No artigo que inspira o título desta escrita a autora trabalha conceitos, termos e definições tais como: padrões relacionais, dinâmica conjugal, sistema familiar, campo de diálogo, perspectiva sistêmica, conjugalidade, reconstrução de individualidade, os quais compõem o “dadaísmo” do estudo sobre tão vasto e complexo tema que é o da construção e dissolução da conjugalidade.
Fita o olhar para a constituição da conjugalidade, realçando a complexidade desta, bem como a sua manutenção, visto que se reveste de desafios a serem superados, para que se torne uma relação afetiva (estável).
O estudo considera que uma relação é formada por indivíduos – “unidades autônomas”, que por fatores diversos se dispõem a compor um sistema formado por ideias, vontades, saberes e perspectivas nem sempre convergentes, visto que a intersubjetividade permeia toda a relação conjugal e às partes cabe a co-criação de significados para o sistema relacional constituído.
Fonte: encurtador.com.br/rtvLR
O imaginário social é realçado pela autora no sentido de evocar a ideia do casal como um par associado por vínculos afetivos e sexuais de base estável, com fortes compromissos de apoio recíproco, formando uma nova família, se possível, filhos. Ainda no contexto filhos com ênfase na satisfação conjugal, o estudo Hicks e Platt (1970) em sua revisão afirmam: “Talvez a única e mais surpreendente descoberta destas pesquisas é que crianças tendem a prejudicar mais do que contribuir para a felicidade conjugal“
No caminhar da construção do artigo, entre vários estudos, ilustra sobre os padrões relacionais, o de Bateson et al (1956), que postula teoria do duplo-vínculo podendo ser considerada como o início da perspectiva interacional, com importantes consequências para a pesquisa acerca da conjugalidade, mudando a pergunta para: Quais padrões de interação estão presentes em casais funcionais, e quais nos disfuncionais? O de Broderick (1971) que introduziu a perspectiva sistêmica para pesquisadores sociais, marcando a mudança de foco.
Entendendo a satisfação conjugal frente as várias teorias propostas, realça a importante influência da teoria geral dos sistemas, de Von Bertalanffy (1968/1977), que estimulou clínicos e pesquisadores a abordar as interações sociais e familiares como um padrão geral de interação, que poderia ser compreendido através da perspectiva das propriedades emergentes dos sistemas. Como sistema, ao propor a Entrevista Familiar Estruturada (EFE), Féres-Carneiro (2005) observou que o diagnóstico familiar deve ser um diagnóstico interacional, que considere a família como sistema homeostático. O sintoma de um membro deve ser considerado um sintoma da patologia familiar.
Fonte: encurtador.com.br/gxJLQ
Os conceitos flutuam, as teorias “emergem” e chega-se nos estudos da conjugalidade levando em conta as questões de gênero e padrões interacionais conjugais, o estudo da violência na relação, diferenças culturais e de raça. Também grupos familiares e casais minoritários considerados como objeto de estudo, o divórcio, o abandono e o recasamento receberam atenção.
Em um apanhado de conceitos, a leitura do artigo ilustra que os estudos interacionais sugerem direções e intervenções, implicando na necessidade de aumentar o afeto positivo e reduzir os afetos negativos nos conflitos conjugais, implementando técnicas de reparação, reduzindo os aspectos severos nas discussões, reduzindo a defensividade e aumentando a serenidade. Cabe ao terapeuta, na terapia de casal, identificar a dinâmica conjugal e ser capaz de interagir no sentido de promover a saúde emocional dos cônjuges.
REFERÊNCIA
FERES-CARNEIRO, Terezinha; DINIZ NETO, Orestes. Construção e dissolução da conjugalidade: padrões relacionais. Paidéia (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto , v. 20, n. 46, p. 269-278, Aug. 2010 . Availablefrom<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2010000200014&lng=en&nrm=iso>. accesson 16 Apr. 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2010000200014.
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Configuração familiar e movimento: um passeio pela definição de parentalidade
O presente estudo tem como objetivo discutir a noção de parentalidade, considerando as formas sucessivas como a configuração da família e as relações de parentesco foram se construindo ao logo do tempo. Pretende-se, ainda, abordar as recentes atualizações quanto à definição de família, enfatizando as transformações contínuas no mundo contemporâneo, em especial nas últimas décadas, observando como se dá a construção da parentalidade em sua dimensão afetiva.
