Amor, Sexo e Tragédia: somos mesmo originais?

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A forma como o Estilita Simeão viveu, em austeras penitências corporais, retrata a vida dos anacoretas de sua época. Seu biógrafo conta-nos que seus atos de sacrifício, eram de castigar seu próprio corpo, com um desejo de assemelhar-se à paixão de Cristo. Dava-se ao jejum de alimentos e água e se expunha ao calor, e ao frio exposto a “uma coluna de pouco mais de 18 metros em vigília continua; uma imagem viva do Cristo crucificado” (GOLDHILL, 2007, p. 97).

Ainda de acordo com seu biógrafo as torturas vividas por Simeão eram uma forma de chamar a atenção do mundo, despertando-o para existência de Deus. O mosteiro onde Simeão morava era cercado de pessoas que viam nele um homem santo e todos o admiravam e gostavam de ouvi-lo. “Por vezes ele realizava papel de juiz especial diante de alguma disputa” (GOLDHILL, 2007, p. 98).

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Simeão vivenciou um êxtase espiritual profundamente marcado pelo amor a Deus. Deu-se aos sacrifícios corporais até sua morte e ainda que seu corpo se esvanecesse pelas torturas, sentia-se fortalecido pela presença de Deus.

Simeão faleceu no ano 459. Ele foi uma superestrela no rol dos homens santos, todos grandes sofredores pela qual a Síria era especialmente famosa. Esses santos representavam o pináculo da nova atitude cristã relacionada ao corpo (GOLDHILL, 2007, p. 99).

Pregou e viveu um cristianismo que era contrário à cultura clássica. Para ele, ser cristão era ser capaz de penitências, asceses e renúncias; viver a negação dos laços sociais e dos prazeres que este oferece. E o monge deve retirar-se para o deserto, orar sozinho e viver em austeras penitências e jejuns. “Uma maneira dos cristãos mostrarem publicamente a sua crença era a recusa de participar de sacrifícios. Por vontade própria eles excluíam-se obstinadamente da comunidade” (GOLDHILL, 2007, p. 100). Alimentar-se para Simeão era algo confortável, de certa forma até de luxo, pois a sociedade do seu tempo vivia em penúria e até passavam fome.

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Para o pensamento grego um cidadão clássico tinha que trazer em si característica “de soldado, orador, homem do bem” (GOLDHILL, 2007, p. 100), versado em filosofia, e dado aos prazeres e alimentação farta. “Comer bem significava o triunfo da civilização, uma combinação do trabalho árduo do lavrador e da graça dos deuses” (GOLDHILL, 2007, p. 101). Porém os cristãos se contrapunham a essa realidade e se retiravam ao deserto para se desafiarem nessa civilização. “O calendário do cristão comum podia se alternar entre o jejum e o banquete, Quaresma e Páscoa” (GOLDHILL, 2007, p. 101).

Em síntese, os superestrelas da carne, mostra que o jejum deveria ser praticado e ajudaria os cristãos a refrear as paixões e a refrear os impulsos sexuais, como um combate ao pecado e a busca de santidade, uma vez que a defesa da castidade de monge era exercício disciplinar constante. “Toda história requer heróis, e, para o início do cristianismo eles são os ascetas e os mártires” (GOLDHILL, 2007, p. 103). O cristão era chamado a ser mártir e o martírio se tornava exemplo de vida virtuosa revelando a forma mais refinada de transcender a dor. E isso Simeão legou aos cristãos do seu tempo.

Essa forma de vida de martírio era inaceitável para os gregos e romanos, pois para eles “o corpo do cidadão devia ser inviolável” (GOLDHILL, 2007, p. 104), ainda que os escravos fossem submetidos à tortura. O orador clássico, cidadão herói grego, deve ser ereto, altivo e exibicionista. O cristão devia ser simples, modesto desprovido de vaidades. Apropriados dos seus próprios corpos, os cristãos deveriam apenas ser agradáveis a Deus.

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O sexo e a cidade – A carne e o mundo

Em “O sexo e a cidade”, Goldhill (2007) traz considerações acerca dos desejos da carne x cristianismo. O autor ressalta que com o Império Romano, tonando-se cristão, houve uma série de conflitos em relação à sexualidade e os valores cristãos. E esse fato repercute até hoje nas escolhas e formas de vida familiar. Para tanto, sendo o casamento “o alicerce da sociedade”, a concepção que temos dele é, também, a forma como nos percebemos na sociedade (GOLDHILL, 2007). O autor aponta, ainda, que o casamento cristão trazia algumas atitudes, consideradas estranhas, de como se deveria levar a vida, pois teve sua formação contra a cultura greco romana e organizada limitadamente pelo Império Romano.

Paulo recomenda, nas Sagradas Escrituras, que o casamento seja honrado pelos homens e, com isso, traça um conjunto de leis que, em suma, resulta em um tipo de casamento patriarcal, no qual a mulher deve ser subordinada ao homem. Por outro lado, há outro conselho deixado por ele, no qual ele ressalta que o homem deve se comprometer com o celibato e a mulher deveria permanecer virgem e cuidar das coisas do Senhor. Com isso, o casamento fica em segundo plano (GOLDHILL, 2007).

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Nesses parâmetros o autor adverte que: de fato, Paulo recomenda o casamento, mas o faz somente para evitar que aqueles que não conseguem suportar o celibato sejam queimados no inferno por cometerem o pecado do sexo ilícito. É isso que faz do casamento algo “honrado” (GOLDHILL, 2007 p. 107). Nesse ínterim Goldhill (2007), relata a história de duas mulheres que buscaram seguir o conselho de Paulo. Tecla e Maximila são duas mulheres que abriram mão de uma vida matrimonial para viver o celibato.

Tecla era uma jovem que estava noiva e após escutar as pregações de Paulo sobre castidade começa a sentir um novo desejo, o que deixa sua família e o noivo aflitos. Desse modo, Paulo é considerado como alguém que leva as mulheres para um mau caminho e destrói a vida dos casais. Com isso, Paulo é preso. Porém Tecla aumenta, ainda mais sua fé e devoção. Tecla é condenada a morte, porém “ela é sempre salva pelo milagre divino” (GOLDHILL, 2007 p. 108). Dessa forma, “Tecla tornou-se uma santa para a adoração cristã, um modelo para as virgens que evitam o casamento. Ela figura como heroína e inspiração em diversas histórias de vida de muitas moças” (GOLDHILL, 2007, p. 109).

Maximila é uma mulher casada que, ao escutar as palavras de Santo André: “ofereça-se a Deus” (p. 110), converte-se ao cristianismo e começa a fazer orações para que Deus a afaste do próprio marido e a mantenha casta. Dessa forma, para se privar de relações com o marido, ela coloca uma escrava para satisfazê-lo, sem que ele saiba. Porém, ao descobrir ele fica arrasado por ter sido enganado por ela. Maximila, então, confessa seu amor pelo Divino e deixa seu marido para se dedicar às obras de Deus (GOLDHILL, 2007).

E assim, Goldhill (2007), afirma que o cristianismo gera um declínio social, pois as pessoas deixam de viver muitas coisas por causa do Divino, impedido, dessa forma, a continuidade de uma família. Com isso, o autor acredita que: “o cristianismo requer um compromisso individual ‘com o mundo por vir’ – um sendo radicalmente diferente de futuro” (GOLDHILL, 2007 p. 110). 

Virgindade, Celibato ou Casamento?

Durante a Idade Média, quando o Cristianismo se instaura na Europa, as mulheres deveriam fazer a escolha entre o celibato ou o casamento. O celibato trazia grandes honras para a família, as “virgens de Deus” ou “noivas de Cristo” dedicavam sua vida a uma eterna virgindade, se dedicavam à igreja e a Deus. A virgindade era exaltada, a igreja considerava o desejo e a sexualidade como pecados, fontes de fraqueza humana.

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De acordo com Goldhill (2007) a reclusão, jejum e orações constantes eram necessárias como suportes contra a fraqueza. A mulher podia demonstrar sua fé e devoção na igreja e no lar por meio de uma dedicada virgindade, a mulher que optava por esse estilo de vida deveria se afastar do modo de vida convencional por vontade própria, sendo veneradas pela igreja. O casamento era considerado honrado contanto que um homem e uma mulher mantivesse relações sexuais com seus cônjuges e após o casamento, se não seria perversão. O divórcio e a oportunidade de um novo casamento era condenado pela sociedade, o sexo associado à culpa e à sujeira.

Por muito tempo foi discutido questões sobre virgindade, santidade, sexo e casamento, sendo temas polêmicos até os dia atuais, sendo que, muitas das incertezas sexuais vivida pela sociedade atual provêm do que foi imposto pela igreja católica, uma vez que o compromisso com valores tradicionais não avaliam a própria historia. A crise ainda compartilhada pelo corpo social moderno ocorre, pois todos participam das discussões sobre como deve funcionar um casamento, relações sexuais extraconjugais, relações sexuais com múltiplos parceiros e relações homossexuais são ditas como erradas. Entretanto, não cabe a sociedade como um todo, formular uma resposta. Goldhill (2007, p.116) cita que:

(…) está claro que sem uma compreensão histórica de como esses temas se tornaram as questões que hoje preocupam o Ocidente Moderno, qualquer resposta que dermos a essas perguntas será superficial. Se quisermos entender as tensões com as quais o casamento moderno se debate, precisamos compreender que a “tradição” é uma longa história de revolução, conflito e mudança, uma história que produz tais tensões.

O que é Atenas para Jerusalém?

