Individuação Vs Adaptação: Perspectivas Queer de gênero e sexualidade a partir do olhar junguiano

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Matheus Vale Campagnac – matheusvalecampagnac@gmail.com

 

O presente texto tem o intuito de apresentar discussões da palestra ministrada pelo grupo Thiasos. O tema da palestra foi apresentado por um grande autor da psicologia analítica, George Taxídes. O autor levantou discussões de relevância sobre o tema de “Individuação Vs Adaptação – Perspectivas de gênero e sexualidade”.

Inicialmente o autor introduz sua perspectiva sobre a razão do tema; George enfatiza que sua maior descoberta pessoal, foi encontrar uma obra inteiramente queer, e como o mesmo coloca, “talvez a maior e mais antiga obra Queer de todas”. George se refere ao Livro Vermelho de Jung. Carl Gustav Jung introduziu todas as suas perspectivas e ideias voltadas aos sonhos, dentro de “The Red Book – O Livro Vermelho”, o qual além de elucidar alguns construtos teóricos da psicologia analítica, trás consigo os relatos pessoais e análises profundas dos sonhos do próprio Jung. George, interliga o contexto apresentado no livro de Jung referente a multiplicidade, a qual contém todas as possibilidades para um indivíduo, e isso perpassa caminhos como comportamentos e identidade de gênero.

A individuação, ele explica, é um processo do qual o indivíduo se tornará único a partir do meio. “É individuando-se que o ser encontra o seu próprio caminho”. Nessa perspectiva, o autor também discute a Adaptação, que descreve como um processo de se juntar ao meio: “De desadaptações e adaptações, formulo o meu Eu”. Nessa perspectiva o autor trás reflexões voltadas ao desenvolvimento do indivíduo, focando especificamente na parte do convívio social e a diferenciação do meio, essa relação de vertentes, origina a personalidade individual do ser.

Imagem: PixaBay

Ele traz a reflexão de que a luta não se trata sobre gênero ou raça, e sim sobre a promoção da liberdade individual como consequência da vida, que todos tenham essa possibilidade de exercerem a si mesmos com todo o ímpeto. Além disso, gera discussões sobre como a sociedade influencia negativamente por meio do preconceito as vivências dessa individuação do indivíduo Queer.

Durante a discussão, George traz a reflexão de que o processo de individuação se volta dentro de uma perspectiva de reflexão profunda e lenta. Nesse sentido, ele discute a respeito de um texto onde Jung coloca que “O indivíduo se pergunta constantemente a sua alma o que fazer”, e tem sua resposta sendo “Wait – Esperar”. George faz uma ligação direta com o tema Queer, onde o indivíduo precisa esperar, e durante esse tempo de espera, busca por um processo de integração com todos os seus “Eus”.

Por fim, George debate sobre como todos somos unidos e próximos, possuímos um grau de unicidade dentro de cada um de nós. Nesse sentido ele enfatiza uma perspectiva de aceitação do humano como ser humano, por meio de uma frase: “Aquilo que é humano, não me é estranho”. Ele termina sua discussão promovendo a ideia de que, “se todos somos únicos dentro de nossas peculiaridades e vivências, não existe um jeito universal, cada uma precisa encontrar a sua própria estrela azul, para que possa se guiar.”

Todos possuem conteúdos individuais e únicos, vivências, pensamentos e experiências. Toda essa multiplicidade que formula o indivíduo é o cerne de toda a questão. O objetivo final é simplesmente apresentar a ideia de que todos precisam ser livres para poderem atuar sobre o mundo como indivíduos libertos e sem medo de ser quem são.

Imagem: PixaBay

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Reflexões sobre o processo de individuação na perspectiva junguiana: relato de experiência

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O presente relato versa sobre a experiência vivenciada no encontro presencial do Grupo de Estudos em Psicologia Analítica do Tocantins – Quíron – do curso de Psicologia, do Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA), realizado no dia 07 de maio de 2022, das 10h30 às 12h30, na Livraria Leitura, na Cidade de Palmas/TO. O encontro se deu no formato de roda de conversa, mediado pelo professor Sonielson Luciano de Souza, e teve como temática de discussão a obra de Murray Stein “Jung e o Caminho da Individuação: uma introdução concisa.” (STEIN, 2020), com objetivo de discutir sobre as etapas do processo de individuação.

No primeiro momento, o professor trouxe os principais recortes junguianos sobre o conceito de individuação, apresentados na referida obra. A partir de sua explanação, entendemos por individuação o processo de autoconhecimento que nos permite o encontro com nossa realidade e singularidade, com os nossos próprios desejos, para que possamos nos tornar uma pessoa autêntica e viver em busca de nossa autorrealização.

De acordo com Jung, a individuação é um processo dinâmico e permanente, uma tendência inata, de nos tornarmos conscientes e desenvolvermos a nossa consciência ao longo de nossa vida. Para isso, precisamos reconhecer e dialogar com o nosso self, isto é, com o nosso próprio “si-mesmo” (STEIN, 2020). No entanto, compreendemos que não é possível reconhecer toda a potencialidade do self, mas podemos identificar e integrar partes dele.

Fonte: Imagem de JL G por Pixabay

O self é a dimensão mais profunda do ser humano, uma estrutura psíquica que possui uma identidade consciente específica e gerencia a nossa personalidade, sobretudo os seus processos inconscientes (STEIN, 2020). Portanto, reconhecer e integrar o self consiste em “tomar consciência do que nos é dado, quer proceda da biologia, da história pessoal ou coletiva, ou do incessantemente criativo inconsciente, e desenvolver o que recebemos da melhor maneira possível” (STEIN, 2020, p. 12).

No segundo momento, foi proposto a discussão sobre três questionamentos relativos ao processo de individuação do paciente/cliente, percebido pelos psicólogos e estagiários de Psicologia na prática clínica: “se o paciente/cliente reduz a sua função egóica ou percebe que há algo além (self), se ele(a) está disposto(a)a fazer esse encontro com o self” e se está disposto(a) a pagar o preço. Através dos relatos percebemos que muitos pacientes/clientes tendem a persistir na não compreensão de si mesmo e a racionalizar o seu processo de vida, devido à dificuldade e/ou o medo de confrontar a sua realidade, de fazer o ‘mergulho’ em si mesmo e de reconhecer a sua sombra.

O termo “sombra”, na psicologia junguiana, diz respeito aos conteúdos reprimidos no inconsciente. Esses conteúdos são diversos e se referem a todos os aspectos de nossa personalidade que recusamos a reconhecer, tanto características negativas e positivas, quanto pensamentos, sentimentos, emoções, desejos e situações vivenciadas como traumáticas. Todavia, eles se manifestam de alguma forma para nós, sobretudo por meio dos sonhos e de nossas projeções (STEIN, 2006).

Nesse sentido, os diálogos nos possibilitaram uma reflexão importante: o processo de individuação é do paciente/cliente e cabe ao psicólogo reduzir a sua expectativa em relação ao processo terapêutico. Portanto, ele deve acolher o indivíduo (fazer a função ‘continente’), favorecer a construção do vínculo e da transferência positiva (que leva certo tempo e pode ocorrer ou não), e desenvolver sensibilidade e intuição para identificar o melhor momento e a melhor forma de intervir, por meio da dialética e de outras estratégias terapêuticas, sugeridas pelo método analítico, conforme as necessidades e as predileções de cada paciente/cliente.

