Glória Maria: um exemplo de representatividade para além do que podemos enxergar

Compartilhe este conteúdo:

Ela foi a primeira mulher preta a ser jornalista em uma TV nacional, deixando um legado que jamais poderá ser apagado. 

Glória Maria Matta da Silva foi uma das maiores protagonistas do jornalismo brasileiro. Nascida no dia 15 de Agosto de 1949, Rio de Janeiro, Glória foi a primeira jornalista a apresentar uma matéria ao vivo e a cores na Televisão do Brasil em 1977, época em que o jornalismo era majoritariamente dominado por homens. Segundo Ribeiro (1998), existia uma época em que as empresas jornalísticas pareciam ser feitas para serem ocupadas apenas por homens. Não havia banheiro feminino, as mulheres trabalhavam para servir os homens que ocupavam aquele espaço, sendo faxineira, atendendo telefone ou para fazer café. 

Glória começou sua carreira na faculdade Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), sendo graduanda de jornalismo e em conjunto com os estudos, trabalhava como telefonista na Embratel. Na década de 60 foi princesa do bloco carnavalesco Cacique de Ramos e na década de 70 entrou na Rede Globo como estagiária de jornalismo.

A apresentadora estudou em colégios públicos, onde era destaque, pois vencia os concursos de redação da escola. Também estudou inglês, francês e latim. Em 1971, quando cobriu o desabamento do Elevador Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, o seu trabalho de telefonista a ajudou no apuramento da veracidade da notícia e foi neste contexto que ganhou uma posição de destaque. Ela foi a primeira mulher, e não apenas mulher, uma mulher preta a conseguir um papel importante na sociedade, e em uma época em que a mulher e mulher negra era (e não deixam de ser nos tempos de hoje) um sujeito descartável.

No Brasil, as mulheres negras estão dentro de duas vulnerabilidades sistemáticas:  gênero feminino e raça. Podemos verificar essa vulnerabilidade no mercado de trabalho, por exemplo, contexto em que ocupações consideradas subalternas são socialmente associadas com mulheres negras. Ao longo dos anos 1970 e 1980, o trabalho doméstico feito por donas de casa não era caracterizado como atividade econômica (BRUSHCHINI, 2007). E na vivência das mulheres negras, a aniquilação de sua identidade profissional, de sujeito e indivíduo ainda é presente, por razões de estruturas hierárquicas de classe que ainda lhes são incumbido espaços e papéis quais são advindos da escravidão (NASCIMENTO, 2019). 

O feminismo enquanto um movimento político e social traz reflexões sobre essas categorias, mas apresenta algumas lacunas importantes a serem abordadas. Segundo Carneiro (2013) o feminismo brasileiro vem de um viés eurocêntrico, podendo apagar o caráter central da raça, as hierarquias de gênero e a universalização vindo de uma cultura particular (a ocidental, branca e europeia) para o grupo de mulheres. Assim, é passível a invisibilização da realidade da mulher negra e o apagamento do seu protagonismo na construção sócio-histórica do Brasil, que é carregada de lutas. O feminismo negro é contribuinte para essas mulheres que são enxergadas como objeto dentro de uma sociedade comandada por homens brancos. 

A sociedade estabeleceu a ideia de que mulheres negras existem apenas para servir aos outros, em decorrência da escravidão e exploração sexual que sofriam na “época” da escravidão (SILVA, 2014). As mulheres negras também sofrem invisibilidade em seus trabalhos, uma vez que não são vistas como referências nos trabalhos que ocupam (HOOKS, 1995). Na construção de um ideal, a branquitude, o corpo branco é idealizado, aquele que pode ser pertencente, atribuído a aristocracia, ao elitismo, o ser letrado e bem sucedido, o branco é o modelo que merece e deve ser contemplado. Diferente dos corpos negros, que são inapropriados, que não são pertencentes a algo ou lugar, existem para não pertencer, são corpos  descartáveis (MARTINS, 2021).

Fonte: Gabo Morales/Folhapress

Sendo pivô do seu protagonismo no jornalismo, em 1977 fez sua primeira, de muitas viagens internacionais para trabalho. Ela quem cobriu a posse do presidente estadunidense Jimmy Carter. Também foi repórter política em Brasília, cobriu a posse do último presidente da Ditadura Militar, em um período onde o jornalismo sofreu censura e as minorias eram atacadas, Glória Maria conseguiu levar essa cobertura para a íntegra. Visitou mais de 120 países e mais de 70 milhões de lares de todo Brasil. Entrevistou grandes celebridades como, Madonna, Freddie Mercury, Mick Jagger, Michael Jackson com direito a beijo e entre outras muitas. Glória trouxe autenticidade para a televisão brasileira.

É notório que a presença de profissionais negros e negras na televisão é pouco existente. O indivíduo de pele escura, quando são empregados na televisão, mesmo que com sua competência, são colocados para ocupar funções de bastidores longe da visibilidade pública (SODRÉ, 2014). Em uma entrevista, para a também jornalista Marília Gabriela, em 2002, Glória Maria declara que “(…) dizem que na televisão não há lugar para preto. Não existe mesmo. É real”. Glória Maria ocupa um lugar de representatividade, até de forma inconsciente, pois pouco se era falado sobre representatividade e lugar de fala quando a mesma começou a trabalhar. Ela se ambientou em um “lugar para homens” e de pessoas brancas, foi e é um exemplo visível para todos que chegar onde ela chegou não é crédito apenas do seu inegável talento, mas também de uma luta constante para ocupar o  aquilo que diziam nãos ser para ela, e essa, infelizmente, ainda é uma luta muito atual. 