Os valores humanos podem ter criado sua própria crença através da derrubada dos valores cristãos, mas foi muito difícil tirar os valores cristãos das mentes e dos corações dos cidadãos do Império Romano do que o planejado. Os cristãos continuaram vivendo dentro de sua cultura por mais que fosse combatida e assimilaram rotineiramente as ideias e o raciocínio do mundo grego-romano que os rodeava (GOLDHILL, 2007).

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Mas o cristianismo também tinha outra maneira de falar. Particularmente nas cidades, homens e mulheres cristãos precisavam manter um diálogo com os gregos e romanos entre os quais viviam e os homens e mulheres cristãos mal podiam evitar serem influenciados pela cultura que os circundava, mesmo que tivessem a intenção de rejeitá-la (GOLDHILL, 2007, p.118). A imagem de Jesus, não importa o quanto era importante para os cristãos, também foi incorporado aos modelos da sociedade grega e romana (GOLDHILL, 2007).

Filósofos e homens santos

Goldhill (2007), sugere a existência de um diálogo entre a filosofia e a cultura greco-romana, que se evidencia historicamente nas características da interação social. No cristianismo e na cultura greco-romana, homens se tornaram santos e heróis culturais, conhecidos como mártires e sábios. Caracterizados pela abdicação dos bens materiais, luxos, prazeres, optavam por uma vida de sacrifício, abstinência, jejuns, utilizando somente o necessário para vida. O autor cita Diógenes, um filósofo cínico, que optou por se desfazer de tudo, mantendo “apenas uma tanga e uma tigela- e quando viu um jovem pastor beber água de um rio usando apenas as mãos, jogou fora também a tigela” (GOLDHILL, 2007, p.123).

Jesus, a figura de fundamental importância para o cristianismo, também foi assimilada as características da sociedade grega e romana. De forma semelhante, o cristianismo recebeu influências filosóficas, pois a filosofia orientava para uma vida espiritualizada e de autorreflexão.

O poder dessa imagem do antigo filósofo é ainda hoje fortemente sentido. Uma avaliação serena, e a rejeição do tumulto da ambição, da cobiça e da avareza são como um negativo fotográfico da imagem da sociedade moderna apresentada pelos jornais, pelos filmes, pela televisão. Era um estilo de vida que foi facilmente incorporado ao desejo cristão por uma existência mais elevada, contrária ao Império deste mundo (GOLDHILL, 2007, p.125).

Assim, o cristianismo se desenvolve tanto por meio da rejeição como da negociação com a cultura grega e romana. E a cultura ocidental moderna se forma por essa mescla de tradições. Mesmo vivendo em uma sociedade moderna é impossível não dar uma grande importância para a religião, pois a mesma traz grande influência para o nosso dia a dia querendo ou não ao longo da nossa construção como ser humano carregamos princípios da religião e todos nossos clichês do certo ou errado e estilo de vida traz um pouco de algo que aprendemos através da nossa cultura religiosa. Até mesmo se somos desacreditados da religião temos que reconhecer que em tudo tem algo da Bíblia e que essa cultura religiosa está presente. Enfim, todos nós temos uma história cristã clássica dentro de nós.

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Segundo Goldhill (2007, p.94) “Devemos também reconhecer e não distanciar a civilização cristã como estudo do clássico”. O qual seu estabelecimento ocorreu durante o Império Romano não diferenciando assim o estudo do clássico e o estudo do período inicial da igreja sabendo assim que o Império Romano de tornou cristão, mas o cristianismo por sua vez tomou a forma do Império Romano.

O cristianismo tem grande envolvimento com a cultura grega tendo grandes influências da mesma. Porque o veículo para o transição de ensinamentos da Bíblia é a língua grega por isso podemos afirmar que a civilização ocidental não é apenas judaico-cristã, mas sim uma civilização grego-judaica – cristã (MURACHO, 2002, p.10). Não podemos esquecer as raízes do cristianismo e assim reconhecer que a tradição religiosa presente no ocidente se formou no mundo clássico. Se deixarmos toda essa cultura para trás seremos apenas turistas, e o importante é vivê-la.

REFERÊNCIAS:

GOLDHILL, Simon. Amor, sexo e tragédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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O mito do Sexo segundo Márcia Tiburi

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Em uma participação no programa Café Filosófico, Márcia Tiburi [1] nos traz uma excelente reflexão sobre a condição de ser mulher e a construção de ser feminina, bem como esses fatores se relacionam com o sexo e o poder. O mito é uma narrativa explicativa criada para esclarecer algo que não é explicado pela lógica. O interessante é que mesmo havendo uma elucidação racional para os fatos, o mito não foi eliminado, ele continua tendo sua função na subjetividade humana.

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O sexo, no sentido do feminino e do masculino, também é um mito, são papeis criados para definir aspectos do homem e da mulher que não necessariamente fazem parte daquilo que eles são naturalmente, mas que ajudam na definição da identidade do ser. Considerando que historicamente os homens implantaram seu território de domínio na esfera pública e a mulher, talvez por sua condição reprodutiva, não teve tanta possibilidade de ocupar com tanta veemência o mesmo espaço, o papel do masculino acabou se fixando fortemente como aquele que detém o poder fora da casa, enquanto que para elas foi bastante limitado o papel de cuidar das crias e garantir o equilíbrio do lar.

Esses papeis delimitados por uma sociedade onde quem faz as leis são os homens, obviamente favorece quem cria as regras e não pode deixar de conter traços patriarcais. A essa criação sobre o como deve ser ou comportar uma mulher e um homem, a filosofia coloca na condição de mito.

Márcia Tiburi comenta sobre a questão da força e do poder atribuídos à imagem masculina, dizendo que “o poder” (enquanto substantivo) jamais será feminino, visto que é forte e a força é masculina (obviamente uma referência à aspectos físicos biológicos e não a aspectos emocionais subjetivos). Ela também fala sobre como “a delicadeza” é atribuída à imagem feminina, tanto que se um homem é um pouco mais delicado atribuímos a ele certa feminilidade.

O discurso patriarcal sobre o feminino está em todos os lugares, nem há como fazer uma genealogia que nos leve a origem do patriarcado, toda a nossa história, linguagem e racionalidade é patriarcal, não há como escapar disso, mas esse patriarcado precisa ser reconstruído a partir de uma crítica consistente a essa construção. Muitos autores defendem que o feminino é uma essência, uma natureza que precede a construções sociais e históricas que precedem o patriarcado. Mas, o feminino é mais amplo que a natureza, é também uma construção opositora ao paradigma do que é masculino, e a construção dos gêneros foi feita tendo o masculino como referência.

Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg
Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg

Entretanto, desde sempre as mulheres tiveram os mesmos desejos e potencialidades dos homens, mas a elas foi limitado o poder exercê-las e, apesar do mito do sexo e da construção paternalista das ideias de masculino e feminino, o homem e a mulher estão condicionados ao corpo em que nasceram, e no sentido biológico, o corpo nos é inexorável, somos aquilo a nossa condição, temos corpo de homem ou de mulher, hormônios de homem ou de mulher, a força física e a forma de homem ou de mulher e uma série de aspectos que também podem ser flexibilizados de acordo com a quantidade de hormônio que cada um tem, mas que não podem ser negados como características. Quando a anatomia não combina com o desejo iremos experimentar o conflito, mesmo que este possa ser superado. A pergunta a se fazer é como experimentamos o nosso corpo sendo este inexorável?

O sexo, portanto, não pode ser o sentido, mas sim a relação com o outro e isso está no sentido político como relação com o poder. A relação com o sexo pode ser construtiva ou destrutiva, produtiva ou não. Uma vida justa, boa e descente deve ser a busca, e o sexo apenas faz parte disso, mas não pode ser o foco do nosso sentido. O sentido está no todo, na complexidade e na totalidade do ser. Assim, fica lançada a reflexão: Qual a função do feminino para a própria mulher, não apenas para a sociedade?

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=6JNnFRf87DI

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Ninfomaníaca I e a Terapia de Sentido

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Ninfomaníaca (2013), de Lars Von Trier, é sem dúvidas um filme perturbador. Uma característica marcante é a sexualidade explícita: nudez, masturbação, orgasmo, excitação, penetração, sexo oral, etc. O filme se inicia com Joe (Charlotte Gainsbourg) abandonada em um beco escuro, inconsciente, cheia de hematomas. Ao vê-la, um homem chamado Seligman (Stellan Skarsgard) a conduz para sua casa, onde presta assistência e, assim, começam a dialogar.

Joe então narra, repleta de culpa, a relação que desenvolveu com o sexo. Sua primeira experiência de descoberta com seu corpo foi aos 2 anos, quando conheceu sua vagina; depois, esfregou sua genitália no chão do banheiro; aos 15 anos, tinha um só objetivo: perder a virgindade. E o fez, com um mecânico, Jerônimo. Depois da experiência considerada por ela humilhante, jurou a si que nunca mais transaria com ninguém – o que durou pouco tempo. Numa viagem de metrô, competiu com sua amiga para ver quem faria sexo com o maior número de homens. O prêmio seria uma caixa de chocolate. Joe perdeu. Todavia, a partir dali, percebeu o poder de atração e/ou sedução que, como mulher, possuía.

Fonte: http://zip.net/bltCjL
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Não tinha habilidades nem experiência profissional (trabalhou, inadequadamente, como secretária), a relação com a mãe era conflitante e, aparentemente, seu pai era a sua fonte de vínculo afetivo com a família. Passou a fazer parte de um grupo feminino, regido por regras claras: “não transe com um cara por mais de uma vez”. O lema era a luta contra o amor, que para elas, não passava de nada além da luxúria. Só que um ideal como esse era difícil de ser seguido para sempre.