Fonte: Imagem por storyset no Freepik

No terceiro momento, as discussões foram focadas na persona, um termo que Jung se apropriou e o amplificou no contexto psicológico. Nesse sentido, significa “pessoa tal como se apresenta, não a pessoa como ela é”. Trata-se de um “constructo psicológico e social adotado que se relaciona com o desempenho de papéis na sociedade” (STEIN, 2006, p. 102).

Na clínica, é comum a hiperidentificação do paciente/cliente com as suas personas e, muitas vezes, isso ocorre de forma inconsciente. A esse processo Jung denominou de fixação ou possessão, ou seja, quando a pessoa está fixada em uma persona ou possuída por ela (STEIN, 2006). Logo, é uma das metas da individuação reconhecê-las e aprender a transitar entre elas de acordo com as exigências de cada situação, de forma consciente, sabendo que elas são parte de sua personalidade e não a sua totalidade. A esse processo Jung denominou função transcendente – capacidade de transcender as fixações e encontrar o meio termo. E isso só é possível quando existe um diálogo entre o consciente (ego) e o inconsciente (self).

Por meio dessas reflexões compreendemos que a individuação é um processo constante e dinâmico, que envolve todos os aspectos de nossa vida e nos permite lidar com os conflitos intrapsíquicos e interpessoais, de modo que possamos negociar os nossos próprios desejos com as exigências sociais e viver uma vida que faça, verdadeiramente, sentido para nós.

REFERÊNCIAS

STEIN, M. Jung e o caminho da individuação: uma introdução concisa. Tradução de E. L. Calloni. São Paulo: Cultrix, 2020.

STEIN, M. Jung e o mapa da alma: uma introdução. Tradução de A. Cabral. 5ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

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Autoconhecimento e inconsciente: uma perspectiva junguiana

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A psique naturalmente já tem sua dinâmica homeostática. Porém, vivemos comprimidos entre a primitividade e a massificação. De um lado, temos o ser primitivo, que, reinante há não muito tempo, configura a maior parte da história humana, com sua identificação com a psique coletiva e a inebriante participação mística (JUNG, 2015a). Do outro, a cultura, que massifica o sujeito, o condiciona a ser mera peça do estado, com o desenvolvimento unilateral de suas capacidades para desempenhar estritamente uma única função (Id., 2013c, 2015b)

Devido a isso, o indivíduo pena para desenvolver e manter seu senso de individualidade, e é exatamente isso que ele deve fazer para ter uma boa convivência com sua psique. Para tanto, ele necessita de “uma valorização psicológica objetiva das diferenças individuais ou qualquer objetificação científica dos processos psicológicos individuais” (Id., 2015b, § 9), ou seja, autoconhecimento. Este não se refere apenas à personalidade consciente do eu, e sim também tudo aquilo que necessariamente passa despercebido de sua atenção, ou seja, é inconsciente (Id., 2013c).

Um bom grau de reflexão autocrítica já ajuda nesse processo, bem como a observância do que os outros podem pensar sobre você. De forma saudável, este último pode, além de nos fazer enxergar aquilo que não vemos, também oferecer atenção às nossas próprias projeções sombrias – aquilo que, não suportando manter conosco, delegamos inadvertidamente ao outro.

“[…] não se deve esquecer a seguinte regra: o inconsciente de uma pessoa se projeta sobre outra pessoa, isto é, aquilo que alguém não vê em si mesmo, passa a censurar no outro. Este princípio tem uma validade geral tão impressionante que seria bom se todos, antes de criticar os outros, se sentassem e ponderassem cuidadosamente se a carapuça que querem enfiar na cabeça do outro não é aquela que se ajusta perfeitamente a eles” (Id., 2013b, § 39).

Outra forma saudável é observar os próprios padrões de repetição, que tendem a se perpetuar enquanto o indivíduo não toma consciência deles. Jung, em sua célebre frase diz: “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isso de destino” (Id., 1948/1970, § 126). A consciência é uma instituição de adaptação e orientação, e, portanto, necessita permanecer nos ditames do previsivelmente conhecido o quanto for possível. O inconsciente, clamando por uma vivência mais ampla que abarque a totalidade da existência da psique, produz um movimento de compensação da atitude consciente.

Fonte: encurtador.com.br/hxNQR

“A compensação inconsciente de um estado neurótico da consciência contém todos os elementos que, quando conscientes, isto é, quando compreendidos e integrados como realidades na consciência, são capazes de corrigir eficaz e salutarmente a unilateralidade da consciência” (Id., 2014, § 187).

Em geral, como continua a dizer o autor, a consciência ignora tais efeitos, e com isso o fenômeno da compensação se passa inconsciente, sem efeito imediato. Porém, ao longo do tempo, à medida que não se dá atenção à compensação, o inconsciente produz um efeito indireto: “a oposição inconsciente, numa constante infração, vai arranjando sintomas e situações, que finalmente se contrapõem sem cessar às intenções conscientes” (Ibid., § 187).

A via régia de informações para o inconsciente, é quando a consciência se desliga. Aqui o sujeito por alguns momentos interage com figuras fantásticas, revive cenas traumáticas, realiza seus desejos mais profundos. Enfim, ele entra em contato com o processo de homeostase mais natural da psique: o sonho. Aqui, ele irá se manifestar, em sua maioria, como uma compensação da atitude consciente (Id., 2011). Dando atenção às vivencias oníricas, o sujeito pode experimentar processos de desenvolvimento satisfatórios.

Outra forma, que é justamente a pedra angular de todo desenvolvimento teórico junguiano, é a análise. Na presença de um profissional, o sujeito conta toda sua vivência e expõe sua subjetividade, criando uma relação dialética com o terapeuta (Id., 2013a). Este, se esforça para entender e interpretar todo o conteúdo falado, na tentativa de ajudar o cliente a perceber a influência do inconsciente em sua vida, de forma que, futuramente, ele possa se auto monitorar.

Dessa forma, se desenvolve um contato com a própria subjetividade, de modo a diminuir as barreiras que se interpõem entre consciência e inconsciente. Nesse constante contato, o indivíduo começa se relacionar, através de sonhos e percepções visuais, com figuras imagéticas do inconsciente, sua linguagem por excelência (Id., 2015b).

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (Obras Completas).

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. (OC 10/3). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petropolis, Rj: Vozes, 2015. (OC 7/2). Tradução de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro. 8. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. (OC 10/1). Tradução de Maria Sá Cavalcante.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Petrópolis, Rj: Vozes, 2011. (OC 12). Tradução Maria Luiza Appy, Margaret Makray, Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva; revisão literária Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy; revisão Técnica, Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

JUNG, Carl Gustav. AION: Researches into the Phenomenology of the Self. CW 9. Princeton: Princeton University Press, 1948/1970

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O inconsciente na perspectiva junguiana

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[…] quanto mais se enriquece a experiência, tanto mais se aprofunda também a convicção de que a função da inconsciência possui, na vida da psique, uma importância de que, por enquanto, talvez só tenhamos uma pálida ideia. Foi justamente a experiência analítica que descobriu, de modo cada vez mais claro, as influências do inconsciente sobre a vida consciente da alma – influências cuja exigência e significado a experiência havia ignorado até aqui. Em meu modo de ver, que se fundamenta em anos de experiência e em inumeráveis pesquisas, a significação da inconsciência para a atividade geral da psique é talvez tão grande quanto a da consciência (JUNG, 2013a, § 491).

