constante transição. Nesse momento, nos deparamos com outra ambivalência: o desejo de eternizar o momento e o consolo de que a dinâmica presente na relação ou na condição permeada por satisfação apresentou pontos que propiciaram desenvolvimento, que ajudaram na constituição da história individual. Quando a primeira opção é satisfeita trazendo o advento de sentimentos de impotência, insatisfação ou mesmo de negação, raiva e depressão (como já explanados por Kubler-Ross em 1969), que tipo de comportamento se deve emitir, aumentar ou diminuir a frequência?

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Fonte: http://migre.me/vl0LU

Temos diversas alternativas. Como: fugir/se esquivar de toda probabilidade de desprazer; se revoltar com o novo contexto apresentado; experimentar processos ou pessoas similares até conseguir alcançar determinado nível de estabilidade emocional; criar para si representações de alegria e incorporar o medo e a insegurança de se doar a novas vivências, visto que a efemeridade temporal se encarregou de afastar para longe a experienciação apreciada. Pode-se compreender o quão delicado é o desenvolvimento de um afeto, de uma ligação a partir do que Bowlby (2001, p. 172) afirma: “A formação de um vínculo é descrita como ‘apaixonar-se’, a manutenção de um vínculo como ‘amar alguém’ e a perda de um parceiro como ‘sofrer por alguém’ ”.

Frankl (1984, p 107-108) se atentou para a segurança que a recordação, a convicção de que um acontecimento existiu, consegue proporcionar:

Aquilo que viveste nenhum poder do mundo tirará. Aquilo que realizamos na plenitude da nossa vida passada, na abundância de suas experiências, essa riqueza interior nada nem ninguém nos podem tirar. Mas não só o que vivenciamos; também aquilo que fizemos, aquilo que de grandioso pensamos, e o que padecemos, tudo isso salvamos para a realidade, de uma vez por todas. Essas experiências podem pertencer ao passado; justamente no passado ficam asseguradas para toda a eternidade! Pois o passado também é uma dimensão do ser, quem sabe, a mais segura. (FRANKL, 1984, p 107-108)

Além disso, é perceptível nossa falta de controle e domínio no que tange àquilo que se descortinará no futuro. Não é possível controlar o devir. Skinner (1955-1956) ressalta que a base da epistemologia é a iniciação do movimento a partir das forças que são opostas ao sujeito, ou seja, a ação conforme as contingências instauradas no ambiente.

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Fonte: http://migre.me/vl0Ap

Assim, o medo vem à tona. Mas “o que pode um corpo com medo? Pouco, ou quase nada (…) precisamos ultrapassar as forças reativas, agir mais do que reagir, aumentar nossa capacidade de ser afetado, em vez de se fechar” (TRINDADE, 2016). Para lidar com a situação adversa ainda vale ressaltar que Rogers (1961), para a relação terapêutica, questiona quanto à capacidade de a pessoa respeitar de forma corajosa os sentimentos e necessidades tanto dela quanto do outro e a verificação do eu quanto a estar apto ou não a lidar com as possíveis necessidades de dependência e escravização de amor geradas por outro ser. Existindo, é claro, de forma conjunta, os sentimentos e direitos que são pertinentes ao indivíduo. Nesse caso, podemos nos referir a relacionamentos interpessoais de forma geral.

Havendo tais características, os processos de fortalecimento do ego, diferenciação e diferenciação do self tornam-se possíveis. O tão eminente encontro conosco, com o que há de mais autêntico em nós! Processo que está disponível nas modalidades intra e interpessoal, como já maravilhosamente previu Sartre (1943): “(…) nos descobrimos na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre coisas, homem entre homens”.

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Fonte: Fonte: http://migre.me/vl0xn

REFERÊNCIAS:

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. 129 p. Disponível em: Disponível em: <http://observasmjc.uff.br/psm/uploads/GeorgesCanguilhem-ONormaleoPatologico.pdf>. Acesso em: 18/10/2016.