Algumas se apegaram aos parceiros sexuais, chegaram a dizer que “o ingrediente secreto para o sexo é o amor”. Todo esse contexto de desconfiança amorosa e de afastamento familiar favoreceu seu investimento libidinal na única origem de satisfação/prazer por ela conhecida: o sexo. E não somente. Passou a ser uma via de fuga, escape, novidade, desespero, exploração. O que pode ser corroborado no fato de Joe ter relações com vários homens num só dia, chegando a 10 (dez) ou 15 (quinze).

Diferentes termos têm sido usados para designar o impulso sexual aumentado, e os mais frequentes são: compulsão sexual, comportamento sexual compulsivo ou impulsivo, adição sexual, transtorno hipersexual e impulso sexual excessivo (SPIZZIRRI, 2015, p. 78).

Muitos estudiosos objetivam determinar os atributos que podem ser considerados para caracterizar o transtorno hipersexual e a maior parte dos teóricos testifica que há a possibilidade de a compulsão sexual ser detalhada pela complicação na regulagem dos pensamentos, ímpetos e ações sexuais que direcionam a uma dor individual relevante e, ainda, efeitos prejudiciais ao indivíduo e a outros (SPIZZIRRI, 2015).

Fonte: http://zip.net/bstC6P
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Descrição que se encaixa com a realidade de Joe. Pois, apesar de ter desejado e ter sido desejada por diversas pessoas, sua vida continuava vazia e monótona, como testificado por ela. Ajudou a desfazer casamento, trouxe dor, mas permanecia indiferente. A busca por sensações ainda não experimentadas continuava. Por diversas vezes resumiu: “talvez meu único pecado tenha sido querer mais do pôr do sol”.

Sob a ótica da logoterapia, uma possível explicação para a experiência supracitada seria o fenômeno do vazio existencial que pode ser compreendido a partir da sensação de tédio (FRANKL, 1984) e pela “’neurose dominical’, aquela espécie de depressão que acomete pessoas que se dão conta da falta de conteúdo de suas vidas quando passa o corre-corre da semana atarefada e o vazio dentro delas se torna manifesto” (FRANKL, 1984, p. 132). Neste caso, o corre-corre pode ser substituído pelo fim da relação sexual.

Para Viktor Frankl, fundador da terapia de sentido, (p. 124, 1984): “a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida“, ou seja, “cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida (…) Nisso a pessoa não pode ser substituída, nem sua vida ser repetida. ” (1984, p.133). Quando essa vontade de sentido não é satisfeita, consequências passam a existir. Um exemplo é a relação direta entre a falta de sentido e a energia direcionada a atividades prazerosas, visando a equivalência.

Fonte: http://zip.net/bktCWr
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Existem ainda diversas máscaras e disfarces sob os quais transparece o vazio existencial. Às vezes, a vontade de sentido frustrada é vicariamente compensada por uma vontade de poder, incluindo sua mais primitiva forma, que é a vontade de dinheiro. Em outros casos, o lugar da vontade de sentido frustrada é tomado pela vontade de prazer. É por isso que, muitas vezes, a frustração existencial acaba em compensação sexual. Podemos observar nesses casos que a libido sexual assume proporções descabidas no vazio existencial (FRANKL, p. 132, 1984).

Num de seus empregos, Joe trabalhou com Jerônimo (sim, o mesmo da primeira vez), alguém que quando reconheceu, desprezou-o. Porém, com o decorrer do tempo, passou a nutrir sentimentos por ele – ela considerava amor. Quando foi se declarar, descobriu que o mesmo havia ido embora. Ficou em estado de choque. Passou um tempo sem conseguir fazer sexo com mais ninguém. No final, ela o encontra no jardim que gostava de ir durante as tardes. Ali, eles se encontram e vão para a casa de Joe. Apesar do desejo satisfeito, no meio da transa, ela começa a chorar: “eu não sinto nada!”. O vazio continuou.

Fonte: http://zip.net/bbtCK7
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Cabe ressaltar que não ficou claro qual situação gerou nela tanto arrependimento. O anfitrião fica, na maior parte do tempo, tentando mostrar à ninfomaníaca que ela não é tão ruim assim, que não é uma pessoa má. A mulher se acusa. Não aceita o rumo que sua vida tomou. No entanto, apesar de Joe apresentar a Seligman um pedaço da sua história, sua expressão facial ainda assim transmite uma impenetrabilidade desconcertante. Trata-se, portanto, de um filme instigante e que vale cada minuto dispensado.

.REFERÊNCIAS:

FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. 37° ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

SPIZZIRRI, Giancarlo. Compulsão sexual: O impulso sexual aumentado pode acarretar como consequência comportamentos e/ou práticas sexuais excessivas, tanto em homens como mulheres. Psique Ciência e Vida, São Paulo, ed. 127, p. 78, 2015.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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NINFOMANÍACA

Direção e Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Stellan Skarsgård, Uma Thurman
 Ano: 2013
Países: Dinamarca, Suécia, França, Alemanha e Reino Unido
Classificação: 18
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Westworld: um parque de diversão para adultos

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Imagine só um lugar onde você pudesse fazer tudo o que quisesse e no qual fosse possível dar vazão aos seus impulsos mais secretos, pecaminosos e violentos sem quaisquer riscos ou consequências? Você consegue imaginar um lugar assim? Você gostaria de ir para um lugar como esse? Feliz ou infelizmente tal lugar ainda não existe na vida real, onde diversões possuem riscos e, muitas vezes, efeitos colaterais. Mas na ficção ele se chama Westworld, um parque de diversão para adultos que é tema de uma série de mesmo nome lançada em outubro pelo canal HBO.

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Inspirada em um filme homônimo lançado em 1973 – no Brasil ele se chama  Westworld – Onde ninguém tem alma (um ótimo subtítulo!) – a série possui um argumento semelhante mas tenta (e consegue) ir além, muito além da produção que a inspirou, tanto no enredo quanto no visual. A história básica de ambos é praticamente a mesma: em um parque voltado para adultos, especialmente para homens, androides com aparência humana atuam como anfitriões de “convidados” humanos que desejam viver romances e grandes aventuras no Velho Oeste – no filme original, além do Velho Oeste existem outros dois cenários: o mundo medieval e o mundo romano.

A grande questão tanto do filme quanto da série é que os androides são tão incrivelmente semelhantes aos seres humanos, que é praticamente impossível distingui-los – Westworld se configura, neste sentido, como um imenso Teste de Turing (na verdade, os androides são tão reais que seria mais correto dizer que o parque venceu o Teste de Turing).

Uma diferença crucial, no entanto, é que somente anfitriões podem se “ferir” e “morrer” – na realidade, nenhum é de fato ferido ou morto, pois são máquinas e não seres vivos, apenas o parecem sê-lo; os convidados estão, pelo menos em um primeiro momento, protegidos (o filme de 1973 deixa claro que os revólveres possuem sensores que impedem anfitriões e convidados de atirarem em convidados, mas não parece haver qualquer impedimento para que convidados firam ou matem convidados com outras armas; já a série, pelo menos até onde assisti, não deixa claro se anfitriões podem de fato ferir convidados com socos ou facas, por exemplo, ou se convidados podem atirar em convidados).

De fato há uma grande preocupação dos administradores do parque com a segurança dos convidados. No filme há uma cena em que uma cobra robótica morde um visitante, o que deixa a equipe transtornada. Um dos administradores então afirma ser “imperdoável ferir um hóspede”; e complementa: “Se não pudermos garantir a segurança dos hóspedes teremos sérios problemas”. A preocupação é legítima. Se os convidados pagam caro para ir a este parque (o filme fala em U$1000,00 por dia), o mínimo que esperam é que voltem inteiros da experiência.

Mas se a expectativa dos administradores diz respeito, dentre muitíssimas outras coisas, à segurança dos convidados, as expectativas destes vão muito além. O que eles esperam é não só voltarem vivos, mas também e principalmente viverem experiências intensas de sexo e violência que não podem colocar em prática na vida real com pessoas reais. Em Westworld tudo é permitido. Se quiserem roubar, podem; se quiserem matar, podem; se quiserem estuprar, podem.

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Fonte: http://migre.me/vyfnp

Os convidados – majoritariamente homens – podem tudo. Como bem afirma Robert Ford, criador e administrador de Westworld na série, “os convidados gostam de poder. Como não podem tê-lo lá fora, eles vem aqui”. Os anfitriões foram criados – embora não o saibam – justamente para atender, entreter e satisfazer os convidados. Um dos protagonistas do filme afirma, nesse sentido, que “essas máquinas são servas do homem”. Pois é disto que se trata: de um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade (de fato não há ambiente mais masculinizado e viril do que o Velho Oeste do parque).

Em Westworld os convidados são deuses que tudo podem. Lá, ao contrário da vida real, eles não estão submetidos a regras, a leis, a tradições, a rotinas e a constrangimentos de qualquer tipo. Lá eles podem ser e fazer o que quiserem, quando quiserem e da forma como quiserem. Como afirma Ford para sua equipe, os convidados “não querem histórias que lhes digam quem são. Eles já sabem quem são. Eles vem porque querem vislumbrar quem poderiam ser”. É possível ver nesta fala de Ford que um dos objetivos do parque é propiciar uma experiência de autoconhecimento para seus clientes.

Mas para além disso, a ideia central é que consigam colocar em prática, pelo menos no tempo em que estiverem no parque, tudo aquilo que não conseguem fazer no mundo real. Se na vida cotidiana, não conseguem ou não podem se aproximar de certas mulheres, lá todas estão à sua inteira disposição; elas foram concebidas justamente para atender aos desejos dos homens – e com uma “vantagem”: elas não se lembrarão de nada no dia seguinte, aconteça o que acontecer.