No campo das psicodinâmicas e psicologias profundas, o conceito de inconsciente sempre tem lugar central nas suas estruturações teóricas. Porém, cada uma delas dá significados e dimensões distintas para o termo, sendo muito importante entender e diferenciá-los.

Na psicologia analítica, o inconsciente, ao contrário de outras teorias como a psicanálise, não se limita apenas a restos de lembranças de uma vida esquecida. Ele é também onde reside a gênese da vida humana, o ponto de partida do funcionamento do primitivo, que é anterior à própria consciência , onde nasce a criação de tudo que ainda há de emergir(Id., 2015b). No inconsciente, segundo Jung (2015a), residem também todos os padrões de comportamento, sedimentados ao longo dos milênios da vivência histórica humana, e acabam, por isso, sendo os verdadeiros balizadores de seus hábitos, recebendo o nome de padrões arquetípicos. Em resumo, ele é a totalidade de todos os fenômenos psíquicos em que se ausenta a qualidade da consciência (Id., 2013).

“[…] o inconsciente não representa apenas um apêndice “subconsciente”, ou até mesmo um mero depósito de lixo da consciência, mas um sistema psíquico amplamente autônomo capaz de compensar funcionalmente, por um lado, os desvios da consciência e, por outro, corrigi-la de seus desvios e unilateralidades, às vezes violentamente” (Id., 2016a, § 229).

Portanto, para a funcionalidade da consciência, são necessárias condições para a existência de uma vida inconsciente. É desta que flui toda a energia que torna viável o funcionamento da personalidade (Id., 2015c), e sem um processo de “homeostase” entre essas duas instâncias, a consciência perece carecida de vida. Toda a sorte de neuroses, psicoses e sintomas somáticos se dão por uma disfuncionalidade entre consciência e inconsciente.

Jung (2013, 2015c) separa conceitualmente o inconsciente entre pessoal e coletivo, e define o primeiro como o receptáculo de todas as lembranças perdidas, repressões mais ou menos intencionais de pensamentos e impressões incômodas, evocações dolorosas e todos aqueles conteúdos que ainda são muito débeis para se tornarem conscientes, ou seja, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência.

“Mas afora esses, no inconsciente encontramos também as qualidades que não foram adquiridas individualmente, mas são herdadas, ou seja, os instintos enquanto impulsos destinados a produzir ações que resultam de uma necessidade interior, sem uma motivação consciente. Devemos incluir também as formas a priori, inatas, de intuição, quais sejam os arquétipos da percepção e da apreensão que são determinantes necessárias e a priori de todos os processos psíquicos. Da mesma maneira como os instintos impelem o homem a adotar uma forma de existência especificamente humana, assim também os arquétipos forçam a percepção e a intuição a assumirem determinados padrões especificamente humanos. Os instintos e os arquétipos formam conjuntamente o inconsciente coletivo” (Id., 2013, § 270)

Fonte: Jung (2009)

A forma que o inconsciente se vale para manter o equilíbrio psíquico é a compensação (Id., 2015d). Aquilo que falta à consciência em relação à totalidade da psique, é exercida pelo inconsciente, abrindo brechas na continuidade da consciência e na relação com o corpo em uma frequência não tão remota como se pensa:

“Mesmo se julgo (e outros comigo) apropriada a minha atitude, o inconsciente pode, por assim dizer, ser “de outra opinião”. […] o inconsciente é inteiramente capaz de provocar toda espécie de distúrbios desagradáveis, através de atos falhos, muitas vezes plenos de consequências, ou sintomas neuróticos. Estas perturbações provêm de um desencontro entre “consciente” e “inconsciente”. Normalmente, deveria haver a harmonia, mas, na realidade, ela ocorre muito poucas vezes, o que dá origem a uma multidão imprevisível de inconvenientes psicógenos, que vão de acidentes e doenças graves até os inocentes lapsus linguae.” (Id., 2013, § 546)

Ao final, o próprio funcionamento consciente corrente, depende de um processo de elaboração inconsciente. Por isso, o bom funcionamento psíquico necessita da constante colaboração entre essas duas instâncias.

“Quando se faz um discurso, a próxima frase já vem sendo preparada durante a fala da anterior, mas esta preparação é em grande parte inconsciente. Se o inconsciente não colaborar e retiver a próxima frase, ficamos empacados. Queremos mencionar um nome ou um conceito já em voga, mas ele simplesmente não vem. O inconsciente não o fornece. […] É dessa forma que dependemos da boa vontade do nosso inconsciente” (Id., 2015a, § 541).

A compreensão da influência do inconsciente na consciência, passa necessariamente pela relação entre os complexos e essas duas instâncias. O objeto que reside no inconsciente pessoal, e que se incute na consciência, é propriamente o complexo. Resumidamente, estando em um status de repressão e inconsciência devido a sua aversividade, e não tendo lugar de vazão, os complexos acumulam sua energia específica (libido), advindas dos seus respectivos instintos e imagens. Estando carregados, eles ativam o inconsciente, dando-lhe maior autonomia até o ponto dos complexos resvalarem rumo à consciência, se exprimindo em forma de fantasias, impulsos, atos falhos, lapsus linguae e até mesmo em estados de possessão. Para maiores informações sobre eles, visitar o texto: A estruturação da consciência e os complexos

A fim de harmonizar a relação entre essas duas instâncias, a psique conta com um mecanismo natural, que coloca a consciência em contato com os conteúdos inconscientes. Os sonhos confrontam o eu, através de imagens e situações, a uma complementação da atitude consciente. Segundo Jung (2014), eles são em sua maioria de natureza compensatória: “[…] sempre acentuam o outro lado, a fim de conservar o equilíbrio da alma” (§ 170). Portanto, “Sempre é útil perguntar, quando se interpreta clinicamente um sonho: que atitude consciente é compensada pelo sonho?” (Id., 2012a, § 330).

Fonte: Jung (2009)

Se o indivíduo nega isso, a consciência se enrijece com sua função principal em um invólucro hiper resistente contra as influências do inconsciente. Com concepções petrificadas, ele acaba por deflagrar uma oposição aberta em relação ao inconsciente (Id., 2015d). Tal atitude gera uma repressão da libido, que segundo Jung (2016b), aumenta a impulsividade, ativando possibilidades tendenciosas a excessos e aberrações de toda sorte. Também comprime a consciência a uma vida extremamente estreitada pela neurose, que pode, possivelmente, até mesmo fragmentá-la com o manancial de fantasias inconscientes, no caso da psicose. “[…] onde quer que o inconsciente domine, aí se encontra também a não-liberdade, e até mesmo a obsessão” (Id., 2012b, § 141).

