Drácula: justificação do mal e “demonização” do outro

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“Quem habita este planeta  não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra”
Hannah Arendt

 

 

Pela terceira semana em cartaz e líder de bilheteria no Brasil, o hollywoodiano “Drácula – A História Nunca Contada”, do diretor Gary Shore, tenta repaginar as origens lendárias do famigerado vampiro da Transilvânia. Historicamente falando, parece ter exagerado na dose e, de quebra, gerado visões distorcidas e/ou no mínimo excessivas que, em alguma medida, reforçam estigmas e preconceitos amplamente usados pela indústria cinematográfica norte-americana quando o assunto é a cultura mulçumana (outro longa que também fez esta abordagem foi “300”). A investida, em alguma medida, reflete o atual momento histórico de “retorno do medo” com o avanço do Islã sobre a Europa.

Na estória original, escrita no século XVII pelo irlandês Bram Stoker, Drácula é associado ao mítico Vlad III, Príncipe da Valáquia (região da Romênia), conhecido por evitar o avanço das tropas do Império Otomano (sob a égide do Islamismo) pela Europa Oriental, no século XIII. Vlad é lembrado como um dos mais valentes guerreiros de seu tempo, e que com a mesma energia com que erguia mosteiros cristãos, também empalava¹ centenas de seus detratores, notadamente os mulçumanos que se aventuravam a “islamizar” o leste europeu (na outra “frente”, a oeste, entre Marrocos e Espanha, os seguidores do profeta Maomé foram expurgados ou massacrados pela Inquisição). Voltando ao príncipe Vlad, ficou conhecido “por sua política de independência em relação ao Império Otomano” e “por seu sadismo” na forma como tratava os inimigos turcos, fonte de ameaça ao Sacro Império Romano-Germânico.

 

 

No romance original de Stoker, Drácula é uma espécie de morto-vivo que se alimenta de sangue humano e que, por onde passa, deixa um rastro de morte e destruição. Na adaptação para “A História Nunca Contada”, o diretor Shore e os roteiristas Matt Sazama e Burk Sharpless dão uma outra conotação à Vlad. No filme o protagonista/vampiro é apresentado como um jovem (Luke Evans) que, quando criança, teve que ser entregue por seu pai para aprender a guerrear e servir aos arqui-inimigos turcos. Alguns anos depois, ao retornar à Transilvânia, é declarado príncipe e “governa em paz por 10 anos”. A tranquilidade é quebrada quando o rei Mehmed (Dominic Cooper) “mais uma vez exige que 100 crianças sejam entregues”. Se opondo à oferta dos garotos e disposto a fazer qualquer coisa para vencer a guerra contra os turco-otomanos, Vlad “recorre a um ser das trevas (Charles Dance) que vive pela região. Após beber o sangue dele, se torna um vampiro e ganha poderes sobre-humanos”.

A “inversão” (ou adaptação, diriam alguns) se dá justamente nesta mudança de perspectiva em relação ao próprio protagonista. De “arma mortífera e sanguinária”, Vlad (Drácula) passa a ser representado como o herói/guerreiro que sacrifica a própria vida para defender não apenas a sua família (já que o filho estava entre as 100 crianças requisitadas pelo rei Mehmed), como também seus súditos e o Cristianismo. O mal então é “abonado”, para que se evite a invasão e a violência do inimigo, num movimento que se assemelha a certas vertentes do utilitarismo (onde os fins justificam os meios). Esta posição, no entanto, não passa despercebida dos estudiosos da Ética, notadamente em relação à deontologia cristã, para quem há “princípios, fundamentos e sistemas da moral” que são inalienáveis, sendo que “não matar” é um destes preceitos, o que se coloca frontalmente em oposição às práticas adaptadas pelo protagonista.

A face perversa de Drácula, desta forma, é dissolvida pela “justificação” da violência como legítima defesa, num enredo dualista desvirtuado em que, sob a égide do príncipe da Transilvânia estão “os bons”, e do lado turco está a encarnação da maldade. Este argumento, por si só, encontra contrapesos na própria crítica à teologia cristã, notadamente entre aqueles que dizem que, se Deus é onisciente e onipotente, Ele necessariamente teria que ser o autor do mal. Caso contrário, não lhe seriam atribuídas uma destas características. Este é um embate antigo, que se arrasta desde os primórdios do Cristianismo, passando pela Patrística, pelas fortes críticas de Nietzsche no século XVIII e, mais recentemente, pelas contínuas tentativas de negação da Metafísica.

Além da “justificação do mal”, que é sempre representado “pelo outro”, aquele que invade e que violenta (como se esta condição, à época [há quem defenda que até hoje é assim], não fosse comum à boa parte da espécie humana, diria Hobbes em “Leviatã”) deve ser rechaçado, mesmo que para tanto se utilize das mais espúrias “armas”, ou dos mesmos mecanismos de violência utilizados pelos próprios inimigos.

O historiador Jack Goody (no livro “O Roubo da História – Como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente”), diz que o problema é quando se nega a história e, a qualquer custo, tentam reinventá-la, definindo unilateralmente os papéis de vilão e mocinho. Assim, sob o ponto de vista eurocêntrico, é melhor rotular tudo “o que é nosso como bom, e o que representa o outro como atrasado”. Neste esforço, diligentemente se escondem fatos reveladores, como a grande contribuição do Oriente para a preservação dos escritos atribuídos a Aristóteles, que viria a se tornar, ironicamente, a base da ética e da teologia cristã. Isso, obviamente, não foi mostrado no filme.

Goody lembra que enquanto a Europa estava mergulhada na Idade Média, marcada por resistente oposição à nascente investigação científica e a qualquer filosofia que se destoasse da “oficial”, na região do Império Otomano os mulçumanos tendiam a conviver com mais flexibilidade com estes diferentes vieses. Boa parte da obra de Aristóteles, por exemplo, foi preservada pelos persas.

Na estratégia de apropriação histórica e de se colocar como baluarte do conceito comum de modernidade (não-arcaico, “progressista”), para que haja a “demonização do outro”, no caso em questão dos mulçumanos, como bem destaca Goody, cria-se o suposto antagonismo histórico entre Cristianismo e Islamismo, “como se no Ocidente não tivesse sido o Iluminismo o grande catalisador das profundas mudanças experimentadas na região”.

 

 

Como o “generalismo” é uma burrice, diria Sêneca, nem todos os mulçumanos são violentos, assim como nem todo cristão é pacífico. Mas ao analisar a cobertura midiática e a produção acadêmica sobre o Oriente (em especial o médio oriente), argumenta Goody, a impressão que se têm é que “todo” aquele povo ainda vive sob a influência exclusivamente do passado, “numa tentativa de generalizar os modos de vida e de afetos, nivelando o povo árabe em particular – e os muçulmanos em geral – como avessos ao progresso, à inovação e à qualquer tipo de liberdade, uma espécie de ‘bárbaros’ do nosso tempo”. Hollywood, em alguma medida, reforça estes estereótipos.

Alguns historiadores, filósofos e sociólogos, por outro lado, tentam equalizar e desfazer estes generalismos, mostrando que a mesma linha de “desenrolar” histórico ocorrida no Ocidente também se deu no Oriente (o que parte dos historiadores nega, ao dizer que no Oriente apenas o Japão desenvolveu as mesmas características, mais como excepcionalidade do que como regra). De qualquer forma, é bom lembrar que este assunto está longe de ter uma visão comum, já que a própria ideia de igualdade (de desenlaces históricos, por exemplo), como bem pontua o filósofo Luis Felipe Pondé, já é um contrassenso lógico. No entanto, o oposto disso seria cair num extremo marcado pelo preconceito e pelo etnocentrismo.

 

 

Tendo em vista uma análise da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl (ao citar Rimbaud), o “outro” desmente “a pretensão soberana do eu individual”. Assim, o “nós contra eles” se desmorona ao passar por um detalhado processo de investigação. Kehl lembra que qualquer ser humano é dotado de características que se costumam ser agrupadas e identificadas como “traços de humanidade”. É também sobre isso que trata a filósofa Hannah Arendt, ao dizer que “a suposição de que a identidade de uma pessoa transcende, em grandeza e importância, tudo o que ela possa fazer ou produzir é um elemento indispensável da dignidade humana”, e que “se o homem soubesse que o mundo acabaria quando ele morresse, ou logo depois, esse mundo perderia toda a sua realidade”, e os conflitos e divisões, naturalmente, tenderiam a dissipar-se, mesmo na aparente pluralidade. Quiçá isso ocorra um dia!

Nota:

Empalar vem de empalamento ou empalação (do latim palus, estaca ou mastro). Trata-se de um “método de tortura e execução que consistia na inserção de uma estaca pelo ânus, vagina, ou umbigo até a morte do torturado. A vítima, atravessada pela estaca, era deixada para morrer sentido dores terríveis, agravadas pela sensação de sede. Esse tipo de tortura, altamente cruel, foi vastamente utilizada por diversas civilizações no mundo inteiro, sobretudo da Arábia e Europa”. Fonte: Wikipédia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Empalamento – Acessado em 12/11/2014.

 

Referências:

Vlad, o Empalador. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Vlad,_o_Empalador – Acessado em 11/11/2014;

“Guerrilhas” cristãs querem impedir avanço do Islã na Europa– Disponível emhttp://noticias.gospelprime.com.br/guerra-religiosa-na-europa/ – Acessado em 10/11/2014;

Drácula – A história nunca contada– Disponível em  http://www.adorocinema.com/filmes/filme-203440/creditos/ – a=Acessado em 11/11/2014;

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Petrópolis: Vozes, 2008;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

GOODY, Jack. O Roubo da História. São Paulo: Contexto, 2008;

SWINBURNE, Richard. Será que Deus existe?. Lisboa: Gradiva, 1998;

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, SP: Martin Claret, 2008;

O eu é um outro, por Maria Rita Kehl – Disponível emhttp://www.mariaritakehl.psc.br/conteudo.php?id=125  – Acessado em 10/11/2014;

A evolução do princípio da igualdade e sua aplicação sob a ótica material na Constituição Federal. Disponível em http://jus.com.br/artigos/20924/a-evolucao-do-principio-da-igualdade-e-sua-aplicacao-sob-a-otica-material-na-constituicao-federal#ixzz3ItRfQR4s – Acessado em 11/11/2014.

 

Trailer:

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

DRACULA

Título Original: Dracula Untold
Direção: Gary Shore
Duração: 92 minutos
Gênero: Ação Drama Fantasi
País de Origem: Estados Unidos da América
Classificação: Não recomendado para menores de 14 anos
Ano produção: 2014

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O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei

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E aqui no terceiro filme chegamos ao desfecho da história.

Vimos em As Duas Torres que um reino havia sido ignorado, o reino de Mordor, cujo rei é Sauron o Senhor do escuro.