COSTA LEITE, Lúcio Flávio Siqueira. ‘Pedaços de pote’, ‘bonecos de barro’ e ‘encantados’ em Laranjal do Maracá, Mazagão – Amapá: Perspectivas para uma Arqueologia Pública na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Disponível em:  http://ppga.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/dissertacoes/LucioCostaLeite%20(Dissertacao_de_Mestrado)%20revisada.PDF>. Acesso em: 19/10/2016.

ESPINOSA, Baruch de; SKINNER, B. F. (Revisão: Johny Brito). Espinosa e Skinner – Clínica da Experimentação. (Texto da série: Contra-história da Psicologia.)  Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2016/08/14/espinosa-e-skinner-clinica-da-experimentacao/>. Acesso em: 19/10/2016.

FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. 37° ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1969.

RUSSO, Renato. Por enquanto. In: Legião Urbana. 1984. Brasília.  EMI-Odeon. 1 CD.           Disponível em: <https://bibliotecadaeca.wordpress.com/2011/07/01/citando-musica/>. Acesso em: 19/10/2016.

SHERLOOCK. Info: A Última Música – Nicholas Sparks. Disponível em: <http://www.sobrelivros.com.br/info-a-ultima-musica-nicholas-sparks/> Acesso em: 19/10/2016.

SPARKS, Nicholas. A Última Música. Novo conceito, 2010. 408 p.

SKINNER, B. F. — “Freedom and the control of men”, A mcc. Scholar, inverno de 1955-1956, 25, pp. 47-65. Disponível em: <https://psicologadrumond.files.wordpress.com/2013/08/tornar-se-pessoa-carl-rogers.pdf>. Acesso em: 19/10/2016.

 

 

 

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Afinal, as ideias são “inatas” ou não passam de frutos da percepção?

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As discussões sobre a existência ou não das “ideias inatas”, ou de um conhecimento a priori que independa da experiência, sempre rendeu acalorados debates filosóficos, debates estes que vêm sendo registrados desde os pré-socráticos e que reassume posição com força total nos chamados “anos selvagens da filosofia” (SAFRANSKI, 2012), quando o racionalismo¹ passa a ser confrontado pelo empirismo², entre os séculos XVII e XIX. Neste processo, de um lado, o real é visto como algo que, no fundo, é racional; aparece então a concepção de ideia “onde a razão em nós é independente da experiência e a torna possível” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 500).

A ideia torna-se antes de tudo uma representação que “só são visíveis (idein, em grego, significa ver) para o espírito, e tudo o que o espírito representa pode ser chamado ideia” (idem, p. 290). No entanto, vale destacar, na medida que se percebe o aspecto e a forma visível de uma dada coisa (de uma árvore, por exemplo), como ideia “concebida interiormente, como algo mesmo que existe em nosso espírito, como diria Descartes” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 500), há aí apenas uma faceta da ideia. Desta forma,

a ideia não é apenas o que existe no ‘pensamento’, como também dizia Descartes, mas o que daí resulta, o que o pensamento produz ou elabora, que é menos seu objeto do que seu efeito. Pensar é ter ideias, mas só podemos tê-las se as produzimos ou reproduzimos – se as pensamos –, o que requer esforço ou trabalho (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 500)

 

 

Por outro lado, há a concepção de ideia como algo que só pode existir em co-participação com algo, num movimento que se aproxima do conceito de espírito de que fala Espinosa, por exemplo, o que equivaleria a dizer que só há ideia se houver, também, algo pensante. Por esta ótica, “não há ideia à parte ou em si: só há o trabalho do pensamento” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 500). Assim, ideia que não é pensada por ninguém não seria ideia, em contraposição às assertivas platônicas. Desta forma, para os empiristas, a “razão não é um dado primeiro e absoluto: ela própria é oriunda da experiência, tanto exterior (sensações) como interior (reflexão)” (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 191).

