A demarcação freudiana do feminino: um ser de prazer

Compartilhe este conteúdo:

“Olha, eu tenho uma resistência a falar sobre estes assuntos de sexo, penetração, pênis, porque eu já fico achando que você vai me encaixar numa teoria. Eu não estudei psicanálise, mas sempre ouço falarem da inveja do pênis, e tal; eu quero falar, mas não quero que você me encaixe numa teoria.”

                                                          (Maria Rita Kehl, Deslocamentos do Feminino, 2008).

Freud deparou-se com diversos impasses teóricos ao querer definir a mulher.  Suas postulações teóricas sofreram influências da cultura vigente da época, na qual, o lugar destinado a mulher, era da ordem do privado (NUNES, 2000). Mesmo tendo influências culturais em seus Estudos sobre a Histeria, o pai da psicanálise propiciou um lugar de escuta à mulher, permitindo assim que a mesma tivesse voz e desse sentido ao que estava por completo domínio do controle social que demarcava lugares distintos ao homem e a mulher.

A cultura se organiza em torno de vários ideais esperando-se do homem coerência de acordo com o ideal da cultura vigente. Toda manifestação humana é cultura – Família, Estado e Sociedade são os grupos nos quais o homem aloja-se (SANTOS, 1983). Tratando-se de nós, humanos, seres de afeto, o sujeito traça suas relações definindo seus lugares a partir das exigências da sociedade (ex: raça, sexualidade, valores, conduta etc.). Assim nos apropriamos de Foucault (1979), para enfatizar a predominância existente no corpo social, das relações de poder que normatizam e referenciam os discursos perpassados socialmente.[…] em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso (p.179).

O problema do homem com relação à sociedade é totalmente subjetivo. O ser humano achava que a civilização traria a felicidade, proteção. Mas é justamente na sociedade que o sofrimento se desencadeia, pois o grupo e as leis estabelecidas pedem que renunciemos as nossas pulsões, renunciando a nossos desejos. O princípio da racionalidade faz com que o sujeito esteja sobre o governo administrativo, econômico e estético e coube a cultura nos retirar do lugar de animais irracionais e nos posicionar de forma precisa, uma vez que a cultura é quem outorga a precisão, os papéis a serem exercidos na sociedade. Sendo assim, os papéis exercidos socialmente podem nos reconciliar com os limites internos existentes, aceitos ou não pelas normas e ideais estabelecidos (FREUD, 1930).

A cultura é imprescindível, pois é através dela que discursos circulam e permanecem nas sociedades atravessando gerações e fazendo-se parte constituinte de um grupo de pessoas (SANTOS, 1983). A cultura cria em nós o sentimento de culpa que fazem de nós seres humanos. Sendo assim, o aparelho psíquico é decorrente da mesma, nos ajuda a viver restringindo nossos desejos e a vida só é possível enquanto uma vivência cultural.

Questões que caracterizavam a época na qual foi concebida a psicanálise se diferenciam das configurações atuais. Mudanças ocorreram ao longo dos anos, direcionando a desconstrução total ou parcial de modos de ser e posicionar-se frente aos ditames sociais. A história dos atores sociais tomou novos percursos com o desenvolvimento industrial e com o avanço tecnológico permitindo a mulher o início de sua trajetória rumo à independência. Invenções como a pílula anticoncepcional, fecundação in vitro possibilitaram a mulher o controle sobre seu corpo.

À medida em que a sociedade industrial triunfa, ela promove a dissolução de sua moralidade familiar, dos destinos vinculados aos posicionamentos estanques de gênero, aos tabus relacionados à sexualidade e até mesmo à crescente reunificação da domesticidade e do trabalho remunerado (SPINK, 1999, p. 10).

Desde o momento em que nascemos, somos inscritos pela marca da diferenciação sexual carregada de significações imaginárias e marcadas por determinadas posições na ordem simbólica devido às formações de linguagem. Não há possibilidade de escolhas. Seremos meninos ou meninas acolhidos pela mínima diferença sexual de nossos corpos e é com essa diferença que teremos de nos haver para enunciarmos nossa presença no mundo e nossa inscrição enquanto sujeitos de desejo, constituídos pela linguagem passada por nossos pais através da cultura (KEHL, 2008).

O destino do homem é traçado pela busca do objeto perdido na castração, a posse da mãe, seu primeiro objeto de amor. Mas esse objeto nunca será completo, a estrutura do ego se dá pelo manejo dessa perda. A falta é a força motriz do ser humano. É a falta que mobiliza o seu jeito para se reaver com o objeto que o impulsiona a avançar em seus ideais. A angústia vivenciada pelo sujeito é porque perdeu algo, algo que busca na civilização. E não encontra, pois não existe. Contudo, é através da procura que o sujeito encontra a satisfação pela sublimação do objeto, pois, já que não encontra o objeto fica então com o objeto substituto, satisfazendo-se parcialmente (FREUD, 1930).

A função do pai é central na questão edípica, pondo-se em vista, que o Inconsciente nos revela o Complexo de Édipo através de desejos recalcados, desejos primordiais e sempre presentes na história subjetiva do sujeito. Na infância os desejos precisam ser reprimidos diante do exercício provido da lei, processo esse, realizado pela função paterna que cinde a relação simbiótica mãe-bêbe e proporciona um movimento psíquico complexo e persistente na trajetória de vida do indivíduo. Segundo a psicanálise, fatores das experiências infantis repercutem ao longo da vida do sujeito sendo favoráveis ou não a suas vivências subjetivas consigo e com o outro. Outro que sempre estará presente, na medida em que lidar com o eu é se deparar com o que o outro espera do meu eu. Consecutivamente, lidar com o outro é relacionar-se com o que espero do meu eu. Processo contínuo do exercício psíquico em uma atuação cíclica.

Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 1979, p. 180).

A compreensão das ordenações psíquicas foi proporcionada pelo arcabouço teórico construído por Freud através do entendimento da histeria. Apesar de não ter inventado o modelo de histeria foi Freud quem operou sobre o modelo sensíveis transformações, e assim, foi capaz de acolher as novas questões da cultura de sua época, as quais eram trazidas a ele pelos tipos clínicos prevalentes (mulheres insatisfeitas, que buscavam compreender melhor sua singularidade). Assim, podemos dizer referenciados por Pinheiro (2003), que as postulações da metapsicologia freudiana tem sua base no modelo feminino da histeria.

O processo de subjetivação da mulher passou a ser tema de problematização na psicanálise desde a construção fálico-édipica. Indagações de Freud em sua clínica que tiveram como arcabouço teórico as histéricas permitiram a concepção da psicanálise. A literatura e as diversas manifestações artísticas dão voz ao artista sem que o mesmo precise pronunciar uma palavra, pois sua expressão artística fala do mais puro que há em seu interior, a arte em sua diversidade dá lugar a voz do inconsciente. Voz que Freud proporcionou as mulheres de sua época ao estudar as histéricas. Que se expressavam por palavras escritas e endereçadas ao sigilo de seus diários, que eram como depositário de angústias utilizado pela mulher que não tinha usufruto da livre expressão. Seu falar estava outorgado a ditames sociais dirigidos ao espaço privado e ao controle político do sujeito-mulher que não podia ir contra à representação de poder da época- o homem.

Coforme Kehl (2008),

A histeria é a ‘salvação das mulheres’ justamente porque é a expressão (possível) da experiência das mulheres, em um período em que os ideais tradicionais de feminilidade (ideais produzidos a partir das necessidades da nova ordem familiar burguesa) entraram em profundo desacordo com as recentes aspirações de algumas dessas mulheres enquanto sujeitos (p.182).

Freud não só escutou a histérica como também a leu, pois foi a partir de uma histérica que se iniciou a associação livre e houve a articulação de saberes. A mulher passa a ser inscrita na psicanálise, passando a ser re/pensada não apenas no viés daquela inscrita na falta fálica, mas a partir dos construtos que envolvem o desenvolvimento da menina em mulher e passaram a ser articulados de modo que o feminino pudesse adentrar no contexto social.

Em 1931, Sigmund Freud apresentou seus estudos subsequentes da sexualidade feminina, a qual é recoberta por uma série de indagações teóricas, por não haver algo que a defina com a precisão necessária para o campo científico como é visto no caso da sexualidade masculina. As lacunas existentes no estudo a respeito da mulher podem ser referentes ao investimento teórico-metodológico, aos inúmeros trabalhos realizados com foco no sujeito masculino e ao descaso com o feminino deixando-o fixado ao espaço privado, como sendo o único lugar por direito e dever da mulher.

A complexidade no desenvolvimento da sexualidade feminina é compreendida pelo fato de que a menina terá que abandonar o clitóris, sua principal zona genital, pela vagina, onde o abandono se faz necessário pelo vínculo que há entre pênis e clitóris (pênis defeituoso). Consecutivamente, a troca de objeto original também é realizada e a mãe é substituída pelo pai. Os vínculos mútuos dessas tarefas ainda não estão claros (FREUD, 1931).

Segundo Freud (1931), os efeitos do complexo de castração na mulher são diferentes dos efeitos nos homens. Ela se reconhece como inferior ao homem por ser castrada, e assim, coloca o homem numa posição de superioridade. Três linhas de desenvolvimentos são decorrentes dos efeitos provocados pelo complexo de castração: na primeira a atividade fálica e sua sexualidade são abandonadas, na segunda se detém a esperança de em alguma ocasião conseguir um pênis e na última, caso seja a linha seguida, será atingida a atitude feminina normal na qual o pai é tomado por objeto no lugar de seu objeto original- a mãe, dando início ao complexo de Édipo feminino, que é resultado de um processo bastante demorado e de modo algum superado pela mulher.

Há muito tempo, por exemplo, observamos que muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai, não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães (FREUD, 1931, p. 239).

Em 1924, pela primeira vez, Freud inicia a identificação da diferença no curso do desenvolvimento da sexualidade em meninos e meninas. A identificação das diferenças permitiu a produção de seus artigos direcionados ao feminino: A Sexualidade Feminina (1931) e Feminilidade (1933). Freud deparou-se com dificuldades ao falar de mulher já que seu referencial era o masculino. Concordando com Kehl (2008), situamos que: “[…] para o criador da psicanálise as mulheres permaneceram atadas a este ‘estado de natureza’ pela força das representações das funções reprodutivas do corpo materno […]”. Em contrapartida, a esperança de ser promovido ao estatuto de “seres da razão” é oferecido ao homem pela psicanálise. O modelo fálico-edípico reverberou as concepções de masculino e feminino, proporcionando reformulações importantes relativas às subjetividades masculinas e femininas (CAVALCANTI, 2009), permitindo assim, a mulher adentrar a um novo espaço de compreensão na psicanálise.

Mesmo com o passar dos tempos, ainda é possível observar dificuldades na conquista de um posicionamento sexual na atualidade, as mudanças passaram a ser decorrentes do revolucionário movimento feminista que veio possibilitar o início do apagamento das diferenças sexuais até então vigentes, deslocando a mulher da posição social a qual estava submetida na época em questão. (PINHEIRO, 2003).