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica: escritos diversos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015a. (OC 18/1). Tradução de Edgar Orth; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012a. (OC. 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Estudos alquímicos. Petropolis, Rj: Vozes, 2016a. (OC 13). Tradução de Dora Mariana R. Ferreira da Silva, Maria Luiza Appy; Edição digital.

JUNG, Carl Gustav. Mysterium coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015b. (OC 14/2). Colaboração de Marie-Louise von Franz; tradução Valdemar do Amaral; revisão literária Orlando dos Reis; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015c. (OC 7/2). Tradução de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. 11. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012b. 160 p. (OC 11/1). Tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petropolis, Rj: Vozes, 2016b. (OC 5). Tradução de Eva Stern ; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis, Rj: Vozes, 2015d. (OC 6). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

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Jouney e as analogias a Individuação

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A Jornada do Viajante

 

Fonte: encurtador.com.br/biqsR

Em um colossal e aparente sem fim mar de areia, uma estrela cadente cruza o céu e cai em meio às dunas. Um personagem misterioso se levanta do terreno arenoso, sua face é oculta por um capuz que cobre sua cabeça, e seu corpo é coberto por um manto quase cerimonial; porém seus olhos brilhantes são visíveis em meio à escuridão. Olhos esses que demonstram confusão e surpresa, mas que logo se voltam para uma montanha enorme, que desponta no horizonte a frente; no topo dessa montanha há um feixe de luz direcionado aos céus, e é para lá que o indivíduo se sente impelido a ir.

Por conveniência nomearei o indivíduo de Viajante, pois a ele nunca é dado um nome. Ele é a representação do jogador, nas dúvidas, incertezas, na aparência misteriosa e como o jogador, tem uma jornada de descobertas à frente, pois a vastidão do deserto é retumbante e assustadora. 

 

Fonte: encurtador.com.br/prCQS

 

Journey é um jogo eletrônico desenvolvido pela Thatgamecompany que foi lançado em 13 de março de 2012 inicialmente para o PlayStation 3, atualmente também disponível para PlayStation 4 e Microsoft Windows. O que mais chama atenção na trama é sua caracterização simbólica e a maneira como expressa esses símbolos, sendo todo o conteúdo exposto ali muito arquetípico e análogo a linguagem da psicologia analítica. 

É assim que começa a trama, onde o jogador deverá atravessar as ruínas de uma civilização enterrada pelo tempo nas areias do tempo, sem nenhuma única palavra escrita ou falada ao jogador, a trama deste mundo deve ser abstraída por meio das imagens, hieróglifos e posteriormente da surpreendente interação com outros jogadores no decorrer da história. 

 

Fonte: encurtador.com.br/fimKP

A Individuação

Na compreensão do ser humano da psicologia originada em C.G. Jung, os símbolos e os arquétipos são parte intrínseca do desenvolvimento e constituição da psique. Diversos processos se dão ao longo da vida nas interações do ser humano com seus pares e estes definem os aspectos de saúde mental e bem estar psíquico dos indivíduos ao longo da vida. Porém, talvez o mais importante desses processos seja a chamada Individuação Pessoal.

Alguns autores modernos vão discorrer, portanto que “Jung afirma que a individuação é o processo que ocorre a partir da aceitação, por parte do ego, das orientações de uma dimensão da personalidade que denomina ‘si-mesmo’, que, por sua vez, traz informações simbólicas acerca do caminho da realização plena da personalidade” (VERGUEIRO, 2008, p.129). O mesmo autor vem a complementar posteriormente acerca da natureza do fenômeno e como a teoria analítica o compreende:

É, também, uma meta transcendental, em parte consciente e em parte inconsciente. Em parte mística e numinosa e em parte racional. Essa experiência não pode ser traduzida e jamais será de todo conhecida. Além disso, essa passa a ser uma das dificuldades encontradas para a compreensão do pensamento de Jung, já que, para ele, o enigma é parte da vida. (VERGUEIRO, 2008, p.129)

 

Fonte: encurtador.com.br/lwyH3

 

Há uma tendência a visualizar a Individuação como uma espécie de jornada durante a vida. O processo exige uma caminhada de autoconhecimento, contato com as partes numinosas/sombrias dentro de cada indivíduo e de reflexões introspectivas que resultam no autoconhecimento. O que os indianos budistas já caracterizavam como Iluminação por volta do século VI e IV a.C, as narrativas heroicas da Grécia antiga também forneciam paralelos interessantes a jornada de individuação; em sua dissertação de mestrado, Leticia Goncalves Said traz paralelo interessante entre a narrativa de Ulisses na Odisseia e o processo de individuação:

Assim, penso que tanto o destaque que o mito de Ulisses recebe em nossa cultura, quanto a relevância da individuação dentro das teorias junguiana e pós-junguiana, justificam a tentativa de compreendê-lo como uma metáfora do processo conforme descrito por Jung. Além disso, na Odisseia, Ulisses passa por diversas situações que podem ilustrar, de maneira muito rica, o processo de individuação que Jung descreve – por meio de seu embate com Posídon, de seu encontro com Circe, com Calipso, com Nausícaa, da ajuda que recebe de Hermes e da proteção que recebe de Atena, de sua descida ao Hades, e de seu retorno para Penélope, por exemplo. (SAID, 2019, p.12)

A partir dessa perspectiva, é possível afirmar que uma ótima analogia para a Individuação é a de uma jornada. Como a Jornada do Herói, as procissões religiosas, as peregrinações e a maneira como o ser humano associa o ato de percorrer longos caminhos com a transcendência e aquisição de conhecimento. Através do sofrimento vem a recompensa do autoconhecimento e o aperfeiçoamento das noções acerca do self; para alguns esse self é uma divindade e seus desígnios, para outros é aquilo que te aproxima mais de si mesmo em essência.

A Individuação e o caminho em Journey

Em Journey, o Viajante deve solucionar enigmas e usar suas habilidades místicas para perseguir seu objetivo final, que é chegar ao topo do grande monte com o imenso feixe de luz. Suas habilidades incluem flutuar pelas areias do deserto com a ajuda de pequenos pedaços de tecido, parecidos com suas roupas, estes que sempre brilham quando o personagem se aproxima deles também integram parte de sua roupa em determinados momentos.

Nas paredes dos templos, as escrituras e imagens denotam que o Viajante pertence a uma raça de seres que vivem em função da luz da montanha, essa luz tem seus indícios nessas paredes e na própria aparência das habilidades do personagem, que pulsam na mesma cor e parecem emanar da mesma fonte – algo mítico, transcendente e interno; talvez uma analogia a alma e ao Inconsciente Coletivo.

 

Fonte: encurtador.com.br/jEQ17

 

À medida que o jogador avança, parece trilhar um caminho de desafios e percalços, que envolve muito aprendizado simbólico, em busca da literal luz no topo da montanha mais alta, onde aparentemente todas as questões vão ser respondidas. Durante o percurso, outros seres misteriosos muito semelhantes a você aparecem para te ajudar e interagir com você, o que chega a ser surpreendente, pois não se espera contato humano dentro de um percurso tão solitário.