Fonte: Globo/Raquel Cunha

Em 02 de fevereiro de 2023, o Brasil foi abruptamente tomado pela notícia do falecimento de Glória Maria, vítima de um câncer metastático, deixando o jornalismo e a TV brasileira órfãos, pois ela foi a mãe desses veículos. Sendo mãe solo, de duas adolescentes, as mesmas também se despediram de sua mãe, possivelmente com a certeza de que tiveram/tem uma mãe que abriu caminhos e portas para muitas mulheres e mulheres negras. Glória Maria foi um grande pilar em tudo que se propôs a fazer, foi figura de representação para aqueles, assim como ela, tem o sonho de pertencer a algum lugar. E, também, através da sua história, é possível ver a luta diária da mulher negra para conquistar seu espaço que lhe é seu por direito. 

REFERÊNCIAS

BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de pesquisa, v. 37, p. 537-572, 2007. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cp/a/KybtYCJQvGnnFWWjcyWKQrc/abstract/?lang=pt>. Acesso em 19 de abril, 2023.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 48-59, 2003.

CLEMENTE, Ana Tereza. Marília Gabriela Entrevista – 10 Anos de GNT. Globo: São Paulo, 2006.

HOOKS, Bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p. 464, 1995.

MARTINS, Etiene. Vivenciamentos corpóreos produzidos e sentidos na interação comunicativa. ORIENTAÇÃO AFIRMATIVA, p. 97. 2021. 

NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 259-263, 2019. 

RIBEIRO, José Hamilton. Jornalistas: 1937 a 1997. Imprensa Oficial do Estado. São Paulo. 1998. 

SILVA, Tauana Gomes. A participação política das mulheres negras comunistas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1984). In: II Seminário Internacional História do Tempo Presente-ISSN 2237 4078. 2014. Disponível em: <https://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/tempopresente/paper/view/181>. Acesso em 19 de abril, 2023. 

SODRÉ, Muniz. A Ciência do Comum: notas para o método comunicacional. Petropólis: Vozes, 2014. 

Compartilhe este conteúdo:

Negra Borboleta

Compartilhe este conteúdo:

Compartilhe este conteúdo:

As Meninas Superpoderosas como referências da figura feminina

Compartilhe este conteúdo:

Os efeitos do trio Meninas Superpoderosas como uma influência da geração, três personagens com personalidades completamente diferentes se tornando referências do que é ser mulher sem ser princesa.
Giovanna Gomes

O ano é 2004. As crianças ligam a TV logo de manhã cedo para ver desenho, e as meninas ficam focadas em um desenho de super-heroínas. De cores verde, azul, e rosa, pequenas meninas batem em bandidos e defendem a cidade de vilões malignos.

Essa geração cresce, influenciadas pelas figuras femininas delicadas e pequenas que é possível ser heroínas. Não é necessário ser princesas delicadas para serem importantes, surge um desprincesamento em uma geração.

As Meninas Superpoderosas, com nome original de Powerpuff Girls, é uma série de animação que foi exibida no Brasil entre os anos de 1998 até 2005 pela Cartoon Network e SBT. Criada por Craig McCracken, o desenho possui três personagens femininas principais, um cientista tomando o lugar de figura paterna, e diversos vilões (alguns deles até mesmo quebrando normas de gênero, como o personagem Ele).

Lindinha, Florzinha e Docinho são As Meninas Superpoderosas. As três meninas, cada uma com uma cor representativa (Lindinha azul, Florzinha rosa, e Docinho verde), são meninas pequenas, com braços e pés com pontas arredondadas, cabeça um pouco grande para o corpo, e no geral um design inclinado para a fofura. Os episódios contam as façanhas dessas três meninas, na cidade de Townsville As meninas foram geradas a partir de uma experiência genética realizada pelo professor Utônio, cientista de um centro de pesquisa e a referência paterna das crianças.

Tal geração é contada em todos os episódios na abertura, e é muito possível encontrar pessoas que saibam de cor as falas usadas para explicar a origem das personagens heróicas.

“Açúcar, tempero e tudo que há de bom
Estes foram os ingredientes escolhidos para criar as garotinhas perfeitas
Mas o professor Utônio, acidentalmente, acrescentou um ingrediente extra na mistura
O elemento X!
E assim nasceram as meninas Superpoderosas, usando seus ultra-super poderes
Florzinha, Lindinha e Docinho, têm dedicado suas vidas
Combatendo o crime, e as forças do mal!”

Um spoiler que não é contado na abertura, é que na verdade quem derruba o Elemento X não se trata do professor, e sim de seu assistente, um macaco. Tal macaco cresce, se desenvolve, e por ter sua atenção ‘roubada’ das meninas se torna o principal vilão da série, denominado Macaco Louco.

Cada menina superpoderosa tem sua característica e personalidade marcante. Cada uma delas influenciou milhares de meninas, que anos depois se tornaram mulheres, a serem diferentes. Novamente não é preciso ser princesa para ser (algo que a Disney na época não concordava muito visto que as princesas eram exaltadas como o auge da feminilidade). Porém, em diversos momentos a animação mostra reforços do estereótipo de menino/menina, Mas em contraponto elas frequentemente quebram o local de figura passível que aguarda ser salva por um homem.