Em seu texto Feminilidade (1933), Freud afirma que através da história o enigma da natureza feminina tem feito pessoas quebrarem a cabeça, concluindo que o que constitui a masculinidade e a feminilidade foge ao alcance da anatomia, pois aquilo que lhes é constituinte é uma característica desconhecida. “No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica.” (p.128) O autor pontua que o desejo do pênis é por excelência um desejo feminino.

Por enquanto, quero chamar a atenção para a inexistência, na cultura em que Freud viveu, de um lugar social para a fala e a produção discursiva de algumas mulheres não suficientemente identificadas com os “ideais de feminilidade” de seu tempo (KEHL, 2008, p.256).

Freud em seus textos não levou em conta o lugar ocupado pela mulher na cultura em que vivia ou sugeriu a restrição ao espaço doméstico e suas extensões, onde em função das limitações da referida “natureza feminina” seria o espaço doméstico o seu “habitat natural”. O discurso sobre as características da mulher na teoria freudiana fundamentam-se na concepção de uma natureza feminina determinada totalmente pelo corpo, ou seja, pelos órgãos genitais da mulher, hipoteticamente impossíveis de simbolização (KEHL, 2008).

Para Freud, existe uma disposição bissexual na mulher já que a mesma, diferente do homem que carrega consigo um único órgão genital, a mulher obtém dois: um análogo ao masculino, o clitóris e o feminino, a vagina. Derivam desse ponto as diferenças do desenvolvimento sexual, pois a mulher no primeiro momento sentiria prazer pelo clitóris, posição masculina, e, no segundo momento o prazer seria sentido pela vagina, endossando à mulher a posição feminina, já que o prazer foi deslocado do órgão tido como ativo para o passivo. Assinalado por Freud (1933) a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, mas indaga como se dá o desenvolvimento da criança provida da disposição bissexual em mulher. Porquanto, descrever o que é a mulher trata-se de uma tarefa difícil de cumprir.

Há pelo menos dois aspectos, porém, que poderíamos considerar intrigantes, os quais Freud não consegue explicar. Inicialmente seria o fato de que na época apareceram muitos relatos de mulheres que possuíam impulsos vaginais desde a primeira infância, diferentemente do que pensava o autor, pois este acreditava que tais impulsos somente aconteceriam na puberdade. Além disso, chamava atenção o fato de que muitas mulheres ainda na idade adulta continuavam sentindo prazer pelo clitóris, fato que ele confessa não conseguir compreender (CAVALCANTI, 2009, p. 99).

O deslocamento de zona erógena da mulher, pontuado por Freud, enfatizava o exercício do papel social da mulher. “Para tanto, o orgasmo vaginal e a sexualidade passiva se adequavam como uma luva aos ditames da maternidade.” (CAVALCANTI, 2009, p. 99). E dessa maneira, a expectativa dirigida à função da mulher de sua época era atendida.

Mais adiante em seu texto de 1933, Freud atribui algumas características femininas que viabilizam a manutenção do casamento e do lar como sendo próprias das mulheres. “Um casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe” (p. 132-133). Salientando que, grandes números de mulheres mesmo em idade madura continuam dependentes de um objeto paterno, ou propriamente do pai real. A ambivalência vivenciada na fase edípica é de suma importância para as escolhas realizadas pelas mulheres na fase adulta e para a permanência nessas decisões mesmo estando as mesmas fadadas ao fracasso (FREUD, 1933).

Enfim, pelas diferentes configurações da inibição sexual, da histeria e da virilização, as mulheres estariam inscritas nos campos da anomalia e até mesmo da franca patologia libidinal, afastando-se decididamente do encontro com a plena feminilidade, que apenas se daria com a assunção da maternidade (CAVALCANTI, 2009, apud, BIRMAN, 2001, p.25).

O fato do pênis se destacar como suporte corporal para encarnar a função do falo, dá ocorrência à diferenciação produzida pelos efeitos simbólicos na menina e no menino. Na própria teorização da sexualidade construída por Freud a constituição sexual se dá a nível simbólico e não biológico. (PINHEIRO, 2003). Segundo Birman (1999) a crença maior da arrogância masculina em relação às mulheres é acreditar ser portador de um poder superior pelo fato de obter o pênis como atributo do falo. Contudo, não ter o pênis como atributo do falo seria a fonte proverbial de sua inveja, sendo o signo maior da inferioridade das mulheres.

O repúdio dos homens e das mulheres diante da feminilidade vem testemunhar a perda dos emblemas fálicos e narcísicos, pois esta experiência, que se apresenta além da regulação do falo, implica justamente a suspensão do autocentramento da subjetividade, sustentado pelo referencial fálico, onde os homens e as mulheres se protegeriam dessa experiência de inquietação face à sua fragilidade e incompletude (NÉRI, 2005, p.220).   

Ao finalizar o texto de 1933, Freud menciona que descreveu as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual e que suas contribuições estão fragmentadas e incompletas, deixando claro que cabe ao leitor aguardar até que a ciência possa dar informações mais profundas e coerentes. Mais coerentes por sua contradição ao descrever a mulher tomada pela referencia de sua função sexual de procriar, onde anteriormente, conclui que o que constitui masculinidade e feminilidade foge ao alcance da anatomia. Portanto, cabe salientar que a feminilidade é alcançada pela mulher como enfatiza o próprio autor, quando o deslocamento de zona erógena é realizado do clitóris para a vagina. (FREUD, 1931).

Neste texto, podemos observar alguns pontos que localizam a mulher na teoria freudiana, bem como a construção de feminino para Freud. A importância da cultura foi essencial por a mesma demarcar o lugar a ser ocupado pela mulher, de maneira que ao ser construído o conceito da teoria referente à sexualidade feminina sistematicamente a cultura da época esteve presente diretamente e indiretamente em seus efeitos no modo de ver e compreender a mulher e no discurso vinculado ao feminino.

Compartilhe este conteúdo:

5 Lições de Psicanálise: um retorno à gênese freudiana

Compartilhe este conteúdo:

O presente texto aborda os principais conceitos de teoria desenvolvida por Sigmund Freud no texto “Cinco Lições de Psicanálise”. Ao longo do trabalho buscou-se uma compreensão dos conceitos apresentados pautada nas explicações dadas pelo próprio autor longo de sua obra.

As Cinco Lições de Psicanálise compreendem uma síntese de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 – 1939), em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts – EUA. Nesse evento, Freud tem o desafio de trazer para uma classe não médica – principal público que vinha aderindo à psicanálise até o momento – os principais conceitos de sua teoria, esta ainda vinha sofrendo fortes críticas pela sociedade tradicionalista de Viena daquele período.

Diante a particularidade da plateia do evento, o autor busca trazer em uma linguagem mais clara e acessível, os principais conceitos da nova abordagem, ilustrando com relatos de casos clínicos o tratamento psicanalítico para os – assim chamados – males do espírito. O texto está dividido em cinco partes que tratam da história e fundação da Psicanálise. Nele Freud descreve seu processo psicanalítico com relatos precisos de casos clínicos, narrando sistematicamente como se deu o desenvolvimento de sua teoria e técnica.

Breve Histórico do Autor

Sigmund Schlomo Freud – ou Sigmund Freud – (1856-1939) foi um médico, especializado em neurologia e criador da teoria psicanalítica.

De origem judaica, era o primogênito da família. Freud sempre demonstrou talento em sua vida escolar/acadêmica, sendo o primeiro aluno da turma durante 7 anos (FREUD, 1925, p.16 apud FADMAN & FRAGER, 1986, p.03).

Prosseguindo seus estudos, interessou-se pela carreira médica e ingressou-se na Universidade de Medicina de Viena 1873. Interessou-se por histologia e publicou artigos sobre anatomia e neurologia (FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

Aos 26 anos Sigmund Freud recebeu seu diploma de medicina e, tendo-se casado 1886, precisou abandonar a carreira teórica em busca de melhores salários, desse modo ele se tornou interno no principal hospital de Viena onde fez o curso de Psiquiatria. Ainda apaixonado pelas explorações científicas, entre 1884 e 1887 Freud realizou pesquisas relevantes sobre a cocaína e seu efeito no Sistema Nervoso Central, mas logo ele mudou essa posição ao constatar os malefícios de suas propriedades viciantes, interrompendo essa pesquisa (FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

Tendo conseguido uma bolsa de estudos em Paris para trabalhar no Hospital Psiquiátrico Saltpêtrière com Charcot (1825 – 1893), Freud ingressou nos estudos sobre histeria com sugestão hipnótica. Ele constatou que o sintoma histérico era uma doença psíquica. Essa aproximação com Charcot e com a histeria foi decisiva para a consolidação da psicanálise. Após a conclusão de seus estudos com em Saltpêtrière, Freud concluiu que

os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse) (FREUD, 1914, p.17 apud FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

De volta a Viena, em parceria com seu ex-professor e incentivador Breuer, Freud aprofunda seus estudos sobre a histeria, utilizando-se da hipnose como instrumento terapêutico, a qual ele logo abandona logo em seguida pela sua ineficácia. Em 1896 Freud emprega pela primeira vez o termo “psicanálise” para descrever seu método.

Freud dedica sua vida a desenvolver, ampliar e consolidar sua teoria. Em 1900 ele publica um de seus trabalhos mais revolucionários, a Interpretação de Sonhos. Logo uma serie de médicos interessados pelo seu trabalho formam um circulo em torno de Sigmund Freud e a psicanalise é disseminada, após sua conferencia em 1910 nos Estados Unidos da América (EUA), suas obras são traduzidas para o inglês e sua teoria é disseminada pelo mundo, influenciando principalmente a Medicina, a Psiquiatria e a Psicologia (FADMAN & FRAGER, 1986, p.05).

1ª Lição

Na primeira lição, Freud fala de seu trabalho com o médico Joseph Breuer (1842 – 1925), e confessa ter sido o próprio Breuer o primeiro a utilizar a técnica que, tempos depois, viria a ser chamada de Psicanálise.

O primeiro caso relatado por Freud, diz de uma jovem vienense, 21 anos com um quadro sintomatológico muito particular:

Tinha uma paralisia espástica de ambas as extremidades do lado direito, com anestesia, sintoma que se estendia por vezes aos membros do lado oposto; perturbações dos movimentos oculares e várias alterações da visão; dificuldade em manter a cabeça erguida; tosse nervosa intensa; repugnância pelos alimentos e impossibilidade de beber durante várias semanas, apesar de uma sede martirizante; redução da faculdade de expressão verbal, que chegou a impedi-la de falar ou entender a língua materna; e, finalmente, estados de `absence‘ (ausência), de confusão, de delírio e de alteração total da personalidade […] (FREUD, 1910, p. 8).

Essa configuração de vários sintomas incomuns apresentados ao mesmo tempo, mas sem causa objetiva (comprovada por exames médicos), e com forte apelo emocional, constituía o quadro de histeria.

É importante ressaltar que, como mencionado pelo próprio Freud (1910, p.9), para a medicina daquele período, os quadros de histeria eram descreditados, e/ou enfrentados com descaso pela comunidade médica. Comparado com alguém que apresentava um quadro patológico com causa orgânica comprovada via exame objetivo, o paciente histérico era deixado para segundo plano, “pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave” (idem).