Sobre Sauron é importante acrescentarmos uma nova interpretação para enriquecer nossa compreensão sobre o filme.

Nos contos de fadas europeus a figura do Mago representa o aspecto do sombrio da imagem de Deus que não foi reconhecido pela consciência coletiva (Von Franz, 1985).

Infelizmente a sociedade ocidental tem uma imagem do divino extremamente equivocada. Temos Deus como summum bonum (ele é só o Bem), o que exclui, a priori, o Maligno (Jung, 1979). E isso reflete diretamente em nossa própria percepção acerca de nós mesmos. Vemos-nos como seres melhores do que realmente somos. Nossas sombras são projetadas no outro, assim como o lado sombrio da divindade cristã foi projetada no diabo.

Além disso, no filme As Duas Torres tivemos uma modificação significativa em Gandalf. Ele passou de mago cinzento a mago branco. Esse embranquecer simboliza a estado da alquimia denominado albedo. O albedo é uma purificação, um renascimento. Ou seja, além de representar o aspecto benéfico da divindade, o Mago Gandalf agora representa uma nova ordem renascida na consciência coletiva.

E a ação continua.

Frodo, Sam seguem rumo a Mordor para a destruição do anel, sendo guiados por Gollum.

O herói Frodo antes que consiga destruir o anel de poder terá que enfrentar seu aspecto sombrio, representado pelo Hobbit Sméagol que se transformou em Gollum e nessa luta com sua sombra, ele perde um dedo.

Isso significa um enorme sacrifício. Aqui o herói teve de aceitar o sofrimento concreto e pagou com sua própria carne pelo desenvolvimento de sua personalidade e da psique coletiva. Frodo sacrifica as projeções do ego e o desejo de poder e de segregação que qualifica uma consciência centrada no ego.

Gandalf, Aragorn, Legolas e Gimli acompanhados do rei de Rohan e sua comitiva, chegam em Isengard onde se encontram com Merry e Pippin.

Após isso o grupo de divide: Gandalf parte com o hobbit Pippin para Minas Tirith, onde não consegue convencer o regente Denethor a acender os faróis e pedir socorro aos aliados.

Denethor é o regente de Gondor, reino esse que deve ser assumido por Aragorn, o regente legitimo. Mas Denethor está gravemente doente. Ele está completamente insano a ponto de querer queimar a si próprio e o filho Faramir vivos.

Nos contos de fadas geralmente o rei se encontra doente ou velo demais e deve ser substituído. Aragorn agora deve aceitar quem ele realmente é, o rei que trará a renovação à consciência coletiva. O rei que unificará os povos e fará com que todos lutem sob sua bandeira e que trará de volta o elemento faltante e desprezado: o feminino.

Se no filme anterior ele viveu um impasse entre duas mulheres, aqui ele se decide pelo seu verdadeiro amor, a elfa Arween.

Ele se decide por ela quando recebe a visita de Elrond, o pai de Arween, que lhe entrega a espada de Isildur reforjada e lhe diz que sua filha retornou a Valfenda, após uma visão onde ela vislumbra seu filho com Aragon, mas que ela está morrendo, pois seu destino agora se encontra ligado ao do Anel.

Ao aceitar a espada, Aragorn aceita seu destino de rei.

A criança que Arween vê simboliza representa as promessas de renovação, uma vez que a consciência coletiva está doente.

O fato de Arween estar morrendo representa justamente a desvalorização do feminino vista no texto anterior. Se o Anel e Sauron não forem destruídos ela e a própria natureza irão sucumbir, uma vez que Sauron destrói as florestas sem piedade.

O princípio do Eros, da fertilidade e da sensualidade desaparecerão da consciência coletiva. E é nesse instante que Aragorn assume o compromisso de defender o reino para auxiliar a sua amada a não sucumbir. Aragorn, Legolas e Gimli partem para as minas Tirith. E Aragorn deve convencer o exército de mortos a lutar por ele. Os três então partem para a Senda dos Mortos.

Aragorn entra em uma caverna para se encontrar com os mortos, remetendo a uma descida ao Hades. Isso psicologicamente significa que ele deve se acertar e honrar os espíritos ancestrais. Os orientais são hábeis conhecedores dessa arte de reverenciar os ancestrais. Infelizmente nós ocidentais perdemos esse hábito.

Quando os Cavaleiros de Rohan partem para auxiliar Gondor na guerra, Merry e Éowyn, disfarçados, se juntam as tropas.

Éowyn que foi preterida por Aragorn agora luta e derrota o Rei Bruxo de Angmar e se torna a Rainha de Rohan, simbolizando a ascensão novamente do feminino.

E por fim O Anel é destruído. Frodo e Sam são resgatados pelas Águias de Gandalf. Aragorn é coroado rei de Gondor e se casa com Arween.

Agora a consciência foi renovada e o reino dos homens se firma.

O fato de Sauron ter morrido significa que quando um complexo morre nos contos, ou em sonhos, a energia (libido) que antes o avivava será investida em outro aspecto psíquico.

Os Hobbits retornam a sua terra. Tempos depois, Frodo se dirige aos Portos Cinzentos e junto de Bilbo, Gandalf, Elrond e Galadriel parte da Terra-Média para sempre. A missão deles foi cumprida!

E assim se finda a saga do Senhor dos Anéis.

FICHA TÉCNICA

O SENHOR DOS ANÉIS – O RETORNO DO REI

Título Original: The Lord of the Rings: The Return of the King
Direção: Peter Jackson
Música composta por: Howard Shore
Canção original: Into the West
Ano: 2003

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“Alice no País das Maravilhas” e o limiar entre loucura sã e sanidade patológica

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A loucura só existe em uma sociedade, já afirmava Foucault (1961). A questão dos limites saudáveis entre loucura e sanidade, não é algo fácil de se encontrar, precisamos entender que essa é uma compreensão relativa, que leva em conta a cultura e a época. Considerando cada ser humano único, entendemos que não é possível identificar um único padrão, sendo muito tênue a separação entre normal e anormal, entre saudável e patológico.

Para ilustrar essa questão utilizaremos a trajetória da personagem Alice no filme Alice no país das maravilhas, de 2010, dirigido por Tim Burton. O filme mostra a Alice depois de 13 anos, como uma jovem tendo que tomar a decisão de viver conforme a sociedade afirma ser adequado para uma garota, aceitando um casamento arranjado, ou ouvir seu “eu interior” e seguir os passos do pai, saindo totalmente dos padrões pré-estabelecidos da época. Antes da resposta ao pedido de casamento, Alice retorna ao “país das maravilhas” e trilha uma jornada pelo seu mundo interior descobrindo-se, e assim fortalecendo o seu self tendo, portanto, condições de tomar a decisão mais adequada para si, mesmo correndo o risco de ser tachada de “louca”.

O psicólogo trabalha na promoção de saúde enfocando a subjetividade e com o objetivo de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, sendo assim podemos pensar que também trabalha para uma valorização de aspectos pessoais que podem ir de encontro aos padrões pré-estabelecidos por uma sociedade.

Ao consultarmos algumas teorias da personalidade encontramos um ponto que apesar de apresentado de maneira diferente em cada uma, nos leva a pensar na descoberta de si mesmo, de sua essência para uma vida psíquica saudável. Buscamos aqui refletir sobre a existência de um aspecto saudável na loucura, na medida em que essa for apreendida no sentido de sair de uma norma considerada padrão para atender ao seu eu, assim como a existência de um aspecto patológico na sanidade, ao considerarmos sãos aqueles que mesmo em detrimento do seu self seguem cegamente as normas, tornando-se alienados de si, assim como compreender que entre loucura e sanidade pode existir um equilíbrio saudável.

Alice certa e Alice errada – Loucura e sanidade a história e seus vários significados

A maneira de ver a doença mental está intimamente ligada à imagem do louco, a loucura como doença mental é bastante recente, hoje não é mais um fenômeno oposto entre razão e desrazão. Segundo Frayze-Pereira (1984 p.08) “a loucura é interior à razão”.

A loucura passou por três momentos históricos: 1- Como liberdade e verdade nos séculos XV e XVI; 2- O grande internamento nos hospitais gerais entre os séculos XVII e XVIII; 3- A época contemporânea após a revolução francesa, quando cabe à psiquiatria cuidar dos loucos dos asilos (COROCINE, 2005).

Acreditamos que a maneira como a loucura é vista e tratada, até os dias atuais, traz vestígios dessa história e de seus momentos. Todos esses séculos de segregação deixaram para a loucura o status de exclusão. Entre os séculos XV e XVIII a história mostra que a loucura foi vinculada a desrazão, a libertinagem, ao pecado, e ao inumano, o que contribuiu para uma imagem negativa da loucura. O louco ainda hoje é escorraçado e vive sem rumo, carregando esse estigma.

Na história em determinada época surge também um fascínio pelas imagens da loucura. Nessa época a loucura surge como um saber, difícil e estranho, mas que é inacessível ao homem são. A loucura abre-se a um mundo de significações, que faz surgir figuras com sentidos que só se deixa apreender sob o insano. É uma sabedoria simbólica que provem de uma sobrecarga de sentidos e de significações que só o sonho e o insensato podem alcançar.

No final da Renascença a loucura entra em uma relação reversa a razão. Elas se recusam, porém uma se fundamenta na outra.  O pensamento moderno apresentado por Descartes segrega a loucura. Ela é confiscada por uma razão dominadora, que a aprisiona desta vez filosoficamente. No século XVII a loucura não mais domina a verdade, é o pensamento que a detém. “O eu que conhece não pode estar louco, assim como o eu que não pensa não existe.” (FRAYZE-PEREIRA 1984 p. 61).

Em uma sociedade, onde não se aceita o diferente, a diversidade, a loucura é sempre uma ameaça. Como afirma Frayze-Pereira (1984) “se a loucura é nesse mundo patologia ou anormalidade é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou uma impossibilidade.” (p.102)

A loucura tem muitas vestes, ou seja, ela se mostra de várias maneiras. E é assim que encontramos em Alice no país das maravilhas loucos e sãos em diferentes contextos: a sua tia Hermógenes é patologicamente louca, com sintomas claros como o delírio de estar à espera de seu noivo que é um príncipe, é o tipo de loucura que deve ser tratada; pois, prejudica o seu funcionamento, tanto no plano psíquico quanto nos planos social e/ou orgânico, assim com a falta de autonomia e liberdade, que acaba restringindo a sua vida.

O indivíduo só pode ser considerado louco em relação a algo ou alguém, pois é muito difícil definir a loucura por si só. As divergências a respeito da loucura são muitas, os antipsiquiatras sustentavam que não havia loucos e sãos, todo mundo era louco de certa maneira, já os psiquiatras eram aqueles capazes de distinguir os loucos dos sãos.