Se na rotina do dia-a-dia não convém esmurrar e muito menos matar as pessoas que lhe incomodam, lá isto é permitido e mesmo estimulado. Foi contrariado, questionado ou ironizado por alguém? Então atire! E pode atirar à vontade, pois no dia seguinte todos os anfitriões estarão novos em folha, prontos para serem mais uma vez alvejados por tiros. Quer roubar um banco e ainda sequestrar e estuprar a filha do banqueiro? Pode fazer sem medo, pois em Westworld você não será punido e não haverão consequências reais. Lá não há leis, não há moral, não há restrições. Lá, ao contrário do que ocorre na vida real, todos os convidados possuem total ou, pelo menos, grande controle do rumo dos acontecimentos. Eles sabem que tudo terminará bem e que eles serão, pelo menos por um instante, protagonistas e heróis de alguma história grandiosa. Lá eles são especiais.

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Fonte: http://migre.me/vyfpW

De uma forma geral, o filme e a série possuem uma visão bastante negativa (ou será realista?) do ser humano. Liberto das amarras da sociedade, o homem livre é um ser puramente sexual e violento, parece nos dizer Westworld. E talvez seja realmente assim. Em sua clássica obra O Mal-estar na civilização, Freud argumentou justamente nesta direção. Segundo ele, viver em sociedade implica necessariamente na repressão e sublimação de grande parte de nossos impulsos sexuais e agressivos, o que traz como consequência  uma permanente e inevitável sensação de mal estar.

Em sociedade não conseguimos e provavelmente nunca conseguiremos nos sentir plenamente satisfeitos. Viveremos eternamente frustrados e incompletos, sempre desejando aquilo que não temos e nem podemos ter. E talvez por isto todos ou muitos de nós nutramos internamente um enorme desejo de liberdade, um anseio permanente de nos libertarmos de tudo e de todos para que possamos viver e ser e fazer o que bem entendermos. Talvez por isso também nos regozijemos com obras de arte ou jogos (e Westworld é, em sua essência, um jogo) que permitem que vivamos experiências radicais e perigosas em ambientes controlados e seguros.

É como se ao assistirmos um filme de terror, por exemplo, pudéssemos dar vazão aos nossos medos mais profundos sem que de fato sejamos afetados. Como afirma um criador de jogos de terror realistas no episódio Playtest da série Black Mirror, “sempre gostei de fazer o jogador pular. Assustado. Se assustar e pular. Depois você se sente bem. Fica radiante. Por que? Por causa da adrenalina? Sim. Mas principalmente por ainda estar vivo. Você encarou seus maiores medos em um ambiente seguro. É uma libertação do medo. Você se liberta”. O objetivo de Westworld é semelhante: permitir ao convidado vivenciar experiências radicais em um ambiente controlado e seguro e possibilitar, com isso, que ele se sinta livre, leve e solto.

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Fonte: http://migre.me/vyftO

No entanto, uma importante lição dos filmes de ficção científica é que nada é totalmente controlado e seguro, especialmente aquilo que é criado pelo homem. Desde a publicação do livro Frankenstein em 1818, esta ideia de que artefatos criados pelo homem podem sair do controle e se voltar contra o próprio homem, é repetida continuamente em inúmeras obras de arte. Pense por exemplo nos filmes Jurassic Park, Blade Runner, A mosca, O Exterminador do futuro, Inteligência artificial, Eu robô, O planeta dos macacos – A origem, Ex Machina, Transcendente, dentre muitos outros. Embora estas obras sejam muito diferentes entre si, todas compartilham da mesma premissa: quando o homem resolve bancar Deus e criar ou modificar a vida, inevitavelmente sua obra sairá do controle e ele acabará por pagar um alto preço por sua ousadia. Westworld não escapa desta premissa.

No filme de 1973 a situação começa a sair o controle quando uma cobra morde um convidado. A partir daí tudo vira um completo caos e os anfitriões acabam por matar todos os convidados, à exceção do protagonista. Já na série, o desenrolar do descontrole ocorre de uma forma mais lenta. Os anfitriões aos poucos começam a demonstrar comportamentos não-programados e a apresentar memórias de antigas atualizações.

Até o último episódio que assisti, a situação ainda não saiu totalmente do controle mas já dá para imaginar que isso ocorrerá em breve. E isto nos traz de volta à questão de se realmente é possível conceber um ambiente totalmente controlado e seguro. A resposta de Westworld e de toda uma tradição de filmes e livros de ficção científica é clara: não, o homem nunca terá total controle, nem do próprio destino e nem do destino daquilo que cria. As criações humanas serão sempre imperfeitas e incontroláveis, à imagem e semelhança de seus criadores.

Observação: eu acabei esquecendo de mencionar, mas as enormes semelhanças entre Jurassic Park e Westworld não são simplesmente mera coincidência. As histórias de ambos foram criadas pela mesma pessoa: Michael Crichton, que é autor do livro original e do roteiro de Jurassic Park assim como do roteiro do filme Westworld, que inspirou a série. O canal College Humor fez uma compilação das incríveis semelhanças entre as duas obras – veja aqui.

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A psicologia, a comunicação e as mulheres

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No dia 25 de agosto participei de uma palestra – durante a 1ª. Semana de Psicologia do Ceulp – que tinha como tema “gênero e contemporaneidade”. Essa palestra dava certa ênfase ao feminismo. O que mais me chamou atenção foram as colocações da palestrante prof. Dra. Temis Parente, que tinha como base de sua tese os meios de comunicação. Com isso pude ver que as mulheres não são tão respeitadas como deveriam em nosso meio midiático e que apesar de toda a luta contra o machismo ele ainda prevalece; observei que as mesmas são utilizadas como “objetos” por homens (me perdoe a palavra) cretinos e sem caráter, que não vê o talento que há por trás de uma “saia”. Um exemplo que ela deu e que eu achei interessante, foi o caso que ocorreu durante as Olimpíadas de 2016 quando William Waack – apresentador da Rede Globo – dividiu a cobertura com a jornalista Cristiane Dias; William, em um determinado momento, simplesmente ignorou a presença da colega ao lado. Aí a mesma falou assim: “finalmente você me cumprimentou”… Só que a câmera estava aberta e dava para ver a cara de deboche de William. E não é a primeira vez que ele faz isso, mas é aí que me questiono e se fosse um homem ao lado dele, ele trataria do mesmo jeito? Acredito que com certeza não, e isso é só a ponta do iceberg.

Há inúmeros outros casos em que mulheres são destratadas sem o menor pudor. Ao analisar o contexto midiático vi que são poucas as mulheres que apresentam programas com uma linha esportiva, por mais que tenhamos alguns exemplos de mulheres neste meio, ainda prevalece a visão de que a mulher tem que cobrir editorias mais leves, como saúde geral ou colunismo social.

Outra ênfase que dou a este relato é que a mulher continua a ser fragilizada, ou seja, uma mulher não pode ser a provedora do lar, logo vem a sociedade e taxa a mesma como coitada, da mesma forma uma mulher não pode ser mãe solteira, pois já colocam um selo na mesma, tais com: puta, sem juízo entre outras palavras, que é melhor nem prosseguir.

Essa palestra me fez perceber que nossa luta por melhor lugar na sociedade vai longe, e que teremos que mostrar que nosso potencial é maior que nossos seios ou até mesmo a nossa bunda. Que não somos objetos sexuais, somos cidadãs que compõem essa nação, e que também estamos aqui para mostrar o nosso valor.

E para terminar afirmo que merecemos respeito acima de tudo. Se estamos onde estamos é porque batalhamos muito e queremos os nossos devidos méritos!

Fonte: http://www.vilamulher.com.br/imagens/vilamulher/thumbs

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“A Garota Dinamarquesa” e o fim da era das certezas

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino e Design de Produção 

Banner Série Oscar 2016

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
Uma média alegre entre a grandeza que não há
E a felicidade que não pode haver.

 Fernando Pessoa, in “Mensagem”.

Garota Dinamarquesa 1

Dirigido por Tom Hooper, “A Garota Dinamarquesa” é um drama norte-americano que concorre a quatro estatuetas no Oscar 2016 (Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino) e aborda um dos temas mais atuais e instigantes das ciências humanas, a teoria queer. O longa é baseado num romance sobre a vida de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo no mundo. A obra traz questões ontológicas e existenciais, além de abordar com singularidade “o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher”.

Coincidentemente ou não, dias depois de ler uma curta análise sobre as últimas obras de David Bowie, por ocasião de sua morte, e de perceber a forma sensível e apurada com que ele lidou com a destruição das bases do pensamento que prevaleciam até o início do século XIX, acabei por assistir o filme americano que ecoa, em alguma medida e dentre outras coisas, com os excertos pulverizados nas produções de Bowie – um “camaleão” que compendiava na aparência e no fazer artístico, parte da dinâmica social e psicológica das últimas décadas.

Assim como em Bowie, “A Garota Dinamarquesa” – além de apresentar-se como um relato histórico acurado para a teoria de gênero – tem como pano de fundo a consolidação da simbólica morte do Deus cristão (já profetizada por Nietzsche), a compreensão de tempo e espaço pela via da relatividade de Einstein (este, não iremos nos aprofundar) e, por fim, a descoberta do inconsciente por Freud – ampliada magistralmente por Jung. Somados, tais pontos levariam a um “alargamento” do que viria a se configurar como uma espécie de autopoieses do indivíduo e a um amadurecimento do humanismo liberal contemporâneo. Além, claro, de referendar as posições que questionam a “rigidez” com que eram tratados os papéis sociais destinados a homens e mulheres.

Garota Dinamarquesa 2

E de que forma estes aspectos estão presentes enfaticamente em “A Garota Dinamarquesa”? Na medida em que o longa retrata a fase aguda da transição de uma época calcada em certezas absolutas para um período profundamente permeado pelo sentido de que tudo o que pensávamos até então poderia estar errado, a começar pela “austera” delimitação de homem/mulher.