O conceito de parentalidade refere-se ao processo de construção no exercício da relação dos pais com os filhos e é um termo relativamente recente que começou a ser utilizado no Brasil a partir da década de 80. Atualmente, o conceito vem sendo usado para designar o processo dinâmico pelo qual passam os pais, que vai além do biológico, envolvendo aspectos que vão desde a história familiar de cada um até o contexto sociocultural vigente na atualidade.
Quando estudamos a história das famílias e das relações de parentesco, podemos constatar que a noção de parentalidade nem sempre esteve presente. As relações familiares foram evoluindo ao longo da história de forma complexa e acompanhando as transformações ocorridas na sociedade. A construção do vínculo de parentesco, dessa forma, encontra-se em mudança permanente, assim como o indivíduo e sua forma de se relacionar com o mundo à sua volta.
Fonte: encurtador.com.br/jrMQW
Como nos relata Silvia Maria Zornig, (2010), “nas sociedades tradicionais, as relações de aliança eram estabelecidas em função do patrimônio familiar”, marcado pela transmissão do nome e dos bens. Somente a partir do século XVIII, um novo modelo de família, não mais atrelado à tradição e sim calcado em laços afetivos, estendeu-se às diversas classes sociais, levando consigo os valores e ideologias oriundas da sua classe social de origem. Assim, “as alianças conjugais passam a ser estabelecidas com base no afeto e não mais como arranjos externos, que não levavam em consideração as escolhas individuais”. (ZORNIG, 2010).
Philippe Ariès (2006) enfoca as mudanças da família ao longo da história a partir de outra perspectiva, ou seja, o lugar que a criança ocupa na família e na sociedade. De acordo com o autor, na Idade Média, a transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de modo mais geral, a socialização da criança, não eram, portanto, nem asseguradas nem controladas pela família. A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos à educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las. (ÀRIES, 2006).
Desse modo, quando a criança se tornava independente das pessoas responsáveis por cuidar dela, já ingressava no mundo adulto, aprendendo as tarefas do cotidiano e questões práticas, ligadas à sobrevivência e ao convívio com os adultos, de forma que as relações afetivas não tinham dimensão relevante.
Fonte: encurtador.com.br/bnFT8
Tal processo, descrito por Ariès (2006), inicia-se após a Idade Média e se estende pelos séculos seguintes, evidenciando as constantes transformações em curso. O papel da criança na família se modificava, portanto, na medida em que a organização familiar também se transformava, em favor da inclusão das trocas afetivas e das práticas de cuidado nas relações entre os membros da família. Assim, a família, como instituição social, torna-se responsável pela sociabilidade, afetividade e uma enorme variedade de elementos no processo de desenvolvimento dos filhos.
Nesse contexto, ideias sobre moralidade, condutas adequadas no meio social, educação e aprendizagem passam a ser incorporadas pela sociedade progressivamente, dando início à noção de criança como indivíduo, ao mesmo tempo em que se toma consciência das obrigações de cuidado por parte dos adultos e da necessidade de dar a ela um tratamento adequado.
O desenvolvimento das relações afetivas passa, dessa forma, a ser uma característica central da família. Singly (2007) distingue dois períodos da família contemporânea: o primeiro que vai do século XIX até os anos 1960, marcado pelo “amor no casamento, pela divisão do trabalho entre o homem e a mulher, a atenção à criança, à sua saúde e à sua educação” e o segundo período, situado após 1960, marcado pelo crescente individualismo e uma busca por maior autonomia dos indivíduos, as quais engendram inúmeras transformações nas organizações familiares. (SINGLY, 2007, p. 130).
A família do tipo nuclear consolida-se principalmente depois da Revolução Industrial, quando ocorre a organização populacional e a fixação em núcleos urbanos, sendo composta basicamente por pai, mãe e filhos, constituindo assim a família patriarcal que se organizou em torno da figura do pai, fechada em sua intimidade e com um determinado padrão de educação para seus filhos.
Fonte: encurtador.com.br/czGV1
Alguns estudiosos como Poster (1979) relatam que “por volta do séc. XIX e início do séc. XX as famílias das classes trabalhadoras também acabaram adotando o modelo de família nuclear burguesa, quando foram forçadas a deixar o campo e ingressar no trabalho em indústrias nas cidades” (POSTER, 1979, p. 25).