Vamos começar pela Lindinha. Com sua estética em azul, Lindinha é a personagem loira que usa chiquinhas, de vestido e olhos azuis. Visivelmente mais delicada e sensível do que as outras meninas, Lindinha é a que mais se encaixa no papel de bebê do grupo (tanto é que em muitos momentos ela é chamada de “bebê” pela própria Docinho).

Fonte: https://bityli.com/9qhBVLL

Cheia de contradição, a personagem Lindinha faz o possível para demonstrar que além da sua personalidade e seu exterior, ela consegue ser durona. Isso é um questionamento, uma quebra de imagem, que diversas mulheres passam. Há uma identificação por parte de diversas meninas que são consideradas ‘delicadas demais’, ‘fofas demais’, ‘pequenininha’, e não desejam ter apenas esse rótulo. Em Lindinha as meninas encontraram uma personagem que está em contato com a sua leveza mas que nem sempre quer que esse seja o resumo do seu exterior.

Depois partimos para Florzinha. Marcada pela cor rosa (que muitas vezes aparece como vermelho). Com um laço vermelho grande na cabeça, cabelos ruivos, vestido e olhos cor de rosa, Florzinha é dada como ‘perfeitinha’. Vaidosa, geralmente quem toma a frente no comando das meninas, inteligente e perfeccionista, é difícil ver meninas que tinham a personagem Florzinha como sua favorita.

Fonte: https://bityli.com/9qhBVLL

O histórico que a maior parte das mulheres têm em relação a Florzinha remete muito ao processo de competitividade feminina. A mídia constantemente incentiva mulheres a competir entre si: competir por um cargo, competir por um homem, competir até mesmo por um vestido. As mulheres da mídia que são retratadas como a inimiga da protagonista tendem a ser como Florzinha: perfeitas em quase todos os aspectos.

A última personagem a ser retratada é a Docinho. Com olhos e vestido verde, Docinho tem os cabelos curtos e expressão forte. É ela quem desafia a figura de delicadeza feminina de forma mais acentuada entre as três.

Fonte: https://bityli.com/9qhBVLL

Docinho é retratada o tempo todo como impulsiva, de humor explosivo, com uma agressividade maior do que as outras. Dentre as três, é ela quem mais desafia a figura de que meninas, mulheres, têm que ser princesas. É a partir de Docinho que se ergue o maior fator de desprincesamento proposto pelas personagens principais. Em Docinho, as meninas encontraram uma figura a quem se inspiraram quando precisavam ser fortes. Quando precisavam brigar por algo que queriam, quando viam alguma injustiça, ou simplesmente quando não queriam ser princesas.

  Todas as três personagens trazem aspectos diferentes da figura feminina das quais as meninas puderam se espelhar. Em diversos personagens, é possível ver as protagonistas brigando contra estereótipos de gênero atribuídos ao gênero feminino ao mesmo tempo em que não se perdem da sua essência. Um exemplo disso é a relação entre Lindinha e Docinho. Lindinha, por mais que queira ser durona, está feliz e confortável com a sua personalidade e seu exterior mais amável, enquanto Docinho não tem vergonha ou medo de ser durona. Em diversos momentos é possível ver a troca entre essas personagens em relação às suas personalidades, mas em momento algum elas se tornam figuras descaracterizadas de si mesmas.

REFERÊNCIAS:

ALVES, Caroline Francielle; OLIVEIRA, Maria Regina de Lima. “Não me chama de princesa”: o mito da fragilidade feminina e o desprincesamento em “As meninas super poderosas”. II SEJA – Gênero e Sexualidade no Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG), 2017, Junho. V. 2. Pag. 36-49.

SALGADO, Raquel Gonçalves. Da menina meiga à heroína superpoderosa: infância, gênero e poder nas cenas da ficção e da vida. Cad. Cedes, Campinas, 2012. Jan-Abr. Vol. 32, n. 86, p. 117-136.

Tema inicial – Powerpuff Girls (Meninas Super-Poderosas). Disponível em: <https://www.letras.mus.br/powerpuff-girls-musicas/1102948/>. Acesso em 17 de Nov. de 2021.

Compartilhe este conteúdo:

Jeremias da Turma da Mônica: reflexões sobre a negritude representada nas histórias em quadrinhos brasileira

Compartilhe este conteúdo:

Ao longo dos anos, com a intensificação das discussões sobre o racismo, diversos âmbitos da sociedade passaram a sofrer lentas modificações para contemplar as narrativas vinculadas à negritude. Nesse processo, o conceito de representatividade ganhou força, denotando a necessidade de que pessoas negras fossem incluídas em espaços de trabalho, cultura, lazer, mídia etc.

Essa demanda impulsionou, no âmbito do entretenimento, a criação de filmes, seriados e personagens voltados às raízes étnicas, culturais e religiosas da população negra. Isso, inevitavelmente, refletiu no processo criativo da série de histórias em quadrinhos Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, que, em 2017, introduziu uma personagem negra chamada Milena, que viria a assumir em algumas histórias o papel de protagonista.

Entretanto, apesar de ser recorrentemente referida como a primeira personagem negra da turma, há um outro, criado e desenvolvido por Maurício de Sousa antes mesmo dos protagonistas da turminha (Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali). Trata-se de Jeremias, personagem inicialmente introduzido no ano de 1960, antes da própria criação da Turma da Mônica como hoje é conhecida.