Na parte final do caminho, o Viajante e um indivíduo misterioso devem escalar a montanha final. Uma tempestade gelada tenta varrer qualquer intruso da montanha, com ventos fortes e impiedosos. Auxiliando um ao outro, os dois seres devem se manter aquecidos com a luz vital que pulsa dentro de cada um, para que possam prosseguir; e de maneira tocante essa caminhada se encerra com os dois, companheiros de viagem, dando passos curtos, porém firmes até a derradeira luz.

 

Fonte: encurtador.com.br/zIJ27

 

A partir daí é interpretativo. A Iluminação foi alcançada? Ou só o fim de uma jornada para o começo da próxima? Esse mistério é para a vida, como bem disse Vergueiro (2008, p.129) “além disso, essa passa a ser uma das dificuldades encontradas para a compreensão do pensamento de Jung, já que, para ele, o enigma é parte da vida”, talvez nós nunca sejamos capazes, em um curto período de vida, de transcender, de integrar todos os aspectos, mas o aprendizado que adquirimos no caminho percorrido nunca sumirá das partes mais profundas da mente. 

Fonte: encurtador.com.br/vBDJT

Referências:

VERGUEIRO, Paola Vieitas. Jung, entrelinhas: reflexões sobre os fundamentos da teoria junguiana com base no estudo do tema individuação em Cartas. Psicologia: teoria e prática, v. 10, n. 1, p. 125-143, 2008.

SAID, Leticia Gonçalves et al. O mito de Ulisses como metáfora do processo de individuação masculino no modelo junguiano. Dissertação de Mestrado. 2019.

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Psicologia Junguiana e Função Transcendente por trás do filme “Dois Papas”

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Concorre com 3 indicações ao OSCAR:

Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado. 

O longa mostra que é necessário reconhecer os aspectos sombrios da existência, rejeitando ou integrando o recalque e a dissimulação, condições bem trabalhadas no filme, quando tanto Bento XVI quanto o cardeal Bergoglio se debruçaram sobre suas fraquezas e sobre episódios de vida nada abonadores para, numa escalada narrativa, superarem as visões limitantes e seguirem em frente

Uma produção original da Netflix e sob direção do brasileiro Fernando Meireles, o filme Dois Papas estreou em apenas algumas salas especiais espalhadas pelo Brasil (em Palmas, a exibição ficou por conta do Cine Cultura do Espaço Cultural), e a entrada no streaming está programada para as proximidades do Natal. Esta estratégia usada pela gigante norte-americana tem relação com o ambicioso plano de levar o filme ao Oscar, notadamente nas categorias Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Ator Principal e Coadjuvante. Não por menos, assim como ocorreu com Roma (2018), há grandes chances de o longa levar, no mínimo, uma estatueta. Isso porque, num outro grande festival, o Globo de Ouro (um termômetro para o Oscar), Dois Papas segue com várias indicações.

Como o próprio título sintetiza, Dois Papas relata os bastidores da emblemática transição de poder no seio da Igreja Católica, que após experimentar o rápido e controverso pontificado de Bento XVI, considerado conservador e extremamente preparado, do ponto de vista teológico, viu a Igreja sendo tomada por uma onda de escândalos no que diz respeito ao Banco do Vaticano e, também, em relação a crescente onda de denúncias de abusos sexuais por parte de sacerdotes e até de agentes da alta cúpula da Igreja, na Santa Sé. Além disso, com Bento, a Igreja deu uma guinada conservadora, em oposição ao Concílio Vaticano, cuja reforma proposta, em grande medida, sequer havia saído do papel.

O filme mostra a insatisfação do cardeal Bergoglio (Jonathan Pryce) com os rumos da Igreja, ao ponto de pedir para aposentar-se fora do prazo e, a partir disso, uma série de acontecimentos – ou eventos sincrônicos, na visão junguiana – aconteceram. O pedido de aposentadoria culmina na negativa de Bento XVI (Anthony Hopkins), que inicia um lento e dramático processo de aproximação com o argentino para, enfim, revelar seu inimaginável desejo de renunciar ao trono de São Pedro.

Fonte: Netflix

Toda a história já é suficientemente conhecida do público que se interessa pelo Catolicismo – seja este público praticante ou não –, mas alguns aspectos saltam aos olhos, notadamente pelo olhar junguiano. Pois bem, o longa reflete um momento de tensão da Igreja, que desde Nietzsche é acusada de negligenciar os aspectos sombrios – e naturais, do ponto de vista psíquico – da existência, tendo optado excessivamente pelo viés apolíneo (em alusão a Apolo, o deus grego da organização) e negligenciado a dimensão de Eros (associado sobretudo ao princípio do sentimento e do amor) e a ação dionisíaca (voltado para o caos). A “eleição” de satanás como um agente externo, e a opção por considerar Judas como um antagonista, e não uma figura necessária ao processo de ascensão do Cristo, são alguns exemplos deste percurso teológico (notadamente quando se fala de uma teologia para as massas).

Obviamente, numa sociedade patriarcal consolidada a partir da revolução da agricultura, ceder espaço ao caos e a indiferenciação, do ponto de vista de uma hiper identificação com os processos naturais (tendências e instintos), é algo primariamente rechaçado. No entanto, o excesso de Logos (razão) pode levar a uma institucionalização da frieza e do legalismo, justamente dois aspectos identificados, entre os cristãos primitivos, com as práticas farisaicas. E é neste ponto que o ainda cardeal Bergoglio, em conversa com Bento XVI, cita o próprio Papa ao dizer que a igreja, necessariamente, tem que unir Verdade com Amor, sob pena de a primeira se tornar insuportável.

Este é um momento do filme que marca a tônica central da obra, a saber, o profícuo embate entre as forças antagônicas que estão no seio da vida psicológica dos seres humanos e que, de quebra, também reverberam em instituições como a Igreja Católica. Na perspectiva da Psicologia Analítica de Carl Jung, o que ocorreu anteriormente à ascensão de Francisco ao trono de São Pedro foi um acirramento de visões opostas (unilaterais), forçadas a encontrarem um meio termo, uma saída nova, sob pena de agravar a “sangria” de fiéis, especialmente nos países ricos (durante o conclave, um cardeal disse a Bergoglio que as Igrejas europeias eram belíssimas, mas vazias). Do ponto de vista psicológico, a não observância desta emergência causa um mal estar insustentável que acaba por eclodir sob a forma de doenças.

Fonte: Netflix

Esta capacidade de o sujeito abandonar visões polarizadas e, a partir do confrontamento de ideias e de concepções de mundo, criar novas alternativas, narrativas e estruturas comportamentais, é fruto do que Jung chamou de Função Transcendente. Para tanto, é necessário reconhecer os aspectos sombrios da existência, rejeitando o recalque e a dissimulação, condições bem trabalhadas no filme, quando tanto Bento XVI quanto o cardeal Bergoglio se debruçaram sobre suas fraquezas e sobre episódios de vida nada abonadores para, numa escalada narrativa, superarem as visões limitantes e seguirem em frente.