O diferencial do Breuer foi dar a essa jovem em questão à atenção merecida. Freud relata que o médico observou os estados de alteração da personalidade acompanhada de confusão (absence), da jovem e percebeu que ela murmurava algumas palavras que pareciam ter relação com “aquilo que lhe ocupava o pensamentos” (Freud, 1910, p. 9). Breuer anotou tais palavras e induziu sua paciente a um estado hipnótico onde as repetiu, esperando que ela associasse junto a essas, novas ideias.

Em estado de hipnose, a paciente começava a reproduzir para o médico as fantasias de onde haviam sido tiradas aquelas palavras. Observou-se também que as criações psíquicas (devaneios) “tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem à cabeceira do pai doente” (Freud, 1910, p. 9).

Os estados de absence cessavam após a jovem relatar um grande número de experiências, ela então se sentia “como que aliviada e reconduzida à vida normal” (Freud, 1910, p.09). Breuer e Freud notaram que esse bem-estar só vinha posteriormente à revelação das fantasias.

[…] A própria paciente, que nesse período da moléstia só falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de `talking cure’ (cura de conversação) qualificando-o também, por gracejo, de `chimney sweeping’ (limpeza da chaminé) (Freud, 1910, p.09).

O caso sugeria que os sintomas da jovem tinham origem em traumas psíquicos vividos no passado. Tais traumas eram, portanto, resíduos e símbolos mnêmicos resultantes de experiências emocionais anteriores frustradas “[…] e o caráter particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena traumática que o causara” (FREUD, 1910, p.10). Pode-se averiguar, pelos relatos verbais da jovem atendida por Breuer, que seus traumas tinham forte ligação com o evento da morte do seu pai, e seu sentimento de culpa em relação a isso.

A análise do caso levou Freud a concluir que “onde existe um sintoma, existe também uma amnésia, uma lacuna da memória, cujo preenchimento suprime as condições que conduzem à produção do sintoma” (FREUD, 1910, p.14).

Freud e Breuer ainda notaram que, nem sempre, o sintoma histérico era causado por um único evento. Comumente, estes quadros patogênicos eram resultados de cadeias de traumas interligados de forma análoga e repetida. A cura, portanto, se dava pela reprodução dos traumas psíquicos em ordem cronológica inversa, ou seja, do ultimo trauma para o primeiro, até chegar-se ao evento traumático originário do transtorno (idem).

2ª Lição

Freud relata a forte influencia das pesquisas de Charcot sobra à histeria exerceram em seu trabalho e a necessidade que ele teve em abandonar o método da hipnose em seus atendimentos, uma vez que nem todos os seus pacientes era sugestionáveis à hipnose e pelo caráter de não cientificidade da técnica utilizada por Breuer.

Por meio da entrevista clínica de seus pacientes em estado consciente Freud sugere que eles recordassem o máximo de elementos possíveis, a fim de identificar as memórias e associa-las ao trauma originário do sintoma, o que ele chama de método catártico. O que não é tão simples, pois se percebia uma forte resistência do paciente em acessar estes conteúdos traumáticos. Com o passar do tempo, o autor percebeu a existência de uma força maior que faz com que as memórias ligadas ao trauma originário permaneçam no inconsciente, tornando os inacessíveis para seus pacientes, denominada por ele: Repressão (FREUD, 1910, p. 15).

Freud (1909, p. 16), reconhece na repressão o mecanismo patogênico da histeria. Trata-se do aparecimento de um desejo violento e incompatível com o ego do paciente, devido às cobranças morais da sociedade e à sua própria personalidade. Por não ter mecanismos para lidar com a carga afetiva do desejo, a psique desloca a ideia da consciência para o inconsciente, onde ela permanece reprimida/inacessível (idem).

Uma vez que o conteúdo reprimido retorna à consciência, ou seja, após desfeitas as resistências – o que se da por meio da análise psicanalítica – o conflito psíquico se desfaz, dando fim ao sintoma. Freud entende que existem três mecanismos relacionados com fim do sintoma (cura da neurose),

[…] Ou a personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama `sublimação’ do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático por isso mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do homem – o controle consciente do desejo é atingido (FREUD, 1910, p. 18).

A função do mecanismo da repressão é, basicamente, evitar o desprazer, de modo a proteger a personalidade psíquica. Ele é regulado pelo Principio do Prazer, ou seja, a tendência inconsciente que todos temos de incentivar o que é prazeroso e evitar o desprazer (FREUD, 1910, p. 15).  Sendo a repressão à força que impede o evento traumático de recobrar a memória, Freud entende que a cura do paciente, só poderia ocorrer após a supressão de todas as resistências ligadas ao trauma originário.

3ª Lição

Freud desenvolve sua teoria a partir do Determinismo Psíquico, pressuposto no qual se acredita que eventos ocorridos na infância (passado) têm relevância no modo como o sujeito atua no presente (FREUD, 1910, p. 19). Sob essa ótica, pode-se crer que existem duas forças antagônicas sobrepondo-se constantemente na psique: uma tentando trazer à consciência o conteúdo reprimido enviado ao inconsciente, outra impedindo a passagem do conteúdo reprimido de volta à consciência (resistência).

Outro pronto relevante é que o conteúdo reprimido ao retornar à consciência sofre deformações por parte da resistência, quanto maior a resistência maior a deformação do conteúdo reprimido. (FREUD, 1910, p. 19). O chiste é um dos vários mecanismos da psique para dar vazão ao potencial energético reprimido. Ele é um substituto do(s) conteúdo(s) inconsciente(s) que sofre(m) deformação por parte da resistência para emergir a consciência – nesse caso – em forma de gracejo/piada/humor, tirando o foco do trauma original, o chiste permite que o conteúdo se torne consciente sem agredir o ego do paciente (idem).

Freud (1910, p. 20), chama esses conteúdos ideacionais interdependentes, catexizados de energia afetiva de “Complexo”. Na clínica psicanalítica, utiliza-se a fala desordenada do paciente, que é estimulado a falar abertamente sobre o assunto de seu interesse, por acreditar que ela (a fala) não destoará daquilo que mais lhe agride, no caso, o conjunto de traumas (complexo) investigado. Por esse método, denominado “Associação Livre” o terapeuta tem acesso ao conteúdo reprimido. Por mais cansativo que pareça esse método de investigação, identificação e eliminação dos complexos por meio da livre associação de palavras, segundo Freud, é ele, seguramente, “o único praticável” (idem).

Dentre as técnicas psicanalíticas para acesso ao inconsciente Sigmund Freud aponta: a associação livre de palavras (citada à cima), a interpretação de sonhos, e o estudo de lapsos ou atos casuais.

A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise” (FREUD, 1910, p. 21). Os sonhos são a realização de desejos inconscientes. Comumente a análise de sonhos é ridicularizada pelo senso comum, por se apresentarem, na maioria das vezes, de forma confusa e sem nexo. Freud alude para o fato de que nem todos os sonhos são de difícil interpretação. “A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez” (FREUD, 1910, p.22). No adulto não seria tão diferente, contudo ele traz uma bagagem de vida com mais elementos que a criança, mas a compreensão dos seus sonhos é possível mediante uma análise clínica minuciosa.

Todos os sonhos são compostos por elementos conscientes (verbalizados) e inconscientes (não verbalizados). O processo de formação do sonho tem mecanismos muito semelhantes aos do sintoma histérico. “O conteúdo manifesto do sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes do sonho” (FREUD, 1910, p.22), e sua interpretação assemelha-se com o processo de associação livre do histérico.

Os conteúdos manifestos dos sonhos, elementos simbólicos verbalizados pelo paciente após o sonho, se diferem do conteúdo latentes: elementos simbólicos cujo paciente não tem mais acesso após o sonho, pois se encontram armazenados no inconsciente.  Os conteúdos latentes sofrem deformação pela resistência, para conseguir tornarem-se conteúdos manifestos. Por meio da análise dos elementos simbólicos do conteúdo manifesto no sonho do paciente, pode-se chegar ao conteúdo originário do trauma, que sempre estará relacionado a um desejo não satisfeito (FREUD, 1910, p.22).  É um processo muito semelhante ao da formação do sintoma no histérico. Logo, o psicanalista, ao abdicar a aparente conexão entre os elementos manifestos dos sonhos, buscando evocar no paciente as ideias suprimidas por meio da livre associação, ele conseguirá acessar os elementos latentes do sonho. Ao processo no qual o conteúdo latente do sonho se transforma em conteúdo manifesto Freud deu o nome de “Elaboração Onírica” (idem).

Esse material associativo que o doente rejeita como insignificante, quando em vez de estar sob a influência do médico está sob a da resistência, representa para o psicanalista o minério de onde com simples artifício de interpretação há de extrair o metal precioso(FREUD, 1910, p. 21).

Para Freud (1910, p.23), os pesadelos, contudo, não se contrapõem ao que foi dito até agora, mas eles demostram uma clara relação com a ansiedade para realizar o desejo reprimido. do neurótico. Pode-se concluir que a interpretação de sonhos, quando não a não nos direcionam para o excesso de resistências do paciente, leva-nos ao conhecimento dos seus desejos ocultos e reprimidos, como no caso dos pesadelos.

Baseado no Determinismo Psíquico, Freud conclui que a vida onírica do homem adulto carrega consigo todas as aspirações e peculiaridades de sua vida desde a infância. Pela análise dos sonhos ele chegou à conclusão de que “o inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais” (FREUD, 1910, p.23).

Outro elemento de peso na análise dos conteúdos inconsciente são os atos falhos. Eventos cotidianos sem importância aparente, mas que para a psicanálise, dado o Determinismo Psíquico, tem forte relevância. Como o esquecimento de coisas que deveriam saber (como nome de pessoas próximas), ou lapsos de linguagem, além de gestos rotineiros (manias) como piscar um olho, roer unha, etc., são elementos fundamentais da clínica psicanalítica por serem de fácil interpretação e terem relação direta com o trauma reprimido. Para o autor, esses atos/impulsos dizem de conteúdos que deveria permanecer reprimidos no inconsciente. Eles são de grande valor, pois “testemunham a existência da repressão e da substituição mesmo na saúde perfeita” (FREUD, 1910, p.24).

A análise de sonhos, atos falhos e associação livre de palavras, juntos fornecem ao psicanalista os elementos – mais do que suficientes – para trazer a tona o material psíquico patogênico originário do sintoma, dando fim ao quadro patológico resultado da “produção dos sintomas de substituição” (FREUD, 1910, p.25).

4ª Lição

Nessa lição Freud alude para o fato de como a teoria psicanalítica relaciona os sintomas mórbidos com a vida erótica do paciente. Para ele, o sintoma tem ligação direta com componentes instintivos eróticos, logo, as “perturbações do erotismo têm a maior importância entre as influências que levam à moléstia, tanto num como noutro sexo” (FREUD, 1910, p. 26).

Na quarta lição Freud aborda a ligação dos sintomas mórbidos com a vida erótica do paciente, contudo, ele alega uma grande dificuldade em se conceber – principalmente para a medicina – que o quadro patológico do paciente tenha relação direta com sua vida sexual. Freud chega a afirmar que sua experiência clínica não lhe deixa dúvidas (1910, p. 26). Certo de sua premissa, ele alega que uma das principais dificuldades do tratamento psicanalítico é o fato de as pessoas terem dificuldade em falar abertamente de sua vida sexual. Comumente eles omitiam detalhes e/ou distorciam informações, o que, segundo ele, diz de uma tendência social, e não exclusiva de seus pacientes. Logo, eles apenas repetiam um modelo que já existe há séculos, uma espécie de pacto coletivo, que nos impede de falar da vida erótica sem restrições (idem).