Com as transformações em pauta e reorganizações constantes, a família altera sua estrutura e seus papéis, ao mesmo tempo em que se mantém como uma forma de organização social consistente. A família brasileira, por exemplo, já não tem a mesma estrutura rígida. A monoparentalidade passa a ser bastante comum, encontrando-se com muita frequência a mulher como chefe de família, além de diversas outras formas que fogem do modelo convencional de família.
Para Szymansky (1998), a própria ideia de família vem mudando, influenciada, dentre outros fatores, pela saída da mulher do espaço doméstico para o mercado de trabalho, o que transformou a instituição, além de outros elementos como o controle da natalidade, o aumento do número de divórcios, declínio da autoridade paterna e marital, a acentuação do individualismo e da liberdade dos membros da família.
Nesse contexto, Michelle Gorin et al. (2015) entende que, as reorganizações são constantes e a parentalidade continua a ser exercida, não necessariamente pelo pai e pela mãe biológicos, no contexto da família nuclear tradicional, mas pelo arranjo que se compõe para exercer as funções parentais em relação às crianças. Tais funções podem ser exercidas, por exemplo, pelos próprios pais, por dois pais, duas mães, madrastas e padrastos, por exemplo.(GORIN et al., 2015, p. 4).
Fonte: encurtador.com.br/aqNX4
Para Vilhena et al. (2011), os fatores biológicos têm sido cada vez menos utilizados como referência do que é uma família, de modo que esta pode ser pensada sob diferentes aspectos, seja como unidade doméstica, assegurando as condições necessárias à sobrevivência, como um conjunto de laços de parentesco, como um grupo de afinidade, com variados graus de convivência e proximidade e de tantas outras formas.
Segundo os autores, devemos pensar a família como uma construção social, sem tomarmos nenhum arranjo como norma, mesmo porque esta instituição passa por um processo de desinstitucionalização, no sentido de ser considerada cada vez mais uma realidade privada, diminuindo o seu significado púbico.
Nesse sentido, assim como expressa Gorin et al. (2015), a discussão sobre as formas de ser família hoje não deve se realizar apenas em torno do exercício das funções paternas e maternas, mas independentemente do arranjo conjugal, a parentalidade deve se ocupar da estruturação psíquica do sujeito, por meio por meio da troca afetiva e da transmissão dos interditos, transmitindo a noção da renúncia como regra estruturante da ordem familiar.
Desse modo, o papel das figuras parentais se mostra absolutamente libertador e formador, no sentido de preparar os filhos para suas responsabilidades em relação às normas de convívio social e para a entrada na vida adulta, de modo que a formação do sujeito seja reflexo tanto da vivência em família quanto da vida em sociedade.
POSTER, M. Teoria critica da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 25.
SZYMANSKY, H. A relação família/escola desafios e perspectivas. Brasília: Líber Livro, 1998.
VILHENA, J;SOUZA, A. C. B;UZIEL, A. P;ZAMORA, M. H;NOVAES, J. V. (2011). Que família? Provocações a partir da homoparentalidade. Revista Mal-Estar e Subjetividade, n. 11. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rmes/article/view/5034/4040. Acesso em: 12 abr. 2021.
Se há uma coisa que a brilhante série Black Mirror sabe fazer é obrigar-nos a pensar. A escolha de seu nome, que em português significa “espelho negro” pode ser relacionada à quase onipresença das telas negras de smartphones, televisões, tecnologias diversas em todos os episódios. Mas pode ser encarada também (e essa interpretação me convence mais) como a escuridão que a humanidade certamente encontrará se esbarrar consigo mesma em algum espelho de autoanálise.
Em todas as temporadas, nos deparamos sim com tecnologia, mas somos obrigados a encarar, para além disso, uma das facetas mais características do humano: a violência. Violência explícita, violência velada, violência verbal, violência psicológica… E a tecnologia, toda essa modernidade que está a nossa disposição, servindo como mediadora, como propulsora, um canal fértil para a propagação dessa violência que carregamos dentro de nós. Sim, estamos falando de nós, aqui, agora. Não de futuro, nem de distopia… Black Mirror é real hoje, pois trata essencialmente da condição humana, não apenas de avanços tecnocientíficos.
Fonte: https://goo.gl/zRt9SY
Cada episódio é carregado da crítica pesada que nos surpreende por não apresentar o novo, mas o usual e vivenciado por nós repetidas vezes. Só nos parece novo por ser muito exagerado e caricato, mas é impossível não nos reconhecermos nas situações, simpatizando com os personagens, sabendo que faríamos as mesmas escolhas, e intimamente concordando que talvez, só talvez, fosse a hora de tentar compreender e mudar isso.