Dois Papas também aborda um tema corriqueiro na Psicologia Analítica, que é quando a hiper identificação com uma Persona cria distúrbios e tentativas de compensações psíquicas, o que acaba dispendendo muita energia por parte do sujeito nestas circunstâncias. Isto fica particularmente claro quando Bento XVI diz ao ainda cardeal Bergoglio que não aguenta mais encenar como Papa, já que não acreditava que Deus conversasse mais com ele. A Persona, um complexo (conjunto de imagens cristalizadas, de teor afetivo) necessário para mediar as relações sociais do sujeito, quando num processo de identificação desproporcional (um exemplo é quando alguém assume uma função e acredita que ele próprio é a função pela qual foi designado), causa enorme sofrimento, porque tolhe a capacidade de o sujeito assimilar aspectos da Sombra, além de tornar empobrecida a vida desta pessoa, que passa a mediar suas relações com o mundo apenas a partir de uma única perspectiva, negligenciado – com um alto custo – outras instâncias e funções importantes da existência.

As conversas do cardeal Bergoglio – que depois se tornaria Papa Francisco – com o Papa Bento XVI (que foi alçado ao posto de Bispo Emérito com votos de silêncio) são um exemplo clássico tanto do que ocorria nas ágoras gregas, cujo resultado era a eclosão de formas elevadas de pensamento e que, por si sós, já continham uma função terapêutica, quanto o que ocorre ainda hoje em círculos filosóficos ou no setting terapêutico (a partir, principalmente, do olhar das chamadas psicologias profundas [que aceitam a existência do inconsciente]). A transformação – e não a concessão, como bem lembra tanto Bento XVI quanto Francisco – passa a ser fruto de um encontro autêntico, que envolve não apenas a escuta ativa, interessada, mas pontuações cirúrgicas – por parte do terapeuta, numa linguagem junguiana -, que levam o analisando a perceber suas contradições, comparar narrativas, criar novas estruturas de pensamento e, sobretudo, mergulhar em sua própria alma em busca de respostas que, muitas vezes, acredita estar fora dele.

Fonte: Netflix

Carl Jung defendeu que o encontro de duas pessoas, nas circunstâncias do filme e, também, na realidade terapêutica – acaba por transformar os dois, e não apenas o analisando, como se acreditava até o advento de Jung. Em outras palavras, o psiquiatra suíço defendia que num encontro terapêutico ou num embate sincero e produtivo, não é apenas o paciente que saía transformado, mas também o médico/terapeuta/psicólogo, em igual proporção. Isso foi revolucionário, pois apesar de o terapeuta ocupar um lugar de detentor do saber, já que se qualificara por anos, para tal – e ainda continuaria a fazer –, jamais poderia deixar de levar em consideração a percepção que o paciente tem de si próprio.

No filme, a questão acima é particularmente contemplada quando o diretor Fernando Meireles enfatiza com primazia a relação respeitosa – mas não menos conflitante – entre Bento e Bergoglio. Apesar das diferenças, eles se interessavam um pelo outro e, desta forma, mesmo nas discordâncias, entendiam os pontos de vista antagônicos. Esta abertura fez com que, ao final do encontro, uma nova realidade acontecesse, e ambos se transformaram, num típico exemplo da Função Transcendente como resultado. E para que isso ocorra, a fé não pode estar inabalável, pois se assim o tivesse estaríamos diante de uma unilateralidade, o que de longe não combina com a síntese necessária para a eclosão do novo. O longa demonstra muito bem que tanto o bispo de Roma quanto o portenho eram cientes do momento crucial e contraditório que experimentavam.

Fonte: Netflix

Este processo de voltar-se para si mesmo e, com o passar do tempo, agir e viver de acordo com o que lhe é de mais autêntico e singular é o que Jung dá o nome de Individuação (ser único, mesmo mergulhado na multidão). E é justamente isso o que ocorreu tanto com Bento XVI quanto com Francisco, cada qual à sua maneira. O primeiro ao ter a coragem de renunciar por reconhecer um erro de percurso e por atender a um chamado interno, e o segundo por defender um modus operandi que coaduna com sua forma de enxergar o mundo e a espiritualidade.

O percurso de Individuação é longo e doloroso, mas irreversível e gratificante para os que se propõem a sair da mesmice dos padrões repetitivos/coletivos e da tentadora necessidade de culpar terceiros ou o mundo por suas mazelas. Bento e Francisco, não por menos dois mártires da Igreja (já que, mesmo na renúncia como no caso de Bento, não pôde abrir mão completamente da responsabilidade pela qual teve que aderir [em alusão ao próprio Cristo, que mesmo tendo a possibilidade, não desceu da cruz]) são a prova viva de que é preciso coragem e despojamento para enfrentar com maestria os traçados da existência. Sobre isso, Jung diz que o sofrimento precisa ser superado, e o único meio de superá-lo é suportando-o.

Carl Jung também alertou, tendo por base estudos empíricos e uma vasta experiência clínica e pessoal, que não há despertar de consciência sem dor, e que “as pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma”. Neste contexto, uns poucos estariam dispostos a se submeter a este processo. Fica claro, tanto no filme quanto nos relatos do cotidiano de Bento XVI e de Francisco, que eles se enquadram nesta perspectiva, que abraça a Individuação e se dispõe a pagar o alto preço por isso. Eles são, no final das contas, polaridades que se submetidas ao escrutínio da análise – e sem descartar nem o amor que a tudo acolhe, nem a razão discriminativa –, acabam por garantir possibilidades criativas para responder a algumas das mais conflitantes demandas existenciais.

Mas, não nos enganemos, caros leitores. Isso se dá, como escrevi no início do texto, tanto em nível institucional (como no caso da Igreja Católica), quanto principalmente no âmbito privado, pessoal. Esta batalha é evidente nas demandas que chegam diariamente à clínica. Ela é trágica, no sentido de que deve ser encarada com sinceridade e espírito de abertura, ciente de que as respostas polarizadas têm que ser abandonadas, para que haja uma abertura ao novo, ao criativo. Trata-se de um movimento especialmente difícil, como retrata o filme, porque a tendência é que se opte pelo caminho mais fácil, de negação das próprias contradições e de projeção destas nos outros, no mundo. Neste sentido, em que pese as opiniões em contrário, as trajetórias de Bento XVI e de Francisco são inspirações necessárias, num mundo incessantemente instado a negar a função restaurativa dos símbolos.

FICHA TÉCNICA

DOIS PAPAS

Título original: Two Popes
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Gervasio Minujín, Sidney Cole, Lisandro Fiks; 
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. São Paulo: Cultrix, 1990.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Vozes, 1990, vol. XVI/2.

_____. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1997b, vol. VII/2.

STEIN, Murray. Jung – O Mapa da alma. SP: Cutrix, 2000.

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A necessidade de um herói e o problema da projeção do Self

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Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Isso, no final das contas, é uma projeção do Self

A onda de nomear “heróis” não vem de hoje, e há a necessidade de sentir o seu ideal defendido por um ser acima de todos, que detém um nível de poder – seja imaginário ou real – para concretizar os desejos daquele que projeta. Isto é o que Carl Jung classifica como projeção do Self (por inabilidade em se autodesenvolver, o sujeito passa a apostar as suas fichas em terceiros, na vã esperança de se redimir do processo de transformação interior).