Contudo, há percalços quanto ao entendimento do sintoma mórbido e a investigação da vida passada do paciente (infância e adolescência) a fim de investigar possíveis eventos causadores do sintoma no presente. Freud alerta para más interpretações de sua teoria. Todavia, o exame psicanalítico pretende não ligar o sintoma a fatos sexuais, mas sim, ao modo como os acontecimentos traumáticos da história de vida do paciente ficam impressos em sua psique.

Ainda nesta lição ele faz uma afirmação ainda hoje criticada pela sociedade: a constatação da sexualidade infantil. Para o autor,

A criança possui, desde o princípio, o instinto e as atividades sexuais. […] Não são difíceis de observar as manifestações da atividade sexual infantil; ao contrário, para deixá-las passar desapercebidas ou incompreendidas é que é preciso certa arte(FREUD, 1910, p. 27).

Freud atribui ao peso da educação e da civilização a resistência da sociedade em não admitir a sexualidade na infância. Para ele o exercício da autoanalise nos permitiria desfazer essas barreiras (FREUD, 1910, p.28). A sexualidade nessa fase da vida, não está diretamente ligada à reprodução, do contrário, diz da estimulação de zonas sensórias do nosso corpo ligadas ao prazer libidinal. O prazer sexual infantil estaria ligado à excitação dessas zonas corpóreas particularmente excitáveis, “além dos órgãos genitais, como sejam os orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies sensoriais” (idem).

Nessa fase do desenvolvimento sexual, o prazer é alcançado no próprio corpo, dai o nome “auto-erotismo”  proposto por Havelock Ellis (1859 – 1939), e do  qual Freud se apropria para se referir a justificar certos comportamentos sexuais da criança. Ele cita como exemplos, a satisfação do desejo de sucção do bebê no ato de chupar/mamar o dedo, a e excitação masturbatória dos órgãos genitais. Acontece ainda na infância a escolha do objeto de desejo sexual, sendo esta outra pessoa, que não a própria criança. Aqui cabem alguns esclarecimentos: por ainda não ter uma representação sexual totalmente definida, esse objeto de desejo da criança pode não ter obedecer a uma representação exclusivamente heterossexual, contudo isso não resultará respectivamente em um adulto homossexual. Constantemente essa escolha objetal tem mais ligação com as considerações relativas ao instinto de conservação (FREUD, 1910, p. 29).

A escolha objetal da criança se da inicialmente entre seus cuidadores, depois entre seus genitores para, por fim, focar-se em um só como receptáculo de seus desejos eróticos. Para Freud o incitamento do desejo vem dos próprios pais e do modo de cuidado com a criança, que tem em origem (inconscientemente), cunho sexual (1910, p. 30). Mais comumente, “O pai em regra tem preferência pela filha, à mãe pelo filho: a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da filha” (idem). Os sentimentos ambivalentes (ternura e hostilidades) nascidos dessa relação formam o Complexo de Édipo. Contudo, a pulsão sexual não permanece nos pais, sendo reprimida no primeiro momento, numa fase posterior do desenvolvimento psicossexual a criança tende a investir sua libido em direção a pessoas desconhecidos (ibidem, 31).

5ª Lição

Na ultima das cinco lições Freud recobra os principais conceitos da psicanálise trabalhados até o momento, inclusive a sexualidade infantil, e a relação do complexo de Édipo com a formação do sintoma nos neuróticos. Logo, os indivíduos adoecem quando são privados de satisfazerem suas necessidades sexuais (libidinais).

Dentre os mecanismos empregados na repressão da pulsão está o intento, por parte do paciente, em fugir da realidade, levando – de modo inconscientemente – sua psique a estágios anteriores do desenvolvimento psíquico, o que Freud chama de Regressão. A Regressão apresenta-se sob dois aspectos distintos: “temporal, porque a libido, na necessidade erótica, volta a fixar-se aos mais remotos estados evolutivos – e formal, porque emprega os meios psíquicos originários e primitivos para manifestação da mesma necessidade” (1910, p.32).

Comumente, durante o tratamento psicanalítico, surge nos neuróticos um sintoma identificado como “Transferência”, isto é: o paciente reproduz no terapeuta uma serie de sentimentos afetuosos, vez ou outra, mesclados de hostilidade, provenientes de fantasias inconscientes (FREUD, 1910, p.33). Trata-se de um fenômeno global, não restrito do setting terapêutico, mas que abrange espontaneamente todas as formas de relações humanas. A análise desse fenômeno torna-se uma ferramenta valiosíssima para o psicanalista no tratamento de seus pacientes, na identificação da origem sintomas reprimidos (idem).

Nesta lição Freud ainda identifica três mecanismos pelos quais ele acredita que o sintoma neurótico pode ser desfeito:

O primeiro se dá pela conscientização do conteúdo reprimido, que acontece durante o tratamento psicanalítico. É comum que o sintoma ao ser conscientizado seja anulado pela ação mental, que substitui a repressão pelo julgamento de condenação efetuado com mecanismos superiores do próprio ego. Outra solução apresentada, considerada por Freud a mais eficaz, seria a Sublimação, mecanismo de defesa do ego, onde a energia proveniente dos desejos libidinais infantis é empregada em atividades de cunho artístico e/ou intelectual, de valor social. A esse respeito Freud afirma que

[…] Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele, está novamente livre o caminho para a sublimação (FREUD, 1910, p.34).

Por ultimo ele aponta a plasticidade, uma característica nata do ser humano: a plasticidade dos instintos sexuais por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa das pulsões (idem).

Em última análise

É possível perceber a partir da leitura do texto que a construção da teoria psicanalítica estava intimamente ligada com a vida e as impressões de Sigmund Freud. Suas colocações eram, para a sociedade vienense daquele período, inconcebíveis, mas cheias de significados. É notório que dada à mudança na ordem social atual, e a própria concepção de sexo e sexualidade atual tornam algumas das ideias de Freud ultrapassadas, contudo, essa mudança se deve, em grande parte, pelas contribuições psicanalíticas à ciência e a sociedade. A medicina, a psiquiatria, a psicologia, dentre outras ciências, foram diretamente impactadas pelas ideias Freudianas.

Todavia, a leitura das 5 Lições de Psicanálise, como texto introdutório à teoria de Freud torna-se valida pela leveza da linguagem e cuidado com a qual o autor aborda os principais conceitos psicanalíticos até então empregado, proporcionando ao leitor, principalmente o iniciante, um melhor entendimento de sua obra. Outros autores, inicialmente discípulos de Freud, como Carl Gustav Jung, discutem se a sexualidade tem efetivamente papel central na vida do individuo e na formação do sintoma psicótico, o que levou a vários teóricos a romperem com Freud.

Com efeito, as ideias sobre sexualidade na infância e Complexo de Édipo ainda enfrentam resistências por muitas correntes de pensamento, mas se dúvida alguma, proporcionaram um novo olhar sobre a infância, o cuidado com as crianças e o tratamento clínico de transtornos psíquicos, tal como a histeria, antes tida como tentativa de chamar a atenção, portanto, indigna de real atenção pela medicina, como cita o próprio Freud na primeira lição.

 

Compartilhe este conteúdo:

O Príncipe das Marés: uma visão Psicanalítica

Compartilhe este conteúdo:

O filme O Príncipe das Marés, de 1991, dirigido por Barbra Streisand, narra a história da família Wingo, que marcada por uma trajetória de profunda violência, enfrenta os problemas deixados por essa realidade.

A família Wingo reside na Carolina do Sul e é formada pelos pais, que durante a trama se separam, e três filhos. A relação familiar era turbulenta, devido ao pai ser violento e alcoólatra. Frente a tantos problemas Savannah, filha do casal, passa a tentar suicídio diversas vezes. Diante de uma dessas crises, Tom irmão de Savannah se dirige a New York a chamado da psiquiatra de sua irmã, na tentativa de poder colaborar com o tratamento. E a partir de então vários acontecimentos que marcaram essa família são revelados.

A partir de uma análise do filme baseada no olhar psicanalítico, foi possível identificar na história dos personagens alguns elementos defendidos por essa abordagem.

Cena 1: Durante uma caminhada na praia, Sallie, esposa de Tom Wingo tenta conversar sobre a relação, mas Tom muda de assunto o tempo inteiro. E isso ocorreu também durante os encontros com a psiquiatra, nos quais ele evitava assuntos relacionados ao seu passado familiar.

Articulando com a psicanalise podemos perceber a presença de um mecanismo de defesa, sendo estes, processos subconscientes que possibilitam a criação de estratégias para solucionar conflitos, ansiedades, hostilidades, impulsos agressivos, ressentimentos e frustrações não solucionadas no nível da consciência. Os quais o ego utiliza para dissociar sentimentos ou impulsos tidos como ameaçadores para e integridade do sujeito (SILVA, 2010). Entre esses encontra-se  a resistência que segundo Paniago (2008, apud LOPES, 2012), é um mecanismo inconsciente ligado à parte do eu regida pelo princípio de realidade, que procura saídas contra a invasão dos elementos indesejáveis provenientes do próprio inconsciente e dos conteúdos recalcados. Quanto mais pressionado o eu se encontra, mais fortemente se apega a resistência.

Assim, durante a relação terapêutica, as reações do analisando que se constituem como obstáculos à evolução do tratamento e dificultam o acesso deste aos conteúdos do seu inconsciente, são determinadas pelas resistências que se manifestam à medida que o trabalho terapêutico se aproxima de uma representação. De acordo com Lopes (2012, s/p), “alguns aspectos de uma resistência podem ser conscientes e outra parte fundamental é realizada pelo ego inconsciente. As resistências são repetições das produções defensivas realizadas pelo paciente em sua vida”.

Cena 2: Apesar de assumir que tentou esquecer o passado e mesmo não muito conformado, Tom aceita colaborar com Susan no tratamento de sua irmã, onde aceitou relembrar alguns acontecimentos importantes para a evolução do quadro de Savannah. Aceitando se encontrar mais vezes com Susan.

A partir desses primeiros encontros que são de extrema importância para a psicoterapia psicanalítica Tom estabeleceu um vínculo com a psiquiatra, de maneira que propiciou a firmação da aliança terapêutica, fazendo com que ele contribua com tratamento, de modo ativo. O paciente estabelece acordos conscientes com o terapeuta a cerca do tratamento (FRONCKOWIAK; DEVIT; HOPPE, s/d). Após essa estruturação Tom se implica no processo, mesmo resistente passa informações importantes para a resolução dos mistérios da família Wingo.

Cena 3: A terapeuta narra para Tom que precisa da ajuda dele para ajudar Savannah porque precisa de informações sobre a infância dela mas ela não consegue contar porque “há passagens na vida dela que ela bloqueou, apagou”. Ela precisa de Tom para preencher os espaços em branco. No decorrer do filme Tom narra que a mãe teve um bebê em casa que nasceu morto, e ela os culpou pela morte dele. Iam enterrar no dia seguinte enquanto isso o bebê ficou no congelador. Ao levantar à noite viu Savannah, que na época tinha entre 7 ou 8 anos,com o bebê nos braços, sentada na cadeira de balanço, dizendo “você tem sorte, não vai conviver conosco”. No dia seguinte ela não se lembrava de ter feito isso. A partir desse episódio, os sinais e sintomas começaram a aparecer.