No segundo episódio da primeira temporada, “Quinze milhões de méritos”, temos a oportunidade de conhecer Bing Madsen (interpretado pelo brilhante Daniel Kaluuya), um jovem inserido em uma sociedade distópica, totalmente artificial e tecnológica. Todas as pessoas trabalham arduamente, pedalando o dia inteiro em uma espécie de bicicleta, para conseguir seu salário em forma de méritos, a moeda que dá nome ao título e que brinca, não tão sutilmente, com a ideia da meritocracia. Bing, entretanto, recebeu uma herança do irmão, o que lhe permite pedalar menos rápido e assim, ter mais tempo de pensar e refletir.
A princípio, a tecnologia reina absoluta, e nos encanta. As pessoas podem interagir com ela, comprar um amigo que “te ouve e guia seus sonhos”, brincar em jogos que (grande surpresa) reforçam ódio de classes ao colocar como inimigos os faxineiros que diariamente limpam as salas das bicicletas. E logo após, a sensação de incômodo começa a crescer quando vemos que as pessoas realmente não tem a opção de deixar dever, interagir e colaborar com o sistema. O clima fica mais e mais pesado a medida em se repara que nada é real, nem mesmo as frutas que eles compram para se alimentar, e que não há possibilidade de ver… ver o mundo, ver além das paredes cinzentas e do ambiente esterilizado.
Fonte: https://goo.gl/89y1uG
Nesse ambiente, nada realmente toca Bing, até que ele ouve Abi (interpretada por Jessica Brown Findlay) cantando dentro do banheiro e se convence de que ela é talentosa o suficiente para participar do Hot Shot, um programa de talentos (muitíssimo parecido com X-Factor e outros similares), que é vendido como uma das únicas formas de sair da vida monótona de pedaladas. Animado por ver algo real acontecer, ele doa sua fortuna para que ela possa participar do programa.
Abi vai ao programa, e temos uma crítica sutil à “meritocracia”, quando a sala de espera para participar do programa está lotada de pessoas que estão ali por dias, semanas e, com efeito, até meses, mesmo que todos tenham se esforçado para comprar o ingresso que custa 15 milhoes de méritos e alguns tenham chegado mais cedo do que outros. A escolha da ordem para se apresentar é totalmente arbitária para os que estão ali dentro, o que nos faz pensar em que alguém escolhe a ordem de acordo com seus interesses.
Abi canta muito bem, mas não bem o suficiente para o sistema. Ou talvez, sua única razão para ter conseguido chegar ao palco seja a tentativa de convencê-la a escolher um propósito diferente. Com efeito, Abi se vê pressionada a entrar para o ramo de produções pornográficas, e mesmo que ela não tenha dito sim com clareza e com firmeza, o público aplaude e a saúda como se fosse realmente uma sorte grande. Abi estava sob o efeito de uma bebida chamada “Concordância”, e pressionada por todos, cede. Merece destaque a critica à sociedade expectadora, na perturbadora visão dos bonecos holográficos dos espectadores, aplaudindo e participando, todos virtualmente juntos e fisicamente sozinhos.
Fonte: https://goo.gl/CstChd
Bing, desconsolado, se lança na empreitada de conseguir juntar novamente fortuna, e subir ao palco para desafiar o júri. Com muito esforço finalmente consegue, e determinado, compra um novo ingresso. Já escaldado pela situação de Abi, engana ao fingir que já bebeu Concordância, e sobe ao palco. A cena que se desenrola é emocionante. Faz fixar os olhos, enquanto Bing dança e puxa um caco de vidro, ameaçando se matar caso não seja ouvido. Sua crítica quebraria o sistema. E ele fala. Fala e arrepia, e quando expõe a verdade, faz silenciar uma plateia ruidosa. Se o passado nos serve de lição, já sabemos o que acontece afinal.