Fonte: encurtador.com.br/sFI56

De acordo com Agostinho (2017), as primeiras aparições do personagem datam dos anos 1960.  Seu papel nas histórias era quase sempre de coadjuvante, e, ao longo dos anos, passou a ocupar o espaço de figurante. A caracterização inicial de Jeremias era feita com tinta nanquim, quando as histórias ainda eram impressas em preto e branco. Posteriormente, após a década de 1970, com a criação da Turma da Mônica e o advento da impressão colorida, o personagem seguia sendo retratado com a coloração em nanquim, o que, nas palavras do autor, configura o fenômeno do blackface, que expressa a exageração dos traços negros com o intuito de estereotipar ou até mesmo, de modo velado ou não, ridicularizá-los.

Ao longo de sua trajetória como personagem, Jeremias nunca havia apresentado uma identidade sólida. Suas aparições pareciam atender à necessidade de incluir um personagem negro na história, e comumente, em diferentes histórias, o personagem era retratado de diferentes formas, variando suas características e comportamentos, o que denotava a ausência de uma personalidade construída.

Fonte: encurtador.com.br/gV135

Em uma história publicada em 1987, chamada Jeremim em O Príncipe que Veio da África, o personagem teve seu primeiro momento de protagonismo. A narrativa gira em torno do contexto histórico da escravidão, e posiciona o personagem como um príncipe africano levado para trabalhar como escravo. É um dos primeiros momentos da Turma da Mônica se apresentando como um veículo impactado pelos movimentos antirracistas, e nesse ponto, Jeremias era representado alternadamente com a cor nanquim ou em marrom, num movimento de ajuste do processo criativo das histórias, rumando às alterações suscitadas pela discussão racial.

Ao final da década de 1980, o tom de pele de Jeremias passou a ser retratado apenas na cor marrom, sem alternâncias com o nanquim, e assim permaneceu até hoje. Apesar de nítidas evoluções na caracterização e utilização do personagem nas histórias, Jeremias seguiu sendo ignorado em muitos contextos, e utilizado em outros em que precisava-se de um personagem negro. Em 2009, uma historinha chegou a retratá-lo como presidente do clubinho da turma, aludindo ao contexto histórico vigente na época, com a eleição de Barack Obama para presidente dos Estados Unidos.

Fonte: encurtador.com.br/corA3

Participando em diferentes produções de Mauricio de Sousa, o personagem poucas vezes chegou a ser desenvolvido claramente. É possível problematizar essa situação, partindo do pressuposto de que as criações culturais brasileiras muito foram e ainda são impactadas pelas intercorrências explícitas e veladas do racismo, o que reflete diretamente na construção e representação de personagens negros.

Entretanto, apesar do processo de invisibilização do personagem, reforçado pela introdução de Milena com a premissa de ser a primeira personagem negra da turma, há uma produção da Maurício de Sousa Produções (MSP), em formato de Graphic Novel, que merece atenção por abordar o personagem Jeremias de um modo até então jamais feito. Trata-se de Jeremias – Pele, lançada em abril de 2018, que o retrata como protagonista de uma história de luta contra o racismo. A graphic novel, pela qualidade e seriedade com que abordou a temática, chegou a ganhar o Prêmio Jabuti de Histórias em Quadrinhos.

Fonte: encurtador.com.br/mBF45

Levando em consideração a importância do conceito de representatividade, e pensando no público alvo dos gibis da Turma da Mônica, é imprescindível que personagens como Jeremias e Milena ganhem cada vez mais espaço e desenvolvimento. Para isso, é importante também que tais personagens não tenham suas narrativas circunscritas à questão racial, como se suas personalidades fossem definidas exclusivamente por isso, mas que cada vez mais sejam reconhecidos por suas paixões, aspirações, conquistas e particularidades, colaborando não só com a disseminação da representatividade, mas também com o rompimento de estereótipos vinculados à negritude que muitas vezes são refletidos nós âmbitos culturais.

Referência:

AGOSTINHO, Elbert de Oliveira. Que “negro” é esse nas histórias em quadrinhos?: uma análise sobre o Jeremias de Maurício de Sousa. Rio de Janeiro, fevereiro de 2017.

Compartilhe este conteúdo:

The Boys: Heróis Ou Vilões?

Compartilhe este conteúdo:

“Os heróis são aqueles que tornam magnífica uma vida que já não podem suportar.” – Jean Giraudoux

Imagine heróis fora do comum, não apenas por terem super poderes, salvarem vidas e fazerem do mundo um lugar melhor. Heróis contemporâneos, controlados por uma grande corporação, que pensa nos heróis como algo rentável, cuidam do marketing para eles gerarem filmes, produtos com sua marca e procuram gerenciar toda a vida dos superes, desde sua popularidade com as pessoas, até tentam reparar seus erros na sociedade.

Esses são os heróis retratados na nova série da Amazon Prime Video. The Boys é uma série adaptada dos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson, é tida como uma das mais polêmicas e mais criticadas séries de 2019. Mesmo que não seja nem tão violenta e nem tão política quanto os quadrinhos em que é baseada, The Boys ainda assim é uma série que contempla muita tragédia e ao mostrar de forma explícita como heróis podem ser vítimas de violência extrema, ao mesmo tempo em que não se esquivam de discutir questões sociais importantes associadas à cultura de heróis. (FALANGE, 2019).

fonte : https://bit.ly/2KUnFzA

No início a narrativa aparenta ser uma boa e velha adaptação de super heróis, contudo quanto mais se assiste, mais se percebe que os heróis na verdade podem ser os verdadeiros vilões da história. O que não seria nada mal em um mundo com muita violência, corrupção e injustiça, mas o que choca mesmo no enredo é o fato de que as pessoas parecem precisar dessa “esperança” que os heróis pregam e não importa tudo de ruim que façam, desde que no fim salvem o dia e possam postar fotos.