Dentre os tópicos mais tocantes, o fato de a efervescente sociedade moderna, a partir de Freud, perceber que poderia haver “outro ser humano dentro do ser humano”, aliada à revolução copernicana de Kant, resultou na formação de indivíduos com um profundo sentido de autopercepção, de “delimitação e identificação do eu em contraposição ao outro” e, por fim, detentor de uma estrutura interna mínima – já sem tanta pressão das convenções coletivas – para pôr em prática as argúcias pessoais mais originais, como a troca de sexo por entender que a genitália herdada (no nascimento) não corresponde ao panorama psíquico adulto.

Garota Dinamarquesa 3

Há, portanto, a consolidação “da morte do Deus cristão” na medida em que se coloca em xeque – e mesmo rechaça-se – a legislação externa (transcendental) sob a própria vida. Além disso, os sujeitos passam a abraçar – inclusive com o ônus decorrente das escolhas, como fica claro no filme – suas existências, a partir de suas próprias vontades, o que acaba por transformar estes indivíduos em protagonistas, logo, em criadores e responsáveis por pavimentar seus futuros. Trata-se de um processo que ainda está em formação e que já se mostrou como um dos mais emblemáticos na recente história da nossa espécie, cujos resultados ainda são imprevisíveis.

Transgerenidade

Lili Elbe é um marco para a teoria queer, justamente por compor o balizamento, a gênese – na prática – de um movimento de “política pós-identitária” que tenta superar a abordagem binária homem-mulher. Pelo estudo/observação das minorias sexuais, tendo por base disciplinas como sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e estudos culturais, dentre outras, pretende ampliar o entendimento acerca da constituição sexual. Os componentes sociais passam a ocupar forte espaço, em detrimento da predominância do viés exclusivamente biologicista (determinista).

Trata-se de uma abordagem que nega a oposição entre homens e mulheres, e que enxerga na cultura e trocas sociais – e o impacto que as mesmas exercem sob os indivíduos – a verdadeira origem do processo de “sexualização” do sujeito. Desta forma, a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade não passariam de formações de identidades sociais estabelecidas, com a primeira (aceita como “normal”) prevalecendo sobre as duas últimas (“desviantes”); as três expressões, para a teoria de gênero, ainda são fruto de culturas sexuais normativas, limitantes e, em alguma medida, excludentes entre si.

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A transexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, por sua vez, são apontadas como culturas sexuais não hegemônicas. Logo, têm caráter subversivo e diametralmente oposto às normais sociais prescritas, sobretudo no que tange ao comportamento sexual e às relações amorosas de maneira geral.

Isso se dá porque a teoria queer simplesmente afasta qualquer tentativa de emparedar os indivíduos em estruturas de caráter universal (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual). Com isso, defende que cada pessoa contém uma gama de variações culturais – onde nenhuma pode reclamar superioridade sobre qualquer outra – que, por fim, acaba por nivelar todas as identidades sociais como anômalas. Esta abordagem tenta fazer cair por terra toda tentativa de classificação entre o “normal” e o “desviante”.

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Coadjuvante que se agiganta

No mais, a atriz Alicia Vikander encarnou uma Gerda de dá inveja a qualquer Ivete Sangalo da vida. De personalidade forte e destemida, ela se agiganta ao passar de apêndice (inclusive na falta de reconhecimento artístico, no início da carreira) à posição de destaque (indispensável, registre-se) no turbulento percurso que transformou Einar Mogens Wegener em Lili Elbe.

No ínterim, percebe-se em Gerda uma mulher que supera os próprios medos e apegos, e que transforma o amor conjugal numa expressão mais universal de afeto, em que o bem-estar do cônjuge vem em primeiro lugar, nem que para isso tenha que se sacrificar a própria vida.

Esta postura resultou numa total entrega e confiança por parte de Lili. Isso ocorreu porque as restrições que estreitam e aprisionam – e que poderiam muito bem estar no repertório de Gerda – foram substituídas pela constante tentativa de (re)conhecer o outro que, em certa medida, está além de qualquer classificação. Ao final, havia a tentativa (de Gerda) de “experimentar” a si mesma.  Trata-se de uma atitude que demonstra um elevado nível de maturidade e de desprendimento, em que pese os momentos de sofrimento e de angústia.

“A Garota Dinamarquesa”, com isso, acaba por se configurar numa obra que demonstra a complexidade – e grandiosidade – de parte da constituição humana. É um convite para se aproximar do “absolutamente outro”, num movimento em que o estranhamento e o medo devem ser superados pela empatia e pela abertura. Provavelmente é um filme que se tornará um clássico.

Crítica

Destoante desta posição, a teórica ateia, acadêmica, ensaísta, crítica de arte e crítica social americana Camille Paglia (que esteve recentemente no Brasil) diz que a teoria de gênero representa, em última medida, uma espécie de derrocada da civilização Ocidental. Homossexual assumida – e muito criticada pelo movimento feminista –, Paglia é autora do famoso livro “Personas Sexuais”, e apresenta-se como uma das intelectuais contemporâneas mais enérgicas na contraposição a elementos da citada teoria.

Para Paglia, apesar de ela própria ser muitas vezes identificada como transgênero, o que, em alguma medida, é verdadeiro – já que ao nascer ela não se identificou com o papel que lhe apresentaram na polarização sexual vigente à época –, ainda assim ela considera que só existam fundamentalmente dois sexos, o masculino e o feminino, que são determinados biologicamente. “De qualquer forma, comecei a escrever sobre a androginia, que está no limite entre estes dois polos, que fica na área cinzenta entre os extremos do cérebro. No entanto, trata-se de uma quantidade muito pequena de pessoas [que se enquadram na androginia, ou seja, gêneros autênticos que são ambíguos]”, diz Paglia, para quem “a propaganda dos transgêneros faz alegações muito infladas sobre a multiplicidade de gêneros”.

Camille Paglia diz que, mesmo atualmente com todos os avanços, a cirurgia de redesignação sexual “não pode mudar o sexo de ninguém […], uma vez que só se pode identificar como um ‘homem trans’ ou como ‘mulher trans’”. No entanto, defende a americana, “toda célula do corpo humano, o DNA dessa célula segue codificado para seu nascimento biológico”.

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Ela diz que o que mais a preocupa é a popularidade e a disponibilidade da cirurgia de redesignação sexual. “Alguém que não sente que pertence ao gênero biológico é encorajada a intervir no processo”, diz. Diferente do que ocorreu no caso de “A Garota Dinamarquesa”, onde Lili Elbe, já adulta, pondera e decide pela intervenção, atualmente “pais estão sendo encorajados a submeter às crianças a tipos de procedimentos […], como a utilização de hormônios para a desaceleração da puberdade, e até manipulações cirúrgicas”. Paglia considera estas investidas equivocadas, tendo em vista que “as pessoas devem esperar até terem idade para dar consentimento”. De acordo com a ensaísta e acadêmica, “até na adolescência é cedo demais para dar este salto [cirúrgico], já que as pessoas crescem, mudam [de ideia] e se adaptam”.

Por fim, Paglia diz que no estudo histórico realizado para o livro “Personas Sexuais” identificou padrões cíclicos, em que nas fases mais avançadas ou decadentes de uma cultura, “quando se começa o declínio [desta cultura] você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso seria o sintoma do colapso de uma cultura”, fruto do liberalismo humanista contemporâneo. A teórica diz que o atual surgimento e recrudescimento do Estado Islâmico, por exemplo, é uma resposta a este movimento.

Curiosamente, em alguns países islâmicos considerados “linha dura” em relação à homossexualidade, como o Irã, é encorajada a cirurgia de mudança de sexo. Isso ocorre para que rapidamente os indivíduos que se julgam ter nascido com o sexo errado possam se enquadrar numa das duas polaridades heterossexuais dominantes. O país só fica atrás da Tailândia no número de cirurgias de troca de sexo. A homossexualidade (masculina, sobretudo) continua sendo punida com castigos físicos e até pena de morte.

Mais sobre “A Garota Dinamarquesa”

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À esquerda, Lili Elbe, quando se identificava como homem. Nas imagens do centro de da direita: Elbe nos anos 30.

De acordo com recente texto publicado no jornal El País, a história de “A garota dinamarquesa” começa em 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisiense. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê.

Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930. Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas submetidas a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html

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* Disponível na Amazon.com, pela WS Editora.

REFERÊNCIAS:

Sinopse de “A Garota Dinamarquesa”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/ >, Acesso em 16/01/2016;
David Bowie: sobre a vida, a morte e o significado da existência. Disponível em < http://www.fronteiras.com/entrevistas/david-bowie-sobre-a-vida-a-morte-e-o-significado-da-existencia >, Acesso em 15/01/2016;
Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’. Disponível em < http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html >, Acesso em 15/01/2016;
Análise da cena de ciúmes de Ivete Sangalo. Disponível em < http://www.brasilpost.com.br/anna-haddad/ciume-ivete-relacoes_b_8919598.html >, Acesso em 15/01/2016;
Roda Viva entrevista Camille Paglia. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=KlYR1isM2o8 >, Acesso em 15/01/2016;
Irã diz sim à transexualidade. Disponível em < http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ira-diz-sim-a-transexualidade-aoao2u271id5pekjf50a13qry >, Acesso em 16/01/2016;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Garota Dinamarquesa cartaz

A GAROTA DINAMARQUESA

Direção: Tom Hooper
Elenco:
Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Tusse Silberg;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação:
14

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Márcia Tiburi: O mito do sexo e a mudança no formato de conversação

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Se nosso ser político se forma em atos de linguagem, precisamos pensar nessa formação quando o empobrecimento desses atos se torna tão evidente. O autoritarismo é o sistema desse empobrecimento – Márcia Tiburi, em “Como falar com um fascista”

Em uma de suas participações no programa Café Filosófico, da CPFL Cultura, a filósofa Márcia Tiburi apresentou uma visão instigante sobre a desconstrução do mito do sexo. Para tanto, iniciou sua tese a partir da Grécia Clássica e, irreverente, disse que o útero é o grande fundador da filosofia. Isso pode soar estranho, no entanto ao apontar o método da maiêutica (parto) criado por Sócrates, a assertiva da filósofa ganha um novo sentido. Márcia Tiburi defende que, em razão de Sócrates não poder seguir a profissão de sua mãe, que era uma parteira, “ele então resolveu que faria algo melhor do que ela”. Desta forma, em vez de fazer o parto do corpo (cuja profissão era restrita ao universo feminino), faria o “parto das ideias”. Com isso, a criação da filosofia como a conhecemos hoje surge a partir de uma metáfora. A filosofia passa a ser caracterizada como um “partejar das ideias”, no sentido de “ajudar o outro a dar a luz às suas próprias ideias, algo que está guardado dentro dele, como se fosse um filho (ou seja, a metáfora da maternidade está funcionando aí o tempo todo)”, explica Tiburi.