O pretendente de Alice, Hamsh, é um partido perfeito aceito por todos, um lorde, faz parte da alta sociedade, segue as normas, porém está totalmente alienado, não se permite pensar, segue cegamente o que lhe é imposto, mas é considerado são em relação aos costumes e a sociedade da época. Frayze-Pereira (1984 p.56) afirma que “há diferentes formas humanas de loucura. E cabe à crítica moral denunciá-las”.

Nesse sentido, sanidade está ligada a uma norma, uma regra, que se estabelece para eliminar as diferenças. Em uma cena, no início do filme, Alice é repreendida por não estar vestida apropriadamente, e rebate a mãe questionando quem decide o que é apropriado, a resposta para esse questionamento está nas normas sociais. A sanidade é para a mente o que a saúde é para o corpo, a mente funcionando de maneira apropriada, o que pressupõem que algumas pessoas saibam o que é adequado ou não.

Phillips (2008) considera a sanidade como uma integridade da mente, “um estado idealizado de hierarquias felizes e tradições infalíveis” (p.44) é usada para indicar pessoas disciplinadas, em uma sociedade de valores partilhados. Como Alice não sabe se quer se casar? Ela será feliz e terá uma vida perfeita, seria loucura não se aceitar.

A loucura por outro lado é descrita como desordem, excesso, desequilíbrio, é o que Alice era para a Aristocracia Vitoriana. Ou seja, sanidade é tudo aquilo que é comedido, dentro da lei, enquanto loucura é tudo o que foge do controle, que é proibido.

A sanidade pode ser uma estratégia para nos proteger do mundo louco, é como se reconhecer certas coisas a nossa volta pudesse destruir nosso equilíbrio. A sanidade se torna aquele lugar onde tudo é ótimo, ela é a fantasia que nos mantém sãos.

Em Salazen Grum a rainha vermelha, estava rodeada de pessoas estranhas, pois assim não reconheceria em si o defeito, o que lhe tiraria o equilíbrio. A sanidade em Salazen Grum é a fantasia, que os protege da insanidade da rainha vermelha.

Alice esteve no país das maravilhas quando criança, e ao retornar há uma discussão se ela é a Alice certa ou a Alice errada. De acordo com Phillips (2008, p. 64) “nascemos literalmente insanos”. Ele apresenta o período da infância como um período de loucura original, que por meio do desenvolvimento nos ensinara a governar essa loucura e sermos sãos. Alice cresceu, não é reconhecida no país das maravilhas porque, deixou seu estado de loucura sã (não que ela fosse louca quando criança), mas o que para ela, agora adulta, é loucura, quando criança era normal. Alice aprendeu a se proteger e se defender de seus sentimentos intensos e sensações agudas, agora poderia se dizer que ela é sã.

Porém, para os habitantes do mundo subterrâneo, a Alice “certa” é a que no mundo real seria considerada “louca”. Foucault (1975) afirma que “A doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal” (p.49). Aqui verificamos outro aspecto da loucura, em uma visão mais antropológica que procura relativizar a loucura, mas que ao mesmo tempo traz o desvio como sua essência.

A mente sã vai controlar e adequar o que está descontrolado. O chapeleiro maluco diz a Alice que ela não é mais a mesma, que ela era muito mais “muitais”, que perdeu sua “muiteza”. A partir desse diálogo poderíamos considerar “muiteza” como um recurso interno, sendo assim, o Chapeleiro refere que Alice perdeu sua autenticidade, sua autoconfiança, sofremos um bombardeio desde o início da vida para nos “concertar” por meio da “boa educação”, o que por um lado nos faz cada vez acreditarmos menos em nós, e por outro ficarmos tanto mais reprimidos e defendidos quanto mais pressões externas sofremos.

Phillips (2008) esclarece que para os antipsiquiatras a sanidade ao extremo significava o que existe de mais embotador na cultura, a loucura neste sentido era uma resposta autêntica (muitais) ao que existia de mais desumanizador no mundo. A loucura do Chapeleiro, é também a loucura de Alice, e do pai de Alice, criativa, que busca a inovação, sem o medo das incertezas futuras. Assim, na sua forma mais extrema a sanidade torna-se um refúgio contra um novo perturbador.

A sanidade impõe limites a algo de excessivo nas pessoas, que é chamado de loucura. Esta é a sanidade que Alice encontra ao retornar do mundo subterrâneo.

O mundo subterrâneo – Teorias da personalidade e o crescimento psicológico

Partindo do pressuposto de que, a personagem Alice ao cair no buraco estaria desacordada, podemos pensar no “país das maravilhas” ou “mundo subterrâneo” como o seu mundo interno, portanto parte de sua estrutura psíquica. O caminho trilhado por Alice pode então ser comparado a um processo de crescimento psicológico.

A psicanálise nos esclarece que ao entrarmos em contato com conteúdos inconscientes, liberamos energia para ser utilizada com mais criatividade, ao desvendar os conteúdos inconscientes teremos mais autoconhecimento e podemos lidar com o sofrimento as dificuldades e conflitos com mais autonomia.

Na abordagem junguiana percebemos o processo de individuação como o caminho para a autenticidade, entrando em contato com as principais estruturas de nossa psique, integrando-as para nos tornarmos nós mesmos de maneira integra, distinta, única e singular.

A Gestalt-terapia busca aumentar a awareness, estar em contato com a nossa existência e saber quem se é, trocar o apoio ambiental para o auto apoio. Nestas teorias entendemos que o crescimento psicológico, busca o autoconhecimento, o que dá o suporte para o indivíduo ser mais autêntico e criativo.

Alice no inconsciente

A princípio gostaríamos de apontar algumas considerações levantadas por Tim Burton diretor do filme e alguns dos atores, apresentadas no bônus do DVD intitulado Encontrando Alice. Tim Burton fala da ideia de explorar a natureza dos sonhos no filme, é levantada a questão de que no país das maravilhas nada é totalmente bom ou mal, e todos são de alguma forma loucos. Alice no filme diferente do livro está tentando saber quem ela é, o diretor também aponta para a questão de que o que Alice está vivendo no país das maravilhas tem representação com o que ela vive. O início do filme mostra Alice como era antes, falam de como ela era próxima de seu pai que morre, e a deixa em um luto que revela sua falta de jeito e seu desconforto com a sociedade. Eles entendem a jornada emocional de Alice como a história de Alice reencontrando sua “muiteza”, e destacam que a maior questão de Alice é recuperar sua força e descobrir que pode ser confiante, e quando ela aceita sua força, a rainha branca pode recuperar o seu trono e as duas mudam, recuperam o seu poder.

Partindo dessas considerações, podemos fazer uma leitura da história de Alice baseada nas três teorias que acabamos de ver, e entender seu crescimento psicológico. Ao cair no buraco Alice entrar no mundo subterrâneo, ou no seu inconsciente. Vale ressaltar que apesar da Gestalt-terapia não trabalhar com o inconsciente ela não o nega, e em seu trabalho Perls (1977) considera o sonho como projeção de um self alienado do indivíduo, portanto também uma parte desconhecida do sujeito; nesse sentido, estando Alice sonhando, iremos considerar alguns aspectos do inconsciente. Pois de acordo com a afirmação de C. G. Jung (2004, p. 04) “É no inconsciente que mergulhamos todas as noites”.

Alice não reconhece nada no mundo subterrâneo, apesar de não lhe causar tanta estranheza. É como se fosse um lugar esquecido, mas não nunca visto; o que faz sentido: é seu mundo interno, porém com conteúdos recalcados ou que nunca tiveram acesso à sua consciência, reprimidos pelos padrões da vida na Aristocracia Vitoriana, e portanto irreconhecíveis. Para chegar ao mundo subterrâneo Alice tem uma longa queda em um buraco muito profundo: na teoria psicanalítica o inconsciente é considerado a instância psíquica inscrita mais profundamente, e a queda profunda sugere o quanto esses conteúdos são difíceis de serem alcançados.

O inconsciente é atemporal, os personagens não acreditam que aquela Alice é a mesma de antes, pois não consideram os anos que passou desde a última vez que Alice esteve ali. O mundo subterrâneo também é confuso, e repleto de imagens simbólicas, assim como nosso inconsciente. Quando Alice é desafiada a lutar pelo reino, ela está sendo chamada para salvar seu mundo interno, que aparecia simbolicamente devastado, por tudo o que Alice reprimiu de si mesma, para viver nos padrões sociais.

Alice está em um momento tenso de sua vida quando corre atrás do coelho e cai no buraco. Os sonhos em psicanálise são uma maneira de equilibrar parcialmente os anseios e limitações da vida real, Jung (2004, p. 103), afirma que “os sonhos são a reação natural do sistema de auto-regulação psíquica.” Já na Gestalt-terapia os sonhos são um alerta de necessidades que temos em aberto. O trabalho com o sonho tem um papel importante tanto na psicanálise, quanto na psicologia analítica e na Gestalt-terapia; embora seja trabalhado de maneira diferente em cada abordagem. Verificamos que há um consenso em relação ao conteúdo dos sonhos, como sendo manifestações de aspectos do sujeito. Assim, os personagens do “país das maravilhas” representam partes da Alice que foram reprimidas, ou que ela desconhece.

Nessa perspectiva, a rainha vermelha representa a necessidade de controle, de manipulação de ideias, a insegurança e instabilidade emocional. A rainha branca representa o feminino, a sutileza, a magia e o equilíbrio. É a poção da rainha branca que traz Alice de volta ao seu tamanho normal. Absolém, a lagarta azul, aparece como a busca de conhecimento, a sabedoria, e representa a transformação de Alice: a medida que Alice vivencia seus desafios, Absolém passa pelo processo de metamorfose de lagarta para borboleta. A lebre representa a ansiedade e agressividade de Alice, ao tremer e jogar as coisas para todos os lados. O coelho branco mostra a preocupação com os compromissos, o que se “deve” fazer. Os gêmeos são a representação do seu lado infantil que foi deixado de lado, por ser mal compreendido pelos adultos. O gato risonho traz o medo e a covardia que Alice precisa vencer, ele é quem desaparece nas horas difíceis.

Para Jung esses personagens representam a sombra de Alice. Além destes temos ainda o Chapeleiro, que seria a representação do animus de Alice, que tem muitos aspectos do pai dela: a loucura do chapeleiro, sua criatividade e espontaneidade, remetem ao que Alice teve de modelo masculino, o seu pai era visto como um visionário.

Na perspectiva freudiana, a Rainha Vermelha pode representar o superego de Alice. Ela é a lei no mundo subterrâneo, é quem impõe os dogmas e crenças. Ela também representa a sociedade rígida, assim como a figura da mãe que lhe impõe regras, postura e até um casamento arranjado. Ao entrar em contato com esses seus aspectos internos, Alice passa por um processo de crescimento psicológico; para a teoria junguiana, o processo de individuação, para a freudiana a liberação de conteúdos reprimidos e para a Gestalt a expansão da consciência através da awareness.