O trauma, segundo Laplanche e Pontalis (2001, pág. 522), é um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Os traumas são formados por mais de um acontecimento, e podem deixar lacunas uma vez que a repressão (que exclui do consciente a lembrança patogênica) e a resistência (força que impede o acesso da ideia incompatível ao consciente), agem numa intensidade proporcional ao sofrimento. Essa lacunas são preenchidas por sonhos, chistes, atos falhos, e inclusive sintomas.

O lapso na memória de Savannah com relação a fatos ocorridos na infância pode ser explicado através desse conceito. Não sabendo lidar de forma adequada ao acontecimento traumático, ficando impotente diante dele, houve uma utilização anormal dos afetos contidos nele. Dois dos fenômenos lacunares que surgem são os sintomas e sonhos.

Cena 4: Desde o primeiro encontro entre Tom e a terapeuta Suzan, ele se mostra cínico e irônico ao relatar acontecimentos relacionados a sua infância e a de Savannah. Quando questionado sobre o motivo de fazer tais piadas com assuntos sérios, responde que é o jeito do Sul.

Nessa cena é possível ver claramente a utilização de um mecanismo de defesa chamado Chiste.

A palavra chiste, oriunda do alemão Witz, significa “gracejo”, e é encontrada na obra de Freud, que o define como uma espécie de válvula de escape de nosso inconsciente, utilizado para dizer, em tom de brincadeira, aquilo que verdadeiramente se deseja (RABUSK , pág. 1, s/d) .

Assim, o discurso do personagem carregado de chistes, em praticamente todo filme, demonstra a forma que ele encontrou, mesmo que inconscientemente, de lidar com a temida realidade causadora da angustia e sofrimento que ele quer a todo custo evitar.

Cena 5: A psiquiatra Susan revela que Savannah, que utilizava o codinome Rafaela, escrevia seus livros inspirados em conteúdos oníricos, que era sua forma de ligação com seu passado, uma vez que haviam muitas lacunas em sua memória referente a isso.

Os sonhos são a realização dos desejos inconscientes. A simbologia do sonho está diretamente relacionada aos conteúdos latentes (motivações inconscientes) que, através dos mecanismos de defesa, sofreram modificações originando o conteúdo manifesto (o que lembramos ao acordar). Condensação e deslocamento, são os mecanismos de defesa que agem nos conteúdos dos sonhos fazendo com que estes se manifestem de maneira distorcida, impedindo que esse conteúdo manifesto seja associado ao conteúdo latente, ou seja, que haja sua conscientização e elaboração.

Dessa maneira podemos afirmar que o passado reprimido de Savannah, encontrou nos sonhos uma maneira de manifestar-se, que sob efeito da condensação e do deslocamento ganhavam uma forma fantasiosa e que era por ela utilizada numa atitude de sublimação para contar aquilo que ela nem se lembrava mais.

Cena 6: Tom se recorda sobre um fato de sua infância no qual seu pai se irrita com uma comida servida por sua mãe. Tom diz ter gostado seu pai o pergunta quem o perguntou, Tom começa a chorar e o pai o proíbe e insinua que quem chora é “Marica”. E no final do filme onde Tom recordando sobre o passado, quando ele sua mãe e irmã foram estuprados, evita chorar, reprimindo a dor.

Tom reprime o choro como maneira de evitar o contato com a dor, mantendo-a á distancia.

Cena 7: Tom conta durante o encontro terapêutico que quando era pequeno numa conversa com a mãe, Lila, ela lhe disse que ele era o único que ia se dar bem na vida, pois Luke não era esperto e Savannah era mulher. Tom não concordou. A mãe disse ainda que amava Tom e que ele era seu favorito, e o ama mais que aos outros, mas isso era um segredo deles. Tom diz em terapia que levou 20 anos para contar esse segredo, e quando contou descobriu que a mãe havia dito a mesma coisa para os irmãos. Contou isso à psiquiatra como forma de justificar sua falta de confiança na mãe, afirmando que ela era uma mentirosa.

Em outra cena conta sobre a traição da esposa e diz que não fazia a menor ideia, e é indagado se estava atento. Alega que as mulheres são mais sacanas que os homens, escondem o jogo e vivem sorrindo, esperando que o homem seja uma fortaleza e quando ele demonstra fraqueza simplesmente o traem. Susan pergunta se Tom acha que sua mãe o traiu, ele responde que estava falando de sua mulher.

Tom era hostil em algumas sessões com a terapeuta, quando essa o questionava sobre seu passado ao lado de sua família, sendo tal atitude justificada na raiva que sentia de sua mãe, ocasionada por ter descoberto que quando ela disse que era o preferido havia na verdade dito isso para os outros filhos também.  Dessa maneira, nesse campo, a transferência refere-se ao “fenômeno pelo qual um estado afetivo é transportado do objeto que provocou primitivamente para um objeto diferente” (LAGACHE, 1990, pág. 102). Os sentimentos não são justificados na realidade terapêutica entre Tom e Susan.

Da mesma maneira desconfiava das mulheres, de maneira que percebia seu casamento com um olhar de frustração, transferindo expectativas não cumpridas originadas na relação com sua mãe na infância para esta relação. Devido à mentira de sua mãe que até o momento não havia sido perdoada por ele, fazendo com que esses sentimentos sejam reeditados em suas demais relações.

Cena 8: Quando a psiquiatra, Susan Lowenstein, pede ajuda a Tom para que ele seja  a “memória de Savannah”, e lhe conte sobre o passado da dela, ele com muita resistência lhe confessa um dos grandes segredos de sua família, conta sobre o episódio em que sua casa foi invadida e sua mãe, ele e a irmã foram estuprados; o outro irmão, Luke, chega no momento do estupro e mata dois dos bandido a tiros, e a mãe mata o outro. Depois eles se livraram dos corpos. Ele relata que depois foram obrigados pela mãe a fingir que nada tinha acontecido e que o assunto foi proibido, e nunca havia sido contado para mais ninguém. Tom resiste, mas acaba chorando.

Assim, percebemos que o evento traumático não estava inconsciente e sim no nível de pré-consciência, estando disponível para se tornar consciente dependendo do grau da energia investida no esforço para conscientizar, de modo que ainda provocava intenso sofrimento em Tom, sempre vindo à tona e o atormentando.

No tratamento psicanalítico, somente a conscientização de um trauma não garante que ele seja elaborado, ou seja, que novas configurações da experiência traumática sejam construídas permitindo que o sujeito se distancie dela “podendo vislumbrá-la como uma representação, uma vez que é possível o esquecimento e não apenas o silêncio forçado” (FRIEDL; FARIAS, 2012, pág. 22).

A cena permitiu observar que partir do momento que Tom conseguiu contar os acontecimentos para a psiquiatra, livrando-se do esforço reflexivo que desde o episódio do estupro fizera, para não entrar em contato com essas lembranças, ele se sentiu melhor, porém não conseguia entrar em contato com a dor. Depois que Tom, se permitiu chorar e expressar o sofrimento que aquilo tudo lhe causara com uma intensidade afetiva proporcional a do momento do fato traumático, pôde elaborar e liberta-se do peso e das angústias causadas por esse sofrimento que ficou tanto tempo intocável.

FICHA TÉCNICA 

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991

Compartilhe este conteúdo:

O Diabo Veste Prada: o sujeito no mundo contemporâneo

Compartilhe este conteúdo:

“A inteligência
é o único meio que possuímos
para dominar os nossos instintos.”

Sigmund Freud

Uma das maiores e mais notáveis características da contemporaneidade é a contradição que nos enreda, e, com certeza, confunde. No filme O Diabo Veste Prada, evidenciam-se questões tão complexas como felicidade e sofrimento, que, em nosso século, tornam-se cada vez menos discutidos e mais difundidas em meio a uma rotina compulsória que deixa de ser vivida – apreciada – e passa a ser consumida freneticamente.

Em contexto mais amplo, não sobra tempo para pensarmos sobre nós mesmos, ou trabalhar conflitos de ordem pessoal.  Imperados pelo princípio do prazer, deleitamo-nos sobre nossa própria maldição – o consumismo moderno – e nos deixamos levar pelo gozar, gozar e gozar por cima de nossos desalentos, a sobrevida. Aparentemente, é esse o atual o sentido da vida: o gozo a qualquer preço. Sem balancear seus riscos e benefícios.

Andrea Sachs, conhecida como Andy, (personagem de Anne Hathaway), é uma jovem e talentosa jornalista, que acaba indo trabalhar na maior revista de moda do país. Tendo agora como chefe a surpreendente Miranda Priestly, (Meryl Streep), ditadora da conceitual revista de moda Runaway.

Miranda, famosa por seu temperamento hostil, é uma das mais importantes celebridades do mundo da moda. Eficiente e focada em sua carreira, é extremamente rígida em seu ambiente de trabalho, dificulta a inserção de Andy no perfil de trabalhadores do núcleo de produção da revista. A editora chega a chamar Andy de “a moça gorda” (para os padrões de beleza da revista), porém inteligente.

Após vários conflitos e embates no local de trabalho, e de cogitar uma demissão, desistindo do estágio que lhe proporcionaria um bom currículo para empregos futuros, Andy acaba externando seu desespero e decepção com um dos estilistas da revista, Nigel, (Stanley Tucci). Este atua como um verdadeiro analista para com a doce menina, mostrando a ela que a realidade é bem diferente e muito mais ampla do que o mundo que seu ego havia idealizado.

De volta à consciência, Andy se vê determinada a conquistar seu espaço naquele mundo, imergindo num mundo de valores e conceitos que, segundo ela sempre repetia, eram alheios ao seus, mas que ela abraçou tão rapidamente, que ela passa a agir conforme os modelos que ela sempre criticava. O que pode ser interpretado como um mecanismo de defesa do seu ego (Formação Reativa), que não aceitava que ela, vestida de um ego culto, não poderia se deixar levar pela futilidade – assim como ela chamava – do consumismo do mundo contemporâneo. Ao longo do filme, a jornalista externaliza conflitos internos, caindo em contradições, enquanto imerge no mundo, agora fantástico, da fama, deixando de lado, família e amigos.

Miranda Priestly é outra personagem que nos proporciona uma visão panorâmica da antítese que é sua existência. Ela apresenta um comportamento autoritário, consequência de sua busca incessante por gozo e satisfação, para manter sua imagem perfeita, o qual ela tenta compensar sendo a fada madrinha de suas filhas. Ela realiza todos os desejos das meninas, mesmo que para isso seja necessário sacrificar a sanidade de seus funcionários. As ricas meninas são coibidas de passar por qualquer restrição, e assim, privadas do sofrimento, o que indica um sintoma marcante de nossa contemporaneidade, a satisfação a qualquer custo.

A mensagem central do filme é pautada na “Escolha”. Andy passa grande parte do filme privando-se de tomar decisões por conta própria, depositando noutros a responsabilidade por tornar-se o ser desprezível que ela tanto criticava.