Esse episódio, como todos de Black Mirror, contém críticas ao sistema em cada mínimo detalhe, porém, o que mais chama a atenção é a crítica ao modo como o sistema tem a capacidade de engolir até mesmo os que se levantam contra ele. Há um apagamento da subjetividade das pessoas nesse lugar fictício, e o que nos assusta é perceber que não é tão fictício assim. É uma característica observada largamente no nosso sistema atual. A cada vez que movimentos sociais se levantam, ou que uma voz se insurge contra o status quo é, como bem disse Bing em seu discurso:
“Se eu tenho um sonho? É um novo aplicativo! Compramos coisas que nem estão lá! Mostrem-nos algo real, grátis e bonito. Não conseguiriam! Isso nos abalaria! Mas estamos tão entorpecidos… são maravilhas demais para suportar! Quando encontram algo, nos dão em porções escassas. Só é aumentada, embalada e bombeada por 10.000 filtros, até que não seja nada mais que séries de luzes sem sentido, enquanto pedalamos dia após dia, indo para onde? Dando energia a quem?”
A ocupação de gerar energia para o sistema, pedalando exaustivamente durante todos os dias não é nada mais do que uma alegoria ao modo de viver atual, onde cada vez mais exercemos atividades que nos distanciam do sujeito autônomo e nos moldam a um sujeito automatizado, que não tem tempo de refletir acerca do que produz, e embebido pela tecnologia, não se importa realmente em questionar o estabelecido.
Fonte: https://goo.gl/p8TCHj
Por fim, a apropriação da crítica pelo próprio sistema e sua transformação em propaganda, pode ser observada no episódio de forma extremamente clara. Se alguma voz ousa se levantar, há tentativa de supressão. Se a tentativa não funciona, o sistema, generosamente, abre um lugar para essa crítica, amplia, vende como sua, convence o público e assim, compartimenta essa crítica junto a dezenas de outras, em um pequeno espaço onde se tem a ilusão da diversidade.
O episódio é recheado de críticas ao machismo, aos haters, à gordofobia, à indústria pornográfica, à nossa crescente impossibilidade de nos distanciarmos do ciclo vicioso do consumo exacerbado, ao uso da tecnologia para nos distanciar da natureza, à violência psicológica a que estamos constantemente expostos.
Portanto, vale a pena ressaltar: Black Mirror não é apenas sobre tecnologia. É sobre como usamos a tecnologia para amplificar nossos impulsos duvidosos. Black Mirror é sobre nós, incomoda, e esse incômodo perdura por dias. Por esse mesmo motivo, deve ser assistida não apenas como entretenimento, mas como pontapé inicial para a reflexão acerca das nossas vivências e relações na atualidade.
A democracia é, atualmente, uma forma de governo que abrange todo o Ocidente. De origem grega, o termo designa o poder que é exercido pelo povo (demos: povo; kratía: poder). O presente trabalho aborda, sobretudo, a perspectiva de Goldhill (2007), para compreender o contexto de desenvolvimento desse sistema, bem como contrastá-lo com a democracia moderna. O contexto social da Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, no século VI a.C., contribuiu para a adoção de diversas medidas políticas, estas culminando em uma forma de governo democrático.
As sociedades ocidentais afirmam constantemente a relevância de uma política fundamentada na democracia. Esta é compreendida como a melhor estrutura de governo, desprezando-se aquelas que lhe são opostas, tais quais os regimes ditatoriais. Mais que mero exercício popular do poder, a democracia implica em reflexão, crítica e conflito [1]. Desde o seu surgimento “A discussão era indispensável […]. O povo ateniense queria que cada questão lhe fosse apresentada sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras” [2].
Fonte: http://zip.net/bptHNj
Considerando seu emprego usual nos discursos políticos de grande parte das sociedades, convém voltar-se aos primórdios da democracia para além da origem conceitual. A exploração histórica que remete a Atenas de 2.500 anos atrás se justifica ao passo que “Os democratas precisam questionar que forma deve tomar seu governo, e como ele se compara com outras formas de autoridade, hoje e no passado” [1]. O panorama fornecido pela Grécia Antiga permite que se compreenda os rumos que a democracia tomou no decorrer dos séculos, bem como suas possibilidades e limitações.
Primórdios da democracia
Atenas era governada por uma classe privilegiada de aristocratas, os quais detinham o poder político e econômico. Antes de a democracia ser implementada de fato, Goldhill destaca dois nomes que a influenciaram positiva e negativamente. O primeiro, Sólon, foi líder da cidade-Estado em 590 a.C. De acordo com o autor, dentre as medidas adotadas, destaca-se o direito de todos os cidadãos em recorrer a um júri, e a servidão tornou-se ilegal quando implicava em empréstimos feitos pelos abastados aos mais pobres. Tais ações foram positivas visto que favoráveis às classes populares.