É inegável o fato de que os super hérois viraram moda, e embora eles sejam retratados como figuras grandiosas e repletas de moral, nem sempre suas performances foram dignas de heroísmo. Mas porque eles são tão atrativos nos dias de hoje, mesmo após péssimas adaptações de suas histórias ou quando eles não são retratados como super herois? Isso se deve ao fato deles carregarem a bandeira do bem e se consideram acima do mal.  Porém, seria errado imaginar que todos tenhamos um lado sombrio? Obscuro, que absorva o lado egoísta e primitivo de nossa personalidade? Jung categorizou a sombra como um dos principais arquétipos do inconsciente.

fonte: https://bit.ly/2Mjlskg

Dentro da perspectiva do desenvolvimento simbólico, e através do conceito unificado de sombra, vista na dimensão religiosa como pecado; na jurídica, como crime; na médica, como sintoma; na ciência, como erro; e na dimensão ética, como o mal (BYINGTON, 2006). Segundo Oliveira (2010), aquilo que rompe o papel instituído na coletividade e vivido na subjetividade se configura como o mal, o amoral e a sombra, o que não é aceito pela consciência. Assim, no mundo real ela é reconhecida na violência, na guerra, na exclusão e na criminalidade.

Na mitologia o herói seria o guardião, o defensor, o que nasceu para servir. Já na linguagem contemporânea ele tem o sentido de guerreiro, está ligado à luta e as outras funções como a adivinhação, a fundação de cidades além de introduzir invenções aos homens, como a escrita e a metalurgia. (BRANDÃO, 1987). Para Jung (1975) o herói seria o mais nobre de todos os símbolos da libido, a idealização de um ser física e espiritualmente superior aos homens, que o representaria em sua totalidade arquetípica. Por mais que tenhamos ideia de como é ou deveria ser um herói, para a Psicologia Analítica, somos nós que construirmos o nosso próprio arquétipo de herói com base em nossas vivências pessoais.

Os heróis da série retratam apenas o que pensamos ou fazemos nos dias de hoje, um mundo com pessoas mais ricas e poderosas do que outras e que são protegidas por grandes corporações, que controlam a mídia, o governo e até a justiça. e se preocupam apenas com a imagem que transmitem na frente das câmeras. Para Aristóteles (2007), no fim, quem escolhe e tenta combater um mal que ninguém imagina, são apenas pessoas tidas como “normais”, eles arregaçam as mangas para expor a fraude que são os “heróis” e o resultado não podia ser nada bom.

FICHA TÉCNICA

fonte: https://bit.ly/2YSve3g

Título Original: The Boys

Direção: Dan Trachtenberg, Jennifer Phang, Philip Sgriccia.

Elenco: Erin MoriartyKarl UrbanChace CrawfordAntony Starr.

Gênero:  Ação,Drama, Ficção Científica.

País: EUA

Ano: 2019

 

REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2ª edição. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2007.

BRANDÃO, J.S. Mitologia grega. Rio de Janeiro, Petrópolis. Vozes, 1987.

BYINGTON. C. A. B. Psicopatologia Simbólica Junguiana.

FALANGE. [Crítica] The Boys: Que Morram Os Heróis. 2019. Disponível em: https://falange.net/critica-the-boys/. Acesso em: 14 de agosto de 2019.

JUNG, C.G. The practice of psychoterapy. Princenton: Princenton University Press, 1975. 2nd edition.

OLIVEIRA. A. W. SOCIEDADE E SOMBRA: EXPRESSÕES NA CRIMINALIDADE. 2010. Disponível em: http://www.symbolon.com.br/artigos/SOCIEDADE%20E%20SOMBRA-%20ALINE%20WERLE%20DE%20OLIVEIRA.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2019

Compartilhe este conteúdo:

Flor do Deserto: o dia que mudou a vida de Waris Dirie

Compartilhe este conteúdo:

Nascida numa família nômade no deserto da Somália em 1965, a modelo de renome internacional, fundadora de uma organização que leva o seu nome e embaixadora da ONU na luta contra a prática de mutilação genital feminina, Waris Dirie que significa Flor do Deserto tem sua vida narrada no livro e filme chamado Flor do Deserto. Uma história de muita dor, sofrimento, fome, determinação e luta por sobrevivência.

Mutilada aos cinco anos, em uma situação de pudor e dor: “Senti, depois, minha carne, meu órgão genital ser cortado. Eu podia ouvir o ruído da lâmina cega entrando e saindo da minha pele. Quando penso, sinceramente, não consigo acreditar que isso acontecera comigo. (…) “Por favor, meu Deus, faça isso terminar logo”. E ele fez, pois desmaiei.” (apud Fachin, 2012) Ela fugiu aos treze de um casamento arranjado pelos pais e atravessou o deserto rumo a Mogadíscio e depois para Londres em busca de uma vida melhor.