Após desestruturar inconscientemente todo seu mundo e vínculos sociais, os quais ela tanto prezava, Andy viaja a trabalho para Paris, onde passa por novas e significativas experiências, que lhe despertam para as entrelinhas do universo do qual ela agora fazia parte, partindo para uma autorreflexão. Nesse momento ela é acordada para um insight, e pode perceber o sujeito que ela realmente quer ser, frente a uma realizada que não condiz com sua visão subjetiva de mundo.

Agora, a personagem que no início, se fazia autônoma e indiferente ao sistema capitalistae estilo de vida consumista, guiado por modismos e padrões a serem seguidos, é capaz de ser e estar numa realidade, sem deixar-se imergir a tal ponto que se esquece de suas particularidades subjetivas, Andy torna-se sujeito, não indiferente ao mundo que a cerca, mas ciente do que pode/deve/quer fazer nele.

Esse relato contempla uma história fictícia da realizada onde a personagem central para pôr uma transição, ondeo ego de Andy perpassa o extremo de dois mundos opostos para enfim, alcançar o equilíbrio, tornando-se sujeito. É uma lição de aprendizado para os seres humanos, na construção de suas histórias de vida, pessoal e coletiva, onde o primeiro passo é, certamente, escolha de quem nós queremos ser.

 

 

 

FICHA TÉCNICA

O DIABO VESTE PRADA

Título Original: The Devil wears Prada
País: Estados Unidos
Direção: David Frankel
Roteiro: Aline Brosh Mc Kenna
Elenco:  Adrian Grenier, Anne Hathaway, Emily Blunt, Gisele Bündchen, Meryl Streep, Stanley Tucci, Tracie Thoms
Gênero: Comédia/Drama
Duração: 109 min
Ano: 2006

Compartilhe este conteúdo:

Ninfomaníaca I : quando o sexo vira uma obsessão

Compartilhe este conteúdo:

Sexo, prazer e fetiches. Ainda que estejamos em uma nova era, das tecnologias avançadas e da livre expressão artística, estes temas ainda são tratados como tabu por muitas pessoas e, é claro, reprovados por olhos que condenam e deixam de lado qualquer que seja a naturalidade das coisas. Sim, porque não há nada mais natural do que o Sexo.

Um filme que apresenta o título “Ninfomaníaca” (Nynpohomanic) já demonstra que não há nada a esconder, portanto não existem razões para o espectador esperar por algo simples, suave e maleável, ainda mais quando se trata de um longa dirigido por Lars von Trier, responsável por filmes completamente perturbadores.

Lars von Trier não economiza nas emoções e provocações.  Suas obras cinematográficas são providas das mais inquietas emoções humanas, exploram fantasias dementes capazes de provocar uma inquietude sem tamanho a quem o assiste. Além de tudo, von Trier traz uma imagem distorcida da personalidade humana, trabalha a fundo como a imagem do ser humano pode ser mais obscura que se pode imaginar, adota um gênero de tortura psicológica e física, destrói conceitos simplistas, eleva a complexidade humana. Expõe inúmeros temas que a sociedade faz questão de manter oculto. Através de von Trier chegamos ao fanatismo religioso, a mutilação do corpo, a perversão nua e crua, a destruição do amor e a luxúria do corpo.

Trier é, acima de tudo, um ser sem filtro. Capaz de provocar os mais diversos sentimentos nas pessoas, porque seus filmes são, de fato, nada convencionais. Ninfomaníaca segue à risca as características que transformam os filmes de Trier em obras assustadoramente fascinantes, assim como Anticristo, produzido em 2009.

Ressalto aqui que, para demonstrar a grandiosidade desse autor, quando questionado sobre a violência exposta em Anticristo, Trier respondeu com total sinceridade e realismo “Simplesmente achei que seria errado não mostrar. Sou um cineasta que acredita que devemos colocar na tela tudo o que pensamos. Sei que é doloroso ver, mas esse filme tem muito a ver com essas dores.”Deixando claro, a quem quer que seja, que seus filmes passam longe do gênero imaginário e que sua principal função é expor as entranhas humanas que escondem sentimentos e emoções que merecem serem exploradas e trabalhadas.

Então encontramos uma mulher jogada ao chão, completamente desnorteada, maltratada, carregando um imenso fardo de culpa. A mulher é Joe (Charlotte Gainsburg) que, quando socorrida por Seligman (Stellan Skarsgärd), se apresenta como um ser humano indigno de pena, um ser egoísta e perverso, “sou uma pessoa ruim”. Deitada sobre uma cama, Joe discorre lentamente sobre sua vida, desde a tenra infância até, possivelmente, aquele momento em que foi encontrada em um beco, pelo judaíco, aparentemente apreensivo, mas ao longo da trama apresenta uma personalidade no mínimo contraditória.

É importante ressaltar que Ninfomaníaca é dividido em duas partes, logo, não se pode esperar um final ou algo que explique o porquê de Joe ter sido abandonada em um beco e porque essa mulher se encontra cheia de hematomas e remorso. Ainda assim, trata-se de uma história comovente e densa, tanto pelo tema abordado quanto como a forma que o tema foi abordado. De antemão, o filme traz inúmeras cenas de sexo e nudez explicita e que por vezes isso traz um tom apelativo ao filme. São cenas carregadas e ricas em detalhes – sexo oral, penetração, excitação, masturbação -, mas é justamente através delas que se pode chegar a uma ideia do que a protagonista esperava, sobre o que ela tanto buscava; a busca incansável de sentir algo, de sentir-se completa. Seja lá o que seria esse “algo” e esse “completo” que Joe esperava.

Joe conta para Seligman de como descobriu o prazer. De como, quando criança (10 anos), descobriu que poderia ter uma sensação sublime ao deitar no chão e esfregar-se contra ele. De como decidiu perder sua virgindade (16 anos) e o que aconteceu logo após descobrir o sexo. Conhecemos então a jovem e inocente Joe (Stacy Martin), com uma expressão impenetrável e indecifrável. Logo depois a imagem de um ser egoísta e cruel toma o lugar da imagem de moça inocente – a viagem de trem, sexo no banheiro, um pacote de chocolate como troféu – Dar-se, então, o início da longa, prazerosa e tortuosa jornada de Joe. Apesar das histórias insólitas, Seligman não demonstra nenhum julgamento e faz comparações entre o sexo e atividades comuns – pescaria.

Destaco aqui que a cena de Joe deitada na cama contando sua história e Seligman ouvindo – hora dando pontuações, hora fazendo intervenções – nos remete a ideia de um setting terapêutico, onde Joe está num divã e demanda sua queixa e Seligman é o terapeuta, que busca formas de compreender os problemas e inquietações da mulher.

Ao iniciar suas narrativas para Seligman, e para nós, Joe traz à tona os detalhes de suas intimidades, passa a deixar claramente que são informações pessoais, embora imundas e que a torna um ser repugnante – segundo a própria personagem -. Joel parece confessar um crime, ou um segredo. Não dá nomes, apenas iniciais, aos seus amantes ou cúmplices. As cenas são minuciosamente descritas, o que as tornam cada vez mais proibitivas, mais profundas.

Quando narra seus comportamentos, suas aventuras sexuais e seus dramas existenciais, Joe conta com sinceridade e devoção o que provocava seu prazer em cada um de seus atos. O que cada um, dos seus inúmeros parceiros, tinha ou fazia que a excitava. É então que obtemos dois pontos cruciais ao longo dessa narrativa:

Temos, primeiramente, a visão de Joe sobre a sua própria história. Cheia de podridão humana, de sexo sujo, depravado e desonesto. Trata-se de uma vida mundana, sexo pútrido e carregado de sentimentos egoístas. Ela se autodiagnosticou como “ninfomaníaca”, aquela que buscava prazer, que só se preocupava com a própria satisfação e que não se afetava com os danos causados por seu vício.

Por outro lado temos a visão de Seligman, que não a vê como detentora de um desejo fétido e mortal, mas como algo positivo. Uma característica singular que não a isenta da normalidade, que não a difere dos outros seres. Seligman, acima de tudo, busca maneiras de reverter a visão pessimista de Joe.

Agora o público tem duas visões diferentes e algumas questões: o que o sexo traz de ruim e o que ele traz de bom? Quando o sexo deixa de ser algo natural e passa a ser patológico? A busca desenfreada pelo prazer e satisfação pode ser considerada, como Joe encara, como algo doentio?

Segundo a literatura psiquiátrica, a Ninfomania é um transtorno sexual compulsivo, trata-se da disfunção onde a mulher sente uma vontade incontrolável de manter relação sexual. O transtorno compulsivo sexual atinge tanto homens quanto mulheres, no entanto, o termo “ninfomania” é atribuído somente ao público feminino, nos homens o transtorno é chamado de Satiríase. Tal transtorno também é chamado de transtorno do desejo sexual hiperativo, compulsão sexual, hipersexualidade ou apetite sexual hiperativo. Mas, apesar da variedade de nomes dado a esse fenômeno sexual, o que determina se a mulher é ou não uma ninfomaníaca não é apenas o excesso do desejo sexual mas sim a falta de controle sobre o desejo.

Mas Joe possui Transtorno Sexual Compulsivo? Como se trata da história parcial de Joe não se pode afirmar com clareza se ela é ou não portadora desse transtorno. No entanto, com observações diante de sua narrativa, chega-se à conclusão que ela é uma ninfomaníaca, de fato. Uma vez que ela usa o sexo diante de várias razões: fuga, culpa, castigo, autoconhecimento, satisfação, número excessivo de parceiros, entre outros.

Joel afirma que quando jovem o sexo era usado como uma arma aniquiladora, criada para exterminar o amor, reduzir esse sentimento a nada. Com o tempo ela trata o sexo como fuga, com o ato sexual ela esquece suas dores, suas tristezas, ao final dele ela desmonta em lágrimas, a dor está de volta. Mas, acima de tudo, o sexo é o complemento, é através dele que ela se sente preenchida e completa.

De acordo com a psiquiatria para que uma mulher seja diagnóstica como ninfomaníaca, um conjunto de comportamentos deve ser enquadrado ao ato sexual compulsivo, porém, ainda não existe um consenso sobre o tipo de transtorno e classificação correta sobre o que acarreta esse transtorno. Alguns estudiosos dizem que o transtorno obsessivo-compulsivo de caráter sexual está associado a outros transtornos de personalidade, como bordeline e/ou histrionismo, é considerado também como um tipo de vicio, assim como drogas, álcool e jogos.

Existem alguns comportamentos que descrevem um possível transtorno compulsivo sexual. Sendo eles;

  • Fantasias sexuais de forma recorrente e intensa;
  • As fantasias ou os impulsos sexuais ocorrem com frequência, sem controle;
  • As fantasias atrapalham na concentração; nas atividades; no trabalho; estudo; convívio social;
  • Há sofrimento causado nas relações interpessoais;
  • Masturbação Excessiva;
  • Relação sexual com um ou diversos parceiros;
  • Compulsão por diversos relacionamentos afetivos;
  • Uso abusivo de pornografia e sites eróticos.