É importante destacar, no entanto, que o empirismo combate o racionalismo em sua definição gnosiológica³, no entanto o próprio empirismo acaba por ser racionalista “no sentido amplo e normativo, e a maioria dos grandes empiristas (de Epicuro a Hume) combateram para que a razão prevalecesse, não, é claro, contra a experiência, o que ela nem pode nem deve, mas contra o obscurantismo e a barbárie” (COMTE-SPONVILLE, 2011, idem).

 

A PROBLEMATIZAÇÃO DO SENTIDO DE IDEIA

Vale observar que, de acordo com Ferrater Mora, é fácil perceber como os filósofos modernos e até mesmo os contemporâneos foram (e ainda o são) influenciados pelo arcabouço surgido em torno da “problematização do sentido de ideia”, seja para avançar nas assertivas idealistas, seja para refutar tais possibilidades. Platão e Santo Agostinho, então, acabam por ser fonte inesgotável tanto de quem os defende, quanto de quem os ataca. É importante destacar que, em Platão, há uma tentativa de “reduzir as ideias a ideias de objetos matemáticos e de certas qualidades que hoje em dia consideramos valores (bondade, beleza, etc.) […] uma ideia é tanto mais ‘ideia’ quanto mais exprima a unidade de algo que aparece como múltiplo” (MORA, 2001, p. 350). Esta visão ganha contornos ainda mais definidos entre os neoplatônicos, para quem no Uno não podia haver nenhuma pluralidade.

Santo Agostinho adotou em grande medida a doutrina neoplatônica das ideias, mas não pôde aceitar a concepção do Uno como ‘emanente’. Sendo Deus criador ex nihilo, encontra-se acima de todas as coisas, inclusive, é claro, das ideias. Mas, ao mesmo tempo, estas podem conceber-se como estando na inteligência divina. […] Como tais, são eternas. (MORA, 2001, p. 351)

Portanto, o termo “ideia” é usado pelos filósofos e teólogos cristãos num sentido bem mais amplo do que o puramente teológico. “Os escolásticos abriram o caminho para vários usos do termo. Por um lado, o uso teológico anterior. Depois, um uso ontológico […], ademais, um uso gnosiológico, segundo o qual as ideias são princípios de conhecimento” (MORA, 2001, p. 351). No último caso, a questão amplamente debatida recaiu sobre se o homem conhece “pelas ideias”, ou conhece “as próprias ideias”.

“A única coisa que se parece poder assegurar é que, embora nos filósofos modernos encontremos diversos usos de ‘ideia’, predominou aparentemente o sentido de ‘ideia’ como ‘representação (mental)’ de uma coisa”. (MORA, 2001, p. 351)

No modernismo, ainda fortemente influenciado pela filosofia cristã (apesar de, em alguma medida, tentar atacá-la), os racionalistas acabam por considerar as ideias sob duas vertentes, uma como expressão mesma dos “conceitos do espírito”, e outra “as próprias coisas enquanto vistas” (MORA, 2001, p. 352). É justo ressaltar que a partir do momento em que se opta por reconhecer o caráter subjetivo das ideias, “as posições mantidas aproximaram-se das empiristas” (idem).

Como se vê, há um longo percurso (que ainda passa por Kant e Hegel, mas que não serão abordados neste artigo), até que a “problematização do conceito de ideia” – e daí a corroboração ou refutação do sentido de “ideia inata” – se delineie nas assertivas de David Hume (1711-1776) e Edmund Gettier (1927). Afinal, elas existem ou não, para estes dois pensadores?

 

 

HUME: HÁBITO COMO GUIA PARA A VIDA

O filósofo David Hume ganhou notoriedade ao lançar uma visão cética acerca da questão do conhecimento. Diferentemente do racionalismo, que via como indubitável a existência de “ideias inatas”, Hume apresenta uma forma particular de estudar a mente dividindo-a pelos seus conteúdos [mentais]. Assim, foram observados “dois tipos de fenômenos e, depois, perguntado como eles se relacionam um com o outro” (Vários autores, 2011, p. 150). Isso ocorre, notadamente, no “Ensaio sobre o entendimento humano”, na sessão II de que trata a origem das ideias. Este dois fenômenos são as impressões (sensações, percepções diretas, paixões) e as próprias ideias, “cópias pálidas das nossas impressões, tais como pensamentos, reflexões e imaginação” (Vários autores, 2011, p. 150).