O segundo líder, Pisístrato, tornou-se um ditador em 560 a.C. Sua influência é considerada negativa devido a liderança de um grupo de homens das colinas, visto que “A tirania era o trunfo desse […] grupo” [1]. Apesar de ser reconhecido como um tirano, o autor mencionado revela que Pisístrato realizou grandes obras que contribuíram ao desenvolvimento cultural de Atenas.
Bustos de Sólon e Psístrato, respectivamente.
Após a queda de Pisístrato e seus liderados, entra em cena a figura principal a firmar a estrutura para o estabelecimento da democracia: Cleistenes. Em 508 a.C., ele conquistou a liderança de Atenas e propôs
[…] a completa reorganização da política referente ao espaço de Atenas, e com isso o senso de pertencimento, de cidadania. Ele requeria que todo cidadão – cidadãos emancipados do sexo masculino, maiores de 18 anos – se registrasse em uma deme. […] O importante impacto político dessas bases se dava no estabelecimento de estruturas de autodeterminação em cada uma das comunidades, concedendo a elas um senso de responsabilidade por tudo o que acontecia ali [1].
As demes eram como distritos, porém, constituídas com base no sentimento de pertencimento de cada cidadão que a habitava. Atenas organizava-se em dez conjuntos de demes, formando tribos que autogeriam-se e possuíam estruturas religiosas e financeiras próprias [1]. A responsabilidade tratada acima se relaciona ao fator de grande destaque na democracia ateniense: o poder concedido aos homens, que de forma igualitária tomavam as decisões referentes a cidade-Estado. Por meio da Assembleia e das cortes populares, Cleistenes contribui à participação popular na tomada de decisões políticas, retirando da autocracia os privilégios quanto a tais questões.
A participação ativa na política era um sinônimo de cidadania, algo sobremodo relevante para os atenienses. No entanto, estabeleceu-se às custas da exclusão de mulheres, homens escravos, menores de idade ou aqueles que não fossem atenienses (nascidos em Atenas, bem como os seus genitores). Betthany Hughes destaca em documentário [3] que, “De cada três pessoas que moravam em Atenas uma era escrava. Os atenienses eram vigorosos democratas porque tinham […] os prisioneiros de guerra feitos escravos para realizar o trabalho sujo”. Corroborando com a ideia de Aristóteles quanto ao servilismo inato de determinadas classes [1], tem-se uma das bases inconvenientes sob as quais a democracia se desenvolveu.
Cleistenes. Fonte: http://zip.net/bvtHx7
Apesar dos aspectos negativos dessa democracia, a partir de Cleistenes,
Pela primeira vez, o povo de um Estado estava comprometido com a autodeterminação, com a autonomia e a responsabilidade para tomar decisões – a tarefa de governar. Cleistenes estabeleceu os princípios estruturais por meio dos quais a democracia ainda funciona: cidadania baseada em afiliações locais e nacionais, instituições administradas por e para os cidadãos, estruturas de poder combinadas e responsáveis, num sistema de controle mútuo das repartições governamentais [1] .
Estrutura democrática ateniense versus democracia moderna
O funcionamento da democracia na antiga Atenas revela o quão engajado estava o cidadão ateniense no agir político da cidade-Estado. Ali, a participação era o estandarte. Assim, é delineado o contraste entre o agir democrático em seus primeiros tempos com o dos tempos hodiernos, onde os indivíduos limitam-se a assistirem passíveis o desenrolar político de sua comunidade.
O significado de cidadania unia os cidadãos atenienses, independentemente da posição social que eles tivessem. Aos que eram das classes mais baixas e não tivessem condições financeiras para participar de certa atividade política, como uma eleição, outorgava-se lhes dinheiro para que pudessem ir ao local no qual exerceriam papel de sujeitos democráticos. O ideal era que todos participassem enquanto sujeitos que conheciam e se importavam com seu sistema de tomada de decisões.
O modo pelo qual eram escolhidos os oficiais – exceto o posto de General –, através de seleção aleatória ou pela sorte, deixava claro que todo e qualquer cidadão poderia ser um personagem importante no agir político de sua cidade. Assim sendo, essa forma de seleção dava enorme possibilidade a grande parte dos cidadãos atenienses de atuarem em cargos públicos. Goldhill [1] ressalta que, numa década, “[…] entre um quinto e um décimo de todos os cidadãos serviria no Conselho […]”, onde eram deliberados assuntos importantes ao povo.