Em sua viagem Alice ora está grande demais, ora pequena demais, como se realmente não fosse a Alice certa, e é apenas quando chega ao castelo da rainha branca que Alice volta ao seu tamanho adequado, como se estivesse se reencontrando, e é nesse momento que Absolém diz que ela está bem perto de ser a Alice. Ao enfrentar o Jaguadarte Alice está enfrentando a sociedade que molda, julga, oprime e destrói a sua criatividade.

Alice passa a tomar consciência de aspectos dela que não reconhecia, entra em contato com seus medos, e à medida que os encara cresce e se torna mais consciente, na Gestalt-terapia esse processo é visto como uma expansão da consciência, uma busca de awarennes. Notamos uma mudança não só em Alice, mas nos personagens do seu sonho, que acompanham a sua mudança psíquica: o Gato risonho se arrisca para salvar o Chapeleiro, Absolém se transforma em borboleta, o Chapeleiro volta a dançar o “passo maluco”, a rainha branca assume novamente o comando do mundo subterrâneo. Ao cortar a cabeça do Jaguadarte, Alice devolve o equilíbrio ao seu mundo interno.

Alice se torna a Alice certa quando aceita o seu desafio. Enfrenta seus medos, se permite pensar e decidir por si só o que fazer, toma as rédeas do seu destino, luta e vence o Jaguadarte. E é assim que Alice volta do mundo subterrâneo, com os conteúdos do seu inconsciente integrados como aponta a individuação de Jung, as energias antes recalcadas, livre para serem usadas em processos mais criativos, como sustenta a psicanálise de Freud e mais aware de si como argumenta a Gestalt-terapia de Perls, integrada, com autonomia para fazer escolhas, e responder ao ambiente com criatividade e espontaneidade, sem estar presa aos “deverias” impostos pela sociedade, livre para dizer não aos papeis sociais impostos, livre para seguir de forma individualizada.

A aristocracia vitoriana e Salazem Grun – Sanidade patológica x loucura sã

Phillips (2008) identifica a verdadeira sanidade como “qualquer coisa em nós que se recuse a sacrificar nossos mundos interiores, nossas visões singulares, para ter sucesso no mundo externo, o mundo como ele é” (p. 27). O autor ressalta que, para os antipsiquiatras, coisas que reconhecíamos como indícios de normalidade, eram também as que nos alienava de nós mesmos e dos outros, portanto não seria normal ser normal. A falsa sanidade busca a uniformidade e qualquer grupo que exija as fusões da individualidade enlouquece o indivíduo.

Na sociedade aristocrática onde vivia Alice, assim como na nossa, existem muitas regras que procuram uniformizar os grupos, Alice não se vestia da maneira que consideravam adequada, não pensava adequadamente, por isso não estava dentro dos padrões dessa sanidade. Alice, assim como o pai, gostava de imaginar coisas impossíveis, era ousada, mas negou boa parte de si para corresponder as expectativas da mãe e da sociedade. Parte de nós acaba se adaptando e desenvolve a ideia de que estamos errados, e é essa parte alienada que se alia a sociedade para reprimir nossa outra parte.

A criança tem uma natureza apaixonada, mas para se tornar membro aceito na sociedade sacrifica essa natureza por algo que pensa ser melhor. São oprimidas com os medos que os adultos têm em relação a própria sanidade. Phillips (2008) aponta que o autoconhecimento pode ser perigoso, a sanidade seria a arte de não conhecer tudo aquilo que se soubéssemos poderia nos levar a loucura. Porém, segundo o autor, a pessoa verdadeiramente sã nunca se conforma com o mundo, pois a conformidade trai aquilo que realmente ela é.

Alice não se deixou alienar, era diferente das moças da sociedade, sua mãe e sua irmã tentavam convencê-la a se adaptar, a seguir os padrões, mas algo em Alice não se encaixava naqueles padrões. Alice por conta da personalidade diferenciada do pai, que possibilitava o suporte à sua imaginação, não aprendeu a ceder aos apelos da sociedade a ponto de se abandonar totalmente.

Perls (1977) afirma que o primeiro e último problema do homem é se integrar e, ainda ser aceito pela sociedade, pois ao compactuar com os desejos da sociedade, aprendemos a ignorar nossos sentimentos, desejos e emoções.  Essa perspectiva é vivenciada na sociedade aristocrática da era Vitoriana, e também no mundo interno de Alice, pois no reinado da Rainha vermelha, os habitantes do Mundo subterrâneo eram pressionados a se adaptarem aos seus caprichos; em Salazem Grun, onde ficava o castelo da rainha, só eram aceitas as pessoas que tinham qualquer parte do corpo de tamanho desproporcional. A rainha por ter a cabeça grande, impunha um padrão conforme o seu, como resultado as pessoas, passaram a usar narizes, orelhas e barrigas falsas, para enganar a rainha. Phillips (2008) a esse respeito menciona que temos grande gasto de energia nesse conflito entre a exigências externas e a nossa natureza interna. Seguindo o que “deveria” ser, a pessoa se torna falsa, constrói um ideal de como deveria ser e não como é.

Phillips (2008) argumenta:

A loucura em sua melhor forma, é uma jornada rumo à verdadeira sanidade, rumo a autenticidade de nossa verdadeira natureza, através da loucura estamos em contato com o que há de melhor em nós. A cultura corrompe nossa verdadeira sanidade. (p.25)

A sanidade nos mantém no domínio do já conhecido, ela pode ser tranquilizadora, mas também vazia. Em uma cultura comprometida com a criatividade, individualidade e talento, a sanidade parece inglória.

A sanidade modera onde a loucura excede, assim a loucura pode alcançar uma felicidade que a razão e a sanidade podem reduzir.

 O sangue do Jaguadarte – Os limites entre normal e patológico

Sãos e loucos têm muito em comum, as diferenças entre um e outro ficam pouco claras, e por isso a distinção do que é loucura e do que é sanidade vem sempre acompanhada de uma interrogação. Sãos e Loucos são cúmplices, o indivíduo são vê um pouco de si na loucura, um está ligado ao outro muito mais do que queiram reconhecer. Loucura e sanidade são extensões uma da outra.

Se o saudável é ser são e louco, como saber a medida? Como não ultrapassar o limiar saudável entre loucura e sanidade? Esse é sem dúvida um ponto bastante controverso, cada um tem seu limite próprio, o de Alice estava no momento em que o Chapeleiro pede para que ela fique no país das maravilhas: se Alice deixasse de beber o sangue do Jaguadarte que a levou de volta a realidade externa, estaria fazendo um corte com essa realidade e entrando no campo da psicopatologia.

Winnicott (2011) afirma que um homem ou uma mulher é saudável quando são “capazes de alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais” (p. 09). Algumas perdas devem existir, para controle dos impulsos, mas em uma identificação extrema perdemos o self, o que não está no campo do normal. Para o autor o saudável não é fácil, já que não se limita à simples ausência de doenças psiconeuróticas. E mesmo o indivíduo saudável tem medos, sentimentos conflitivos, dúvidas e frustrações. O importante para a pessoa estar saudável é que sinta que está vivendo sua própria vida, assumindo suas escolhas, sendo independente e autônoma.

Para Zinker (2007) o conhecimento, a existência e a felicidade só são encontrados com a reconciliação das diferenças. Um comportamento integrado possibilita uma gama de respostas entre os extremos polarizados, e a pessoa é capaz de responder com flexibilidade, criatividade e espontaneidade a uma variedade de situações.

Mas, colocar os loucos sobre um pedestal, deixando-se fascinar por seus poderes e acreditar no lucro de um saber inatingível aos não loucos, pode desviar nossa escuta da vivência trágica dos loucos. Por isso a sanidade pode ser considerada como o realismo necessário para a sobrevivência psíquica, é a sanidade que dá moderação a loucura e a fantasia.

Mas também crer numa loucura localizada no indivíduo e transfigurar o louco em monstro nos leva a recusar sua humanidade, e também nos faz esquecer que algo se diz através da loucura. Assim, entendemos que como afirma Winnicott apud Phillips (2008), “podemos ser realmente pobres se formos apenas sãos”, tanto quanto “somos ainda mais pobres se formos apenas loucos”, como complementa Phillips. (p.29)

Considerações

Falar de sanidade e loucura é fascinante e ao mesmo tempo difícil, assim como o saudável e o patológico, pois ao mesmo tempo que esses termos têm sentidos antitéticos, também têm os limites entre um e outro muito próximos. Buscando identificar os limites saudáveis da loucura e da sanidade a partir dos seus significados, levando em consideração a questão cultural, mas principalmente o sentido atribuído ao indivíduo louco ou são, logo, percebemos que não se pode dar um valor apenas negativo ou apenas positivo para a loucura e nem para a sanidade. Além de encontrarmos na  loucura alguns aspectos saudáveis, e verificarmos que uma sanidade baseada apenas nas normas impostas pode ser considerada patológica à medida que aliena o sujeito de si mesmo.

Nesta perspectiva o filme de Tim Burton ilustra perfeitamente a partir da jornada da personagem Alice, estes aspectos da sanidade e da loucura patológica, assim como da sanidade e da loucura sã, além de identificar na personagem o processo de crescimento psicológico, baseado no seu autoconhecimento.

Esperamos desmistificar a loucura, e talvez incitar a busca interior da loucura sã de cada um.

Referências:

ALICE no país das maravilhas.Direção: Tim Burton, Estados Unidos, Disney, 2010. 1 DVD vídeo (109min).

COROCINE, Sidnei Celso. A fabricação da periculosidade: um retrato sobre a violência nas instituições. Ed. Quártica, Rio de Janeiro, 2005.

FRAYSE-PEREIRA, J.A. O que é loucura. Brasiliense. São Paulo, 1984.

FOUCAULT, M.”A loucura só existe em uma sociedade” (entrevista com J.-P. Weber), Le monde, n 5.135, 22 de julho de 1961.

FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. Perspectiva. São Paulo, 1978.

FOUCAULT, M. Doença mental e psicologia. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1975.

JUNG, C. G. Fundamentos da psicologia analítica. Editora Vozes. 12ª edição. Petrópolis, 2004.

PERLS, Frederick S. Gestalt-terapia e potencialidades humanas. In: STEVENS, John O. Org.) –Isto é Gestalt. Summus Editorial, São Paulo 1977. p. 19-28.

PHILLIPS, Adam. Louco para ser normal. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2008.

WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa. Editora WMF Martins Fontes, 5ª edição. São Paulo, 2011.

ZINKER, Joseph.Processo criativo em Gestalt-terapia. Editora Summus, São Paulo, 2007.


FICHA TÉCNICA DO FILME

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Gênero: Fantasia
Direção: Tim Burton
Roteiro: Linda Woolverton
Elenco: Mia Wasikowska, Johnny Depp, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Alan Rickman, Barbara Windsor, Bonnie Parker, Carl Walker, Caroline Royce, Chris Grabher, Chris Grierson, Christopher Lee, Crispin Glover, Dale Mercer, David “Elsewhere” Bernal, David Lale, Eleanor Gecks, Eleanor Tomlinson, Ethan Cohn, Frances de la Tour, Frank Welker,  Harry Taylor, Hilary Morris, Holly Hawkins, Jacqueline Tribble, Jemma Powell, Jessica Oyelowo, Jim Carter, Joel Swetow, John Bass, John Hopkins, John Surman
Ano: 2010

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Oz – Mágico e Poderoso

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Oz: Mágico e Poderoso é prelúdio do livro do escritor americano L. Frank Baum, publicado em 1900 e que foi adaptado para o cinema em 2013. O filme começa com um circo itinerante onde trabalha o fracassado mágico Oscar “Oz” Diggs.

Oscar é um sujeito arrogante, com mania de grandiosidade. Vive flertando com as mulheres sem estabelecer laço com nenhuma delas – nem mesmo com a mulher que ele gosta – e trata seu fiel assistente com desdém.

Pode-se observar nas atitudes de Oscar traços de um intuitivo. Como o fato de viver no mundo das possibilidades e de não se comprometer com a realidade. Oscar vive com seu pensamento no futuro (intuitivo) e pouco valoriza os relacionamentos. Mostrando que a função sentimento também é pouco trabalhada em sua personalidade.

As atitudes de Oscar criam vários problemas para ele. E um dia quando arranja confusão com um grandalhão, que o persegue por ter flertado com sua mulher, foge em um balão de ar quente. Porém é sugado por um tornado que o leva para a mágica terra de Oz.

Se analisarmos o filme de forma literal podemos dizer que o mágico morreu e foi para o mundo dos mortos. Entretanto, o filme é uma fantasia por isso tomo a liberdade de analisá-lo de forma simbólica. Além disso, a análise dos personagens será feita em relação ao mágico, uma vez que ele é o herói da saga.

O tornado é uma força da natureza que simboliza que Oscar foi alçado aos céus em uma inflação destrutiva.

O mundo de Oz pode ser considerado como símbolo do inconsciente coletivo e seus arquétipos. O ego do mágico foi derrotado, ele perdeu o controle naquele balão e agora terá que lidar com algo desconhecido e trabalhar aspectos de sua personalidade antes ignorado.

Nesse novo mundo ele conhece a bela e ingênua bruxa Theodora, que acredita que ele é o mágico da profecia que irá destruir a bruxa má que matou o rei de Oz. Seguindo em direção a cidade das Esmeraldas, Theodora se apaixona por Oscar, mas sem ser correspondida (o que trará sérias conseqüências para o herói).

No caminho eles encontram o macaco voador Finley, que promete uma dívida de vida a Oscar quando ele o salva de um leão.

O macaco como animal simboliza os instintos. Nas sociedades orientais simboliza a agilidade, a inteligência e o desprendimento. Vide que na Mitologia Hindu há um deus com cabeça de macaco Hanumam, que simboliza a devoção, a dedicação e a força.

Já na sociedade ocidental o macaco é visto de forma negativa sendo considerado símbolo do homem degradado pelos vícios da malícia e da luxúria. Essa discrepância ocorre devido à cristianização que passou a considerar os instintos como algo sujo e demoníaco.

Portanto, vemos no macaco dois aspectos: o da inteligência e o dos instintos. No caso do filme, ele possui asas e uma extrema dedicação ao seu mestre. As asas demonstram que os instintos estão sendo espiritualizados e alcançando um nível mais elevado.

Oscar possui a característica de querer levar vantagem em tudo, com uma boa dose de astucia, o que representa o lado sombrio do macaco. Entretanto, com o macaco Finley ele irá aprender a lição da gratidão e da dedicação a alguém.

Na cidade das Esmeraldas, Oscar conhece irmã de Theodora; Evanora, que lhe diz que a bruxa má, Glinda, reside na floresta negra e pode ser morta, destruindo sua varinha, a fonte de seus poderes. Mas na verdade é Evanora que é a bruxa má e matou o rei, pai de Glinda.

Theodora, Evanora e Glinda formam uma tríade feminina, sendo respectivamente: A Bruxa Malvada do Oeste, A Bruxa Malvada do Leste e A Bruxa Boa do Sul.

Sobre Theodora é importante falar que inicialmente ela é boa, entretanto devido à manipulação de Evanora ela descobre que não é correspondida em seu amor por Oscar. Com isso ela se transforma em uma bruxa má com a pele verde.

Esse aspecto da mulher rejeitada que busca a vingança é um tema conhecido dos contos de fadas e dos mitos. Vemos esse tema na Bela Adormecida, onde a fada rejeitada busca vingança contra a princesa recém nascida. Deusas da mitologia grega como Hera, Afrodite e Artemistambém se vingavam quando eram traídas ou esquecidas em suas reverencias.

Nesse caso, percebemos uma predominância do elemento feminino no mundo de Oz e a ausência do elemento masculino que foi eliminado, mas que será compensado com a chegada de Oscar, o quarto elemento.

Mas antes disso, o mágico tem uma jornada onde deverá se transformar, principalmente em relação à função sentimento e o respeito pela força do feminino.

Oscar e Finley, então são unidos no caminho para a floresta a China Girl, uma pequena boneca de porcelana, cuja aldeia e família foram destruídas por Evanora.

A boneca é um brinquedo tipicamente feminino que geralmente recebe as projeções dos fantasmas da maternidade da menina, onde ela imita em suas brincadeiras sua relação com a mãe.

Mas no filme é o herói que terá que se envolver com essa figura. Nesse caso podemos, de forma criteriosa, dizer que a boneca de porcelana mostra a anima ainda em estado primitivo e frágil de Oscar. Porém, é por meio do relacionamento com ela que o mágico irá desenvolver seu sentimento e o cuidado que não havia nele antes.

A bruxa boa Glinda, então leva o grupo para o seu castelo onde ela confessa que sabe que Oscar não é um verdadeiro mago. Entretanto, a força da profecia pode fazer com que o povo lute ao lado dele, o que o força a superar sua ética duvidosa para convencer o povo de que ele é o herói necessário para libertar Oz.

Dessa forma, ele usa todo o seu conhecimento em ilusionismo para derrotar as duas bruxas.

É importante atentar que ele não mata nenhuma das duas, elas apenas são banidas, mostrando que o aspecto sombrio do feminino é necessário para o desenvolvimento da psique e não deve ser negligenciado. Sua força impulsiona o indivíduo para o processo de individuação, pois é nesse aspecto que o indivíduo é expulso do paraíso materno.

Para finalizar, Oscar após desenvolver uma ética interna e seu sentimento se torna rei, trazendo a renovação ao reino de Oz e o equilíbrio com o feminino por meio de sua união com Glinda.

O filme então nos mostra que cada um de nós tem um destino a cumprir e que ninguém deve seguir o de outro, mesmo com o medo e a insegurança advindo daquilo que nos é designado pelo inconsciente.

 

 

FICHA TÉCNICA

OZ: MÁGICO E PODEROSO

DireçãoSam Raimi
Música composta porDanny Elfman
ContinuaçãoThe Wizard of Oz
RoteiroMitchell Kapner, David Lindsay-Abaire
País de Origem: EUA
Ano: 2014

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O Cotidiano Monocular: análise do curta-metragem Le Cyclope de La Mer

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 Cena do curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999

O curta-metragem Le cyclope de la mer de 1999 é uma produção francesa, que, apesar de não fazer uso de falas, possui uma ampla gama de simbologias visuais em sua breve narrativa, enriquecida por uma rica banda sonora, todos estes elementos ainda são elevados devido à graciosidade da técnica stop-motion utilizada na composição das cenas. No conto acompanhamos a estória de um jovem ciclope que vive isolado num farol de uma ilha, tendo a companhia de suas bugigangas, um peixe solitário e algumas gaivotas. Sua rotina é composta pelos dias neste inóspito local, nas atividades diárias de sua existência, completadas pelo seu labor noturno de projeção da luz do farol no além-mar, trabalho este que é reforçado pela sua própria condição fisiológica monocular, focada diversas vezes pela câmera durante o curta.

Alguns elementos podem ser destacados na construção da narrativa de Le cyclope de la mer, que aumentam o seu grau dramático e existencial, assim como em outras obras similares. Trata-se da presença do mar como metáfora da imensidão do mundo e pequenez da imanência, a ilha como símbolo máximo do isolamento resultando em olhares, trejeitos e situações de melancolia (vide o foco ao momento de ir para cama do ciclope, ou seus hábitos cotidianos, acompanhados pelos gritos dos pássaros apenas) e a figura do farol, numa icônica referência à vontade de comunicação com o exterior, em dialogia ao único olho do personagem principal da obra.

Outro ponto que merece destaque na animação é o apuro com a trilha sonora, que consegue passar ora tenuemente ora mais tempestivamente as emoções e situações as quais o ciclope, personagem título da obra, perpassa durante os poucos minutos da projeção. Dentre estas melodias podemos destacar a intensa Une Destruction Aveugle e as profundas Matin Mécanique e Divertissement De Poisson, compostas pelo galardoado músico Yann Tiersen, autor de outras trilhas fílmicas memoráveis como as dos filmes Le Fabuleux Destin D’Amelie Poulin (2001) e Goodbye Lenin! (2003).

De forma similar a animações, igualmente premiadas, como o japonês A casa dos pequenos cubinhos (2008) e, em certo ponto, até com o brasileiro Trancado por dentro (1989), o pequeno conto do ciclope isolado numa ilha nos traz mensagens de reflexões existenciais profundas. Tais subtextos podem perpassar desde o manuseio e construção de suas ferramentas e residência, a interação com os elementos naturais que o cercam, a expectativa de locução com outrem além-mar, a perseverança na manutenção de sua rotina ostracista, dentre outros.

A chegada de uma tempestade anuncia o evento da causalidade na pacata rotina do ciclope, que em composição com a banda sonora da projeção contribui para aumentar o apelo dramático desta passagem, que magistralmente se inicia com uma iniciativa de replicação do farol em miniatura no interior do aquário, após uma fatídica tentativa de suicídio por não se adaptar ao ambiente mimético construído pelo ciclope. E, após a turbulenta noite entre trovões e açoites das águas, o dia apresenta o cenário de destruição que assola o farol. Dentre móveis, esculturas e demais destroços de estilhaços da mimese criada pelo personagem central vemos o principal impacto provocado casualístico da noite pregressa, a cegueira do Ciclope, que será aprofundada metaforicamente nesta segunda parte do curta.