É importante diferenciar, no entanto, a Jornada do Herói Mitológico,  que é o caminho de autodesenvolvimento que cada um de nós está “condenado” a realizar, e a projeção do Self, quando recusamos fazer nosso próprio percurso, terceirizando-o (que é o que pretendo abordar neste texto). Sobre o mito do herói, pode ser visto na vida cotidiana (quando dona Maria incorpora o papel de líder de seu bairro), nas grandes estruturas arquetípicas da mitologia e nas histórias em quadrinhos (que são uma espécie de mitologia atualizada do mundo).

Atualmente, as projeções do Self (que podem bem ser confundidas com a Jornada do Herói), se replicam no meio político (aliás, onde há configuração social, eis lá a eclosão de estruturas arquetípicas). Campbell (2007) afirma que a tarefa do herói de hoje em dia não é a mesma de antigamente onde se lutava explicitamente contra as trevas (muito embora, metaforicamente, as trevas significam as limitações impostas pela Sombra, que deve ser integrada para ser potencializadora), e sim aquele disposto a restaurar a ordem, corrigir um erro que seria o início da sua jornada. Neste caso, é necessário observar qual de fato é o arquétipo que opera no político. Pois, em muitos casos, o que pode ocorrer em tais personagens é a ação a partir do princípio do poder, como já explicitou Adler.

Fonte: encurtador.com.br/yDKMR

Em continuação, nota-se que desde tempos anteriores, há uma repetição de padrões em pessoas reconhecidas como “heróis/heroínas”. Alguns exemplos são Getúlio Vargas, que é conhecido ainda hoje como pai dos pobres e primeiro político a lançar sua força sobre a classe operária estabelecendo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); Lula, um espelho da classe metalúrgica refletida na Presidência da República, a personificação do poder de ascender e ocupar o lugar da elite burguesa e, hoje, está preso e é réu em terceira instância; Newton Hidenori (japonês da Federal) que ficou conhecido por conduzir presos da Operação Lava Jato e foi preso por facilitar contrabando; Moro, que foi eleito herói do povo, atualmente é Ministro da justiça com várias provas que ele não é quem parecia ser e, finalmente, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que podemos deixar suas atitudes diante da mídia falar por si só.

Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Então defender o oposto de uma opinião te caracteriza como um vilão, alguém que está atacando diretamente o outro lado e se aliando ao inimigo. Como dizia Nietzsche em um de seus aforismos, “um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos”. Ora, certamente não é deste herói arquetípico que a Psicologia Analítica se debruça, pois para que ocorra de modo consistente a Jornada, é necessário iniciar o processo de Individuação (normalmente, depois da Metanóia, que é a grande crise existencial que, acredita-se, todos terão de passar). E a Individuação não coaduna com projetos pessoais escusos, muito menos com o princípio do Poder. Basta lembrar uma célebre frase de Jung, para quem “onde há poder, não há amor. Ambos se excluem mutuamente”.

Fonte: encurtador.com.br/jkRW9

No cenário político e num clima de polarização de narrativas, ignorar determinados comportamentos dessas pessoas reconhecidas como “heróis” vai de encontro com o que Freud (1990) define como idealização, onde uma pessoa adquire uma perfeição total que não pode ser contestada. Existe então a idealização de uma pessoa que detenha algum tipo de poder e um inimigo em comum que será combatido, onde os meios justificam os fins.

Deste modo, enquanto se mantiver essa idéia de uma luta contra a fonte de todo o mal a história se repetirá e uma possível melhoria real não será alcançada. Assim se faz necessário uma reavaliação dos fatores que levam a determinadas escolhas dos representantes em todas as áreas. Só assim para que ocorra a chamada função transcendente, quando há a síntese das ações numinosas com as sombrias, num movimento de crescimento interior que desencoraja a criação de discursos rasteiros e polarizados.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Ed Pensamento, 2007.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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“Beleza Americana” e o ideal de felicidade

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Beleza americana, filme ganhador de cinco oscars no ano de 2000, (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Roteiro Original e Melhor Fotografia), inicialmente nos deixa em conflito, ficar ao lado do Lester, personagem interpretado por Kevin Spacey, um pai de família “fraco” que se sente atraído pela amiga adolescente da filha, essa sendo o típico estereótipo adolescente: insegura, irritada e confusa, ou ao lado de sua esposa Carolyn, interpretada por Annette Bening, que é extremamente controladora, gananciosa e mãe ausente, formando uma família americana comum e feliz, com certeza o sonho de todos os jovens apaixonados.

Logo no começo, Lester se encanta por Angela, vários fatores contribuem para isso, a insatisfação com seu casamento, a monotonia da rotina, o desejo de se arriscar, a saudades da sua juventude. Esse novo sentimento o faz perceber que nunca é tarde demais para recomeçar, em busca disso, ele pede demissão, começa a se exercitar, compra um carro.

Época conhecida na Psicoterapia Junguiana como processo de Individuação, onde o adulto intermediário reconhece que a vida tem fim e tenta dar voz as atividades que uma vez teve que negligenciar, envolvendo momentos decisivos para o self, e ao contrário das metas do relógio social, não são impostas pela sociedade.

Fonte: https://bit.ly/2D0kIf7

De acordo com a Teoria da personalidade de Sigmund Freud, o Id são os instintos irracionais, as punções selvagens que nascem com o indivíduo, o Ego é responsável por satisfazer esses instintos de forma racional e menos imediatista, o Superego são esses instintos se adequando a vivência em sociedade, percebe-se esses três aspectos no maior conflito do protagonista: o relacionamento com uma adolescente menor de idade, sendo considerado moralmente errado, e para piorar ele é um homem casado e pai de família, esse também foi o motivo de tanto fascínio e inquietação por parte do público. Tal dilema de fazer o que eu quero versus o que a sociedade impõe que eu faça, não afligem somente Lester mas todos os demais personagens.

Lester tem 42 anos, nessa idade, a maioria das pessoas costumam pensar que já viveram tudo que tinham para viver, só resta auxiliar os filhos na jornada deles e esperar a morte. Contudo, Lester foge do padrão socialmente estabelecido para a idade dele, busca reestruturar sua vida e reconstruir projetos, cenário exemplificado na frase de Simone de Beauvoir: “Um futuro limitado e um passado a ser resgatado”. Como também, não há problema algum em seguir o padrão, o problema é quando começa a acreditar que esse é o único caminho, e você não será feliz se não o alcançar.

Fonte: https://bit.ly/2R7L5mw

Angela, amiga da filha de Lester, é o estopim para mudança de vida dele e consequentemente de toda a família. Ao contrário da imagem de popular, destemida e conquistadora que tenta passar, Angela, como a maioria das adolescentes, é inexperiente, insegura com o corpo, e seu maior medo é ser uma garota comum. Carolyn, esposa de Lester, parte do mesmo princípio de Angela: viver uma vida à espera da aprovação alheia, tentando vender uma imagem de suas vidas pessoais, vivendo de aparências e transformando suas vidas em uma grande propaganda.