Joe, em uma de suas histórias, conta como precisou manusear sua agenda de encontros, como cada parceiro tinha sua hora e até mesmo como decidiu escolher a forma de tratá-los. Sem coração, sem afeto, sem amor. Joe é também uma verdadeira atriz, comove seus parceiros, manipula um por um, de forma sádica. Os faz sentir-se bem, amados e idolatrados ou, ás vezes, odiados e rebaixados, mas sem, de fato, possuir tais sentimentos e opiniões. É apenas um jogo, só há um vencedor, ela.

Ao longo da história um sentimento de contradição nos acomete. Joe diz, algumas vezes, que não sentiu remorso por nenhum dos danos que provocou aos outros, não se sentiu mal, não sentiu nada. Ao passo de que, ao contar os fatos, suas expressões são de quem se castiga impiedosamente por cada ato cometido, alguém que carrega a culpa da destruição do mundo – o mundo de pessoas alheias à ela-. Alguém que diz inúmeras vezes “eu sou um ser humano ruim”.  Esse sentimento contraditório percorre até o final da primeira parte de Ninfomaníaca, o que torna a trama ainda mais perturbadora. “O que essa mulher quer passar, realmente?”.

Joel é um ser que simboliza o vazio existencial, alguém sem vísceras sentimentais, sua busca incansável por um complemento humano a leva para um mundo obscuro, sem regras e pudores. O corpo excitado quando criança, escolher o primeiro parceiro por causa de suas mãos fortes, aceitar participar de uma viagem promíscua que a faz construir o conceito de “homem-objeto”, a confissão de se sentir molhada diante de um fato familiar, torna Joe cada vez mais difícil de decifrar.

O amor também se encontra nas inquietações de Joe, embora tão pouco. A questão fundamental que von Trier traz ao filme, será que é possível que alguém tão carnal, desprovida de sentimentos, pode sentir o amor? Poucas vezes a protagonista parece se embebedar de amores. Com exceção da devoção ao pai, apenas uma única vez Joe demonstrou ter sentimentos românticos por outra pessoa. A mulher imunda de hematomas continua vazia.

As analogias, também, são um ponto forte do filme. Trier trabalhou perfeitamente nesse quesito. Não existem exageros. O sexo aqui foi comparado as coisas mais simples e poéticas que podemos conhecer.

  • O Sexo e a Pesca

Os homens são os peixes – vocês as iscas.

  • O Sexo e as Fórmulas Logarítmicas
  • O Sexo e a Música – música matemática de Bach

Johann Sebastian Bach foi um dos primeiros músicos a perceber que separando as notas musicais de determinadas maneiras era possível produzir sons mais ou menos agradáveis. Passou, então, a experimentar e aplicar acordes em suas composições de piano, órgão e cravo (CLIKEAPRENDA, 2012 s/p).

Todas as contradições exploradas no decorrer da trama também banham o final da primeira parte de Ninfomaníaca. Joe agora nos conta sobre seus três amantes preferidos, enquanto as cenas que se reproduzem na imaginação de Seligman são expostas. Uma cena se intercala na outra, várias cenas, do início do filme ao momento atual da história, também se misturam. É êxtase. A cena mais intima que o público poderia esperar e, portanto, a mais incompreensível. Demasiadamente perturbadora.

Diria eu que este é um filme para os amantes da psicanálise. Um retrato fiel das explicações de Freud sobre a personalidade e a sexualidade.

  • Joe e o Complexo de Édipo – “meu pai sempre foi o legal, minha mãe sempre a ruim”
  • Joe e a Fixação – sexo
  • Joe e Fetichismo – mãos fortes
  • Joe e as Regras – transgressões e cumprimento de suas leis
  • Joe e a Perversão
  • Joe e o Sentimento – amor, desejo, emoção, afeto

Ou, em uma outra visão, Lars von Trier quer falar sobre o Amor, em suas diferentes formas? Por que não? Em uma das cenas Joe diz que o amor é apenas uma luxúria com um acréscimo de ciúmes, nas seguintes, mostra como se distanciou definitivamente desse sentimento. Seria esse um filme que demonstra a destruição do amor? O sexo seria um rival desse sentimento?

Lars Von Trier, na minha opinião, usa o sexo como recurso estético para justificar a destruição do amor e do sentimentalismo. Aliás, esse filme fala sobre amor. De uma maneira bem singular, Lars Von Trier constrói cinco capítulos em que nós observamos a protagonista Joe (Charlotte Gainsbourg) vencer todo o tipo de amor: conjugal, carnal, paterno (FARIAS, W. 2014, s/p)

Das mil maneiras que o filme pode ser interpretado assim como as incontáveis sensações que ele nos desperta, é crucial a neutralidade de julgamentos e entender que trata-se de uma obra incompleta, o final impactante mas pouco compreensível não representa a conclusão da situação de Joe. Existe, na verdade, uma única constatação: Joe ainda está vazia.

SAIBA MAIS:

http://www.saudesublime.com/ninfomaniaca/

FARIAS Willian. Análise do filme Ninfomaníaca em: http://trailertododia.com/dissecamos-todos-os-capitulos-de-ninfomaniaca-e-descobrimos-que-o-filme-fala-de-amor/

FICHA TÉCNICA:

NINFOMANÍACA

Direção: Lars von Trier
Elenco Principal: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Satcy Martin, Shia La Beouf, Uma Thurman
Gênero: Erótico, Drama
Países: Dinamarca, Alemanha, Bélgica, França
Ano: 2014

Compartilhe este conteúdo:

Histeria – A ausência de afeto como causa patológica

Compartilhe este conteúdo:

Um dos filmes mais interessantes lançados recentemente é “Histeria” (Vários países – 2012), que trata do surgimento do popular (e ainda alvo de preconceito) vibrador, ou consolo. A comédia dramática se passa no intenso final do século XIX, época base da constituição psicanalítica, marcada por uma verdadeira “epidemia” de histeria, patologia até então atribuída exclusivamente ao sexo feminino, já que a medicina vigente utilizava-se do sentido estritamente etimológico para o termo, onde hysterikos se referia a uma suposta condição médica causada por perturbações no útero, hystera, em grego. Mais tarde, obviamente, se percebe que o problema não é peculiar à mulher, e que também acomete homens, embora em menor grau.

O filme usa uma linguagem leve para demonstrar que, na tentativa de encontrar um alívio para aquelas senhoras e senhoritas de diferentes idades, um jovem médico acaba por inventar um equipamento que substitui as mãos nas massagens/estímulos vaginais, já que ele desenvolveu um trauma em suas mãos, pela quantidade de intervenções que fazia diariamente; até então a massagem era única alternativa para aplacar as crises que acometiam as nobres pacientes. Lembremos que não se tinha claro que a histeria poderia ser decorrente de conflitos internos (pulsões reprimidas) que se manifestavam em sintomas físicos. Dentre outras coisas, pensava-se que era uma doença decorrente da ausência de “ventilação sanguínea” adequada na região uterina. O filme não se preocupa em mostrar esta faceta da doença, e sim exclusivamente o surgimento do vibrador.

No entanto, a invenção em si do apetrecho já descamba, numa análise mais ampla, para a questão do afeto (sua ausência, neste caso) como desencadeador de processos patológicos, outro viés que se pode abordar a partir do filme. E neste contexto é interessante observar como a medicina (bem retratada no filme pelos personagens dos doutores Mortimer Granville e Robert Dalrymple), a psicanálise, a filosofia da mente, a filosofia da psicanálise, e bem mais recentemente a psicologia, avançaram neste aspecto.

Para além da ficção, nos últimos 80 anos – e com mais vigor de 20 anos para cá – são inúmeros os trabalhos de pesquisa e as abordagens clínicas que seguem o rastro da dupla médica de “Histeria” e procuram demonstrar a relação entre produção (ou ausência) de afetos e as patologias relacionadas à psique. O mais famoso caso, provavelmente deve ser do médico americano Dean Ornish.

Se à época em que se passa o filme em questão a histeria era atribuída a distúrbios químico-orgânicos, com o passar do tempo esta e outras patologias foram estudadas sob novas perspectivas e, deste esforço, um dos mais incríveis resultados é a pesquisa de Dr. Dean, publicada no livro “Amor & Sobrevivência”, e que de alguma maneira, pelas “mãos” de um médico, é mais uma forma de tentar dirimir o sofrimento das pessoas que não conseguem lidar com suas questões internas.

Impossível ver o longa “Histeria” e não associá-lo ao trabalho do americano, que aborda a base científica para “o poder curativo da intimidade”. E por intimidade, neste caso, não se restringe as relações sexuais propriamente ditas mas, antes, toda relação em que o afeto dá o tom da interação.

Embora o simples, porém impactante pressuposto de Dr. Dean Ornish de que “nossa sobrevivência depende do poder curador do amor, da intimidade e de nossos relacionamentos como indivíduos, comunidades” não tenha sido abordado claramente no filme (apesar da relação amorosa do Dr. Mortimer Granville e da filha de seu sócio, Charlotte Dalrymple), as duas obras mantém pontos de contato, pontos estreitos e que tem como foco a “construção interna” como mecanismo que desencadeia tanto equilíbrios quanto desequilíbrios no corpo. Dr. Dean Ornish demonstra que “mudanças significativas no estilo de vida de cada um podem reverter doenças”.

Apesar de um enfoque maior nos pacientes com problemas no coração, o livro do Dr. Dean também dedica parte do espaço para aquelas pessoas, a exemplo das retratadas no filme “Histeria”, que têm dificuldade de tocar o próprio corpo (algo que é estimulado em algumas práticas orientais, como o Yoga e o Tai Chi Chuan, só para citar algumas) e o corpo das outras pessoas (como a aversão em abraçar ou beijar alguém). Estas pessoas estariam mais propensas a desenvolverem doenças. No filme, era notória a melhora das mulheres quando submetidas “ao toque” do médico. Apesar de aqui não haver o afeto em seu sentido estrito, no entanto o simples fato de se tocar o corpo da paciente já suscitava melhoras surpreendentes.

Em súmula, o que tanto o filme “Histeria” quanto o livro “Amor & Sobrevivência” abordam, em linhas gerais (porque há muitas outras “chaves” para se aprofundar, mas este artigo ficaria muito extenso) é que a observância do próprio corpo (e de suas necessidades mais básicas, como o ato de se tocar e/ou tocar outras pessoas), as relações afetivas e as construções sociais sadias são alguns (mas não exclusivamente, para que não se caia num dogmatismo) dos fatores predominantes para se evitar patologias de toda ordem, que variam desde alterações de humor e sentimentos reprimidos que resultam em problemas mais agudos, como em alguns casos a histeria, até patologias mais graves, como doenças cardíacas.

A dica do Dr. Ornish para que se evite no futuro novas ondas de patologias mentais (como ocorre em “Histeria”), dica esta que também foi defendida pelo filósofo e psiquiatra húgaro/americano Dr. Thomas Szasz, é que a noção de doença, em especial a mental, tem que ser conduzida como uma questão de relacionamento, seja interno, externo ou ambos.