Após o esporro vindo dos céus a quietude reversa do respectivo evento. Dentre as decisões a serem tomadas pelo protagonista ocorre inicialmente a libertação do seu companheiro de solidão marítima. E mesmo com sua atual condição, ou seja, a perda de sua visão, que o absorvia da realidade solitária em que vivia, o ciclope utiliza os elementos da destruição para a realização de uma fogueira final, a qual se encerra com um distanciamento perspectivo do farol no imenso mar noturno.

Se se pode enaltecer uma alegoria mais enraizada na temática existencial do curta-metragem esta pode ser escolhida como sendo a da visão, e o personagem principal em sendo um ciclope justifica tal recurso narrativo para interpretação dos apreciadores da mensagem do breve filme. Deste modo, aquele que sempre buscava um contato com o mundo pelo olho luminoso do imenso farol acaba por perder o seu próprio farol, num momento de descobrimento do seu próprio eu interior, a alvura de sua cegueira não deixa de ser inquietante neste aspecto, fazendo um diálogo luminescente entre esta e os raios luminosos do farol em alto mar.

Por fim, a solidão ou o estado de estar sozinho como muito bem retratado no curta-metragem de Jullien traz à tona uma velha discussão, àquela na qual o ser humano, ou neste caso o ciclope, mesmo exercendo um esforço de isolamento frente à sociedade, acaba por buscar alguma forma de interação ou partilha com outros entes, mesmo que de forma subjetiva ou projetiva, como é o caso do cuidado diário com o farol da ilha.

Por possuir camadas metafóricas consideráveis, Le Cyclope de la Mer, sugere múltiplas interpretações, das quais, podemos sugerir ao invés da titulação desta pequena resenha, avistamento, haja o seu contrário, o ocultamento do mundo de si, por opção próprio Ciclope, que após todos os eventos que suscitaram o estremecimento de seu esmerado mundo, o mesmo escolhe por manter a seu enclausuramento, potencializado por sua derradeira condição de privação do aspecto fisiológico que o define, a visão.

 

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

LE CYCLOPE DE LA MER

Diretor: Phillippe Julien
País: França
Música: Yann Tiersen
Duração: 13 minutos
Ano: 1999

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Gerontofilia: do filme à reflexão

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A Gerontologia, desde os últimos 10 anos, tornou-se um dos temas de atenção e respeito em minhas leituras. Em parte, isso se deve ao perceber como os grupos organizados de mídia se articularam para construir sentidos sociocomportamentais sobre o envelhecimento – o ser, o estar e o sentir-se velho/novo numa sociedade hedonista consumidora – e, os embates que estudiosos da Gerontologia vêm travando para que o velho-idoso possa ir mais além da letra, isto é, do Estatuto do Idoso, e os diálogos interdisciplinares que estabelecem com o Direito, a Sociologia, a Medicina etc. A outra parte do interesse, obviamente, vem pela observação do tempo sobre mim, ou seja, como a senescência a lá Simone de Beauvoir me acena não tão mais distante.

Acostuma-se ao adentrar no universo de estudos da Gerontologia, associando-a às análises dos produtos midiáticos e num crossing-over com o Direito, a Filosofia, Sociologia e Psicologia, para observar e discutir além das problemáticas políticas e econômicas a produção do sentido de ser-estar velho. Infelizmente em peças processuais penais e criminais podem ser observados os inúmeros casos tanto de violências com os mais velhos – a construção do idoso indefeso-violentado-destituído de seus direitos -; como também em outras peças a imagem do velho decrépito, violador, do pedófilo. Vive-se em meio a esses pratos da balança.

No dia a dia, ao se levar em conta os pratos dessa estranha balança, também encontramos o “velhinho ebofílico midiatizado”, isto é, o super-hiper produzido vovozinho-tiozão que luta esteticamente contra o tempo e confirma o amor (a filia) ao frescor da adolescência. É comum, nessa sociedade ocidental, observar o “tiozão” trocar sua senhora (como a um objeto) por umagirl com 30 ou 40 anos a menos, um boy-garotão musculado e praticante de compras por atacado de roupas e perfumes de marca. Nos primeiros instantes causa estranhamento, depois em respeito da liberdade individual presente na Constituição Federal e na crença da salvação-danação individual (herança da tradição judaico-cristã ocidental, ainda precisando de muita psicanálise) acostuma-se com o fato e, com os mais próximos cria-se a aposta sobre o quanto durará aquela relação.

(Fonte: http://press.siff.net/SIFF%202014/Feature%20Films/Gerontophilia/)

Essa ebofilia tem se tornado mais visível nos “não-lugares” das grandes cidades (centros comerciais/praças de alimentação dos Shopping Centers, lojinhas de grifes, aeroportos e locais de turismo paradisíacos a bon prix – preços especialmente destinados ao bolsos e cartões de crédito não tão fornidos financeiramente- lojas de conveniência), mais usual entre homens idosos com moças e rapazes mais jovens e com muita discrição entre mulheres idosas e aquelas mais jovens. A observação é casual, assistemática, caso contrário cairia eu também num transtorno obsessivo moralista… apenas utiliza-se ferramentas teóricas de análise apreendidas ao longo da vida de estudos.

Dores da alma, desvio genético, recalque, frustração, compensação, utilitarismo, puro amor, atração afetivo-sexual incontrolável… o leque de hipóteses, diagnósticos e prognósticos é grande, enquanto se discute ela continua em ocorrência, assentando-se nas novas pólis de neón e, garantindo um excelente filão de mercado.

(Fonte: www.frontrowreviews.co.uk)

Aprende-se pela cotidianidade a analisar o que se percebe e se sente ou se ressente também, destaca-se dessa realidade empírica objetos que se tornam aqueles “objetos” teóricos para recorte analítico. Mas nem tudo funciona como se fosse lição de aula de epistemologia. O que salta a vista, às vezes, assusta e adere a pele e ao pensamento, fazendo-se presente e instigando à investigação.

Um dos últimos filmes assistidos, o pacote midiatizado me deu um susto, isto é, me trouxe a baila a gerontofilia. O lado reverso da ebofofilia ou da pedofilia?

(Fonte: www.hollywoodreporter.com)

Quando se pensa que o vocabulário de doenças, desvios, males ou a se questionar se verdadeiramente o são, vem a gerontofilia, que por meio de um filme me forçou a busca de seu entendimento.

Forçou-se me a buscar na Classificacão Internacional de Doenças (CID) e nos critérios do DSM-IV  proveniente da Associação Psiquiátrica Americana termo como parafilia (anomalias, desvios e ou perversões sexuais) demarcado com tipologias especificadas (exibicionismo, fetichismo, festichismo transvéstico, frotteurismo, pedofilia, masoquismo sexual e voyeurismo) e um grupo com diferentes variações ou seja, aquelas denominadas de “outros transtornos da preferência sexual”, CID 10, F65.8. A lista de denominações e características é grande, vai de auto-erotismo a zoofilia, incluindo a também a gerontofilia. E com as culturas do cibermundo, a lista tende a aumentar.

O comportamento sexual de uma pessoa parafílica situa-se numa zona de perigo ao transferir o desejo sexual para um objeto específico ou tipo de pessoa, pois os limites das normalidade e anormalidade são muito tênues.

A gerontofilia (o amor pelo velho/idoso) no mercado de corpos e ressignificação dos idosos, como objetos também de consumo e consumação, ganha espaço na sociedade pós-século XX, porque mascara o que é patológico por uma lógica do livre prazer advindo de um interesse sexual específico. O amor ao idoso ganha essa conotação erotica e tendenciosamente comercial apelativa. Isso pode ser verificado também em profissionais do entretenimento com amplo tráfego midiático. Atrizes acima de 60 anos e seus jovens mancebos em defesa da relação intergeracional, afinal, outro conceito bem trabalhado pela mídia.

E nessa perspectiva maliciosa do amor intergeracional e da gerontofilia – enquanto uma parafilia – o realizador canadense Bruce LaBruce, já conhecido no circuito alternativo cinematográfico como um criador de provocações tirando do camp, do lixo e da comédia caústica suas histórias, lançou seu filme Gerontophilia. Dá para imaginar um amor super chato e convencional entre um jovem de 18 anos, de beleza angelical numa versão pop masculina de Lolita, com um senhor de oitenta anos?

O filme, produção canadense de 2013, traz um jovem que vive com uma mãe alcóolica e tem uma namoradinha cujos gemidos e sussuros são distinguidos como nomes de revolucionárias femininas até mencionar o da atriz Winona Ryder. O trash começa a encher a caneca. Figura paterna inexiste, algo edipianamente reverso? O garoto manifesta sua atenção especial para com os mais velhos desde a ereção voluntária na piscina onde é salva-vidas, ou outras em cenas presentes logo no início da narrativa.

(Fonte: http://gossip.libero.it/focus/26633844/gerontophilia-il-film-scandalo-di-venezia/venezia-film-scandalo/?type=naz)

É importante mencionar, sem praticar o spoiler, que a esquisita mãe garante ao mancebo um trabalho de cuidador numa residência para idosos. Lake, o rapaz, cai de tesão pelo octogenário M. Peabody. LaBruce faz o clássico slowmotion quando Lake lava pela primeira vez seu paciente.

LaBruce foge da discussão sobre aquela relação, escamoteia para uma romance pseudo beira de estrada-rodovia (um road movie seria por demais pretencioso), com direito a chileques de ciumes de Lake. Corte nas cenas de aventura, realidade retorna para o diretor do filme. Outras relações com mútuo benefício intergeracional ocorrem na película. É assustadora a relação da namoradinha com o chefe na livraria.

E é ai que o perigo mora, com exceção da interpretação impecável do octogenário, os demais membros do elenco estão próximos do “não tão ruim de tudo” contribuindo para a pulverização da discussão sobre a gerontofilia e do amor intergeracional. Pulverizada na narrativa, o que se assiste é uma narrativa que não quer tocar no discernimento psicológico de Lake (em português, lago). LaBruce preferiu criar uma polêmica midiática para festivais que a mergulhar no lago para auxiliar no entendimento sobre a intergeracionalidade e os limites com a gerontofilia.

O filme é provocativo mas não subverte. Como produto midiático oferta possibilidades sociocomportamentais, para os que se debruçam sobre a Psicologia, Filosofia, Sociologia e Gerontologia nos brinda com uma porta de entrada para iniciar uma discussão até então estranha aos nossos ouvidos, isto é, sobre a gerontofilia. As imagens e trilha sonora oferecem um chamamento à fruição estética, mas nem tudo ocorre em edição digital com soundtrackbonitinha. A vida não roda em slowmotion.

FICHA TÉCNICA

GERONTOFILIA

Título Original: Gerontophilia
País: Canadá
Direção: Bruce LaBruce
Roteiro: Bruce LaBruce, Daniel Allen Cox
Produção: Nicolas Comeau, Leonard Farlinger, Jennifer Jonas
Música: Ramachandra Borcar
Fotografia: Nicolas Canniccioni
Edição: Glenn Berman
Elenco: Pier-Gabriel Lajoie; Walter Borden; Katie Boland; Marie-Hélène Thibault; Yardly Kavanagh
Ano: 2014

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O Homem Duplicado: modernidade x perda de identidade

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Certamente você já assistiu muitos filmes que são adaptações de grandes obras literárias, isso porque essa prática é muito comum dentro do cenário cinematográfico, principalmente quando se tratam de obras que ganharam grandes destaques e foram, de certa forma, ovacionadas por aqueles que as leram.

No entanto, é comum, também, que as pessoas façam comparações entre o livro e a adaptação cinematográfica. Raramente as adaptações atingem as expectativas ou a mesma emoção que os livros provocaram. Não podemos nos esquecer que se trata de uma adaptação, como já mencionado, isso implica que não será fielmente a tradução do livro, que terá cortes e algumas mudanças, o que, ainda assim, não muda o assunto do livro ou o seu sentido.

Dito isto, essa análise pretende traçar um paralelo entre livro e filme, juntamente com algumas considerações sob o ponto de vista da psicologia. A obra em questão trata-se do romance de José Saramago, O Homem Duplicado, escrita em 2002  e adaptada para o cinema em 2013, com direção de Denis Villeneuve.

José de Sousa Saramago (1922-2010) foi um escritor, mundialmente conhecido, romancista e poeta português. Publicou diversos romances e em 1998 foi galardoado com o Nobel de Literatura. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, dando ainda mais destaque para seu grande talento, dentre essas obras temos: Ensaio Sobre a Cegueira (2008) dirigido por Fernando Meirelles, Embargo (2010) com direção de Antônio Ferreira e o mais recente O Homem Duplicado (2013) sob a direção de Denis Villeneuve.

Segundo Alves (s/d) os inúmeros romances publicados por José Saramago podem ser divididos em dois grupos: os de temática histórica (aqueles que misturam personalidades e lugares reais do passado com fatos e personagens ficcionais) como é o caso de Memorial do Convento (1982) e os de temática universal (aqueles em que entra os problemas da contemporaneidade, individualismo, perda da identidade, e todas ocorrem em uma grande metrópole) este é o caso de Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e o Homem Duplicado (2002).

Para alguns estudiosos, Saramago trazia em seus romances descrições bem detalhadas de seus personagens, fazendo com que suas estruturas fossem trabalhadas de forma profunda e não somente superficialmente.  Sobre isso Marilise Vaz Bridi (Bridi, 2005, apud Alves, s/d) ressalta que:

(…) o escritor (José Saramago) elabora uma pertinente crítica aos modelos sociais convencionais. Essa inquietante postura ideológica do autor lusitano é marcada pela crítica aos excessos da contemporaneidade numa construção narrativa fabular (Bridi, 2005, p.1)

É dentro deste conjunto de obras com temática universal que, também, encontramos O Homem Duplicado, que aborda principalmente a perda de identidade de um indivíduo.

Adam (Jake Gyllenhall) é um professor de história, que leva uma vida monótona. Repete todos os dias os mesmos comportamentos. Nada é diferente, desde o assunto trabalhado em sala de aula até o momento em que vai dormir, ao lado de sua namorada Mary (Mélanie Laurent). É tudo automático e preparado, o que parece ser reflexo da modernidade. Institucionalizado pela sua rotina, programado e mecânico, desanimado, solitário e desmotivado.

Em um dia comum aos outros, Adam recebe de um colega de trabalho uma indicação de filme. Ainda receoso, ou não querendo curvar-se a quebra de rotina, Adam decide aceitar a indicação do colega. Durante a sessão, algo lhe chama a atenção. Um dos atores coadjuvantes do filme é igual a ele. Praticamente idêntico. O mundo de Adam começa, agora, a girar de forma contrária. Tudo está desorganizado, em conflito. Quem seria aquele sósia? Tão igual e desconhecido? Adam, que antes vivia escravo de uma rotina sem grandes surpresas -ou nenhuma-, começa uma busca incansável para saber a identidade daquele homem igual a ele.

Anthony é o outro homem – aquele que parece um reflexo vivo de Adam – é ator, casado e sua esposa, Helen (Sarah Gadon), está grávida de 7 meses. E que também, ao ser procurado por Adam, começa a entrar num mundo conflituoso e desesperador.

Embora semelhantes fisicamente, Adam e Anthony possuem gritantes diferenças comportamentais e psicológicas. São iguais e diferentes ao mesmo tempo, o que faz despertar em ambos a vontade de um viver a vida do outro, principalmente em tratando de relacionamentos extra-conjugais, o desejo por outras mulheres.

O filme não tem guinadas ou impulsos que deem uma empolgação a mais no telespectador, por vezes ele parece até mesmo se arrastar pelo o roteiro. É como se houvessem detalhes a esmo, sem muita importância. A exemplo disso tem-se a aranha no começo do filme e não encontramos nada, durante a trama, que explique essa aparição. Já o livro, trabalha mais detalhadamente a vida de Adam, no que se refere ao seu cotidiano, minuciosamente repetitivo. Levantando questões até mesmo laborais: toda essa vida monótona seria por conta do seu trabalho desmotivador?

Veja: no livro, Tertuliano (Adam) está vivendo sob um conflito entre sua vida e sua profissão. O narrador nos apresenta um indivíduo que levanta diversas críticas à todas as coisas que lhe cercam: vida solitária, monotonia, o próprio nome, e por fim o trabalho.

Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um gênio (…) em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema. (Saramago, 2012-p.14)

Tertuliano é um personagem mais carregado de falta de coragem, de iniciativa, para mudar o rumo da própria vida, embora cheio de pesares, recusa-se a abandonar a causa de seus sofrimentos, continuando, assim, com sua vida pacata.  Com a indicação de um filme, feita pelo companheiro de trabalho, ele resolve se refugiar, outra vez, na sua rotina. É daí, que tudo se transforma.

Existe uma diferença importante nos inícios de cada história – livro e filme- enquanto Tertuliano é um professor, casado -casamento esse que está em ruínas, lotado de frustrações e crises-, tem um relacionamento extra-conjugal com uma mulher mais jovem -que o mantém devido a insistência da jovem, e não por vontade própria-, não faz amizades, mantém-se isolado a maior parte do tempo e não interage com os colegas de trabalho.  Já Adam, personagem baseado em Tertuliano, é, de acordo com o que percebemos, apenas um professor, com uma vida monótona, que vive ao lado da bela namorada -embora também apresente alguns indícios de desafetos, pouco convívio, falta de diálogo-, o que encontramos em comum entre eles é o fato de isolarem-se e manterem-se submissos à monotonia.

Ao menos foi essa a impressão que pude ter de uma mesma história. No entanto, o filme nos toma a atenção novamente quando somos, de fato, apresentados ao sósia, ou suposto sósia. Antony apresenta características físicas semelhantes a Adam, mas as comportamentais, psicológicas e sociais são completamente o oposto. O que me fez recordar, em alguns aspectos, Tertuliano; Antony vive em um casamento que por algum motivo sofreu uma ruptura, uma quebra de confiança, e que agora marido e mulher tentam retomar suas vidas. Antony também demonstra ser um sonhador e conquistador.

Algumas cenas do filme nos deixam com um ponto de interrogação enorme pairando sobre a cabeça, porque algumas vezes recebemos informações que nos faz pensar que, de fato, existe outro Adam, e por outro lado, devido alguns diálogos, temos a nítida impressão que tudo não passa de uma segunda identidade, de uma realidade inventada por Adam, para fugir da vida real, da mesmice, do tédio que ela é. E isso é um dos pontos positivos do filme, pois o diretor consegue nos deixar tão confusos, perdidos e inquietos quanto o próprio Adam.

Mas o que realmente a história desses “dois” – entre aspas porque o filme é subjetivo, levantando questões que nos fazem mudar de ideia diversas vezes: é imaginação, é real- quer nos passar? Qual a reação intenção do autor?

 

Como dito no início desta análise, O Homem Duplicado traz uma reflexão acerca da influência da contemporaneidade na vida das pessoas e com isso a perda da identidade. Sobre isso, precisa-se saber: O termo identidade vem do latim Identitas. Trata-se de um conjunto de características e traços próprios que um indivíduo ou uma comunidade possuem. Tais características diferem o sujeito perante os demais. Além disso Identidade também é a consciência que um indivíduo tem de si mesmo e que o torna diferente das demais ou seja é autoconsciência. Sobre isso Vigotski diz que é devido ao fato do homem ter consciência sobre si mesmo como indivíduo, de suas possibilidades, capacidades e limites, também abre espaço para que ele compreenda a universalidade do gênero humano. Sobre identidade, Silva (2009) ressalta que no processo de constituição da identidade, os papéis que o indivíduo assume ao longo de sua vida fazem parte de sua construção, partindo de uma identidade pressuposta (o que o outro ou a própria pessoa idealizava em relação ao desempenho daquele papel), a vivida e a que será vivida enquanto projeto de vida.

É daí, então, que podemos levantar questões importantes acerca dos acontecimentos ao longo da trama: Adam exerce um comodismo e conduz uma vida sem grandes excitações, mudanças e novidades, se arrasta pelos os dias e não procura formas de sair desse marasmo. Antony é atleta, conquistador, eufórico, busca sempre formas de mudar a rotina, transparecer felicidade e euforia. Ambos têm mulheres lindas, embora levam vidas conjugais diferentes, como em todas as outras áreas da vida. A proposta, entrelinhas, era de um viver a vida do outro, uma troca, um alívio, uma mudança, experimentação.

Mas e se, na verdade, Antony fosse o segundo mundo de Adam? Uma criação, para satisfazer e alcançar a vida que realmente ele sempre desejou, mas lutou contra esse desejo? Quem é Adam de verdade?

Não se trata apenas de saber quem é, ou que significa para o mundo, O Homem Duplicado traz em seu roteiro a importância de descobrir sobre o mundo à sua volta, o outro lado da moeda, o famoso “sair do sofá”, parar de ver a vida passar pela janela. Vivemos em uma modernidade narcisista. Uma sociedade individualista onde pregamos a política de olharmos somente para o próprio nariz; defender nossas opiniões, crenças, esquivando-se sempre que pode de indivíduos que estão em desacordo com tais opiniões e crenças, estão do outro lado do nosso terreno.