A personagem Carolyn reveza entre momentos do puro autocontrole, contendo seus sentimentos, á momentos de surtos emocionais. Ela busca fugir da sua própria representação de falsa felicidade, ao ter um caso com um corretor de imóveis famoso, que oferece o que ela aspira: liberdade e identificação, por ele ser alguém ambicioso como ela.

Fonte: https://bit.ly/2CwEIoJ

Filme criado em 1999, à 19 anos atrás, mas não deixa de ser atual. Visto que tal situação vivenciada por Angela e Carolyn é uma característica marcante das relações da sociedade contemporânea. É imensamente perigoso fazer escolhas baseadas no consentimento alheio, isso nos coloca dentro de uma caixa, limitando e oprimindo, ficando cada vez mais longe da autossatisfação e autoestima adequada.

Outro exemplo dentro do próprio filme, e ouso dizer o mais surpreendente ao mesmo tempo que é obvio­, é sobre o vizinho Coronel Fitts, sua frieza e crueldade são uma máscara para esconder seus desejos, sua homofobia uma capa para esconder sua homossexualidade. O que reforça a ideia que aquilo que você odeia nos outros é o que você reprime, Sigmund Freud chama isso de Projeção, um mecanismo de defesa no qual você, inconscientemente, se reconhece no outro e passa a repudiar tal característica, retirando uma carga que seria originalmente sua e projetando no outro.

Fonte: https://bit.ly/2JeP3a3

A única beleza da vida é mostrada através do namorado da filha de Lester, que passa seu tempo livre filmando as pessoas, tentando captar sua vulnerabilidade, através das lentes de uma câmera. Ele apresenta uma nova maneira de ver a arte, um olhar peculiar sobre a beleza, que está em coisas simples e até mesmo consideradas feias. Quando ouvimos que temos que aproveitar os pequenos momentos, e admirar a beleza da vida, ainda somos superficiais, por isso há estranheza quando o filme mostra que a real beleza está no vento, na morte de um pássaro, na morte de alguém. Lester percebe isso no momento de sua morte, o sorriso do personagem principal ao saber que a filha estava bem, transmite como ele poderia ter sido feliz se tivesse escolhido ser feliz e não só se deixar levar pela maré.

O que causa maior identificação do público com o filme é o fato de não ter a típica divisão de mocinhos e vilões, representando a realidade nua e crua, com alguns exageros para ressaltar o aspecto cômico e dramático do filme, mostrando que todos têm defeitos e acertos. Através da letargia envolvente sobre a história da vida de Lester, o filme expõe defeitos humanos, como egoísmo, vaidade, mentiras, preconceito, traição, e dramas comuns, sem tentar florear a realidade.

FICHA TÉCNICA DO FILME

Fonte: https://bit.ly/2yX7ETb

Direção:  Sam Mendes
Roteiro: Alan Ball
Elenco:  Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Wes Bentley, Mena Suvary
Ano: 1999

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Carl Gustav Jung e a Persona

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A persona é um arquétipo, que possui como função básica a adaptação do individuo com o mundo externo. É uma função psíquica que ajuda na adaptação social, nos relacionamentos e nos intercâmbios entre as pessoas

Seu nome é inspirado pelo termo romano para designar máscara. A máscara que os atores utilizavam no antigo teatro greco-romano. Portanto, ela simboliza o rosto que usamos para o encontro com o mundo que nos cerca.

Jung (2008) define persona como:

“A palavra persona é realmente uma expressão muito apropriada, porquanto designava originalmente a máscara usada pelo ator, significando o papel que ia desempenhar. Como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva.”

A persona é muito importante e não significa necessariamente falsidade. Afinal de contas nós não podemos nos comportar no trabalho da mesma forma que nos comportamos em um barzinho com os amigos. Se fizéssemos isso, perderíamos nossos empregos.

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Retirado de: thefaustorocksyeah.wordpress.com

A persona está a serviço da individuação, pelo lado positivo, pois mostra nossas aspirações, nosso desejo de reconhecimento e ela pode ser o caminho para a manifestação do Self.

Essa é construída pela educação; começando na família de origem, na escola, na cultura em que se está inserido, entre outros fatores.

A verdade é que saber usar no momento adequado a persona é educação e auxilia o individuo com uma facha mais polida, pois a vida exige diversas adaptações. Ela impulsiona a movimentação em direção ao coletivo.

Essa instância psíquica só passa a ser prejudicial quando o ego se identifica apenas com um papel. Se afastando a ponto de se esquecer de sua verdadeira essência.

Um exemplo disso é o homem de negócios que leva trabalho para a casa e não dá a devida atenção à família, a ponto de terminar sendo abandonado por ela.

Sobre outro efeito negativo da persona Jung (2008) diz:

“A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo. Só quem estiver totalmente identificado com a sua persona até o ponto de não conhecer-se a si mesmo, poderá considerar supérflua essa natureza mais profunda. No entanto, só negará a necessidade da persona quem desconhecer a verdadeira natureza de seus semelhantes. A sociedade espera e tem que esperar de todo indivíduo o melhor desempenho possível da tarefa a ele conferida; assim, um sacerdote não só deve executar, objetivamente, as funções do seu cargo, como também desempenhá-las, sem vacilar a qualquer hora e em todas as circunstâncias.”

Enquanto arquétipo, a persona está contida no inconsciente coletivo. Portanto, ela possui certa autonomia em relação ao ego, podendo “engoli-lo”, a ponto de fazer o individuo se comportar de uma forma unilateral em todas as situações externas, o que gera grandes problemas de adaptação social.

A identificação com a persona, por parte do ego leva a uma perda dela, pois ai se manifesta outro arquétipo, o da sombra, que constela de forma a compensar a atitude unilateral do ego.

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Como mediadora entre o ego e o mundo externo a persona forma um par de opostos com a anima (ou animus), que são os mediadores entre o ego e o mundo interno. A persona se ocupa com a adaptação do individuo ao coletivo, já a anima/animus estão ocupados com a adaptação àquilo que é pessoal, interior e individual.

Tanto persona, como anima, animus e sombra não são a totalidade psíquica, são complexos dentro da psique total. E como complexos eles podem nos tomar a qualquer momento.

A persona pode diferir em muito da personalidade verdadeira do ego, no entanto, estar consciente de que é apenas um papel que se está desempenhando em prol da adaptação ao coletivo e de que isso não vai interferir na vida privada, traz benefícios.

Um ego bem estruturado relaciona-se com o mundo exterior através de uma persona flexível; alavancando o desenvolvimento psicológico e o amadurecimento. A palavra de ordem, então, para o ego passa a ser flexibilidade. Flexibilidade para colocar a devida máscara no momento certo e aprender a tirá-la quando devido e relaxar dos papéis sociais.

Quando o ego se compromete excessivamente aos ideais coletivos, a persona passa a mascar a individualidade mais profunda. Nesse caso a dissolução da identificação com o papel exercido é extremamente necessária para o processo de individuação.

Ao longo da vida muitas personas serão usadas, muitas máscaras serão colocadas. Faz parte do processo de individuação reconhecer as máscaras que usamos em cada momento, mas também devemos buscar aquilo que há de mais individual em nós, aquilo que ninguém pode copiar, pois é único e exclusivo.

 

Referência:

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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