O vibrador foi e continua sendo uma alternativa adequada para (a mulher em particular) “lidar” com o próprio corpo. No entanto, assim como para enfrentar um problema maior, mais sutil, não basta prescrever doses diárias de Prozac (que podem maquiar as causas de tal problema), as questões que se escondem nos recônditos do ser devem ser enfrentadas com (boa) vontade e tempo, tanto do paciente quanto do terapeuta. Dois ingredientes aparentemente em extinção na contemporaneidade, mas que devem ser perseguidos para que haja sucesso nos fins.

 

FICHA TÉCNICA

HISTERIA

Título Original: Hysteria
Países: Reino Unido/França/Alemanha/Luxemburgo
Gênero: Comédia / Drama
Direção: Tanya Wexler
Roteiro: Stephen Dyer, Jonah Lisa Dyer, Howard Gensler
Elenco: Hugh Dancy, Maggie Gyllenhaal, Felicity Jones, Jonathan Pryce, Rupert Everett, Ashley Jensen, Sheridan Smith
Ano: 2012
Duração: 100 minutos

Compartilhe este conteúdo:

Ilha do Medo: entre traumas e conflitos

Compartilhe este conteúdo:

Suspense psicológico é um gênero de filme que traz em seu contexto a união do suspense e dos elementos mentais da psicologia. “Ilha do medo” está em quarto lugar na lista dos 10 Melhores Suspenses Psicológicos1, justamente por manter o espectador desorientado durante toda a passagem da trama.

Baseado no livro homônimo de Dennis Lehane, Ilha do Medo é uma história recheada de suposições e reviravoltas. Martin Scorsese, autor e diretor do filme, conseguiu unir características fundamentais para que a trama pudesse prender o espectador do início ao fim e permitindo que a sensação de desorientação estivesse presente ao longo de toda a história.

O ano é de 1954. Através da nevoa a balsa surge. O navio se aproxima da ilha Shutter, no posto de Boston, sede do Asilo Ashecliffe – uma instituição federal de segurança máxima para criminosos insanos-. A bordo encontram-se Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) com vertigem, molhado e com os olhos vermelhos, repetindo para si mesmo: Controle-se Daniels, controle-se” e Chuck Aule (Mark Rufallo) seu parceiro de trabalho.

Teddy é um agente federal que foi enviado para Ashecliffe para investigar o desaparecimento misterioso da assassina Rachel Solando (Emily Mortimer), presa por assassinar o três filhos e o marido. Durante as investigações os médicos Cawley (Ben Kingsley) e Naechring (Max Von Sydow) mostram-se resistentes e não estão dispostos a fornecer informações sobre a paciente ou como funciona o asilo, o que aumenta a desconfiança do detetive diante do episódio de desaparecimento de Rachel. Apesar das inúmeras tentativas de colher informações que possam ajudar na investigação, bem como levantar hipóteses do que teria acontecido, todas são mal sucedidas e incompletas, deixando sempre uma certeza, para Teddy e para quem o assiste, há algo errado.

Funcionários, seguranças e pacientes parecem agir compactuando com a lei do silêncio, ou com a lei de confundir Teddy e Chuck. Não existem depoimentos coesos ou que se encaixam uns com os outros, alguns pacientes relatam momentos incompreensíveis e que não condizem com a suposta fuga da paciente.

Para conduzir a investigação Teddy conta com a ajuda dos seus “sonhos” com sua esposa Dolores (Michelle Williams) morta em um incêndio que ele julga ter sido causado por um piromaníaco. Além dos seus sonhos também surgem flashbacks da época em que Teddy era um dos soldados que participou dos extermínios nos campos de concentração nazistas, tornando a trama cada vez mais sombria e fazendo com que o personagem não seja visto somente como o herói da história. É possível entender seus conflitos e confusões, mas não a sentimos junto com ele. Suas alucinações são de caráter torturantes e conturbadas, há algo naquele homem que não foi superado, mas também são obscuras, mostrando que por trás do heroísmo que Teddy quer apresentar existem sombras que o escondem.

Durante uma crise de enxaqueca, Teddy necessita tomar remédios para aliviar as dores fortes de cabeça fazendo-o dormir por um bom tempo, nesse intervalo Rachel é encontrada, como se nada tivesse acontecido, sem nenhum ferimento ou sinais de fuga. Ao receber a informação do aparecimento da paciente, Teddy mostra-se desconfiado e confuso (não sabendo se essa confusão era por causa da medicação ou pelo aparecimento súbito de Rachel). As investigações tomam rumos diferentes, o detetive quer saber que segredos a ilha esconde e que não era por Rachel que ele estava lá. A investigação gira em torno das novas descobertas que Teddy fez: os médicos do asilo realizam experiências neurocirúrgicas com os pacientes, envolvendo métodos ilegais e antiéticos, Mas, nesta investigação, o detetive também enfrenta a resistência dos médicos para obter informações que possam ajudar na abertura do processo. Após um furacão que deixa toda a ilha sem comunicação e sem segurança, alguns internos conseguem escapar, tornando o lugar inabitável e mais perigoso do que antes.

O filme traz características que o tornam um suspense conturbado, que possibilita o desconforto e a confusão de saber o que é real e o que é imaginário. No cenário estão; psicologia versuspolítica, traumas pessoais e traumas sociais (históricos), guerra fria, holocausto, tratamento dos doentes mentais na época, alucinações ricas e detalhadas, flashbacks longos – permitindo maiores informações para que possamos entender o que se passa com os personagens-, experimentos com pacientes do asilo, conspirações entre outros aspectos que tornam o filme espesso e carregado de ideias de percepção.

No entanto, as fronteiras instáveis, vivenciadas no início da trama, entre o real e a fantasia, perdem um pouco da força no desenrolar dos acontecimentos, porque o filme começa a trazer por meio dos flashbacks características que deixam evidentes que toda a narrativa está agindo para manter em segredo algo imperceptível ao que ocorre. O espectador pode perceber facilmente as fragilidades do personagem central, um exemplo: as reações de Teddy no campo de concentração em Dachau. Essa quebra de fronteira permite que saibamos o que aconteceu, tornando o final mais próximo antes da hora. Porém, essa “falha” não retira a maestria do suspense e o final ainda é surpreendentemente arrebatador. O filme gira em torno, basicamente, da fragilidade da linha conceitual que separa a sanidade da loucura e o medo é o principal personagem e condutor dessa trama. É, também, um “prato cheio” para apaixonados por psicopatologias, psiquiatria e psicofarmacologia.

Nota:

1http://pipocatv.com.br/top-10/os-10-melhores-suspenses-psicologicos-dos-ultimos-anos/

 

FICHA TÉCNICA

ILHA DO MEDO

Título Original: Shutter Island
Lançamento: 2010
Tempo: 2h 18min
Direção: Martin Scorsese
Elenco Principal: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Bem Kingsley
Gênero: Suspense
Nacionalidade: EUA

Compartilhe este conteúdo:

A epidemia de doenças mentais

Compartilhe este conteúdo:

Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.

Mas a novela Machadiana – publicada pela primeira vez em 1882 – nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.

Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud – considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas – dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.

É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.


Nota: texto originalmente publicado em:
http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2012/02/epidemia-de-doencas-mentais.html

Compartilhe este conteúdo:

Moda e Psicologia: quais interfaces?

Compartilhe este conteúdo:

A Moda não pode ser vista de forma ingênua. Para além do consumo, da publicidade e da superficialidade, há um todo muito maior que deve ser considerado. Trata-se de um fenômeno social e histórico, que expressa a subjetividade das sociedades ocidentais pós-modernas (BARNARD, 2003; LIPOVETSKY, 2009). Devido a isso, deve ser estudado em toda a sua complexidade, e abordado por diferentes áreas do saber.

Enquanto fenômeno, a Moda pode ser compreendida pelo olhar da Psicologia Sócio-Histórica, que o conceitua como um processo em permanente movimento e transformação, que se encontra simultaneamente, dentro e fora dos indivíduos (BOCK et al., 2001). Isto leva a considerar a Moda como uma intrincada teia de múltiplas relações, onde cada homem tem sua parcela de contribuição num todo maior e, ao mesmo tempo, é influenciado por ele.

A partir desse movimento, se forma a subjetividade, que é ao mesmo tempo individual e coletiva, porque estas constituem momentos contraditórios que se integram na constituição da psique humana (GONZÁLEZ-REY, 2003). Não obstante, elas podem ser observadas em cada um destes momentos, porque a subjetividade individual está relacionada a história de vida, sentidos e significações de um indivíduo, ainda que esta seja permeada pelos valores sociais. Nas palavras de Bock et. al (2001, p.93) “a subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do sujeito concreto dentro de um sistema individual”.

Na moda, esta subjetividade individual pode ser observada no estilo de vestimenta, na forma como o indivíduo se apropria das tendências, nas peças que escolhe e no modo como as coordena. Ainda que os meios de comunicação influenciem os indivíduos sobre o que vestir, cada um poderá seguir essa moda ou não, apropriar-se de seus elementos. Uma vez que o fizer, será de um modo particular, de modo que é impossível que duas pessoas tenham seu vestuário idêntico.

Ainda que cada indivíduo se comporte de modo singular, é impossível deixar de considerar a subjetividade social, se constitui num complexo “sistema de sentidos procedentes de diferentes zonas do social” (GONZÁLEZ-REY, 2003, p.216) que, ainda que sejam produzidos individualmente, ganham caráter coletivo na forma de um discurso socialmente produzido, orientando as ações da sociedade como um todo.

Esta subjetividade social aparece nas tendências de moda, que estão vinculadas a um desejo coletivo e aos valores que predominam em um determinado momento na sociedade. Em geral são captadas por pesquisas de mercado e pela observação de estilos individuais que vão se generalizando, ganhando amplitude social. E é importante salientar que, enquanto parte da subjetividade social, a moda não está desvinculada dos diferentes sentidos e dos demais aspectos da sociedade pós moderna, como o consumismo, a tendência ao individualismo, a massificação e a valorização do novo.

Ainda que a subjetividade não tenha uma forma física, ela é formada pela ação do homem sobre o ambiente externo, e do efeito que isto produz em sua psique. Pois a “a alteração provocada pelo homem sobre a natureza altera a própria natureza do homem” (VIGOTSKI, 2000, p.73). Assim, ao produzir roupas e ao consumi-las, o homem modifica o ambiente e a si próprio, numa contínua interação. Ao se vestir, ele leva em consideração os diferentes cenários sociais e as relações daí decorrentes. A roupa, então, permite a apresentação do corpo no mundo, permitindo ao ser humano expressar sua identidade, seus valores, suas preferências estéticas e até mesmo seu estigma.

Além dessas interfaces entre Moda e Psicologia, existem outras, que não foram citadas aqui, como a Psicologia do Consumidor, a Psicologia das Cores. E ainda muitas outras, que ainda não foram construídas, mas que devem ser escritas a partir das conexões que se estabelecem entre as diversas áreas do saber, porque o conhecimento extrapola as rígidas divisões do saber consolidado.

Referências

BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria de Lurdes Trassi. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. 13ªed. São Paulo: Saraiva, 2001.

BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação. Trad. Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

GONZÁLEZ-REY, Fernando Luís. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Trad. Raquel Souza Lobo Luzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. 1ª reimpressão. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

VIGOTSKI, Lev S. A formação social da mente – O Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores. Trad. José C. Neto, Luís S. M. Barreto e Solange C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Compartilhe este conteúdo: