Conselho de Psicologia critica prática de “cura gay”

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Homossexualidade e bissexualidade não são doença nem desvio. 

Por Camila Boehm – Repórter da Agência Brasil – São Paulo

A chamada “cura gay”, também denominada de terapia de reversão ou de conversão à heterossexualidade, são práticas de tortura e, portanto, produzem muitos agravos à saúde, entre eles, a própria construção de ideias suicidas. Essa é a definição do presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho, em entrevista à Agência Brasil.

Sem respaldo científico, a prática é vedada por resolução do CFP desde 1999. Isso porque a bissexualidade e a homossexualidade não constituem doença nem desvio. “Nós não podemos usar a moralidade, práticas morais, para dizer que são condutas abominadas. É importante dizer: não é doença, mas também não é desvio. E, por não ser desvio, nenhuma prática que promova a pseudo-reorientação deve permitida no Brasil, exatamente porque produz agravos”, explicou.

Para ele, o Brasil precisa reconhecer a importância de se afirmar a saúde pública como uma saúde laica, considerando que a prática de cura gay ocorre, em grande parte, no contexto de fundamentalismo religioso.

“Hoje isso é um problema de saúde pública: a existência ainda dessas tentativas de aniquilamento das subjetividades de pessoas LGBTQIA+, movidas em grande parte por igrejas fundamentalistas. O Brasil precisa olhar para isso e entender que isso está produzindo agravos sérios na saúde mental da nossa população, em especial, na saúde mental da população LGBTQIA+”, pontuou.

De acordo com o psicólogo, a prática é disseminada pelo país. “Neste momento, enquanto estamos fazendo essa entrevista, existe muita gente que está experimentando formas de cárceres para ter sua orientação sexual revertida. Existem centenas de Karol Eller por aí sofrendo agravos, tortura psicológica, processos de aprisionamento, pelo simples motivo que se considera que a orientação delas é uma orientação errada. Não é um caso isolado, infelizmente”, ressaltou.

Bicalho se referiu ao caso da bolsonarista Karol Eller, encontrada morta no dia 12 de outubro aos 36 anos. O caso foi registrado pela Polícia Civil como suicídio consumado. Eller teria sido submetida a uma “cura gay” na igreja Assembleia de Deus de Rio Verde, em Goiás.

Movimento conservador

A cientista política Laira Tenca aponta que o país tem um contexto de crescimento do movimento conservador no âmbito político, ao mesmo tempo em que há uma maior presença da religião evangélica na vida social da população brasileira. Esse cenário conflita com uma melhoria e garantia de direitos para a população LGBTQIA+.

“As pessoas LGBTs estão inseridas nesse Brasil, que passa, por um lado, por um avanço de políticas públicas para essa população, mas, por outro, há um movimento também de maior vocalização de discurso de ódio, transformando essas pessoas em vítimas no fim das contas ali, um questionamento da identidade e da existência dessas pessoas. Nesse cenário, a organização social está ali, a igreja, o pastor, as famílias bebendo desses discursos, convivendo com esses discursos e outras práticas antigas também”, apontou.

Nos retiros com proposta de conversão sexual, Tenca acrescenta que a homossexualidade e a transexualidade são tratadas como um problema, como um pecado, como uma atitude desviante, e a partir daí a cura gay passa a ser mais conectada com discursos religiosos, não mais com a psicologia. O sofrimento é agravado, segundo ela, porque há uma busca de acolhimento e pertencimento em um espaço que está constantemente questionando a identidade das pessoas LGBTQIA+ e produzindo discursos de ódio.

“Nesse contexto, a pessoa LGBT é induzida a negar uma parte da sua própria identidade. O impacto [na saúde mental] é assustador porque a sexualidade faz parte da vida do indivíduo. Ter essa sexualidade reprimida dessa forma por um discurso religioso e por uma conexão latente entre culpa, erro, equívoco e impossibilidade de existir no mundo é terrível, é muito severo”, disse.

Ela ressalta que o suicídio entre mulheres lésbicas e o lesbocídio cresceu nos últimos anos e que o sofrimento psíquico faz parte da vida dessas pessoas, pelo próprio contexto social e pela dificuldade de existir.

Cura gay e HIV

Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sobrevivente de tentativas de cura gay, o psicólogo Héder Bello aponta que as práticas de cura gay têm relação com o momento da pandemia do HIV, na década de 80. Na época, havia o equívoco, principalmente por parte da comunidade mais conservadora, religiosa e fundamentalista, de que o vírus da Aids era um castigo de Deus devido à liberdade sexual ou às sexualidades que não estavam dentro do campo da heterossexualidade. Tal conceito, ele reforça, está completamente fora do âmbito da ciência.

“Os esforços relacionados às práticas de cura gay inicialmente se deram, de forma contemporânea [desde a década de 1980], com a tentativa de reverter a questão do HIV através da ideia equivocada de que homossexuais e a população LGBTQIAP+, através dos seus comportamentos desviantes, produziram a ira de Deus e, como um castigo de Deus, houve então a eclosão do HIV no mundo”, disse o pesquisador, em entrevista à Agência Brasil.

Bello estuda desde 2011 questões relacionadas às práticas ou tentativas de correção e reversão na orientação sexual e na identidade de gênero. Ele conta que se envolveu com essas pesquisas justamente por ter sido submetido a tais práticas durante 13 anos, dos 14 aos 27 anos de idade.

Houve ainda a tentativa de justificar a aplicação de terapias de conversão distorcendo teorias e técnicas da psicologia. Elas produziam um entendimento de que a heterossexualidade é a única sexualidade possível e que haveria a necessidade de que as pessoas passassem por um processo de ‘correção’.

De acordo com o psicólogo, as práticas de cura gay no Brasil atualmente são muito difusas e muito plurais, sendo difundidas por grupos religiosos, educadores e pessoas que exercem profissões não regulamentadas, como, por exemplo, filosofia clínica, consteladores familiares e coaches.

Técnicas de “conversão”

Em relação às técnicas utilizadas na cura gay, Bello explica que tal lógica aponta que a pessoa só aprende a desejar sexualmente alguém do sexo oposto se ela estiver bem adequada aos papéis de gênero na sociedade. Assim, ela é forçada a gostar de coisas que ela não necessariamente gosta e fazer coisas que não quer.

“Tem orações, jejuns forçados, castigos, torturas físicas e psicológicas. Tem um movimento de isolamento social, tem o encarceramento das pessoas para elas não desejarem sexualmente pessoas do mesmo sexo. E [existe] uma lógica também espiritual nesse sentido porque, se você pede a Deus e você demonstra a Deus o seu sacrifício, Deus vai operar isso por você”, revelou o psicólogo. Ele revela ainda a existência de grupos que dizem promover exorcismo por identificar que a homossexualidade é algo demoníaco.

De acordo com o pesquisador, a comunidade científica – incluindo o Conselho Federal de Psicologia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e Associação de Psiquiatria Americana – entende que quando pessoas passam por esses programas, práticas e procedimentos da chamada cura gay, se verifica um efeito iatrogênico [reações adversas causadas por tratamento médico] ou efeito negativo.

“Não existe nenhuma comprovação de que as pessoas mudam a sexualidade. Pelo contrário, a sexualidade é algo intrínseco do sujeito, que faz parte da identidade do sujeito. Não é uma opção, não é uma escolha”, disse.

“E essas tentativas de reparação, correção, reversão da orientação sexual e da identidade de gênero através de castigos, torturas psicológicas, trabalhos forçados, jejuns forçados, isolamento, cárcere, internações compulsórias, isolamento da família, geram processos de ansiedade, depressão, transtornos de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, automutilação, ideações e tentativas de suicídio”, relatou o pesquisador.

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Psicologia Política e política como práxis da psicologia brasileira

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Gustav Le Bon estudou sobre o comportamento político em 1895 quando fez uso da temática massas eleitorais, e fomentou discussões sobre a interferência dos livros e dos jornais no processo de formação da opinião pública (LHULLIER, 2008). A psicologia aproximou-se da política nas obras de Freud, onde ele demonstrava interesse no que tange ao poder, civilização e pactos sociais, e a psicanálise propôs-se a substituir as questões filosóficas acerca da política racional pela análise das origens da dominação, leis de submissão que fazem parte do pacto social, ou laço social (FREUD, 1937).

 O pacto social ou laço social possui três modalidades: analisar, educar e governar, que de acordo com Freud são impossíveis de serem concluídas por completo, pois de acordo com a compreensão de sujeito e sociedade dele, existe a limitação no processo de dominação, escravização e normatização total a modelos sociais impostos ou almejados (FREUD, 1937)

Conforme Freud (1937), a psicanálise não se limita apenas a investigar o inconsciente apresentado nas práticas sociais, porém deve tornar visível a dimensão política que é apresentada na clínica.  A etimologia do termo política vem do grego, pólis –, os regimes de governo, os reinos, os sistemas republicanos, enfim, o funcionamento dos poderes públicos.

Fonte: encurtador.com.br/bxDN0

A psicologia política propõe-se a estudar as estruturas sociais com a finalidade de contribuir para modificações progressivas e o bem-estar coletivo (Penna, 1995). A psicologia comprometida com a transformação das conjunturas sociais aproxima-se com a teoria social crítica da Escola de Frankfurt, que possui o objetivo de romper com a neutralidade das ciências sociais e engaja-se de forma ativa dentro da sociedade, contribuindo para a construção de uma sociedade igualitária. Política não é excluir a referência à postura política institucional, como governo, partidos e representantes, porém é a expansão do seu significado para agrupar outros fenômenos relevantes da vida política (LHULLIER, 2008).

De acordo com Greenstein (1973), existem conexões complexas e na maioria das vezes indiretas que ligam fenômenos psicológicos e políticos, e que só são possíveis de serem estudados através da psicologia política. A Psicologia Política é a interação entre processos psicológicos e fenômenos políticos, e Deutsch (1983) afirma:

“A psicologia política visa estudar a interação de processos políticos e psicológicos, isto é, envolve uma interação de mão dupla. Assim como as habilidades, limites cognitivos afetam a natureza do processo de tomada de decisão política, também a estrutura e o processo de tomada de decisão política afetam as habilidades cognitivas. Dessa forma, crianças e adultos de cinco anos,  apesar das diferenças cognitivas, ideias muito diferentes serão formadas sobre as estruturas e processos políticos; Da mesma forma, certos tipos de estruturas e processos políticos favorecerão o desenvolvimento de certas características em adultos (inteligência, autonomia, reflexão, ação), em tanto que outros incentivam o desenvolvimento de habilidades cognitivas semelhantes às criança (imaturidade, passividade, dependência, ausência de espírito crítico) “(DEUTSCH, p. 240, tradução nossa).

Fonte: encurtador.com.br/sJV02

Martín-Baró (1991) aponta que o comportamento político consiste em tudo o que é feito dentro do Estado, e os protagonistas dessas ações são as instâncias, os cidadãos, os representantes, portanto, trata-se de uma ideia institucionalista da política. O autor utiliza o poder como uma forma de compreensão da política, pois considera o poder como um dos principais aspectos da vida social, o eixo fundamental.

Martín-Baró denota que o poder é intrínseco à vida política e social de modo geral, diante disso pode ser utilizado como componente capaz de diferenciar o comportamento político do comportamento não político, e define que: “ todo comportamento interpessoal ou intergrupal supõe algum grau de poder, por menor que seja, e consequentemente, seria político. “(Martín-Baró, 1991, p. 41). Por conseguinte, para que seja possível compreendermos o comportamento como político, é preciso analisar o impacto que ele provoca numa ordem social (Martín-Baró, 1991).

A ATUAÇÃO POLÍTICA DA PSICOLOGIA NO BRASIL

Em 1980, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) ao lado do Sistema Conselhos de Psicologia notaram que suas atuações não deveriam estar restritas somente ao âmbito da regulamentação e da prática profissional, mas que deveria abarcar também às questões político-sociais do Brasil, visando a luta para tornar os processos sociais e políticos democráticos (HUR e LACERDA JÚNIOR, 2017).

Hur (2012) aponta que o CFP participou do movimento civil Diretas Já e da Constituição Cidadã, lutando pela democracia, igualdade, direitos humanos e equidade, e na década de 90, o CFP evidenciou o compromisso social da psicologia, iniciando os anos 2000 com fortes posicionamentos da psicologia dentro das políticas públicas, dando voz e força a uma psicologia plural, que possui práticas abrangentes para diversas áreas e que dedica-se as políticas sociais, lutando pela transformação psicossocial.

Fonte: encurtador.com.br/kY289

O Conselho Federal de Psicologia desde o passado tem adotado posicionamentos e práticas que contribuem para que a sociedade, pois a luta consiste numa construção democrática e justa, que seja concebida em moldes igualitários e buscando aniquilar fatores que provoquem sofrimento psicossocial (HUR, 2012).

Sobre a relação entre a Psicologia e Política, Hur e Lacerda Júnior (2017) afirmam que:

“não só o CFP assume posicionamentos políticos, como também a própria Instituição Psicologia, seus saberes, dispositivos técnicos de intervenção e seus atores sociais (psicólogas[os]). Pois suas práticas sempre estão posicionadas social-historicamente e exercem relações de forças que culminam na gestão da vida, tanto individual, como social. É inegável que a atuação do psicólogo no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) exerce relações de forças que podem transformar a vida da comunidade. É inegável que a atividade do psicólogo no seu consultório privado, ou mesmo um psicodiagnóstico, altera as relações de forças de um indivíduo consigo próprio e com seu entorno, no qual ele pode reconfigurar e assumir não só um novo posicionamento existencial, mas também político, porque se atualizam ali novas relações de forças e desejantes” (HUR e LACERDA JÚNIOR, 2017, p. 3-4)

Dessa maneira, apesar que existam profissionais da psicologia que não consigam comtemplar o lado político de suas atuações profissionais, “sempre há produção de regimes de poder em suas intervenções profissionais” (HUR e LACERDA JÚNIOR, 2017, p. 4). Os autores defendem que não existem práticas psicológicas e científicas que podem ser exercidas de maneira neutra, visto que existe uma microfísica das relações de poder presentes nas práticas sociais. Conforme Prof. Pedrinho Guareschi apud Hur e Lacerda Júnior (2017): “Se ignoramos a política, nos tornamos vítima dela”.

Fonte: encurtador.com.br/dZ256

Durante e após a ditadura militar, a psicologia levantou e produziu conhecimento científico sobre os impactos da violência de Estado e dos regimes opressores constituídos na ditadura, tendo como objetivo questões de cunho psicoterápico e político, onde a elaboração de traumas provocados pela ditadura era trabalhada em paralelo com a produção de narrativas acerca dos fatos da época, buscando informações que iam além do que era fornecido e divulgado por meio dos meios oficiais que era utilizados no regime (HUR e LACERDA JÚNIOR, 2017).

Entretanto, observamos que os ataques as investidas contra a democracia e aos direitos sociais não são exclusivos do passado, pois no presente vimos a execução de outro golpe político, de cunho parlamentar no ano de 2016, que atacou diretamente a Resolução 01/99 do CFP, além de praticar censura à arte, regressão no âmbito do trabalho e o crescimento da onda de conservadorismo que direcionava inúmeros ataques às minorias (MACHADO, 2017).

O papel da Psicologia é fundamental na luta pelos direitos humanos, pela democracia e contra todos os tipos de opressão, e diante da fragilidade da democracia do Brasil, devemos nos manter em alerta constante, visto que os sinais de resquícios da ditadura civil-militar continuam evidentes na sociedade ainda nos dias de hoje.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In: EDIÇÃO Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, vol. XXIII 1980. 1937

GREENSTEIN, E: “Political Psycholgy: a pluralistic universe”, en KNUTSON, J. N.,  Handbook of political psychology. Jossey-Bass Publishers. San Francisco, 1973.

HUR, Domenico Uhng. Esquizoanálise e política: proposições para a Psicologia Crítica no Brasil. Teoría y Crítica de la Psicología, (3), 264-280. 2013

HUR, Domenico Uhng; LACERDA JUNIOR, Fernando. Psicologia e Democracia: da Ditadura Civil-Militar às Lutas pela Democratização do Presente. Psicol. cienc. prof. , Brasília, v. 37, n. spe, p. 3-10, 2017. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932017000500003&lng=en&nrm=iso>. acesso em 14 de agosto de 2020.  https://doi.org/10.1590/1982-3703190002017

HUR, Domenico Uhng.U. (2012). Políticas da psicologia: histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004

HUR, Domenico Uhng, & Lacerda Jr., F. (2017). Ditadura e insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e resistência armada. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(num esp), 28-43.

LHULLIER, Louise A. A psicologia política e o uso da categoria “representações sociais” na pesquisa do comportamento político. In ZANELLA, AV., et al., org. Psicologia e práticas sociais [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008.

MARTÍN BARÓ, Ignacio.: “Métodos en psicología política”, en MONTERO, M. (Coor.):  Acción y discurso. Problemas de la psicolgía política en América Latina. Eduven. Caracas, 1991.