A nossa reação diante daquele que é diferente de nós reflete muito sobre quem realmente somos. E quando estamos de frente a alguém que pensa da mesma maneira como nós? Reagimos diferentes ou não damos tanta importância assim, não nos afeta, não nós causa inquietação? Como já mencionamos; a história trata-se, também, da vontade imensa de mudar a situação, transformar a vida no que deseja mas ter medo de ir atrás de soluções capazes de fazer com que essas mudanças ocorram. É mais difícil lidar com o comodismo ou com o diferente?

 

 

O desfecho do filme traz ainda mais situações conflitantes para aqueles que o assiste, deixando uma espécie de lacuna que o diretor não fez questão de completar. Mas essa é uma das características desse filme denso; existem situações em que não teremos nenhuma resposta do porquê delas terem ocorrido. Assim como existem cenas que parecem nos pregar uma peça e nos deixar perdidos sobre a realidade da trama. Volto a falar, é sufocante, além das metáforas que o autor usa com frequência e que aumentam nossas incertezas em relação ao que está, de fato, acontecendo. Particularmente preferi abandonar as metáforas e buscar enxergar o óbvio, às vezes, o óbvio nos engana também. “O caos é uma ordem por decifrar” (José Saramago, 2002).

 

FICHA TÉCNICA

O HOMEM DUPLICADO

Título Original: Enemy
Direção: Denis Villeneuve
Duração: 90 minutos
Música composta por: Daniel Bensi, Saunder Jurriaans
Ano: 2014

Inspirado na obra homônima de José Saramago

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Jovem & Bela: a descoberta da sexualidade e a vida que extrapola os rótulos

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Após perder a virgindade nas férias de verão, a jovem Isabelle (Marine Vacth) inicia uma vida dupla, prostituindo-se sem que ninguém à sua volta desconfie. Desde a primeira cena do filme, é hipnotizante a beleza da protagonista do longa francês, e, com o decorrer da história de Jovem & Bela, o espectador é enlaçado por sua intrigante e curiosa personalidade, que mais parece uma esfinge enigmática que, presume-se, a qualquer momento quer devorar quem desafia suas ações.

Muitas das críticas que se observa sobre o filme focaram na curiosidade sexual da jovem e sua aparente incoerência dos atos com o ambiente em que ela vive. Desde o início é ressaltado a boa condição financeira e a união familiar como barreiras para qualquer tipo de ação marginal ou, no outro extremo, o vazio de significado que o sexo adquiriu na sociedade contemporânea, principalmente entre os jovens – aqui vislumbrado por alguns como uma fuga da melancolia da vida. Sem desmerecer tais perspectivas, acredito que François Ozon, diretor e roteirista do longa, julga menos o sexo e mais a cultura masculina dominante.

Isabelle traz no rosto os traços delicados de um anjo e seu comportamento contido e polido só esconde um espírito perspicaz e curioso. Em nenhum momento há uma expressão do que se julgaria imoral ou muito menos algo que forneça informações sobre seus desejos, bem diferente da protagonista em Ninfomaníaca, polêmico filme de Lars Von Trier. A cena no qual ela, na praia, se certifica do seu isolamento para fazer topless parece exemplificar o caráter de Isabelle – seus pensamentos e seu corpo não são e não devem ser públicos. Entre essa dicotomia e o relacionamento familiar esboçado, o incômodo que ficou ao final do filme foi: qualquer um(a) pode ser “puta”!  A mais antiga profissão, como dizem, pode ser exercida por sua irmã, mãe, tia. Se a única pergunta que martelar na cabeça do telespectador é “por quê?”, se entra num discurso infinito moralista com poucas e limitadas respostas; para ampliar a discussão, principalmente em uma obra de ficção, tem que se fazer um questionamento tão intrigante quanto o filme propõe: – Por que não?

Em perspectiva, o choque se dá por dois motivos: o personagem é feminino e se prostitui. Agora, tire o foco de Isabelle e coloque as mesmas experiências em Viktor, seu irmão caçula, igualmente jovem e belo e até poderíamos ter duas faces da mesma moeda, mas em uma sociedade machista a história não é bem assim. Ozon delineia isso ao filmar a masturbação feminina e masculina, as primeiras aventuras sexuais dos dois irmãos, ambos expostos pela perspectiva masculina, encarados com espanto no primeiro e com normalidade no segundo. Exemplo de uma sociedade patriarcal que dá o poder de dominar e exercer o domínio sobre o seu sexo e do outro, definindo papeis com regras pré-estabelecidas desde o momento que o pai e mãe descobrem o gênero da criança que vai nascer. Está arraigado os papeis esperados por cada um, sem indagações ou restrições e Isabelle parece perceber isso e busca ir além da compreensão racional.

Não se sabe se foi a experiência de ver a separação dos pais ou perceber antecipadamente as pressões que existem sobre o gênero feminino um possível estopim de seus atos, talvez a simples percepção das restrições absurdas sobre seu sexo, proibindo-lhe de utilizá-lo sem rótulos, a tenha desafiado ir contra eles. E o primeiro adjetivo a cair é o de virgem; sua primeira experiência sexual é seca, física, sem qualquer emoção envolvida, a experiência pela experiência, resumindo, masculinizada.  Isabelle salta todo o drama e pressão que a cultura designa ao gênero feminino, de um prazer obrigatoriamente relacionado a ligações sentimentais, como sua melhor amiga retrata. Ao homem permite-se o sexo pelo simples prazer do ato, à mulher o prazer sexual deve vir imbuído de paixão e entrega, caso contrário, se ela quiser o gozo no mesmo patamar físico que o homem consegue só restará um rótulo para ela, o de prostituta.

No entanto, a escolha da prostituição não surge como um grito de revolta e sim de poder. Infelizmente nossa cultura não ensina e muito menos acolhe mulheres que busquem seu prazer, e, na minha leitura do filme, Isabelle sabe disso. Prostituir-se para ela é exercer o poder de tudo que a natureza lhe deu ao ser fêmea; cobrar por isso seria uma busca de balancear um jogo de regras e valores. A ilusão é daquele que se acha dominador, mas em um contexto onde não há viés para abusos sociais, Isabelle é quem dita às regras, seu corpo tem um preço e um tempo delimitado para uso. Se existe um vazio pós-coito, todos são expressos pelos frustrados homens que passam por usas mãos: o casado infiel, o fetichista e o senhor, que no fim da vida, se apaixona pelo alvorecer da sua juventude. Cobrar é uma forma de a protagonista sentir e mostrar quem tem poder, apesar de a prostituição ser uma linha tênue para isso, porém o fato só coloca em perspectiva quem é que dita as regras.

O resultado, sutil, é aquela que só a ação além da inércia pode proporcionar àqueles que ousam além dos papeis sociais impostos. A primeira está no sepultamento da imagem materna: Isabelle é uma desconhecida para a mãe, no entanto, a jovem parece enxergar os pensamentos da progenitora, algo que causa espanto na mesma. Já para o namorado de Isabelle, ela é uma incógnita. No seu desespero de macho, não há meios de surpreender uma pessoa, na cama ou fora dela, que sabe tudo sobre como manipular os corpos e os sentidos. O embate final, entre Isabelle e uma das mulheres traídas, não aponta culpados, mas um vencedor.

No fim, François Ozon criou um filme sobre a descoberta da sexualidade e dos prazeres e dissabores da vida do que convencionamos chamar de jovem-adulto. Ao contrário dos diversos filmes juvenis com experiências transbordando drama e paixão, onde suas vidas são folhas soltas no rio do destino, em Jovem & Bela temos uma adolescente que decide ter a razão no comando. Cobaia de suas próprias experiências ela aprende, com o racionalismo de xadrezista, como funciona sua mente e, principalmente, a do outro. E isso tem um preço que não é moralista e sim, receoso. Ao ter seus atos descobertos, todos à sua volta ficam com medo, medo este que pode envolver o telespectador ao final, que procura respostas e não encontra… e não vai encontrar enquanto estiverem perguntando-se: por quê?

 

FICHA TÉCNICA

JOVEM & BELA

Título Original: Jeune & Jolie
Direção & Roteiro: François Ozon
Elenco: Marine Vacth, Géraldine Pailhas, Frédéric Pierrot, Fantin Ravat, Johan Leysen, Charlotte Rampling, Nathalie Richard
Produção: Eric & Nicolas Altmayer
Fotografia: Pascal Marti
Ano: 2013

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Uma Janela para a Lua: Reformando a Existência

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“quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas, derrubando com um assombro exemplar o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa…”
(Nando Reis)

Uma reforma prevê a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental há algum tempo vem passando por um período de reforma. Inicialmente com as possibilidades de compreensão e classificação do sofrimento psíquico, passando pelo avanço das tecnologias e o incremento dos psicofármacos, até chegar ao momento de confrontação com o modelo tradicional e puramente biológico estabelecido. Esse novo modelo tem como foco a reestruturação da atenção à pessoa em sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.

Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns Estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida,  e de toda a concepção social a respeito da loucura (referenciada no modelo puramente biomédico), faz-se necessário sair do conforto gerado pela psiquiatria tradicional e pelo saber médico, que se propõem a “domar” esse sofrimento da alma humana, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização  e, consequentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos humanos e cidadania.

 Segundo Amarante (2003), a psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até proporcionar a “adaptação” do sujeito na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação do sofrimento humano, para a dependência cada vez maior dos medicamentos e para o fortalecimento das indústrias. Impedindo, assim, cada vez mais, que o sujeito em sofrimento psíquico “exista” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger (1995, p.51), que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de que somente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é, estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.

 O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação entre sujeitos que estabelecem contratualidades (COSTA-ROSA, LUZIO, YASUI, 2003). O trabalho é conjunto entre o sujeito em sofrimento, o seu grupo social, a comunidade, o seu território. Todas as estratégias visam a fortalecer o exercício da cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação e de participação, em que o sofrimento é compreendido em sua característica multidimensional. Usuários de serviços de saúde mental, trabalhadores e famílias participam ativamente de todo o processo de integração social.

O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.

O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas, como bem argumenta Amarante (2003), ao contemplar a necessidade de transformação do eixo sociocultural na consolidação da reforma psiquiátrica brasileira. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, “desprovidos de razão”, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.

Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.

Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuários, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.

Referências:

AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003.

COSTA-ROSA, A.; LUZIO, C. A.; YASUI, S. Atenção Psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: AMARANTE, P. D. (Coord.). Archivos de saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: NAU, 2003. P. 13-44.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; tradução, Márcia de Sá Cavalcante. – Petrópolis: Vozes, 1995.


FICHA TÉCNICA DO FILME

UMA JANELA PARA A LUA

Título Original: Colpo di Luna
Direção: Albert Simono
Duração: 88 minutos
Gênero: Drama
País de Origem: Itália
Ano: 1995

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