Fonte: http://zip.net/bvtHyk
O sujeito democrático ateniense era ativo, poderia (e deveria) decidir acerca de todos os temas importantes para a comunidade, desde as leis até iniciativas de guerras. O indivíduo se envolvia em questões cujos desfechos inevitavelmente afetariam sua vida. É evidente o contraste com as democracias ocidentais modernas, cujos cidadãos são aficionados por direitos e, de modo geral, limitam-se a somente verem seus representantes tomarem decisões por eles, muitas vezes sem consultar seu eleitorado.
Na democracia ocidental moderna, uma parcela reduzida de indivíduos é tida como apta para o agir político; na antiga, todos os cidadãos poderiam desenvolver em si o sujeito democrático, sendo personagens ativos e determinantes. Mesmo o cargo de general, ou a magistratura – postos mais elevados, sendo esta última determinada pelo sorteio de uma lista final –, “[…] permaneceram estritamente sob a autoridade da Assembléia, e não podiam dirigir ou instruir a Assembléia ou o Conselho” [1].
Ainda que distinta da incipiente democracia grega, o atual sistema assemelha-se àquela no que tange a três princípios, a saber: a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e a responsabilidade. O primeiro implica na liberdade que todo cidadão tem para falar, expressar-se nos eventos públicos ou governamentais. Embora o referido princípio subsista até os dias de hoje, é perceptível que na prática não ocorra da forma que deveria ser. Muitos cidadãos vivem uma falsa liberdade, onde são tolhidos e induzidos pelas classes superiores a não expressarem-se.
A igualdade perante a lei, como o termo sugere, indica que, em julgamento, um cidadão não deve ser privilegiado em detrimento de outro, ou da lei publicada. As reformas de Sólon, no que tange ao direito de apelação a corte, seguidas das ações de Cleistenes, contribuíram com o decrescimento da estrutura hegemônica autocrática.
Diferentemente das cortes modernas, não havia juízes ou advogados profissionais […]. Cada reivindicador tinha de falar por si próprio, e era julgado pelos colegas. […] Esse era um processo em aberto, debatido e anotado publicamente, regulamentado pelo estatuto da lei publicada. A seleção aleatória dos jurados evitava o suborno e decisões políticas tendenciosas […] [1].
Embora atualmente encontre-se prerrogativas tais quais o foro privilegiado em determinadas instâncias políticas, em suma, a isonomia prevalece como um princípio fundamental da democracia.
Fonte: http://zip.net/bqtH4d
A responsabilidade, por sua vez, implica em que “[…] todo homem [deve] […] se responsabilizar pela coletividade de cidadãos. Isso significa que cada homem é responsável por seu voto e suas ações, e que ele pode ser responsabilizado” [1]. Reforçando o que foi mencionado, sabe-se que a democracia grega funcionava com base em uma população restrita, excluindo escravos, mulheres e menores de idade. A democracia atual, no entanto, sobressai-se – com algumas reservas – pela conquista do direito ao voto, independente de gênero ou classe social. Contudo, Goldhill questiona determinada inércia dos cidadãos modernos, bem como o desagrado com a estrutura democrática vigente.
Críticas ao modelo democrático
Para explicar os caminhos que a democracia atual tomou, o autor citado propõe uma análise das críticas a tal sistema, principalmente aquelas feitas por Platão. Suas influências a democracia moderna residem principalmente em proposições quanto a especialização necessária para se atuar em determinado cargo, incluindo os políticos. Platão criticava a não exigência de preparo técnico e intelectual dos governantes, bem como alegava a incapacidade dos cidadãos para decidir acerca de temas políticos.
A oposição de Platão “[…] à democracia em nome da lei e da ordem continua a prover uma autoridade intelectual fundamental para governos totalitários (e democracias nervosas)”. Para o filósofo, a democracia ateniense aproximava-se da anarquia, enquanto Esparta, conhecida por um sistema social e leis rigorosas, era o modelo ideal de governo fundamentado na “ordem social” [1].
Soldados espartanos. Fonte: http://zip.net/bntG6J
Tratando-se de ordem social, outro filósofo aparece como influente no modelo atual de democracia. Sócrates, segundo afirma Goldhill, “[…] foi executado pela Atenas democrática, devido àquilo em que acreditava. O que ele ensinava, e como o fazia, parecia muito perigoso para ser tolerado pela sociedade”. O autor expressa a relação de Sócrates com a fragilidade do sistema democrático, no que tange ao “[…] equilíbrio entre a liberdade de expressão e as exigências da ordem social” [1].