A análise resultante desta distinção, em Hume, fez com que se começasse a questionar as crenças mais estimadas, não apenas no campo da lógica e da ciência, mas sobre a natureza mesma do mundo, o que acabou por provocar, à época, uma grande inquietação.

David Hume diz que é frequente ter ideias que não podem ser sustentadas por impressões, e é daí que surge a maior parte da confusão, pois de maneira geral se confunde os dois tipos de proposições indicadas pelo escocês, que são os raciocínios demonstrativos e os prováveis, com os tipos de conhecimento que eles expressam.

O raciocínio demonstrativo é aquele cuja verdade ou falsidade é autoevidente. Tome-se, por exemplo, o enunciado 2 + 2 = 4. Negar esse raciocínio envolve uma contradição lógica. Os raciocínios lógicos demonstrativos na lógica, na matemática e no raciocínio dedutivo são conhecidos por serem verdadeiros ou falsos a priori. Por outro lado, a verdade de um raciocínio provável não é autoevidente, pois diz respeito a questões empíricas de fato (Vários autores, 2011, p. 152 – grifo meu).

Desta forma, qualquer inferência sobre o mundo, como “José Eduardo está em Brasília”, é necessariamente um raciocínio provável (não demonstrativo), já que depende de uma evidência empírica para ser considerado verdadeiro ou falso. Deste pressuposto, pode-se inferir a natureza de todos os raciocínios, se são de ordem “demonstrativa” ou “provável”, e é desta teoria que surge o chamado dilema de Hume.

 

 

INDUÇÃO

Outro aspecto interessante nas “provocações” de David Hume diz respeito à capacidade humana de inferir as coisas a partir das experiências passadas, o chamado raciocínio indutivo. Ou seja, ao “observarmos um padrão constante, inferimos que ele vai continuar no futuro, assumindo tacitamente que a natureza continuará a se comportar de maneira uniforme”. (Vários autores, 2011, p. 152). A questão é saber se existe justificação para a natureza seguir o mesmo padrão. Em Hume, “alegar que o sol nascerá amanhã não é um raciocínio demonstrativo (porque alegar o oposto não envolve contradição lógica) nem um raciocínio provável, porque não podemos experimentar já o futuro nascer do sol” (Vários autores, 2011, p. 152).

Sendo assim, levando-se em conta que não se pode observar todos os eventos de causa e efeito, por não haver base racional para isso, nasce o conceito de “natureza humana”, que nada mais é do que “um hábito mental que interpreta uniformidade na repetição regular, assim como uma conexão causal naquilo que Hume chamou de ‘conjunção constante’ de eventos” (Vários autores, 2011, p. 152). Ou seja, por mais que o raciocínio indutivo instigue o investigador a interpretar as inferências com leis naturais (a base da ciência ou do conceito de “ideias inatas”, por exemplo), essa prática não pode ser considerada racional justamente porque esta crença não passa, no fundo, de

“uma ideia vívida relacionada ou associada com a impressão do presente, guiada pelo hábito, que está no cerne de nossas pretensões ao conhecimento, e não a razão”. (Vários autores, 2011, p. 153)

 

EDMUND GETTIER

Em Edmund Gettier, em seu famoso artigo “É a crença verdadeira justificada conhecimento?”, há alguns contraexemplos que colocam em xeque a definição tripartida de conhecimento, definição esta que influenciou o pensamento Ocidental desde a obra Teeteto, de Platão, para quem “a opinião verdadeira acompanhada de razão é conhecimento, e, desprovida de razão, a opinião está fora do conhecimento”4 . De acordo com as assertivas do americano, uma crença verdadeira justifica pode perfeitamente não ser conhecimento, uma vez que há caráter de insuficiência em sua abordagem. O conceito de “ideia inata” por evidência, nos racionalistas, sofre então outro revés.