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Um quebra-cabeça mitológico no filme “A Deusa da Vingança”

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A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo.

Califórnia, Deserto de Mojave, 1998. Enquanto uma misteriosa estrela vermelha brilha no céu ensolarado, um vendedor ambulante percorre zonas desoladas com trailers e depósito de ferro-velho. Sam não encontra ninguém, liga insistentemente para sua esposa que nunca atende e encontra um motel igualmente vazio. A única voz que ouve é de um programa de rádio no seu velho carro, cujo host chamado Eddy conclama os ouvintes a acharem e fazerem justiça com as próprias mãos contra um frio assassino de crianças. Estranhamente algo prende Sam naquele lugar e as coisas ficarão ainda piores. Esse é o filme “A Deusa da Vingança” (Sam Was Here, 2016) um quebra-cabeça mitológico na mesma linha de “Mãe!” de Aronofsky. Assim como na mitologia grega na qual Nêmesis busca a vingança para manter o equilíbrio cósmico, também naquele lugar um drama cosmológico precisa ser resolvido.

Por que um vendedor insiste em bater de porta em porta em busca de clientes em uma área desabitada no Deserto de Mojave? O que é aquele estranho brilho no céu? Por que toda a ação se desenrola em 1998? Por que não há ninguém nos trailers e no motel? Quem é Eddy, a única voz humana que ele ouve no rádio?

Definitivamente, A Deusa da Vingança (Sam Was Here, 2016), filme que recentemente chegou no catálogo da Netflix, não é uma produção para aquele espectador que gosta de tudo explicadinho no final da narrativa. Com apenas 70 minutos, é um filme que está fazendo muita gente quebrar a cabeça e ter reações bem opostas: ou ama ou odeia.

Fonte: encurtador.com.br/xyzJ8

Co-produção EUA-França, no país europeu ganhou o título de “Nemesis” – a deusa grega que personifica a vingança divina como forma de manter o equilíbrio cósmico através do destino, concepção fundamental do helenismo grego: Tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõe-se a represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a ordem do mundo, a pôr em perigo o equilíbrio universal e, por isso, tem de ser castigado, se pretende que o universo se mantenha como é” (Dicionário Hoaiss).

E o título em português acabou acompanhando a França, porém de forma mais literal, quase entregando um spoiler. Bem diferente do título norte-americano, entre a ironia e a neutralidade: “Sam esteve aqui”. 

A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo. A diferença é que enquanto Darren Aronofsky saiu por todos os lados dando explicações sobre o seu filme, ao contrário, o diretor Christophe Deroo simplesmente diz que entender o filme é o que menos importa. O mais importante é acompanhar a atmosfera.

Aliás, muito bem construída com a espetacular fotografia de Emmanuel Bernard de trailers e motéis abandonados na desolação do Deserto de Mojave.

Fonte: encurtador.com.br/bgnF2

Provavelmente se o leitor chegou até esse texto, deve estar em busca de explicações depois de acompanhar o drama de Sam durante 1h e 10 minutos.

Até aqui podemos dizer que A Deusa da Vingança constrói uma interessante narrativa com uma violenta torsão, enganando o espectador: grande parte do tempo o filme nos leva a criar uma relação de empatia com Sam – um pobre vendedor colocado em uma fria pelo seu chefe, tentando voltar a tempo para casa para comemorar o aniversário de sua filha. E um urso de pelúcia gigante é a sua única companhia naquela maravilhosa desolação, o presente para filha de um pai ansioso em reabilitar uma relação estremecida com sua esposa. 

As óbvias referências a O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Os Estranhos (2008) apenas são falsas pistas. Tudo parece muito realista e verossímil, como fosse um drama de um personagem urbano perdido em uma terra de “red necks” enlouquecidos. Mas o elemento sobrenatural (a estrela vermelha que brilha no céu azul) destoa de uma supostamente previsível narrativa.

O Filme:

Estamos em 1998, Deserto do Mojave, Califórnia. Sam (Rusty Joiner) é um vendedor sem sorte. Em plena desolação do deserto, ele bate na porta de cada trailer mas não encontra ninguém. Ou pelo menos, ninguém quer atende-lo. Aparentemente tudo está abandonado, inclusive um motel, vazio, sem hóspedes ou funcionários.

Sam se locomove pelo deserto com um carro velho, sempre à procura de um telefone público para tentar entrar em contato: primeiro com seu chefe pedindo autorização para retornar a Los Angeles – ali, definitivamente, não é um bom local para vendas; e ligar para sua esposa, que nunca responde. Sam deixa diversas mensagens – quer chegar a tempo para o aniversário da filha, e também reatar com a esposa após uma discussão.

Fonte: encurtador.com.br/imnw3

A única voz que ouve naquele lugar é de um programa da estação de rádio local. O host, chamado Eddy, chama seus ouvintes para compartilhar seus pensamentos e reclamações. Os ouvintes avisam que há um assassino de crianças à solta na área. E Eddy parece convocar todos para achar o criminoso e fazer justiça com as próprias mãos.

Quando o carro quebra, Sam fica prisioneiro em um ambiente hostil e vazio. Primei recebe estranhas mensagens em seu pager: “pedófilo bastardo” ou “assassino”… Até que encontra no meio da estrada uma viatura policial e pensa em pedir ajuda. Mas tudo o que recebe é inexplicavelmente um tiro. A partir desse ponto, pessoas começam a aparecer, todos com máscaras, tentando mata-lo. Sam tornou-se o alvo e agora ele tem que desesperadamente se defender, escondendo-se em trailers vazios ou em depósitos de ferro-velho.

Pouco a pouco, Sam é tomado por uma crise de identidade paranoica: será ele é realmente o assassino de crianças ou há uma grande conspiração para culpa-lo?

Mas há um estranho detalhe: uma estrela vermelha brilha no céu ensolarado, sempre próxima ao horizonte. É um detalhe aparentemente solto, non sense em toda a narrativa. Mas fundamental, dependendo da linha interpretativa do espectador.

Fonte: encurtador.com.br/ewPVW

Quebra-cabeça mitológico – alerta de spoilers à frente 

Assim como Mãe!, estamos diante de um quebra-cabeça mitológico sobre a função da vingança no equilíbrio cósmico. A referência mitológica direta é da deusa grega Nêmesis, que Heródoto e Plutarco atribuíram o sentido de vingança, numa referência a harmonia que deve existir no mundo – o bem e o mal devem ser compensados em igual medida. 

Na atualidade, “nêmesis” assumiu um significado mais simples: o de um inimigo implacável e temível.

A reputação de Nêmesis foi representada em várias esculturas espalhadas pelo mundo antigo, como uma deusa alada. Era encarregada de abater as desmesuras, censurando o excesso de felicidade ou o orgulho dos reis. Felicidade e tragédia, bem e mal deveriam ter um justo equilíbrio para evitar o desequilíbrio que poderia por em risco a própria existência do cosmos.

Daí a presença ameaçadora do brilho vermelho no céu em todo o filme, como um sinal de catástrofe cósmica eminente, caso a justiça não fosse feita naquele lugar. 

Apenas no final do filme vemos Eddy (Sigrid La Chapelle), de costas, em uma mesa da suposta estação de rádio, operando fitas e vídeo-cassete com gravações de áudio da esposa de Sam: “mas ele morreu há cinco anos!”, é a reposta críptica às insistentes mensagens de Sam para ela.

Fonte: encurtador.com.br/oKVXZ

Filmes como After Life (1998), O Terceiro Olho (The I Inside, 2004) ou AfterDeath(2015) sempre mostram protagonistas que morreram, mais ainda não se deram conta da sua condição. Da qual decorre todo drama, agonia e impasses do herói.

A Deusa da Vingança é mais um filme que se insere nesse drama sobrenatural, mas dessa vez com um toque mitológico: Sam esqueceu da sua vida pretérita, como um frio assassino. Culpa e arrependimento fazem ele se passar como um vendedor, batendo de porta em porta como se pedisse perdão. Mas tudo que recebe é vingança. 

E Eddy parece ser o demiurgo daquela espécie de purgatório. Mas a Justiça deve ser feita rápida, pois aquele misterioso corpo celeste parece se aproximar. É urgente a necessidade de se retomar o equilíbrio.