Platão e Sócrates ainda hoje movem questões clássicas de democracia e liberdade de pensamento. De certo modo, ambos apresentam posições distintas, porém, mobilizam a reflexão já proposta anteriormente: a democracia implica em crítica, conflito entre “liberdade individual e a regulamentação da comunidade” [1] e divergência de opiniões. O percurso histórico acerca da democracia revela as potencialidades e fragilidades, tanto nos primórdios quanto atualmente. Winston Churchill afirma que “A democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras” [4]. Apesar de ter se expandido como uma estrutura de governo desejável, percebe-se que ela implica, inevitavelmente, em que haja constante discussão, tanto sobre suas bases quanto sobre os rumos a serem tomados.
É notável que a democracia moderna ampliou alguns de seus princípios, no entanto, outros decresceram no decorrer do tempo. O engajamento percebido nos atenienses, por exemplo, bem como seu grande poder de decisão política são exemplos de aspectos nos quais os cidadãos modernos mostram-se estagnados. Algumas sociedades atuais, ditas democráticas, sequer contam com a participação de parcelas significativas da população para a escolha de seus líderes. Assim como Platão afirmava, supostamente deve-se confiar as decisões mais importantes a sujeitos capacitados.
Fonte: http://zip.net/bftG35
O descontentamento com a democracia atual, conforme abordado, pode ser analisado de acordo com diversos pensamentos, dentre eles os dos filósofos Sócrates e Platão. Além das reflexões anteriores quanto a dinâmica da democracia, as proposições desses filósofos fornecem lentes para se avaliar o sistema atual, bem como os seus impasses com a ordenação social. Considerando o posicionamento de Churchill, bem como o de Goldhill, para que se mantenha a democracia deve-se sempre questioná-la e compará-la com os modelos anteriores, ou seja, implica em conhecer sua história.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, J. B. Grécia – a caminho da democracia. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_2/Jeronimo_Basil.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2017.
[1] GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Tradução Cláudio Bardella. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Parte III, cap. 1-5.
[2] COULANGES, 2004, p. 356 apud ALMEIDA, s.d., p. 25.
[3] A HISTÓRIA da democracia (Athens: The Truth About Democracy). Apresentação: Betthany Hughes. 2007. (95 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3yVRkvP-w4>. Acesso em 01 mar. 2017.
[4] CHURCHILL apud GOLDHILL, 2007, p. 149.
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Início, Meio e um Longo Caminho
29 de junho de 2012 Aislane Cristina de Oliveira
Relato
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Primeiro: vai dar tudo errado. Não porque você não é capaz, não por causa do sistema, não porque as pessoas desistem do atendimento antes mesmo de iniciar. Vai dar tudo errado porque é exatamente aí que você precisa olhar para ver onde vai acertar.
Segundo: vai ser de um extremo ao outro. Se no começo foi complicado, o meio será confuso. Você terá a opção de desistir e a opção de continuar, mesmo depois de receber alguns “nãos”, mesmo passando a maior parte do tempo debruçado sobre uma mesa ou tentando, de todas as formas, montar algum grupo terapêutico ou continuar com o atendimento do sujeito que já esperou tempo demais e agora sentencia: “Não, já tô bem”.
Terceiro: você vai se sentir finalmente na sua profissão. Poderá chegar à quase certeza de que é realmente naquela área que quer, ou não, trabalhar. “Quase” porque ainda tem muitas coisas para aprender e conhecer sobre o leque de oportunidades que a Psicologia oferece. Poderá entender alguns empecilhos do tal Sistema e quem sabe irá chegar à conclusão de que essa é a melhor profissão que você poderia ter escolhido.
Por último: vai ver que, mesmo arrastando alguns meses de frustração, mesmo achando que as coisas não estão indo para frente e tendo a sensação de que você só está ali dentro enrolando e passando o tempo – ainda que as 8 horas semanais pareçam sem sentido – no final, vai entender que o que você fez foi muito, mesmo parecendo pouco. E esse pouco valeu todo seu primeiro estágio em “Ênfase”. Sua primeira experiência na prática.
Então a gente começa a entender a fala de Rubem Alves, quando diz: “O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio”.
Primeiro aprendemos a arte de escutar, para depois então a maestria de falar.