Waris Dirie (Liya Kebede) e Marylin (Sally Hawkins).
Waris Dirie (Liya Kebede) e Marylin (Sally Hawkins).

A prática é difundida culturalmente até hoje, de acordo com os dados da ONU, esse tipo de intervenção ainda acontece em 30 países espalhados por três continentes. Estimativas indicam que 200 milhões de mulheres e meninas teriam sido vítimas dessa forma de mutilação. A organização tem uma campanha contra a prática, que considera prejudicial à saúde da mulher e uma violação dos direitos humanos (Sanchez, 2010).

Nas ruas de Londres encontra uma mulher chamada Marylin que logo se torna sua colega de quarto, e com ajuda dela passa a trabalhar como faxineira em uma lanchonete. Certa vez Waris se deparou com uma cena de sexo e descobre que sua amiga não era “cortada”, tal cena remete a uma reflexão, pois houve um diálogo entre ambas (de culturas diferentes) que é visível a presença do respeito e da tolerância abrindo mão do etnocentrismo.

DesertFlower-Photo1

Logo em seu ambiente de trabalho conheceu um fotógrafo famoso Terence Donovan que já observava a sua beleza, convidou para fazer fotos e a lançou no mundo como modelo. Waries usou sua fama como objeto para tornar a prática da mutilação genital feminina conhecida no mundo todo, e difundir a ideia de que essa cultura precisa ser erradicada através do seu discurso que chegou até a ONU.

DesertFlower-Photo5

Waries deu voz a uma prática que viola os direitos humanos e traz riscos de vida, a mesma retrata indignação em uma entrevista ao G1: “É uma vergonha que uma tortura bárbara, cruel e inútil continue a existir no século XXI”. Dirie diz que sempre sentiu que aquilo não estava certo e quando se tornou uma ‘supermodelo’ pode começar a luta contra a prática. (Sanchez, 2010) Exemplo de revolução e determinação que marca a história de pessoas que lutaram pelos direitos das mulheres.

REFERÊNCIAS:

Sanchez,G. ‘É impossível descrever a dor’, diz modelo sobre circuncisão feminina. G1, São Paulo, 03 de jul. de 2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/07/e-impossivel-descrever-dor-diz-modelo-sobre-circuncisao-feminina.html>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

Fachin, M. G. “Flor do Deserto”- Ponderações sobre arte, direitos humanos e cultura. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, Curitiba, 2012. Disponível em: <http://revistas.unibrasil.com.br/cadernosdireito/index.php/direito/article/view/811>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

ONUBR. Em dia internacional, ONU pede mais esforços pelo fim da mutilação genital feminina. ONUBR Nações Unidas no Brasil, 06 de fev. de 2017. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/em-dia-internacional-onu-pede-mais-esforcos-pelo-fim-da-mutilacao-genital-feminina/>. Acesso em: 08 de mar. de 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

poster-nacional-flor-do-deserto-b

FLOR DO DESERTO

Diretor: Sherry Hormann
Elenco: Liya Kebede, Sally Hawkins, Timothy Spall, Anthony Mackie
Ano: 2009
País: EUA
Classificação: 14

Compartilhe este conteúdo:

Viola Davis: uma nova perspectiva sobre o cinema e a Mulher Negra

Compartilhe este conteúdo:

“[…] o que eu tenho em mim – meu corpo, meu rosto, minha idade – é suficiente.”

Viola Davis fez história na premiação do Oscar que chegou a sua 89ª edição ocorrida em 2017. É a primeira vez nas premiações do Oscar, que uma mulher negra chega a marca de três indicações. Viola foi premiada com o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante com o filme “Fences”, em português “Um Limite Entre Nós” e soma o Globo de Ouro com o longa, além de levar o Tony Awards em 2001 com King Hedley II e em 2010 com sua atuação na Broadway em “Fences”. Em 2009 foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante com o filme “Dúvida”, além da indicação ao Oscar de Melhor Atriz com o filme “Histórias Cruzadas”.

Viola Davis no filme "Um Limite Entre Nós".
Viola Davis no filme “Um Limite Entre Nós”.

Seu reconhecimento em massa veio em sua atuação como Annalise Keating, uma advogada de renome na série produzida por Shonda Rhimes “How To Get Away With Murder”, em português “Como Defender um Assassino”. Essa personagem lhe rendeu o Emmy de Melhor Atriz em Série de Drama. A primeira mulher negra a receber o prêmio. Ao receber o Emmy, o Tony Awards e o Oscar, Viola entra para a lista de apenas 23 nomes que receberam a Tríplice Coroa de Atuação.

Em um de seus discursos mais famosos na entrega do Emmy em 2015, Viola levantou debate sobre a dificuldade que as mulheres negras enfrentam nos mais diversos campos. Ela afirma que “A única coisa que diferencia as mulheres negras de qualquer outra é a oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem”. Uma problemática que vem tomando os espaços de debate e traz reflexões como a Bei Hooks, importante nome dentro do feminismo negro nos Estados Unidos.

"Obrigada por nos levar além dessa linha." Fonte: http://zip.net/bqtGS3
“Obrigada por nos levar além dessa linha.”
Fonte: http://zip.net/bqtGS3

Para nós negras é necessário enfrentar esta questão não apenas porque a dominação patriarcal conforma relações de poder nas esferas pessoal interpessoal e mesmo íntimas, mas também porque o patriarcado repousa em bases ideológicas semelhantes às que permitem a existência do racismo, a crença na dominação construída com base em noções de inferioridade e superioridades. (HOOKS, 1989, p.23).