Ao final, literalmente Sam é apagado, derretido com ácido por trás das cortinas de um box no banheiro, numa cena hitchcockiana. Para depois o cosmos retornar à normalidade: finalmente vemos um funcionário entrar no motel – uma faxineira chicana, para limpar toda a bagunça, enquanto no céu não vemos mais o ameaçador brilho vermelho. O cosmos retornou ao equilíbrio.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A DEUSA DA VINGANÇA

Título original: San was here
Direção: Christophe Deroo
Elenco: Rusty Joiner, Sigrid La Chapelle, Hassan Galedary
País: França, EUA
Ano: 2016
Gênero: Mistério, terror

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Uma história de opostos em Green Book

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Concorre com 5 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (com Viggo Mortensen), Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali), Melhor Roteiro Original e Melhor Montagem.

Don Shirley (interpretado por Mahershala Ali) é um pianista negro brilhante que deseja fazer uma tour no sul dos Estados Unidos, uma região marcada pelo atraso, pelo preconceito e pela violência racialPara acompanhá-lo durante esses dois meses de shows ele resolve ir a procura de um motorista/assistente. 

Tony Vallelonga (vivido por Viggo Mortensen) – também conhecido como Tony Lip – é um malandro de origem italiana que trabalha na noite em Nova Iorque. A boate onde atuava, chamada Copacabana, precisa ser fechada e Tony se vê sem trabalho durante alguns poucos meses.

Responsável pelo sustento da família, Tony, que era casado com Dolores e tinha dois filhos pequenos, começa a procurar emprego para subsistir durante os meses em que a boate estava fechada.

Fonte: https://goo.gl/opdKij

O início da viagem

Um belo dia, Tony recebe um telefonema de um conhecido anunciando que um médico estava a procura de um motorista. Sem saber bem o que lhe espera, Tony vai para a entrevista. Chegando ao lugar, sente-se perdido porque o endereço lhe leva a um teatro. 

Quando conhece Don Shirley, na entrevista, Tony se surpreende ao saber que o tal doutor é na verdade um doutor na arte do piano. E é negro. Uma questão especialmente delicada para Tony que, apesar de negar, era preconceituoso assim como uma grande parcela da sociedade em que estava inserido. 

Muito conceituado entre o público, Shirley costumava ser chamado de doutor como sinal de admiração. Depois de algumas discordâncias, Tony, que desejava ser apenas motorista e não assistente pessoal, acha melhor não trabalhar com Shirley, especialmente tendo em conta a remuneração proposta. 

No dia a seguir, recebe um telefonema inesperado do famoso pianista, que desejava pedir a autorização de Dolores, mulher de Tony, para contratá-lo, cumprindo as exigências que o marido dela havia feito. O acordo é fechado e os dois embarcam rumo aos shows no Sul do país.

Vale lembrar que o contexto norte-americano, na realidade dos anos sessenta, que é a época em que o filme se passa, havia extremo preconceito racial no país. Ao longo do percurso vemos alguns casos explícitos de segregação. Durante uma das apresentações, por exemplo, o pianista é impedido de usar o banheiro do espaço, destinado apenas para brancos. Em outra ocasião Shirley é proibido de jantar no mesmo restaurante em que seu público estava. Ao longo da turnê, o músico também não pode se hospedar em uma série de hotéis reservados só para brancos. 

Tony aos poucos vai criando afeto pelo peculiar pianista e se irrita com as regras antiquadas e racistas da região. Os dois vão gradativamente criando um laço de afeto e crescendo pessoalmente com a experiência de lidarem um com outro, com personalidades tão distintas.   

Personagens principais

Tony Vallelonga (Viggo Mortensen) 

Fonte: https://goo.gl/2KKCFb

De origem italiana, Tony Vallelonga, também conhecido como Lip, é casado com Dolores e tem dois filhos. Ele trabalha como uma espécie de segurança numa boate em Nova Iorque e se vê em apuros financeiros quando o clube noturno decide fechar as portas por dois meses.

Durante esse período, o valentão precisa encontrar um trabalho provisório para pagar as contas da casa e acaba sendo contratado por Don Shirley para atuar como motorista.

Ao longo do seu percurso pelo sul dos Estados Unidos ele passa a sentir na pele o racismo vivenciado pelo pianista afro-descendente. A viagem serve de alerta para ele, que era um cidadão americano branco comum, nascido e criado no Bronx, que não tinha que lidar com qualquer dificuldade devido a cor da sua pele.

Don Shirley (Mahershala Ali)

Fonte: https://goo.gl/LdHsTj

Extremamente solitário, o pianista, que é um virtuoso, não tem amigos e nem família. Ele menciona rapidamente um irmão, com quem não tem contato há muito tempo. Em uma conversa com Tony também deixa escapar que já havia sido casado, mas que o casamento foi por água abaixo devido aos compromissos da carreira. 

Correto e honesto, Tony muitas vezes se irrita com algumas atitudes do motorista, que tem uma noção de certo/errado mais fluida.

Rude, muitas vezes antipático e arrogante, Shirley vai se deixando cativar por Tony e os dois vão criando com o tempo uma convivência harmoniosa que se transforma numa amizade plena. 

Don representa os negros norte-americanos que sofriam uma série de limitações e humilhações cotidianas devido única e exclusivamente a cor da pele. 

Dolores (Linda Cardellini)

Fonte: https://goo.gl/fjyU7a

A mulher de Tony é compreensiva com o marido, embora seja extremamente preocupada com o destino da família. Responsável, ela é dona de casa, cuida do lar, dos filhos e da gestão do orçamento doméstico. Quando a boate Copacabana fecha as portas provisoriamente, Dolores se desespera sem saber como fará para pagar as contas.

Doce, amorosa e gentil, a personagem interpretada por Linda Cardellini é uma típica mulher norte-americana dos anos sessenta: voltada para a família, responsável pela criação dos filhos e pela manutenção da rotina do lar. 

Análise do filme Green Book

Baseado em fatos reais

No ano de 1962, o famoso pianista negro Don Shirley resolveu fazer uma turnê pelo sul dos Estados Unidos.

A viagem aconteceu gerenciada pela Columbia Artists, empresa que administrava a carreira do artista, e durou cerca de um ano e meio (o filme na verdade condensa a história, como se a turnê tivesse durado dois meses). Durante o trajeto, o pianista tocou apenas para um público composto por brancos.

Para acompanhá-lo nesse ambiente sulista não muito hospitaleiro, Shirley sentiu que precisava de um motorista, mas também um assistente pessoal e uma espécie de guarda-costas.

Vale lembrar que a preocupação com a segurança não era desmedida, apenas alguns anos antes (em 12 de abril de 1956), o também músico negro Nat King Cole foi atacado no palco enquanto se apresentava para uma audiência branca no Alabama.

O verdadeiro pianista Don Shirley

O Don Shirley da vida real nasceu na Flórida, no dia 29 de janeiro de 1927, filho de pais imigrantes jamaicanos. O pai do pianista era um pastor e a mãe era professora. Shirley ficou órfão de mãe quando tinha apenas nove anos de idade.

Profundamente ligado à música, o menino começou a tocar quando tinha apenas dois anos e se apresentou profissionalmente aos dezoito.

Como o filme menciona rapidamente, Shirley gostaria de ter seguido a carreira de pianista clássico, mas acabou por enveredar no jazz porque ouviu conselhos de produtores que afirmaram que o público norte-americano não aceitaria um negro tocando canções clássicas.

Alguns hábitos e a residência do pianista, que aparece no longa, também são compatíveis com a realidade. Don Shirley viveu num suntuoso apartamento no Carnegie Hall durante cerca de cinquenta anos.

Verdadeiro pianista Don Shirley e Mahershala Ali, que interpreta seu papel no longa metragem. Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

A procura do pianista por essa pessoa que o acompanhasse resultou na descoberta do segurança de boate Tony Vallelonga, que trabalhava em um clube noturno chamado Copacabana. 

Com o fechamento provisório do espaço, Tony, então sem emprego e com obrigação de sustentar a família, foi a procura de trabalhos esporádicos.

O encontro com Tony

Criado no Bronx, no seio de uma família ítalo-americana, Tony era o provedor de um lar composto pela mulher e por dois filhos.

Embora no filme o personagem não se assuma declaradamente como preconceituoso, a mulher, Dolores, deixa transparecer esse defeito do marido, que é compatível com a história real.

Apenas em uma breve cena vemos um pouco do preconceito anterior de Tony. Quando dois negros estavam na sua casa, ao retirar a louça da mesa, Tony, ao chegar na cozinha, joga no lixo os dois copos que os negros usaram. Outra ocasião em que o preconceito aparece surge quando Tony rotula o pianista, usando uma série de estereótipos para caracterizar os negros.

Tony Vallelonga da vida real e o ator Viggo Mortensen, que interpreta seu papel no filme.
Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

A história contada pelo filho de Tony

Green Book tem como um dos roteiristas o filho de Tony, que incluiu uma série de dados reais no longa. As cartas de amor direcionada à Dolores foram efetivamente escritas pelo pai de Nick com a ajuda do pianista.

A história bebeu muito do real porque o filho, desde os anos 1980, estava interessado em fazer um filme sobre a amizade improvável do pai com Don Shirley. Ele havia gravado uma série de entrevistas detalhadas sobre o que os dois viveram na turnê. 

Nick Vallelonga ajudou a contar, em Green Book, a história do pai, Tony.
Fonte: HistoryvsHollywood.com, CTF Media

O destino de Tony e Don Shirley

Quando a viagem acaba e os dois regressam para casa, segundo o filme Tony volta à trabalhar no Copacabana, mas ele e o pianista seguem sendo grandes amigos até o final da vida. Os dois curiosamente falecem em datas muito próximas: Tony morre em 4 de janeiro de 2013 e Don em 6 de abril de 2013.

Na vida real, no entanto, parte da família do pianista – que aliás se opôs à criação do filme Green Book – garantiu em uma série de entrevistas que Don Shirley e o pianista não ficaram amigos até à morte.

Fonte: https://goo.gl/d1NBGk

Duas versões pairam sobre a lenda da amizade de Tony e Don Shirley: o longa metragem garante que os dois ficaram grandes amigos até o final da vida, já a família do pianista afirma que essa versão é falsa.

Uma história de opostos

Habitualmente a sociedade estava acostumada a assistir um negro trabalhando para um branco, poucas vezes o statuo quo se alterou e viu-se um branco trabalhando para um negro.

Essa estranheza social compareceu muitas vezes no filme, quando, por exemplo, no Sul, os policiais pararam a viatura onde Tony e Shirley se encontravam para pedir esclarecimentos.

Pondo provisoriamente a parte as questões sociais, em termos de personalidade Don e Tony parecem opostos: o primeiro muito preocupado com a questão social (com a imagem, com a conduta) e o segundo desbocado e irreverente. A lógica dos opostos comparece se pensarmos no nível de refinamento e cultura de ambos os personagens.

Assim como na vida real, Don carrega muito mais a noção de requinte, de conhecimento e de estudo do que Tony, que possui pele branca.

Se historicamente os negros tiveram pouco acesso à informação e à formação, na história do pianista a lógica se inverte e vemos um sujeito cultíssimo de pele negra e um, de certa forma, ignorante, de pele branca. 

Don viveu imerso em um ambiente de alta cultura e frequentou os grandes salões enquanto Tony nunca saiu do seu bairro de imigrantes de classe baixa, convivendo sempre com um universo muito semelhante de indivíduos.

Outra distinção de comportamento se dá se pensarmos na conduta social dos dois amigos. Shirley demonstra ser consciente do racismo e da luta de classes, Tony, por sua vez, parece alheio à essas questões e deseja resolver os casos pontuais em que é confrontado através da força bruta.

Extremamente racional, o pianista pensa em cada movimento e em suas consequências, profundamente impulsivo, Tony vive à flor da pele e é movido pelos seus sentimentos.

A amizade de Tony e Don se contrói através da diferença.
Fonte: https://goo.gl/vV9AqQ

Por que o filme se chama The Green Book?

The Negro Motorist Green Book, editado por Victor Hugo Greenera uma espécie de guia de viagem para negros que quisessem viajar sem se preocuparem com a segurança.

A ideia era assegurar uma lista de restaurantes, hotéis e lugares turísticos que garantissem que eles seriam tratados com igualdade com os brancos, sem qualquer tipo de preconceito.

O livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1936 e continuou a ser vendido até 1966. Habitualmente distribuído nos postos de gasolina, o guia vendia cerca de 15.000 cópias por ano.

*Texto originalmente publicado em Cultura Genial (https://www.culturagenial.com/filme-green-book/)

O verdadeiro The Negro Motorist Green Book foi efetivamente usado na viagem de Tony com o pianista.

FICHA TÉCNICA:

GREEN BOOK- O GUIA

Título original: Green Book
Direção: Peter Farrelly 
Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini; 
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia Dramática, Biografia 

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“The Alienist”: você entraria na mente de um assassino?

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Não é raro encontrar boas séries de época (Downton Abbey que o diga). Entretanto, a maioria das produções são romantizadas,  e remetem à ideia de que os anos passados foram, se não agradáveis, dignos de admiração. A série The Alienist, produzida pela Paramount e disponibilizada pela Netflix, apresenta boas doses desse sentimento saudosista. Todavia, não mascara a violência e perversidade, características sem dúvidas presentes na condição humana.

A série apresenta a história do alienista (de acordo com a série, uma pessoa que tratava de outras que estavam alienadas [afastadas] de sua verdadeira natureza), Laszlo Kreizler (interpretado por Daniel Brühl). Este, contatado pelo comissário da polícia de New York, começa a seguir as pistas de um assassino em série, traçando seu perfil psicológico. Em sua busca, ele é auxiliado pelo ilustrador John Moore (interpretado por Luke Evans) e por Sarah Howard (Dakota Fanning).

Fonte: https://goo.gl/ngbs67

Ambientada no final dos anos 1800, é visível a mudança que a chegada do século XX parece proporcionar. Sarah é a primeira mulher a trabalhar para a polícia de New York (ainda que ela lembre constantemente de ser apenas uma datilógrafa), há bordéis exclusivos para a prática de “sodomia” (embora esta não seja uma prática tão moderna assim), há um movimento crescente das mulheres pelo direito ao voto e as práticas de investigação criminal estão avançando (vide a demonstração dos irmãos detetives sobre a importância das digitais em cenas de crimes).

É neste cenário que um assassino em série escolhe suas vítimas (meninos que se prostituem) e as abate em um ritual macabro. O alienista, Laszlo, inteligente e ardiloso, junto a John e Sarah, conduzem as investigações necessárias para entender como funciona a mente do assassino e assim, capturá-lo. A eles se juntam outros personagens secundários, que possuem a incrível qualidade de somar ao roteiro a dose certa de inquietação que um bom thriller psicológico deve causar.

A receita da série é um padrão já visto em outras produções do mesmo gênero e é bem aproveitada. Entretanto, o diferencial se dá pela construção complexa dos personagens, todos eles com motivos críveis e palpáveis para serem quem são. Isto é notável pela atuação dos meninos que se prostituem, suas conversas que denotam o passado difícil e o presente insustentável e seus olhares que escondem mais do que o espectador jamais verá.

Fonte: https://goo.gl/mhdBnQ

A representação da New York do século XIX é tão real que imediatamente imediatamente envolve quem assiste. É uma cidade chuvosa, populosa, encantadora para uns (os ricos e influentes), insuportável para outros (difícil ficar inerte diante das cenas em que as crianças se prostituem em meio ao frio e sujeira), e que fervilha em direção ao futuro, carregando as promessas e medos de que a existência humana é capaz.

A despeito disso, a série perde em retratar mais firmemente as teorias psicanalistas de que o protagonista supostamente compartilha. Há um ganho inegável nas cenas esparçadas entre os episódios, que mostram um pouco da sua prática (uma mocinha que não para de se masturbar, um adolescente que mata os animais dos vizinhos, uma antiga cliente que apresentava uma sexualidade doentia), entretanto, no fio principal, o de descobrir a mente do assassino, a série perde por não retratar mais fielmente os elementos que deixariam clara a influencia psicanalista.

Fonte: https://goo.gl/p9gAEh

Há também furos no roteiro, embora não tão grandes, mas certamente visíveis, que, felizmente, são compensados por uma atuação excelente. Outro ponto a favor da série, são os diálogos que enriquecem os personagens secundários e proporcionam ao telespectador um questionamento a respeito de si mesmo.

Uma série plausível, com certeza recomendável e que agregará ao telespectador, se não o interesse pela “mente” humana, com certeza o questionamento de como o ser humano se torna quem é,  e porque faz o que faz; além da inquietação por perceber que assassinos em série são muito mais próximos de “pessoas normais” do que se pode imaginar.