 

Há nos contraexemplos de Gettier, no entanto, como pontua Da Costa (2011), não uma negação total do conhecimento, já que o “cético não é simplesmente aquele que duvida de tudo porque não quer crer em nada”, uma vez que “desde suas origens ainda na Grécia, buscaram não se comprometer com a dúvida universal a fim de não sucumbir à contradição intrínseca do dogmatismo negativo” (DA COSTA, 2011, p. 156). Gettier, desta forma, apresenta a “lacuna” que existe entre a definição tripartite e o conhecimento de fato, mas ao mesmo tempo – como parece ser comum no ceticismo – se preocupa para não cair na “contradição implicada na negação absoluta da possibilidade do conhecimento” (idem), sob o risco de, caso não observe tal premissa, acabe por enveredar na mesma seara do pirronismo, que defendia que

através da ideia de que a suspensão do juízo não é universal e que não representa mais do que o estado mental do cético no momento em que chega ao final da consideração das teses opostas sobre uma questão determinada. Ele [o cético] não afirma nada além de seu estado interior ao qual obedece passivamente, dada sua irresistibilidade (DA COSTA, 2011, p. 156).

Especificamente sobre a justificação, acreditava-se ser algo “sempre sólido e suficiente para garantir aquela conexão entre nossa razão e o verdadeiro que se julgava necessário para garantir o título de ‘conhecimento’ a uma opinião verdadeira”5. No entanto, Gettier mostra a falsidade dessa suposição.

Vale ressaltar, contudo, que “o cético não afirma sequer a verdade de suas conclusões, mas somente expressa sua situação suspensiva naquele momento” (DA COSTA, 2011, pág. 156), ou mesmo aponta para uma possibilidade de inconclusão em determinadas premissas, sob o risco de ser acusado, também, de dogmatismo.

O ceticismo não encara a si mesmo como uma escola filosófica. Se o fizesse, entraria no rol das doutrinas dogmáticas, ou seja, aquelas que afirmam como verdadeiras determinadas teses sobre o real e se enredaria nas discussões infindáveis entre escolas de pensamento. A tese da impossibilidade do conhecimento é autocontraditória, então nenhuma tese pode ser defendida pelo cético (DA COSTA, 2011, p. 157).

É interessante observar que não se pode confundir o ceticismo filosófico de que trata Hume e Gettier com o ceticismo científico, para se evitar que se tome “como cético todo o homem que adota para si e sobre as coisas uma postura crítica”. O cientista, ao abraçar uma atitude cética, “faz uso de metodologia específica para criticar conceitos estabelecidos ou fatos tais como se apresentam à investigação científica”.

A separação entre Ciência e Filosofia, no entanto, não é uma questão simples. O método científico, cujo fundamento bebeu de fontes primárias do pensamento universal, consideradas na Filosofia da Ciência, dizem, parece ter perdido muito com esse distanciamento. Questiona-se a divisão entre Ontologia (estudo da natureza do ser) e Epistemologia – afastando questões metafísicas das investigações – e o estabelecimento de certo cientificismo no desenvolvimento da própria Filosofia, influenciado pelo positivismo. Pensadores como Rousseau, Marx e o próprio Gramsci chegaram a mostrar que o avanço científico linear é insuficiente no auxílio à humanidade e seus problemas de toda ordem.6

COERENTISMO

O Coerentismo, cujos traços gerais defendem que “uma crença é justificada na medida em que ela é coerente com o conjunto de crenças anteriores a ela e disponível no momento de sua avaliação” (UCB – Teoria do Conhecimento7), parece apresentar-se como uma alternativa viável frente ao que poderia ser considerado como dois extremos na problemática da justificação do conhecimento, já que muitos teóricos estão divididos por um lado pelo presumido dogmatismo do Fundacionismo e, por outro lado, pelos ferrenhos adeptos do Pirronismo, para quem o ceticismo como postura crítica acaba por configurar-se, também, como dogmático, já que não apresenta uma visão de “suspensão de juízo” mas, antes, acaba por adotar uma postura de “negação” de certas proposituras.

Um aspecto interessante do Coerentismo é sua compatibilidade com o falibilismo, o que de certa forma cria um ponto de contato com o ceticismo de Hume e Gettier. Esta aproximação, no entanto, não pode se configurar em algo que justifica as questões dos dois filósofos, pois parece haver uma incompatibilidade entre o Coerentismo e o Empirismo.

Para o Coerentismo, “na ausência de pontos fixos seguros, e na falta de quaisquer indícios de onde dar início à revisão de nossas crenças, sabemos que o nosso conjunto de crenças é sempre provisório”7. É interessante destacar que, por este ponto de vista, o Coerentismo também se alinha em alguma medida – mas não completamente – com o ceticismo científico, já que “as revisões se tornarão necessárias, e a necessidade de revisão pode ocorrer em qualquer parte” (idem).

No entanto, vale destacar que ainda que caso se aceite que

A experiência é uma forma de crença, podemos continuar a insistir numa distinção entre crenças sensoriais e outras, e, assim, re-introduzir a questão da incompatibilidade entre empirismo e coerentismo, uma vez que as relações de apoio resultante dessa distinção seriam assimétricas. (UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 6, página 2)

Desta forma, há um desafio no Coerentismo, que se vê “na posição de manter que os conjuntos de crenças que não têm relação com a experiência de ninguém podem ter todas as características definidoras da coerência”7.

Mas ele só aceitaria isso se aceitasse a distinção entre crença e experiência; e esta distinção não é uma em que todas as partes estejam de acordo. Desde que sustentemos com Kant que toda a experiência é uma forma de cognição ou juízo (i.e., aquisição de crença) em vez de uma forma de sensação, podemos construir uma forma de coerentismo que não tenha complicações com o argumento. Se um coerentista requer para a justificação que todos os elementos cognitivos estejam interligados, há a possibilidade de que as crenças totalmente desligadas da experiência sensorial possam continuar a contar como justificadas, desde que consideremos a experiência como crença cognitiva. (UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 6, página 2)

 

 

Em Hume, apesar de haver a negação das “ideias inatas”, há um esforço para reconhecer que, “embora as inferências indutivas não sejam demonstráveis, isso não significa que sejam inúteis” (Vários autores, 2011, p. 153). Afinal, ainda existem as pretensões razoáveis para supor que as coisas aconteçam (como a alvorada, depois da noite), julgando a partir da experiência e da observação passada. Hume adverte, no entanto, que “antes de inferir causa e efeito entre dois acontecimentos, devemos ter evidências de que essa sucessão de acontecimentos tenha sido invariável no passado e de que há uma conexão necessária entre eles” (Vários autores, 2011, p. 153). Desta forma, o “hábito mental” deve ser aplicado com precaução.

Os contraexemplos de Gettier também contestam a definição tradicional de conhecimento (e, dentre elas, presume-se, a premissa das “ideias inatas” do racionalismo) ao não reforçar a definição tripartida, mostrando a sua insuficiência. No entanto, neste movimento, acaba por gerar uma “onda” investigativa que, ao fim, faz por reforçar o sentido de aperfeiçoamento do conceito de conhecimento (e mesmo o conceito de ideia inata), ao revisar mesmo sua dinâmica argumentativa. “Resolver o problema de Gettier passa a andar de mãos dadas com a reforma da noção de justificação”5.