Sócrates, assim, teria demonstrado possuir uma enorme inveja da sua mãe, por não poder realizar aquilo que ela fazia, que era “reproduzir o corpo, reproduzir a vida”. E é a partir desta falta, desta ausência, que ele reencena, recria o gesto de sua mãe. Neste ponto, diz Tiburi, “se for levar em conta o conceito de histeria naquilo que há de ‘teatro’, no hystera (útero), a filosofia já contém o germe do histérico”.

E onde ficavam as mulheres, durante este processo de “partejar as ideias”?, provoca Tiburi, para logo emendar: “Reclusas no Domus (casa em latim), no Oikos (casa em grego), que na verdade já era um protótipo de um campo de concentração”. E o que os homens faziam, neste ínterim? O que frequentemente, na história da humanidade, eles sempre fizeram: ocupar o espaço público, como o próprio Sócrates fez. Isso fica claro numa passagem de “O Banquete” de Platão, quando num dado momento os homens se preparam para começar um debate e pedem para a flautista sair do ambiente. “Deixem-na tocar para si mesma, ou para as mulheres lá dentro… mas procuremos agora o entretenimento através do diálogo”, destaca o texto.

Diante desta breve construção histórica, Márcia Tiburi diz que o mito do sexo é um dos quais a filosofia não conseguiu, até hoje, se posicionar de forma adequada. “O mito é uma narrativa que é construída para se colocar no lugar da ausência da lógica. Esta é uma interpretação tradicional e, em alguma medida, clichê. É uma interpretação básica, que é boa e justa, mas que não engloba todos os aspectos”, enfatiza. Neste sentido, a filosofia pode ser interpretada como uma negação ou mesmo uma superação do mito. Isso ocorreu de forma sistemática porque a filosofia quis garantir uma espécie de “reserva de marcado”, afinal o mito ocupava um amplo espaço à época. “Mas o mito não foi eliminado. Continuamos usando e criando mitos em nossas vidas a cada dia. A indústria cultural lança os novos mitos para saciar a nossa ‘sede’ e nossos desejos”, defende a filósofa.

Márcia Tiburi diz que por mais que se queira eliminar de cena certos mitos, pela força arquetípica de que está imbuído, isso não seria possível. “Vide o caso de Édipo (Édipo Rei, Sófocles, séc. V a. EC.), cujo mito se repete nas estruturas das famílias e mesmo na história da literatura. Um exemplo é o caso de Hamlet (de Shakespeare), que se configura como a renovação da estrutura do Édipo”, lembra, ao reforçar que a própria composição da literatura é uma renovação dos mitos ou um modo de mantê-los vivos. “O escritor Jorge Luiz Borges (1899 – 1986) costumava dizer que toda a literatura é uma releitura da Ilíada, da Odisseia e dos Evangelhos. Isso é até muito lógico, pois por mais que sejamos seres humanos com estilos e gestos diferentes, no final das contas estas diferenças são milimétricas”, reforça.

Tiburi explica que Platão, no “Timeu”, foi o primeiro filósofo a dizer que as mulheres tinham um animal dentro do seu corpo (o útero). Para ele, este animal quando estava insatisfeito perturbava tudo, inclusive o raciocínio. Por esta visão, tratava-se de um órgão atuando por outro órgão. “Talvez isso é o que tenha feito, segundo dizem as más línguas, Schopenhauer (1788-1860) dizer que as mulheres pensam com os ovários”. E como é visto útero, então? É este grande buraco, que ao mesmo tempo é o representante da animalidade do ser humano. A mulher, desta forma, passa a ser compreendida não como alguém que é dominada por seu cérebro – portanto, não é um sujeito capaz de fazer uso de sua racionalidade –, mas por viver “sendo capturada por essa animalidade que vem se dizer com toda a força”.

Em relação a Kant, Márcia Tiburi destaca que ele vai deixar explícito em vários textos que é preciso buscar e realizar, o tempo inteiro, o ideal de humanidade, posto que se não se realizar tal ação “estaremos sempre submetidos à menoridade da nossa condição humana”. Tiburi lembra que o filósofo prussiano deixa muito claro que as mulheres só podem participar desta humanidade de maneira restrita, enquanto são tuteladas por seus maridos. Assim, numa retomada ao ideário grego, competiria às mulheres ser o belo sexo, “bibelôs que ficam dentro de casa, num bem decorado campo de concentração, enquanto os homens vão para a esfera pública exercer o poder”. E é justamente neste ambiente de amplo debate sobre a condição humana, com a ênfase de Kant, que as mulheres começam a reivindicar sua posição dentro deste ideal de humanidade. Isso ocorre entre o final do século 18 e início do século 19. Uma dessas mulheres é Mary Wollstonecraft (1759 – 1797), que foi uma das primeiras a questionar as diretrizes deste ideal. É ela, assim, que define o feminismo como uma busca pelos direitos da humanidade, sem restringir a abrangência ao universo dos direitos das mulheres.

Voltando a questão do mito, Márcia Tiburi diz que ele surge quando não se tem uma resposta lógica e racional, que possa ser testada de forma empírica. Assim, “para o nosso medo da morte, criamos Deus. Ou livros, filhos e plantamos árvores. Todos estes são mitos”. Em síntese, o mito é a resposta para o vazio que é promovido por uma pergunta cruel que envolve um sentido, e que faz sofrer. A resposta do mito, portanto, é no sentido de que o sofrimento seja amenizado.

E por que o sexo se transformou num mito? “Porque o sexo virou a grande resposta para o nosso sentido. Sobre isso, o livro ‘A história da sexualidade’, do Foucault, é uma das poucas obras que alerta para a questão de que o sexo teria sido uma armadilha da qual nós, até agora, não conseguimos nos livrar. E que espécie de armadilha é essa? Ora, é o mito no qual a gente acredita. Ou seja, acredita-se que o sexo nos constitui como algo essencial. Que ao descobrirmos o sexo, descobriríamos quem somos”, arremata Tiburi.

Conversação

A filósofa lembra que quando Freud inventa a Psicanálise, ele altera o formato da conversação. Se a filosofia, em seu início nos pré-socráticos – sobretudo em Pitágoras, passando por Platão e Aristóteles –, era conversação num diálogo que só poderia ocorrer entre homens, Freud começa a ouvir as histéricas que manifestavam no corpo o mutismo em relação à linguagem, na virada do séc. 19 para o séc. 20. “Como se o corpo viesse a revelar aquilo que ficou proibido de se dizer na linguagem organizada e discursiva que utilizamos para se comunicar. O corpo, então, manifesta aquilo que não foi dito”, destaca Tiburi.

Freud descreve que os casos de histeria, em parte, estavam ligados à abstinência sexual. Mas ele fala também, no caso da paciente Anna O., que a mulher é tolhida ao não ter direito de viver dentro da esfera pública. No caso específico de Anna O., isso foi observado porque toda vez que ela fazia um exercício de intelecto, ao falar sobre sua vida, ela ficava bem. “Então Freud faz uma revolução, no território da linguagem, ao modificar a cena da conversação, quando passa a ouvir uma mulher. Isso ocorre depois de tentar o uso da hipnose. Ali houve um princípio de revolução feminista”, diz Tiburi, mesmo que este não fosse o foco do pai da psicanálise.

Márcia Tiburi lembra que Freud é muito criticado por parte das feministas, “mas este ato corajoso [de ouvir as mulheres] ninguém ainda tinha tido. Isso deve ser creditado a ele”. Freud então passa a supor que lá, naquilo que a mulher tem a dizer, encontra-se um saber. “Ele estava confiando num saber que aquela pessoa detinha por ter experimentado a própria vida”, pontua Tiburi. Esta foi uma verdadeira revolução, que inclusive exerceu forte impacto sobre toda a filosofia.

A mudança de ênfase envolveu uma escuta, então, para tudo aquilo que não podia ser dito. Trata-se de uma escuta do mutismo. “Se isso não é contraditório, no mínimo é dialético. Como eu vou escutar o mudo? Já que ele é aquele que não fala? Eu tenho que reconhecer que ele se declara em outro lugar. E que lugar é esse? É o corpo”, esclarece a filósofa, que acrescenta: “Ouvir a voz que não se diz. Esta é também uma questão filosófica”.