Ficha técnica

Título: The Alienist

Ano produção: 2018

Classificação indicativa: + 16

Gênero: Drama, Policial

Temporadas: 1ª com 1o episódios (renovada para a 2ª)

País de Origem:  Estados Unidos

Produção: Cary Fukunaga, Eric Roth, Hossein Amini, Rosalie Swedlin, Steve Golin

Roteiro: Caleb Carr, Cary Fukunaga, Hossein Amini

Elenco: Dakota Fanning, Daniel Brühl, Luke Evans, Brian Geraghty, Corey Johnson, Douglas Smith, Ezra Fieremans, Kingston Taylor, Q’orianka Kilcher, Robert Wisdom, Ted Levine

Baseada no romance policial “The Alienist” (Caleb Carr) 

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Quinze Milhões de Méritos: a apropriação da crítica pelo sistema

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Se há uma coisa que a brilhante série Black Mirror sabe fazer é obrigar-nos a pensar. A escolha de seu nome, que em português significa “espelho negro” pode ser relacionada à quase onipresença das telas negras de smartphones, televisões, tecnologias diversas em todos os episódios. Mas pode ser encarada também (e essa interpretação me convence mais) como a escuridão que a humanidade certamente encontrará se esbarrar consigo mesma em algum espelho de autoanálise.

Em todas as temporadas, nos deparamos sim com tecnologia, mas somos obrigados a encarar, para além disso, uma das facetas mais características do humano: a violência. Violência explícita, violência velada, violência verbal, violência psicológica… E a tecnologia, toda essa modernidade que está a nossa disposição, servindo como mediadora, como propulsora, um canal fértil para a propagação dessa violência que carregamos dentro de nós. Sim, estamos falando de nós, aqui, agora. Não de futuro, nem de distopia… Black Mirror é real hoje, pois trata essencialmente da condição humana, não apenas de avanços tecnocientíficos.

Fonte: https://goo.gl/zRt9SY

Cada episódio é carregado da crítica pesada que nos surpreende por não apresentar o novo, mas o usual e vivenciado por nós repetidas vezes. Só nos parece novo por ser muito exagerado e caricato, mas é impossível não nos reconhecermos nas situações, simpatizando com os personagens, sabendo que faríamos as mesmas escolhas, e intimamente concordando que talvez, só talvez, fosse a hora de tentar compreender e mudar isso.

No segundo episódio da primeira temporada, “Quinze milhões de méritos”, temos a oportunidade de conhecer Bing Madsen (interpretado pelo brilhante Daniel Kaluuya), um jovem inserido em uma sociedade distópica, totalmente artificial e tecnológica. Todas as pessoas trabalham arduamente, pedalando o dia inteiro em uma espécie de bicicleta, para conseguir seu salário em forma de méritos, a moeda que dá nome ao título e que brinca, não tão sutilmente, com a ideia da meritocracia. Bing, entretanto, recebeu uma herança do irmão, o que lhe permite pedalar menos rápido e assim, ter mais tempo de pensar e refletir.

A princípio, a tecnologia reina absoluta, e nos encanta. As pessoas podem interagir com ela, comprar um amigo que “te ouve e guia seus sonhos”, brincar em jogos que (grande surpresa) reforçam ódio de classes ao colocar como inimigos os faxineiros que diariamente limpam as salas das bicicletas.  E logo após, a sensação de incômodo começa a crescer quando vemos que as pessoas realmente não tem a opção de deixar dever, interagir e colaborar com o sistema. O clima fica mais e mais pesado a medida em se repara que nada é real, nem mesmo as frutas que eles compram para se alimentar, e que não há possibilidade de ver… ver o mundo, ver além das paredes cinzentas e do ambiente esterilizado.

Fonte: https://goo.gl/89y1uG

Nesse ambiente, nada realmente toca Bing, até que ele ouve Abi (interpretada por Jessica Brown Findlay) cantando dentro do banheiro e se convence de que ela é talentosa o suficiente para participar do Hot Shot, um programa de talentos (muitíssimo parecido com X-Factor e outros similares), que é vendido como uma das únicas formas de sair da vida monótona de pedaladas. Animado por ver algo real acontecer, ele doa sua fortuna para que ela possa participar do programa.

Abi vai ao programa, e temos uma crítica sutil à “meritocracia”, quando a sala de espera para participar do programa está lotada de pessoas que estão ali por dias, semanas e, com efeito, até meses, mesmo que todos tenham se esforçado para comprar o ingresso que custa 15 milhoes de méritos e alguns tenham chegado mais cedo do que outros.  A escolha da ordem para se apresentar é totalmente arbitária para os que estão ali dentro, o que nos faz pensar em que alguém escolhe a ordem de acordo com seus interesses.

Abi canta muito bem, mas não bem o suficiente para o sistema. Ou talvez, sua única razão para ter conseguido chegar ao palco seja a tentativa de convencê-la a escolher um propósito diferente. Com efeito, Abi se vê pressionada a entrar para o ramo de produções pornográficas, e mesmo que ela não tenha dito sim com clareza e com firmeza, o público aplaude e a saúda como se fosse realmente uma sorte grande. Abi estava sob o efeito de uma bebida chamada “Concordância”, e pressionada por todos, cede. Merece destaque a critica à sociedade expectadora, na perturbadora visão dos bonecos holográficos dos espectadores, aplaudindo e participando, todos virtualmente juntos e fisicamente sozinhos.

Fonte: https://goo.gl/CstChd

Bing, desconsolado, se lança na empreitada de conseguir juntar novamente fortuna, e subir ao palco para desafiar o júri. Com muito esforço finalmente consegue, e determinado, compra um novo ingresso. Já escaldado pela situação de Abi, engana ao fingir que já bebeu Concordância, e sobe ao palco. A cena que se desenrola é emocionante. Faz fixar os olhos, enquanto Bing dança e puxa um caco de vidro, ameaçando se matar caso não seja ouvido. Sua crítica quebraria o sistema. E ele fala. Fala e arrepia, e quando expõe a verdade, faz silenciar uma plateia ruidosa. Se o passado nos serve de lição, já sabemos o que acontece afinal.

Esse episódio, como todos de Black Mirror, contém críticas ao sistema em cada mínimo detalhe, porém, o que mais chama a atenção é a crítica ao modo como o sistema tem a capacidade de engolir até mesmo os que se levantam contra ele. Há um apagamento da subjetividade das pessoas nesse lugar fictício, e o que nos assusta é perceber que não é tão fictício assim. É uma característica observada largamente no nosso sistema atual. A cada vez que movimentos sociais se levantam, ou que uma voz se insurge contra o status quo é, como bem disse Bing em seu discurso:

 “Se eu tenho um sonho? É um novo aplicativo! Compramos coisas que nem estão lá! Mostrem-nos algo real, grátis e bonito. Não conseguiriam! Isso nos abalaria! Mas estamos tão entorpecidos… são maravilhas demais para suportar! Quando encontram algo, nos dão em porções escassas. Só é aumentada, embalada e bombeada por 10.000 filtros, até que não seja nada mais que séries de luzes sem sentido, enquanto pedalamos dia após dia, indo para onde? Dando energia a quem?”

A ocupação de gerar energia para o sistema, pedalando exaustivamente durante todos os dias não é nada mais do que uma alegoria ao modo de viver atual, onde cada vez mais exercemos atividades que nos distanciam do sujeito autônomo e nos moldam a um sujeito automatizado, que não tem tempo de refletir acerca do que produz, e embebido pela tecnologia, não se importa realmente em questionar o estabelecido.

Fonte: https://goo.gl/p8TCHj

Por fim, a apropriação da crítica pelo próprio sistema e sua transformação em propaganda, pode ser observada no episódio de forma extremamente clara. Se alguma voz ousa se levantar, há tentativa de supressão. Se a tentativa não funciona, o sistema, generosamente, abre um lugar para essa crítica, amplia, vende como sua, convence o público e assim, compartimenta essa crítica junto a dezenas de outras, em um pequeno espaço onde se tem a ilusão da diversidade.

O episódio é recheado de críticas ao machismo, aos haters, à gordofobia, à indústria pornográfica, à nossa crescente impossibilidade de nos distanciarmos do ciclo vicioso do consumo exacerbado, ao uso da tecnologia para nos distanciar da natureza, à violência psicológica a que estamos constantemente expostos.

Portanto, vale a pena ressaltar: Black Mirror não é apenas sobre tecnologia. É sobre como usamos a tecnologia para amplificar nossos impulsos duvidosos. Black Mirror é sobre nós, incomoda, e esse incômodo perdura por dias. Por esse mesmo motivo, deve ser assistida não apenas como entretenimento, mas como pontapé inicial para a reflexão acerca das nossas vivências e relações na atualidade.