 

 

Em súmula, em Hume poderia se dizer que há uma negação tácita das “ideias inatas”, enquanto que em Gettier há a suposição de que tal crença carece de sustentação adequada. Nos dois casos, explícita ou implicitamente, não existe justificativa racional para a existência de “ideias inatas”, e o Coerentismo, mesmo não se configurando como uma postura que se opõe frontalmente à visão destes dois pensadores, acaba por não se enquadrar numa forma de justificação de conhecimento, já que “o coerentista pode encontrar um espaço epistemológico promissor de investigação a partir da possibilidade de conjugação com perspectivas empíricas” (UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 6, página 4). Assim,

O falibilismo [coerentista] não é um defeito infeliz, mas uma parte essencial da empresa epistemológica, o impulso de rever continuamente em busca de uma maior coerência. (UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 6, página 1)

 

Notas:

¹ – Racionalismo pode ser abordado em dois sentidos: no sentido lato e corrente, o racionalismo exprime certa confiança na razão; é pensar que ela pode e deve compreender tudo, pelo menos de direito. No segundo sentido, o racionalismo que a doutrina que defende a razão como algo que independe a experiência, porque seria inata ou a priori, logo, é uma concepção totalmente contrária ao empirismo. (COMTE-SPONVILLE, 2011, p. 500)

2– Empirismo é um termo que deriva do grego e que pode ser entendido como “experiência”. Ainda assim, trata-se de uma palavra com muitos significados. Não obstante, se destacam dois (significados): a existência como informação proporcionada pelos órgãos dos sentidos, e a experiência como o que depois viria a ser chamada de “vivência”, isto é, o conjunto de sentimentos, afetos, emoções, etc., que um indivíduo humano experimenta e que se vão acumulando em sua memória, de modo que aquele que dispõe de uma boa dose desses sentimentos, emoções, etc. é considerado “uma pessoa com experiência” (MORA, 2001, p. 205).

³- Teoria geral do conhecimento humano, voltada para uma reflexão em torno da origem, natureza e limites do ato cognitivo, freq. apontando suas distorções e condicionamentos subjetivos, em um ponto de vista tendente ao idealismo, ou sua precisão e veracidade objetivas, em uma perspectiva realista; gnosiologia, teoria do conhecimento cf. epistemologia. Disponível em Dicionário Houaiss <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=gnosiologia > acessado em 19/04/2014.

4– Parte do diálogo platônico “Teeteto” – tradução de Carlos Alberto Nunes. Disponível emhttp://www.cfh.ufsc.br/~wfil/teeteto.pdf – Acessado em 16/04/2014.

5– UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 3, disponível com senha emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/course/view.php?id=21652 – acessado em 19/04/2014.

6 – Trecho da matéria “A evolução do pensamento Cético”, publicada na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

7– UCB Virtual – Disciplina de Teoria do Conhecimento – aula 6, página 1, disponível com senha em http://moodle2.catolicavirtual.br/course/view.php?id=21652 – acessado em 02/06/2014.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André.Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

Ensaios Sobre o Ceticismo/ [organizados por SMITH, PLINIO JUNQUEIRA; SILVA FILHO, WALDOMIRO J.]. – São Paulo: Alameda, 2007.

PIVA, Paulo Jonas de Lima. A evolução do pensamento Cético – artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível emhttp://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acessado em 21/01/2014.

SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia; tradução William Lagos. — São Paulo: Geração Editorial, 2012.

HUME, David. Ensaio sobre o entendimento humano. Material disponível com senha emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/pluginfile.php/677868/mod_resource/content/1/Ensaio_sobre_o_entendimento_humano_HUME.pdf– Acessado em 18/04/2014.

GETTIER, Edmund. É a Crença Verdadeira Justificada Conhecimento?. Material disponível emhttp://criticanarede.com/epi_gettier.html  – Acessado em 20/03/2014.

DA COSTA, Rogério Soares.  O Problema de Gettier e o Ceticismo (tese como requisito de doutoramente, publicado em 2011, na PUC-RIO). Disponível emhttp://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/17904/17904_1.PDF – Acessado em 15/04/2014.

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