Sobre os espaços conquistados dentro da Academia, Viola ressalta que existiram mulheres negras que abriram as possibilidades de valorização no campo das artes. Taraji P. Hanson, Kelly Washington, Halle Berry, Nicole Beharie, Meagan Good e Gabrielle Union foram citadas por ela como sendo precursoras na luta em busca da valorização e reconhecimento das mulheres negras no cinema.

Em seus discursos, a atriz reafirma sua gratidão a diretores que quebraram os padrões ao proporem novos espaços de atuação para as mulheres negras, como o exemplo de Shonda Rhimes que descreve Annalise Keating na trama de “How To Get Away With Murder” como sendo uma mulher independente, bem sucedida, que dá aulas de Direito em uma universidade renomada. O filme “Estrelas Além do Tempo” reafirma os novos tempos não apenas no campo cinematográfico, mas que ultrapassa fronteiras e mobiliza ações em todo o mundo.

Annalise Keating, de "How To Get Away With Murder".
Annalise Keating, de “How To Get Away With Murder”.

Angela Davis, filósofa e ativista afro americana, em seu discurso na Marcha das Mulheres (2017) afirma que a marcha “representa a promessa de um feminismo contra o pernicioso poder da violência do Estado. É um feminismo inclusivo e interseccional que convoca todos nós a resistência contra o racismo, a islamofobia, ao anti-semitismo, a misoginia e a exploração capitalista. O pensamento feminista negro, então é um conjunto de experiências e ideias compartilhadas por mulheres afro americanas – mas não somente – que oferecem um ângulo particular de visão de eu, da comunidade e da sociedade. Ele envolve interpretações teóricas da realidade de mulheres negras por aquelas que realmente a vivem (COLLINS, 1989).

Viola Davis está construindo espaços de reconhecimento e empoderamento de mulheres negras e esse novo cenário no campo cinematográfico reverbera em novos modos de ser e agir na sociedade. Ao falar sobre as diferenças entre mulheres brancas e negras e os problemas de classe, Davis amplia as possibilidades de discussão. Em seus discursos o assunto paira e traz à tona, temáticas de domínio do feminismo negro, como o legado de uma história de luta, a natureza interligada de raça gênero e classe, o combate aos estereótipos ou imagens de controle, a atuação como mães professoras e líderes comunitárias e a política sexual. (COLLINS, 1991).

Viola Davis em seu discurso no Oscar 2017. Fonte: http://zip.net/bqtGS5
Viola em seu discurso no Oscar 2017. Fonte: http://zip.net/bqtGS5

As lutas em busca de equidade entre mulheres brancas e negras não terminam aqui, porém quanto mais houver a abertura de espaços de maior alcance para a discussão e conscientização desses temas, maior será a mobilização social, pois “o que as mulheres compartilham não e a mesma opressão, mas a luta para acabar com o sexismo, ou seja, pelo fim das relações baseadas em diferenças de gênero socialmente construídas.” (HOOKS, 1989).

O combate às desigualdades de direitos entre homens e mulheres no campo profissional, nas relações cotidianas, nos relacionamentos e nas oportunidades deve permanecer, e como Viola Davis defende na entrega do Globo de Ouro 2017 para atriz Meryl Streep, nós viemos para “viver em voz alta” e lutar em prol da diminuição dessas disparidades é fundamental na busca de uma sociedade mais tolerante, igualitária e principalmente, mais sensível ao outro, mais humana.

REFERÊNCIAS:

BORGES, Juliana. O Discurso de Angela Davis na Women’s March. 2017. Disponível em: <https://cronicasnabelavista.wordpress.com/2017/01/22/brevissimas-do-facebook-o-discurso-de-angela-davis-na-womens-march/>. Acesso em: 06 mar. 2017.

COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge Consciousness and Polifics of Empowerment. Nova Iorque: Routledge, 1991.

HOOKS, Bei. Talking Back: Thinking Feminist Thinking Black. Boston: South End Press, 1989.

Compartilhe este conteúdo:

Transexual: construção enquanto Mulher

Compartilhe este conteúdo:

Insegurança, deslocamento, desconforto, curiosidade, medo e conflito são o que muitas mulheres em corpo de um homem passam. E isto existe há anos luz, no entanto nunca foi tão discutido quanto no momento em que vivemos. Milhares de mulheres lutam todos os dias para serem vistas como mulheres, mas o  “estranho” ainda causa desconforto em muitos. Tais desconfortos são muitas vezes introjetados, o que é um grande problema, pois é um desconforto disfarçado de conforto, resultando em atos violentos contra o “estranho” e recebendo apoio e encobrimentos de milhares de outros disfarçados.

Fonte: http://migre.me/wcRm1
Fonte: http://migre.me/wcRm1

Bauman (1998) diz que cada sociedade tem seu padrão de pureza, e esses padrões mudam de época em época, varia de cultura para cultura. Os padrões de pureza são normas criada pela sociedade em relação ao que é normal ou não. E as pessoas que não estão dentro destas normas tornam-se entraves em relação a organização do meio, são visto como esquálidos e tratadas como tais, são os estranhos: “O oposto da ‘pureza’ – o sujo, o imundo, ‘os agentes poluidores’ – são coisas ‘fora do lugar’'”BAUMAN, 1998, p.14).