REFERÊNCIAS:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782003000100011&script=sci_abstract&tlng=pt

<http://observatoriodaimprensa.com.br/speculum/a-sociedade-do-espetaculo/>

<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/13/black-mirror-um-compendio-de-criminologia/>

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Os percursos da Democracia: reflexão, crítica e conflito

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A democracia é, atualmente, uma forma de governo que abrange todo o Ocidente. De origem grega, o termo designa o poder que é exercido pelo povo (demos: povo; kratía: poder). O presente trabalho aborda, sobretudo, a perspectiva de Goldhill (2007), para compreender o contexto de desenvolvimento desse sistema, bem como contrastá-lo com a democracia moderna. O contexto social da Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, no século VI a.C., contribuiu para a adoção de diversas medidas políticas, estas culminando em uma forma de governo democrático.

As sociedades ocidentais afirmam constantemente a relevância de uma política fundamentada na democracia. Esta é compreendida como a melhor estrutura de governo, desprezando-se aquelas que lhe são opostas, tais quais os regimes ditatoriais. Mais que mero exercício popular do poder, a democracia implica em reflexão, crítica e conflito [1]. Desde o seu surgimento “A discussão era indispensável […]. O povo ateniense queria que cada questão lhe fosse apresentada sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras” [2].

Fonte: http://zip.net/bptHNj

Considerando seu emprego usual nos discursos políticos de grande parte das sociedades, convém voltar-se aos primórdios da democracia para além da origem conceitual. A exploração histórica que remete a Atenas de 2.500 anos atrás se justifica ao passo que “Os democratas precisam questionar que forma deve tomar seu governo, e como ele se compara com outras formas de autoridade, hoje e no passado” [1]. O panorama fornecido pela Grécia Antiga permite que se compreenda os rumos que a democracia tomou no decorrer dos séculos, bem como suas possibilidades e limitações.

Primórdios da democracia

Atenas era governada por uma classe privilegiada de aristocratas, os quais detinham o poder político e econômico. Antes de a democracia ser implementada de fato, Goldhill destaca dois nomes que a influenciaram positiva e negativamente. O primeiro, Sólon, foi líder da cidade-Estado em 590 a.C. De acordo com o autor, dentre as medidas adotadas, destaca-se o direito de todos os cidadãos em recorrer a um júri, e a servidão tornou-se ilegal quando implicava em empréstimos feitos pelos abastados aos mais pobres. Tais ações foram positivas visto que favoráveis às classes populares.

O segundo líder, Pisístrato, tornou-se um ditador em 560 a.C. Sua influência é considerada negativa devido a liderança de um grupo de homens das colinas, visto que “A tirania era o trunfo desse […] grupo” [1]. Apesar de ser reconhecido como um tirano, o autor mencionado revela que Pisístrato realizou grandes obras que contribuíram ao desenvolvimento cultural de Atenas.

Bustos de Sólon e Psístrato, respectivamente.

Após a queda de Pisístrato e seus liderados, entra em cena a figura principal a firmar a estrutura para o estabelecimento da democracia: Cleistenes. Em 508 a.C., ele conquistou a liderança de Atenas e propôs

[…] a completa reorganização da política referente ao espaço de Atenas, e com isso o senso de pertencimento, de cidadania. Ele requeria que todo cidadão – cidadãos emancipados do sexo masculino, maiores de 18 anos – se registrasse em uma deme. […] O importante impacto político dessas bases se dava no estabelecimento de estruturas de autodeterminação em cada uma das comunidades, concedendo a elas um senso de responsabilidade por tudo o que acontecia ali [1].

As demes eram como distritos, porém, constituídas com base no sentimento de pertencimento de cada cidadão que a habitava. Atenas organizava-se em dez conjuntos de demes, formando tribos que autogeriam-se e possuíam estruturas religiosas e financeiras próprias [1]. A responsabilidade tratada acima se relaciona ao fator de grande destaque na democracia ateniense: o poder concedido aos homens, que de forma igualitária tomavam as decisões referentes a cidade-Estado. Por meio da Assembleia e das cortes populares, Cleistenes contribui à participação popular na tomada de decisões políticas, retirando da autocracia os privilégios quanto a tais questões.

A participação ativa na política era um sinônimo de cidadania, algo sobremodo relevante para os atenienses. No entanto, estabeleceu-se às custas da exclusão de mulheres, homens escravos, menores de idade ou aqueles que não fossem atenienses (nascidos em Atenas, bem como os seus genitores). Betthany Hughes destaca em documentário [3] que, “De cada três pessoas que moravam em Atenas uma era escrava. Os atenienses eram vigorosos democratas porque tinham […] os prisioneiros de guerra feitos escravos para realizar o trabalho sujo”. Corroborando com a ideia de Aristóteles quanto ao servilismo inato de determinadas classes [1], tem-se uma das bases inconvenientes sob as quais a democracia se desenvolveu.

Cleistenes. Fonte: http://zip.net/bvtHx7

Apesar dos aspectos negativos dessa democracia, a partir de Cleistenes,

Pela primeira vez, o povo de um Estado estava comprometido com a autodeterminação, com a autonomia e a responsabilidade para tomar decisões – a tarefa de governar. Cleistenes estabeleceu os princípios estruturais por meio dos quais a democracia ainda funciona: cidadania baseada em afiliações locais e nacionais, instituições administradas por e para os cidadãos, estruturas de poder combinadas e responsáveis, num sistema de controle mútuo das repartições governamentais [1] .

Estrutura democrática ateniense versus democracia moderna

O funcionamento da democracia na antiga Atenas revela o quão engajado estava o cidadão ateniense no agir político da cidade-Estado. Ali, a participação era o estandarte. Assim, é delineado o contraste entre o agir democrático em seus primeiros tempos com o dos tempos hodiernos, onde os indivíduos limitam-se a assistirem passíveis o desenrolar político de sua comunidade.

O significado de cidadania unia os cidadãos atenienses, independentemente da posição social que eles tivessem.  Aos que eram das classes mais baixas e não tivessem condições financeiras para participar de certa atividade política, como uma eleição, outorgava-se lhes dinheiro para que pudessem ir ao local no qual exerceriam papel de sujeitos democráticos. O ideal era que todos participassem enquanto sujeitos que conheciam e se importavam com seu sistema de tomada de decisões.

O modo pelo qual eram escolhidos os oficiais – exceto o posto de General –, através de seleção aleatória ou pela sorte, deixava claro que todo e qualquer cidadão poderia ser um personagem importante no agir político de sua cidade. Assim sendo, essa forma de seleção dava enorme possibilidade a grande parte dos cidadãos atenienses de atuarem em cargos públicos. Goldhill [1] ressalta que, numa década, “[…] entre um quinto e um décimo de todos os cidadãos serviria no Conselho […]”, onde eram deliberados assuntos importantes ao povo.

Fonte: http://zip.net/bvtHyk

O sujeito democrático ateniense era ativo, poderia (e deveria) decidir acerca de todos os temas importantes para a comunidade, desde as leis até iniciativas de guerras. O indivíduo se envolvia em questões cujos desfechos inevitavelmente afetariam sua vida. É evidente o contraste com as democracias ocidentais modernas, cujos cidadãos são aficionados por direitos e, de modo geral, limitam-se a somente verem seus representantes tomarem decisões por eles, muitas vezes sem consultar seu eleitorado.

Na democracia ocidental moderna, uma parcela reduzida de indivíduos é tida como apta para o agir político; na antiga, todos os cidadãos poderiam desenvolver em si o sujeito democrático, sendo personagens ativos e determinantes. Mesmo o cargo de general, ou a magistratura – postos mais elevados, sendo esta última determinada pelo sorteio de uma lista final –, “[…] permaneceram estritamente sob a autoridade da Assembléia, e não podiam dirigir ou instruir a Assembléia ou o Conselho” [1].

Ainda que distinta da incipiente democracia grega, o atual sistema assemelha-se àquela no que tange a três princípios, a saber: a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e a responsabilidade. O primeiro implica na liberdade que todo cidadão tem para falar, expressar-se nos eventos públicos ou governamentais. Embora o referido princípio subsista até os dias de hoje, é perceptível que na prática não ocorra da forma que deveria ser. Muitos cidadãos vivem uma falsa liberdade, onde são tolhidos e induzidos pelas classes superiores a não expressarem-se.

A igualdade perante a lei, como o termo sugere, indica que, em julgamento, um cidadão não deve ser privilegiado em detrimento de outro, ou da lei publicada. As reformas de Sólon, no que tange ao direito de apelação a corte, seguidas das ações de Cleistenes, contribuíram com o decrescimento da estrutura hegemônica autocrática.

Diferentemente das cortes modernas, não havia juízes ou advogados profissionais […]. Cada reivindicador tinha de falar por si próprio, e era julgado pelos colegas. […] Esse era um processo em aberto, debatido e anotado publicamente, regulamentado pelo estatuto da lei publicada. A seleção aleatória dos jurados evitava o suborno e decisões políticas tendenciosas […] [1].

Embora atualmente encontre-se prerrogativas tais quais o foro privilegiado em determinadas instâncias políticas, em suma, a isonomia prevalece como um princípio fundamental da democracia.

Fonte: http://zip.net/bqtH4d

A responsabilidade, por sua vez, implica em que “[…] todo homem [deve] […] se responsabilizar pela coletividade de cidadãos. Isso significa que cada homem é responsável por seu voto e suas ações, e que ele pode ser responsabilizado” [1]. Reforçando o que foi mencionado, sabe-se que a democracia grega funcionava com base em uma população restrita, excluindo escravos, mulheres e menores de idade. A democracia atual, no entanto, sobressai-se – com algumas reservas – pela conquista do direito ao voto, independente de gênero ou classe social. Contudo, Goldhill questiona determinada inércia dos cidadãos modernos, bem como o desagrado com a estrutura democrática vigente.

Críticas ao modelo democrático

Para explicar os caminhos que a democracia atual tomou, o autor citado propõe uma análise das críticas a tal sistema, principalmente aquelas feitas por Platão. Suas influências a democracia moderna residem principalmente em proposições quanto a especialização necessária para se atuar em determinado cargo, incluindo os políticos. Platão criticava a não exigência de preparo técnico e intelectual dos governantes, bem como alegava a incapacidade dos cidadãos para decidir acerca de temas políticos.

A oposição de Platão “[…] à democracia em nome da lei e da ordem continua a prover uma autoridade intelectual fundamental para governos totalitários (e democracias nervosas)”. Para o filósofo, a democracia ateniense aproximava-se da anarquia, enquanto Esparta, conhecida por um sistema social e leis rigorosas, era o modelo ideal de governo fundamentado na “ordem social” [1].

Soldados espartanos. Fonte: http://zip.net/bntG6J

Tratando-se de ordem social, outro filósofo aparece como influente no modelo atual de democracia. Sócrates, segundo afirma Goldhill, “[…] foi executado pela Atenas democrática, devido àquilo em que acreditava. O que ele ensinava, e como o fazia, parecia muito perigoso para ser tolerado pela sociedade”. O autor expressa a relação de Sócrates com a fragilidade do sistema democrático, no que tange ao “[…] equilíbrio entre a liberdade de expressão e as exigências da ordem social” [1].

Platão e Sócrates ainda hoje movem questões clássicas de democracia e liberdade de pensamento. De certo modo, ambos apresentam posições distintas, porém, mobilizam a reflexão já proposta anteriormente: a democracia implica em crítica, conflito entre “liberdade individual e a regulamentação da comunidade” [1] e divergência de opiniões. O percurso histórico acerca da democracia revela as potencialidades e fragilidades, tanto nos primórdios quanto atualmente. Winston Churchill afirma que “A democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras” [4]. Apesar de ter se expandido como uma estrutura de governo desejável, percebe-se que ela implica, inevitavelmente, em que haja constante discussão, tanto sobre suas bases quanto sobre os rumos a serem tomados.

É notável que a democracia moderna ampliou alguns de seus princípios, no entanto, outros decresceram no decorrer do tempo. O engajamento percebido nos atenienses, por exemplo, bem como seu grande poder de decisão política são exemplos de aspectos nos quais os cidadãos modernos mostram-se estagnados. Algumas sociedades atuais, ditas democráticas, sequer contam com a participação de parcelas significativas da população para a escolha de seus líderes. Assim como Platão afirmava, supostamente deve-se confiar as decisões mais importantes a sujeitos capacitados.

Fonte: http://zip.net/bftG35

O descontentamento com a democracia atual, conforme abordado, pode ser analisado de acordo com diversos pensamentos, dentre eles os dos filósofos Sócrates e Platão. Além das reflexões anteriores quanto a dinâmica da democracia, as proposições desses filósofos fornecem lentes para se avaliar o sistema atual, bem como os seus impasses com a ordenação social. Considerando o posicionamento de Churchill, bem como o de Goldhill, para que se mantenha a democracia deve-se sempre questioná-la e compará-la com os modelos anteriores, ou seja, implica em conhecer sua história.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, J. B. Grécia – a caminho da democracia. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_2/Jeronimo_Basil.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2017.

[1] GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Tradução Cláudio Bardella. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Parte III, cap. 1-5.

[2] COULANGES, 2004, p. 356 apud ALMEIDA, s.d., p. 25.

[3] A HISTÓRIA da democracia (Athens: The Truth About Democracy). Apresentação: Betthany Hughes. 2007. (95 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3yVRkvP-w4>. Acesso em 01 mar. 2017.

[4] CHURCHILL apud GOLDHILL, 2007, p. 149.

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A escola na sociedade moderna: espaço de contradições e desafios

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Atualmente existe um número de possibilidades teóricas de entendimentos sobre a maneira como as transformações ocorrem ao longo do tempo, temos cada vez mais ampliado a nossa compreensão sobre processos, sobre o funcionamento da vida e das relações, o que nos assegura um caminho de diversidade teórica e prática.

A pluralidade de possibilidades de compreender, no entanto, não nos garante avanços quando o assunto é escola, educação, ensino, aprendizagem; pois se pode verificar que enquanto muitas áreas do conhecimento têm investimentos e avanços significativos, enquanto muitas áreas do conhecimento aliam teoria, tecnologia e transformação; a educação, ou mais precisamente, a escola, quando discutida acolhe desabafos com devaneios esperançosos e teorias vagas de desenvolvimento.

Há um discurso acadêmico gradativamente produzido com o sentido de identificar historicamente as influências da forma como interesses políticos e econômicos interferem e mantêm o contexto sócio-educacional. Não a despeito da importância fundamental deste discurso, pergunto-me qual seria a validade deste conhecimento enquanto fundamento para que contradições e desafios estejam colocados para mobilizar a transformação deste mesmo contexto?

Quais critérios temos para saber se a crítica ao modelo estéril não é mero discurso estéril? Que critérios temos para saber se a produção de nossos saberes não são apenas reprodução e manutenção de discurso sobre a contra corrente, porém, ineficazes? Que critérios construímos em nossos saberes que nos mostram a aliança entre os nossos saberes e as nossas práticas? Por que quando a pauta é educação patinamos em subjetividades, diversidades e ambiguidades?

Neste sentido, devo supor como um dos desafios atuais de nossa escola a eficácia do conhecimento produzido sobre a escola enquanto local de transformação da realidade. Se considerarmos que a escola é um conjunto de fazeres, é a própria encarnação da dialética pela prática dos que nela convivem, podemos considerar que, de fato, o como fazer (a partir do que já se faz) não tem sido objetiva nem suficientemente problematizado.

Independente, porém, das inúmeras negligências esquecidas no contexto escolar, a rede de influências e interesses político-econômicos de nossa época continuará a se exercer a partir da manipulação de recursos, a partir de estratégias de intervenção verticais, pela qualidade da formação oferecida ao profissional da educação, e pelos resultados que se quer produzir quando este contexto é tema na boca de teóricos que se especializam, chegam ao doutorado, vivem e morrem, e nada fazem além de graduar suas próprias vaidades.

Reproduzir que a realidade enfrentada na escola pública continua com condições precárias de trabalho, estrutura sucateada, tecnologia desatualizada, baixo envolvimento dos alunos, vínculo frágil com os familiares dos alunos, professores mal remunerados, formações inadequadas e obsoletas, não servem mais à bandeira do desafio quando todas estas questões são problematizadas, pois como qualquer jargão que se repete exaustivamente, ficamos alienados pela falta de gravidade e pelo descaso.

Certamente não há apenas meia dúzia de motivos para se negligenciar um dos locais fundamentais de construção do homem enquanto indivíduo social, e certamente também os mesmos motivos devem estar relacionados, mesmo que não saibamos, ao controle e a manipulação que se exerce quando “as psicologias escolares e dos desenvolvimentos” entram no contexto educacional problematizando subjetividades, diversidades, teorias mentalistas vagas do desenvolvimento e ainda aspiram a promoção de discurso político e transformador.

A discussão e o discurso que nos ensina a nos apropriar do “como fazer” e que nos faz ficar sensíveis às consequências tanto de nosso fazer, como das consequências veladas de discursos manipuladores ainda não estão claramente compreendidas em nossa prática educacional nem em nossa pauta acadêmica. Enquanto continuarmos replicando ou reproduzindo a maior parte do conhecimento que está disponível continuaremos falando da laranjeiras sem saber fazer suco de laranja.

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