O masculino e o feminino

De acordo com Márcia Tiburi, o que há de mais desconcertante a se falar para uma mulher é que “ela é tão feminina, porque tem as mãos delicadas e a pele tão delicada”… Haveria uma redução do feminino à delicadeza. “No entanto, esta é uma construção patriarcal que está em todos os lugares. Não se tem mais como fazer uma genealogia que nos leve à origem do patriarcado, porque toda a história, linguagem e racionalidade é patriarcal. Pode-se escapar disso? Só reconstruindo a partir de uma crítica consistente e interna ao patriarcado”, observa Tiburi, ao acrescentar que o mundo público é dos homens, e o mundo privado também é deles, “porque ele é interno à esfera pública. O feminino, assim, é uma construção deste patriarcado”.

A filósofa lembra que muitos(as) autores(as) e feministas declaram que o feminino é uma essência, uma natureza que precede as construções sociais e históricas. No entanto, isso que se chama de feminino é algo extremamente amplo e vago, a negativa de um paradigma do que seja o masculino. Este último é colocado de forma mais precisa, por estar configurado no universo público das ações e das decisões. “A grande pergunta é: de que me serve ser feminina? De que me serve ser uma mulher? De que me serve acreditar no meu sexo? Se não escolhemos nosso sexo ao nascer, somos a nossa própria condição, como defende Ortega y Gasset. O meu corpo, neste sentido, me é inexorável. Eu não posso escapar do meu corpo, nem do lugar geográfico que meu corpo ocupa, nem da minha anatomia. Se a minha anatomia não combinar com o meu desejo, eu vou conviver dentro de um conflito. Pode até ser bom. Pode-se até se sentir bem vivendo dentro de um conflito”, conclui Tiburi.

E se o sexo deixar de ocupar um lugar de destaque na esfera humana, haveria o risco de colapsar o que se entende por humano? Esta indagação é limitante, pontua a filósofa, porque coloca o sexo como um sentido final. Há, antes de tudo, uma troca, uma relação. O objetivo geral, em tese, é ter uma vida criativa e produtiva, que se configure de forma justa e decente. O sexo faz parte deste arcabouço. “Quando eu fiz a crítica ao mito do sexo, eu quis mostrar que o sexo não pode ser o foco do nosso sentido. Porque o foco do nosso sentido tem que ser o único lugar onde, de fato, se configura com lucidez a noção de sentido, que é o todo. Eu não posso pensar no sentido sem pensar no todo”, explica Márcia Tiburi.

Desta forma, no contexto da relação que se estabelece com “nosso sexo, que chamamos de sexualidade, seria bem interessante que se desenvolvesse uma política do sexo”. Isso na acepção de “desrecalcar” e, no bom sentido, “desmoralizar” a moral sexual, “que atualmente é pérfida, embora a cada dia se torne menos pérfida”. A filósofa diz que as manifestações de abertura sexual que a sociedade vive atualmente são benéficas para todos. Aos poucos, começa-se a ruir a tendência a acreditar nos gêneros. “Estamos deixando de ser homem e mulher, estamos deixando de fazer aquele papel histriônico teatral do ‘eu sou mulher, você é homem’. Isso envolve respeitarmos as novas anatomias, e as possibilidades que estas anatomias trazem, mas já há um movimento de abandono de muitas das paranoias e neuroses em relação ao ideário do sexo”, arremata.

Por fim, Tiburi diz que atualmente é possível que as pessoas se declarem para além das sexualidades impostas ou dos gêneros já pré-definidos. Então, começa-se a pensar na pessoa em sua dimensão mais ampla, próxima de uma expressão de liberdade. E este sujeito passa a se afirmar pelo que ele é, não pelo que o outro espera que ele seja. Ganha força, com isso, a desconstrução de tudo o que até então sustentava o mito do sexo.

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Gerontofilia: do filme à reflexão

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A Gerontologia, desde os últimos 10 anos, tornou-se um dos temas de atenção e respeito em minhas leituras. Em parte, isso se deve ao perceber como os grupos organizados de mídia se articularam para construir sentidos sociocomportamentais sobre o envelhecimento – o ser, o estar e o sentir-se velho/novo numa sociedade hedonista consumidora – e, os embates que estudiosos da Gerontologia vêm travando para que o velho-idoso possa ir mais além da letra, isto é, do Estatuto do Idoso, e os diálogos interdisciplinares que estabelecem com o Direito, a Sociologia, a Medicina etc. A outra parte do interesse, obviamente, vem pela observação do tempo sobre mim, ou seja, como a senescência a lá Simone de Beauvoir me acena não tão mais distante.

Acostuma-se ao adentrar no universo de estudos da Gerontologia, associando-a às análises dos produtos midiáticos e num crossing-over com o Direito, a Filosofia, Sociologia e Psicologia, para observar e discutir além das problemáticas políticas e econômicas a produção do sentido de ser-estar velho. Infelizmente em peças processuais penais e criminais podem ser observados os inúmeros casos tanto de violências com os mais velhos – a construção do idoso indefeso-violentado-destituído de seus direitos -; como também em outras peças a imagem do velho decrépito, violador, do pedófilo. Vive-se em meio a esses pratos da balança.

No dia a dia, ao se levar em conta os pratos dessa estranha balança, também encontramos o “velhinho ebofílico midiatizado”, isto é, o super-hiper produzido vovozinho-tiozão que luta esteticamente contra o tempo e confirma o amor (a filia) ao frescor da adolescência. É comum, nessa sociedade ocidental, observar o “tiozão” trocar sua senhora (como a um objeto) por umagirl com 30 ou 40 anos a menos, um boy-garotão musculado e praticante de compras por atacado de roupas e perfumes de marca. Nos primeiros instantes causa estranhamento, depois em respeito da liberdade individual presente na Constituição Federal e na crença da salvação-danação individual (herança da tradição judaico-cristã ocidental, ainda precisando de muita psicanálise) acostuma-se com o fato e, com os mais próximos cria-se a aposta sobre o quanto durará aquela relação.

(Fonte: http://press.siff.net/SIFF%202014/Feature%20Films/Gerontophilia/)

Essa ebofilia tem se tornado mais visível nos “não-lugares” das grandes cidades (centros comerciais/praças de alimentação dos Shopping Centers, lojinhas de grifes, aeroportos e locais de turismo paradisíacos a bon prix – preços especialmente destinados ao bolsos e cartões de crédito não tão fornidos financeiramente- lojas de conveniência), mais usual entre homens idosos com moças e rapazes mais jovens e com muita discrição entre mulheres idosas e aquelas mais jovens. A observação é casual, assistemática, caso contrário cairia eu também num transtorno obsessivo moralista… apenas utiliza-se ferramentas teóricas de análise apreendidas ao longo da vida de estudos.

Dores da alma, desvio genético, recalque, frustração, compensação, utilitarismo, puro amor, atração afetivo-sexual incontrolável… o leque de hipóteses, diagnósticos e prognósticos é grande, enquanto se discute ela continua em ocorrência, assentando-se nas novas pólis de neón e, garantindo um excelente filão de mercado.

(Fonte: www.frontrowreviews.co.uk)

Aprende-se pela cotidianidade a analisar o que se percebe e se sente ou se ressente também, destaca-se dessa realidade empírica objetos que se tornam aqueles “objetos” teóricos para recorte analítico. Mas nem tudo funciona como se fosse lição de aula de epistemologia. O que salta a vista, às vezes, assusta e adere a pele e ao pensamento, fazendo-se presente e instigando à investigação.

Um dos últimos filmes assistidos, o pacote midiatizado me deu um susto, isto é, me trouxe a baila a gerontofilia. O lado reverso da ebofofilia ou da pedofilia?

(Fonte: www.hollywoodreporter.com)

Quando se pensa que o vocabulário de doenças, desvios, males ou a se questionar se verdadeiramente o são, vem a gerontofilia, que por meio de um filme me forçou a busca de seu entendimento.

Forçou-se me a buscar na Classificacão Internacional de Doenças (CID) e nos critérios do DSM-IV  proveniente da Associação Psiquiátrica Americana termo como parafilia (anomalias, desvios e ou perversões sexuais) demarcado com tipologias especificadas (exibicionismo, fetichismo, festichismo transvéstico, frotteurismo, pedofilia, masoquismo sexual e voyeurismo) e um grupo com diferentes variações ou seja, aquelas denominadas de “outros transtornos da preferência sexual”, CID 10, F65.8. A lista de denominações e características é grande, vai de auto-erotismo a zoofilia, incluindo a também a gerontofilia. E com as culturas do cibermundo, a lista tende a aumentar.

O comportamento sexual de uma pessoa parafílica situa-se numa zona de perigo ao transferir o desejo sexual para um objeto específico ou tipo de pessoa, pois os limites das normalidade e anormalidade são muito tênues.

A gerontofilia (o amor pelo velho/idoso) no mercado de corpos e ressignificação dos idosos, como objetos também de consumo e consumação, ganha espaço na sociedade pós-século XX, porque mascara o que é patológico por uma lógica do livre prazer advindo de um interesse sexual específico. O amor ao idoso ganha essa conotação erotica e tendenciosamente comercial apelativa. Isso pode ser verificado também em profissionais do entretenimento com amplo tráfego midiático. Atrizes acima de 60 anos e seus jovens mancebos em defesa da relação intergeracional, afinal, outro conceito bem trabalhado pela mídia.

E nessa perspectiva maliciosa do amor intergeracional e da gerontofilia – enquanto uma parafilia – o realizador canadense Bruce LaBruce, já conhecido no circuito alternativo cinematográfico como um criador de provocações tirando do camp, do lixo e da comédia caústica suas histórias, lançou seu filme Gerontophilia. Dá para imaginar um amor super chato e convencional entre um jovem de 18 anos, de beleza angelical numa versão pop masculina de Lolita, com um senhor de oitenta anos?

O filme, produção canadense de 2013, traz um jovem que vive com uma mãe alcóolica e tem uma namoradinha cujos gemidos e sussuros são distinguidos como nomes de revolucionárias femininas até mencionar o da atriz Winona Ryder. O trash começa a encher a caneca. Figura paterna inexiste, algo edipianamente reverso? O garoto manifesta sua atenção especial para com os mais velhos desde a ereção voluntária na piscina onde é salva-vidas, ou outras em cenas presentes logo no início da narrativa.

(Fonte: http://gossip.libero.it/focus/26633844/gerontophilia-il-film-scandalo-di-venezia/venezia-film-scandalo/?type=naz)

É importante mencionar, sem praticar o spoiler, que a esquisita mãe garante ao mancebo um trabalho de cuidador numa residência para idosos. Lake, o rapaz, cai de tesão pelo octogenário M. Peabody. LaBruce faz o clássico slowmotion quando Lake lava pela primeira vez seu paciente.

LaBruce foge da discussão sobre aquela relação, escamoteia para uma romance pseudo beira de estrada-rodovia (um road movie seria por demais pretencioso), com direito a chileques de ciumes de Lake. Corte nas cenas de aventura, realidade retorna para o diretor do filme. Outras relações com mútuo benefício intergeracional ocorrem na película. É assustadora a relação da namoradinha com o chefe na livraria.

E é ai que o perigo mora, com exceção da interpretação impecável do octogenário, os demais membros do elenco estão próximos do “não tão ruim de tudo” contribuindo para a pulverização da discussão sobre a gerontofilia e do amor intergeracional. Pulverizada na narrativa, o que se assiste é uma narrativa que não quer tocar no discernimento psicológico de Lake (em português, lago). LaBruce preferiu criar uma polêmica midiática para festivais que a mergulhar no lago para auxiliar no entendimento sobre a intergeracionalidade e os limites com a gerontofilia.

O filme é provocativo mas não subverte. Como produto midiático oferta possibilidades sociocomportamentais, para os que se debruçam sobre a Psicologia, Filosofia, Sociologia e Gerontologia nos brinda com uma porta de entrada para iniciar uma discussão até então estranha aos nossos ouvidos, isto é, sobre a gerontofilia. As imagens e trilha sonora oferecem um chamamento à fruição estética, mas nem tudo ocorre em edição digital com soundtrackbonitinha. A vida não roda em slowmotion.

FICHA TÉCNICA

GERONTOFILIA

Título Original: Gerontophilia
País: Canadá
Direção: Bruce LaBruce
Roteiro: Bruce LaBruce, Daniel Allen Cox
Produção: Nicolas Comeau, Leonard Farlinger, Jennifer Jonas
Música: Ramachandra Borcar
Fotografia: Nicolas Canniccioni
Edição: Glenn Berman
Elenco: Pier-Gabriel Lajoie; Walter Borden; Katie Boland; Marie-Hélène Thibault; Yardly Kavanagh
Ano: 2014

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Jovem & Bela: a descoberta da sexualidade e a vida que extrapola os rótulos

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Após perder a virgindade nas férias de verão, a jovem Isabelle (Marine Vacth) inicia uma vida dupla, prostituindo-se sem que ninguém à sua volta desconfie. Desde a primeira cena do filme, é hipnotizante a beleza da protagonista do longa francês, e, com o decorrer da história de Jovem & Bela, o espectador é enlaçado por sua intrigante e curiosa personalidade, que mais parece uma esfinge enigmática que, presume-se, a qualquer momento quer devorar quem desafia suas ações.

Muitas das críticas que se observa sobre o filme focaram na curiosidade sexual da jovem e sua aparente incoerência dos atos com o ambiente em que ela vive. Desde o início é ressaltado a boa condição financeira e a união familiar como barreiras para qualquer tipo de ação marginal ou, no outro extremo, o vazio de significado que o sexo adquiriu na sociedade contemporânea, principalmente entre os jovens – aqui vislumbrado por alguns como uma fuga da melancolia da vida. Sem desmerecer tais perspectivas, acredito que François Ozon, diretor e roteirista do longa, julga menos o sexo e mais a cultura masculina dominante.

Isabelle traz no rosto os traços delicados de um anjo e seu comportamento contido e polido só esconde um espírito perspicaz e curioso. Em nenhum momento há uma expressão do que se julgaria imoral ou muito menos algo que forneça informações sobre seus desejos, bem diferente da protagonista em Ninfomaníaca, polêmico filme de Lars Von Trier. A cena no qual ela, na praia, se certifica do seu isolamento para fazer topless parece exemplificar o caráter de Isabelle – seus pensamentos e seu corpo não são e não devem ser públicos. Entre essa dicotomia e o relacionamento familiar esboçado, o incômodo que ficou ao final do filme foi: qualquer um(a) pode ser “puta”!  A mais antiga profissão, como dizem, pode ser exercida por sua irmã, mãe, tia. Se a única pergunta que martelar na cabeça do telespectador é “por quê?”, se entra num discurso infinito moralista com poucas e limitadas respostas; para ampliar a discussão, principalmente em uma obra de ficção, tem que se fazer um questionamento tão intrigante quanto o filme propõe: – Por que não?

Em perspectiva, o choque se dá por dois motivos: o personagem é feminino e se prostitui. Agora, tire o foco de Isabelle e coloque as mesmas experiências em Viktor, seu irmão caçula, igualmente jovem e belo e até poderíamos ter duas faces da mesma moeda, mas em uma sociedade machista a história não é bem assim. Ozon delineia isso ao filmar a masturbação feminina e masculina, as primeiras aventuras sexuais dos dois irmãos, ambos expostos pela perspectiva masculina, encarados com espanto no primeiro e com normalidade no segundo. Exemplo de uma sociedade patriarcal que dá o poder de dominar e exercer o domínio sobre o seu sexo e do outro, definindo papeis com regras pré-estabelecidas desde o momento que o pai e mãe descobrem o gênero da criança que vai nascer. Está arraigado os papeis esperados por cada um, sem indagações ou restrições e Isabelle parece perceber isso e busca ir além da compreensão racional.

Não se sabe se foi a experiência de ver a separação dos pais ou perceber antecipadamente as pressões que existem sobre o gênero feminino um possível estopim de seus atos, talvez a simples percepção das restrições absurdas sobre seu sexo, proibindo-lhe de utilizá-lo sem rótulos, a tenha desafiado ir contra eles. E o primeiro adjetivo a cair é o de virgem; sua primeira experiência sexual é seca, física, sem qualquer emoção envolvida, a experiência pela experiência, resumindo, masculinizada.  Isabelle salta todo o drama e pressão que a cultura designa ao gênero feminino, de um prazer obrigatoriamente relacionado a ligações sentimentais, como sua melhor amiga retrata. Ao homem permite-se o sexo pelo simples prazer do ato, à mulher o prazer sexual deve vir imbuído de paixão e entrega, caso contrário, se ela quiser o gozo no mesmo patamar físico que o homem consegue só restará um rótulo para ela, o de prostituta.

No entanto, a escolha da prostituição não surge como um grito de revolta e sim de poder. Infelizmente nossa cultura não ensina e muito menos acolhe mulheres que busquem seu prazer, e, na minha leitura do filme, Isabelle sabe disso. Prostituir-se para ela é exercer o poder de tudo que a natureza lhe deu ao ser fêmea; cobrar por isso seria uma busca de balancear um jogo de regras e valores. A ilusão é daquele que se acha dominador, mas em um contexto onde não há viés para abusos sociais, Isabelle é quem dita às regras, seu corpo tem um preço e um tempo delimitado para uso. Se existe um vazio pós-coito, todos são expressos pelos frustrados homens que passam por usas mãos: o casado infiel, o fetichista e o senhor, que no fim da vida, se apaixona pelo alvorecer da sua juventude. Cobrar é uma forma de a protagonista sentir e mostrar quem tem poder, apesar de a prostituição ser uma linha tênue para isso, porém o fato só coloca em perspectiva quem é que dita as regras.

O resultado, sutil, é aquela que só a ação além da inércia pode proporcionar àqueles que ousam além dos papeis sociais impostos. A primeira está no sepultamento da imagem materna: Isabelle é uma desconhecida para a mãe, no entanto, a jovem parece enxergar os pensamentos da progenitora, algo que causa espanto na mesma. Já para o namorado de Isabelle, ela é uma incógnita. No seu desespero de macho, não há meios de surpreender uma pessoa, na cama ou fora dela, que sabe tudo sobre como manipular os corpos e os sentidos. O embate final, entre Isabelle e uma das mulheres traídas, não aponta culpados, mas um vencedor.

No fim, François Ozon criou um filme sobre a descoberta da sexualidade e dos prazeres e dissabores da vida do que convencionamos chamar de jovem-adulto. Ao contrário dos diversos filmes juvenis com experiências transbordando drama e paixão, onde suas vidas são folhas soltas no rio do destino, em Jovem & Bela temos uma adolescente que decide ter a razão no comando. Cobaia de suas próprias experiências ela aprende, com o racionalismo de xadrezista, como funciona sua mente e, principalmente, a do outro. E isso tem um preço que não é moralista e sim, receoso. Ao ter seus atos descobertos, todos à sua volta ficam com medo, medo este que pode envolver o telespectador ao final, que procura respostas e não encontra… e não vai encontrar enquanto estiverem perguntando-se: por quê?

 

FICHA TÉCNICA

JOVEM & BELA

Título Original: Jeune & Jolie
Direção & Roteiro: François Ozon
Elenco: Marine Vacth, Géraldine Pailhas, Frédéric Pierrot, Fantin Ravat, Johan Leysen, Charlotte Rampling, Nathalie Richard
Produção: Eric & Nicolas Altmayer
Fotografia: Pascal Marti
Ano: 2013

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