Um exemplo de estranhos são os trans. Isto porque fogem da normatividade e da limitação da ordem social em questão. O mais lastimoso desta não aceitação são os atos de violência física, que é usada como forma de repressão e indignação. De acordo com a Organização das Nações Unidas, o Brasil é o pais que mais mata travestis e transexuais. Uma pesquisa realizada entre Janeiro de 2008 a março de 2014 foi registrada 604 mortes no país. O site Correio 24 horas mostra que só em 2014 houve 134 mortos e em 2016, 144 mortes. Isto mostra que hoje o assunto é mais debatido, no entanto há poucas melhorias, já que a repressão e o ódio pelo diferente é camuflado.

Esta camuflagem faz reinar a incerteza e acaba limitando o futuro destas mulheres e da própria sociedade. Resulta em uma sociedade conflituosa, devido a não flexibilidade e a poucas adaptações a mudanças. Logo, muitas destas mulheres vivem sob o medo e sem esperanças, já que não há garantias de um futuro seguro.

Talita Costa. Fonte: http://migre.me/wcRnB
Talita Costa. Fonte: http://migre.me/wcRnB

Talita Costa, 36 anos, estudante de Serviço Social e que reside na cidade de Palmas há quase 20 anos vive na pele este medo e incerteza. Talita diz que descobriu-se mulher ainda quando criança: “… ao invés de escolher as coisa que meu pai fazia, preferia me inspirar nas coisas que minha mãe fazia… em outro momento quando eu tinha 8 anos de idade, eu lembro que estava  beira do rio com minha família, e eu estava cm minha irmã, que é mais nova que eu 3 anos e eu escutei eles comentando que as minhas pernas eram mais bonitas e femininas do que as da minha irmã e isto me marcou muito, e eu nunca mais esqueci, pois eu também olhava pro meu corpo e não era igual o dos meus amiguinhos… eu não me identificava como um menino desde criança. Na puberdade foi a certeza, pois eu não me atraia por mulher e me via em trans como a Roberta Close. Eu via as mulheres bonitas passando e os homens desejando  e mexendo, era aquilo que eu queria ser. Eu não queria ser a engraçada, a bicha amiga etc., eu queria ser mulher.”

Modelo brasileira transsexual Lea T. Fonte: http://migre.me/wcRy9
Modelo brasileira transexual Lea T. Fonte: http://migre.me/wcRy9

O relato de Talita reafirma a famosa frase de Simone de Beauvoir:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo.  — O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, pp. 9.

Assim como Talita, milhares de mulheres lutam todos os dias para serem reconhecidas como tais. Um exemplo de superação e esmagadora dos limites impostos pela sociedade é Luma Andrade, que tem doutorado em Educação pela UFC – Universidade Federal do Ceará, é considerada a primeira travesti a ingressar em um curso de doutorado no Brasil, e hoje atua como professora. Luma que recebeu o nome de João Filho Nogueira de Andrade ao nascer, conquistou em 08 de março de 2010, sem ter passado pela operação de mudança de sexo, o direito de mudança de nome em seus documentos. Luma Oliveira é mulher, é travesti, é militante, é professora e uma fonte de inspiração.

Luma Andrade. Fonte: http://migre.me/wcRpk
Luma Andrade. Fonte: http://migre.me/wcRpk

Ser estranho tem para muitos hoje um significado muito genérico, é visto como algo inferior. Logo muitos passam a vida seguindo ordens de autoritários. Isto por que desde que se nasce, o indivíduo já recebe uma carga enorme de informação do que é certo e do que é errado. A subjetividade tende a ser anulada para a então aceitação do meio, seja da família, dos amigos, da igreja ou da sociedade. Ser “estranho” é preciso ser visto como autenticidade.

Na ciência há exemplos de vários estranhos, tais como: Charles Darwin, Thomas Edison e Albert Einsten. Estes foram contra a normatividade de suas épocas, por isto foram rejeitados e vistos como esquálidos, mas hoje são vistos como gênios. É natural que o Homem duvide e questione para tornar então autoridade de si, as mulheres trans são autoridades de si e isto preciso ser respeitado e por que não, admirado?!

Atriz Laverne Cox, que interpreta a personagem Sophia Burset na série Orange Is The New Black. Fonte: http://migre.me/wcRsP
Atriz Laverne Cox, que interpreta a personagem Sophia Burset na série televisiva Orange Is The New Black. Fonte: http://migre.me/wcRsP

O homem é um ser subjetivo, isto por que ninguém é igual a ninguém. E esta diversidade é uma das maiores riquezas do homem. O Homem nasce com competências, identidade e personalidade desconhecidas. Com o tempo ele vai se identificando, se moldando e se descobrindo. Esta é a diferença entre o Homem e um objeto. O objeto inicia objeto e termina objeto, já o Homem nasce Homem, se modifica e morre da forma como ele quiser.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudio Matinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 1998.

https://nacoesunidas.org/violencia-contra-pessoas-trans-e-extremamente-alta-nas-americas-apontam-onu-e-parceiros/

http://www.correio24horas.com.br/blogs/mesalte/assassinatos-de-transexuais-e-travestis-cresce-22-em-um-ano-no-brasil-bahia-teve-9-mortes/

O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição

11 gênios e inventores que foram subestimados e rejeitados antes de alcançar o sucesso

Compartilhe este conteúdo: