Educação interculturalidade: limites e possibilidades na contemporaneidade

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Este artigo analisa a formação do ser humano através da educação formal e informal bem como através da cultura e por que não dizer pela privação cultural que impede esta construção. A partir das reflexões teóricas e metodológicas apresentadas nos textos como referenciais para discussão, a construção da humanidade da autora Maria Helena Pires Martins e a profissão docente e o cuidado com a vida do autor A.J, Severino, dentre outros autores correlatos, analisamos as seguintes questões, o papel da cultura e educação na constituição da humanidade, o que é a educação como cultura e a docência como profissão do cuidado.

O problema que norteia este estudo é: Quais são os limites e possibilidades do ser humano na educação intercultural? O objetivo do trabalho é verificar quais são os limites e possibilidades enfrentados pelos sujeitos no que diz respeito à educação e a interculturalidade. A análise da questão proposta se também se apoia nos argumentos de Benevides (2000) que destaca a importância da formação de uma cultura de respeito à dignidade humana e Candau (2008) que evidencia interculturalidade como educação para o reconhecimento do outro e para o diálogo entre os grupos sociais e culturais. Para Candau (2008) não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. Não se pode conceber uma experiência pedagógica desvinculada das questões culturais da sociedade.

É notável o pensamento da autora quando coloca como condição de ensino a pedagogia que envolva a educação intercultural onde seja abordado situações típicas empíricas que de fato sejam vivenciadas pela sociedade e estudantes.

Nesse aspecto fazendo uma analogia do ser humano a um metal precioso, seja o diamante ou mesmo o ferro, sabemos que precisam ser forjados ou moldados, pois nascem na natureza brutos, imperfeitos e inacabados. O diamante é lapidado, polido, lixado e até mesmo escovado nas diversas formas para chegar ao brilho reluzente.  Quanto ao ferro é forjado na água e fogo para se tornar um produto de utilidade, e o ser humano é constituído no decorrer do seu desenvolvimento biológico, genético, físico, intelectual, emocional pelos processos da educação, cultura e a   herança de seus pais, que podem ou não influenciar na construção enquanto indivíduo.

Fonte: encurtador.com.br/anxNU

Dentro deste contexto, o ser humano vai se formando via educação, começando com a primeira instituição transmissora a família, depois escola e igreja, que gradativamente vão entrelaçando com a cultura já existente ao redor desde individuo e com a cultura que passa a ser construída por ele de acordo com a recepção interior de todos os fenômenos (a arte, a música, a liberdade e outros). Neste sentido a cultura é transmitida, repassada, construída e geradora de conhecimentos que são reforçados ou não   na educação.  Aqui fazemos referência a Paulo Freire citado no artigo, que nos mostra os tipos fundamentais de educação, a conhecida educação bancária que vigora como soberana no trono da formação humana e a educação libertadora ou libertária, que é forjada via lutas incansáveis das minorias no decorrer da nossa história. Neste emaranhado, educação e cultura se fundem, ambas estão e se fazem presentes do nascer ao morrer do ser humano, molda de acordo com o ambiente, com a educação formal ou não formal, de acordo com a concepção daqueles que formam o indivíduo e de acordo com a cultura apreendida.

Nesta relação de construção do ser humano e da humanidade, cultura e educação desempenham papeis de relevância, pois podem construir indivíduos capazes, autônomos, livres, feliz e realizados como também indivíduos presos aos cárceres que a própria vida impõe. Neste sentido a escola, local mais organizado para transmissão da cultura e da educação, tem um papel fundamental, e deveria ser espaço onde cultura e educação estivessem  a serviço de uma formação mais humana, justa, igualitária, sensível, promotora principalmente da cultura da paz em todos os sentidos, da cultura da felicidade e bem estar, e não espaço de manutenção das classes no poder, das desigualdade, injustiças, fracassos e principalmente infelicidades e inferioridade muitas vezes provocadas  pela descriminação e  privação da educação e cultura.

Mencionando aqui a espécie dos mamíferos, sabemos que o homem é o animal mais dependente do outro homem, do nascer ao morrer, em vários momentos da existência o homem precisa do seu semelhante, e hoje vivemos um momento delicado, difícil, sofrido e porque não dizer momento de aprendizagem. Neste tempo de pandemia, de covid-19 a vida nos revelou que somos todos iguais, neste agora tanto faz quem você é, ou que você tem, todos estamos passiveis de morrer e necessitamos dos mesmos cuidados, embora saibamos que ainda existem algumas diferenças veladas.

Fonte: encurtador.com.br/quGI9

Presenciamos rupturas de comportamentos, mudanças de hábitos, reinvenção das diversas profissões, evolução na ciência na produção de medicamentos e vacinas, mudanças na educação, nas formas de comunicação e no uso das tecnologias. Uma nova cultura digital surgiu que mexeu com as estruturas dos analógicos (como nós), com o mercado e outras estruturas. A escola rompeu barreiras até então “esquecidas” e “desvalorizadas” nas suas propostas pedagógicas. E o professor viu-se obrigado a se reinventar, superar obstáculos, buscar a criatividade e inovação e principalmente deixar de ser o centro do ensino e aprendizagem. Revelou-se também, que nossa educação está precária, que a formação de nossos educadores não corresponde as novas exigências do momento inusitado que vivemos. O período mostrou inúmeras desigualdades na educação, na formação dos professores, nas propostas pedagógicas, nos investimentos privados e públicos para atender a uma demanda urgente de não deixar a educação a beira do caminho, visto que  muitos setores buscaram novas formas de caminhar, mas o que mais chamou a atenção foi o descompromisso por parte dos poderes públicos com educação e cultura de um povo e uma nação.

DESENVOLVIMENTO

É inegável que existe uma fragilidade no olhar da sociedade sobre o diferente e que esse olhar se reflete na maioria das vezes de forma preconceituosa e exclusiva culminando em pensamentos e comportamentos que não condizem com práticas inclusivas em nossa sociedade. Candau (2012) apud Pierucci, no seu instigante livro Ciladas da diferença (1999), assim sintetiza esta tensão:

Somos todos iguais ou somos todos diferentes? Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? Houve um tempo que a resposta se abrigava segura de si no primeiro termo da disjuntiva. Já faz um quarto de século, porém, que a resposta se deslocou. A começar da segunda metade dos anos 70, passamos a nos ver envoltos numa atmosfera cultural e ideológica inteiramente nova, na qual parece generalizar-se, em ritmo acelerado e perturbador, a consciência de que nós, os humanos, somos diferentes de fato (…) , mas somos também diferentes de direito. É o chamado “direito à diferença”, o direito à diferença cultural, o direito de ser, sendo diferente. The right to be diff erent!, como se diz em inglês, o direito à diferença. Não queremos mais a igualdade, parece. Ou a queremos menos, motiva-nos muito mais, em nossa conduta, em nossas expectativas de futuro e projetos de vida compartilhada, o direito de sermos pessoal e coletivamente diferentes uns dos outros. (Pierucci, 1999, p. 7)

De acordo com os autores não é sobre estigmatizar, mas sobre repensar a questão do ser diferente e ser igual. Outrora essa luta era muito apoiada no sentido de que todos éramos iguais, hoje o pilar se centra sobre ser diferente sendo reconhecido por suas especificidades na sociedade.

Fonte: Rádio Castrense – Semana da interculturalidade começa hoje em todo o país.

Educação intercultural é um assunto bastante complexo quando se trata de uma sociedade que até pouco tempo atrás escravizava pessoas como se a abolição da escravatura não existisse, que segregava alunos dentro de classe de aula por causa de suas diferenças. Partindo deste raciocínio podemos refletir nos passos do processo da educação intercultural. É fato que no continente latino-americano está em desenvolvimento a educação intercultural, mas ainda enfrenta vários entraves principalmente no que diz respeito ao entendimento, visão e percepção da sociedade em si. A escola entra com um papel fundamental de falar e ensinar sobre novas maneiras de ver, entender e praticar o ensino transcultural. Esse manejo se dá quando o educador tem sua didática pautada na transdisciplinaridade onde se percebe o próximo como parte de um todo com uma visão que contempla o antes, o durante e o depois. Essa contemplação permite o desenvolvimento amplo sem amarras dentro do plano de ensino escolar. É urgente uma reforma do pensamento em todos e principalmente nos educadores!

Para Edgar Morin (1995) pensar no ser humano é não desprezar jamais sua capacidade cognitiva, seu interior é jamais reduzi-lo.  Morin (2011a) Por meio da epistemologia da complexidade, conclama: “Reformai-vos”! Reorganizai-vos!” Nota-se que o autor versa sobre sensibilidade, sobre intuição, sobre interior. Para ele, “o ser é sempre uma organização ativa, produto de interações.”

Hoje inclusão social requer todas essas características complexas que se refere o autor, requer mudança de pensamentos, mudança de atitude, reorganização, requer enação! Enação do grego que quer dizer “fazer emergir”.

 Varela (1991), escreveu sobre enação e dizia que o mundo mostra-se pela enação de regularidades perceptivas motoras. “Cognição, como enação, sugere o fazer emergir mediante manipulação concreta”.  Varela (1996:18) Para esse autor (1997) “o mundo emerge a partir da relação com o sujeito que o observa.” Exemplificando, é como o ovo e a galinha, que estão mutualmente implicados, ambos estão co-determinados e correlacionados.

Todo esse pensamento de enação do mundo com relação ao sujeito, faz analogia com o processo social inclusivo e com a ontologia complexa, onde segundo a autora Maria Cândida Moraes:

as relações entre sujeito/objeto, ser/realidade, são de natureza complexa, portanto, inseparáveis entre si, pois o sujeito traz consigo a realidade que tenta objetivar. É um sujeito, um ser humano que não fragmenta a realidade que o cerca, que não descontextualiza o conhecimento”. Um sujeito multidimensional, com todas as suas estrutruras  perceptivas e lógicas, como também sociais e culturais à disposição de seu processo de construção de conhecimento, já que a realidade não existe separada do ser humano, de sua lógica, de ua cultura e da sociedade em que vive”                                                  

Nessa perspectiva de Morais, em um processo análogo, Morin trata de inclusão com um olhar complexo quando se refere ao ser humano como uma organização ativa, produto de interações, com sua dinâmica funcional decorrente dessa relação com a organização. Transcorre como produto dessa relação a garantia da autonomia e dependência, a perturbação e a quietude, a sapiência e a demência e tudo aquilo que tece a vida e sua manifestação.

 Koff (2009, p. 61), considera que, “na discussão se os termos saber e conhecimento são sinônimos ou não, podem ou não ser usados indistintamente, o mais importante é considerar a existência de diferentes saberes e conhecimentos e descartar qualquer tentativa de hierarquizá-los”. Neste sentido, a perspectiva intercultural procura estimular o diálogo entre os diferentes saberes e conhecimentos, e trabalha a tensão entre universalismo e relativismo no plano epistemológico, assumindo os conflitos que emergem deste debate.

Fonte: encurtador.com.br/hiltS

Pensando na dimensão da importância do cuidado com a vida humana e o papel da docência pois como vimos nos artigos de estudo e reflexão, a educação é forma imprescindível de cuidado com a vida, daí a necessidade e urgência da formação docente. Ressaltando que esta formação docente é de responsabilidade dos órgãos competentes, instituições de formação, das políticas públicas, e do próprio docente, que não assume de fato o compromisso com a educação do próximo. Sabemos que existem inúmeras situações que impedem o bom desempenho do docente, tais como, falta de reconhecimento, a valorização salarial, o reconhecimento da profissão, as próprias condições e estruturas de trabalho, começando por recursos simples, até o próprio espaço físico. Mas por outro lado, há também, o desinteresse por parte do docente em investir na sua própria formação pessoal, o descompromisso com seus estudos, com seu aprimoramento na área específica, o lidar pedagógico, entre eles, o preparar bem suas aulas, seu planejamento, seus recursos, sua fundamentação teórica e outras.

Cabe aqui dizer que o professor precisa de formação e se formar, não só no aspecto da dimensão do conhecimento por si só, mas em todas as dimensões que hoje sabemos que são inerentes ao cuidado com o outro. Há a necessidade de uma mudança significativa nos cursos de formação docentes, nos programas e currículos. Vivemos um tempo que exige outras áreas que agregam na formação do docente, entre elas, destaco a neurociência que tem contribuído sobremaneira com a educação. Para bem educar o docente precisa entender como o individuo aprende, como ele reage as emoções que na maioria das vezes interferem na aprendizagem. Entender sobre as múltiplas inteligências, que muitas vezes se sobressaem a inteligência cognitiva, e ressalto a importância da inteligência emocional, a ética, os direitos humanos, a diversidade cultural, a arte, a música, a inteligência sinestésica e corporal.

Como mencionado nos textos de referência, o dom(vocação) e o saber comum, que horas foram suficientes para uma determinada época, hoje já não correspondem a contemporaneidade, nem as necessidades sociais, e muito menos ao tipo de seres humanos que necessitamos para o mundo atual. Lidamos hoje nas escolas com uma geração frágil, sensível, de grande capacidade de articulação e domínio do conhecimento, mas ao mesmo tempo, individualista, egocêntrica, e instantânea, muda-se de acordo com  onda do momento. Por isso a necessidade da formação docente ampla, principalmente no que diz respeito a dimensão do cuidado, pois sabemos que em muitas situações o docente(professor) tem muito mais influência sobre o sujeito do que a própria família e/ou outra instituição.

CONCLUSÃO

Neste universo da subjetividade que constrói a humanidade, podemos afirmar que a docência é a profissão mais comprometida com o cuidado da vida humana. Percebemos que mesmo diante de um novo modelo o qual estamos vivendo agora de educar, que estabelece o distanciamento do docente e discente, deixa bem claro que nada substitui a interação humana, o convívio, a proximidade, o contato, os olhares e a sensibilidade e outras competências e habilidades que se fazem necessárias para que o docente fundamentado na ciência e técnica consiga permear e mediar a construção desta humanidade. Neste construir, o docente necessita de pré-requisito alicerçados no estudo sistemático e aprofundamento teórico que o tire do senso comum e espontaneísta para um lugar de pleno domínio das tão necessárias habilidades que se fazem necessárias para garantir com dignidade a formação humana.

A humanidade do ser humano vai se constituindo ou construindo a medida que seu ser, corpo, alma vai absorvendo, moldando seu modo de agir e pensar, influenciado pela educação, cultura, natureza, sociedade e pela mediação por parte do docente que esteja  pautada além da dimensão cientifica, técnica, mas principalmente alicerçada  na sensibilidade,  solidariedade, empatia, o respeito ao próximo, o sentido de pertença, o amor ao trabalho, a presença significativa, responsabilidade, compromisso social, senso crítico, visão política, e para finalizar a doação. Cuidar exige doação, entrega, compromisso com o outro, e estar a serviço da construção do ser humano na sua integralidade e todas as dimensões e principalmente para que seja feliz.

Para que tenhamos uma sociedade mais justa, humana e fraterna, faz-se necessário investir significativamente na formação da sociedade, na formação do docente, nas mudanças das propostas pedagógicas, nos currículos e nos modelos metodológicos atuais  que  atendem as demandas de educação intercultural.

REFERÊNCIAS

BENEVIDES, M. V. Educação em direitos humanos: de que se trata? Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São Paulo, 18 fev. 2000.

CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. Multiculturalismo: Diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

KOFF, A.M.N.S. Escolas, conhecimentos e culturas: trabalhando com projetos de investigação. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.

MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Psy, 1995.30

MORAES, Maria Cândida. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinaridade e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais/ Maria Cândida Morais.- São Paulo: Antakarana/WHH – Willis Harman House, 2008.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995

Rev118_Completa16x24_01062012_Gr.fica.indd (scielo.br) apud PIERUCCI, A.F. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999

Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos — Português (Brasil) (www.gov.br) Acesso em 22-03-2022.

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A.I. Inteligência Artificial: o que nos torna humanos?

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Amplamente transmitido na TV aberta, o filme “A.I. Inteligência Artificial” produzido no ano de 2001 narra a trajetória de David, o primeiro andróide projetado para amar. David, construído com a forma um menino, é adotado por um casal que teve seu filho biológico criogenizado até que a medicina avançasse o suficiente para curá-lo. Mas quando isso acontece, os conflitos entre David e seu irmão mudam completamente seu destino. A maneira como David é tratado por seus pais a partir do momento em que “descumpre” seu propósito como substituto possibilita o seguinte questionamento: o que nos torna humanos?

Alerta de spoiler!

Fonte: https://bit.ly/2ERxqfZ

Bondade

Basta citar alguns dos acontecimentos mais cruéis da história da humanidade para descobrir que bondade não é o que define com precisão os seres humanos. Eventos em situações de guerra como o Holocausto ou as bombas em Hiroshima e Nagasaki são um bom exemplo do quanto o ser humano tem a capacidade de não apresentar nenhum tipo de empatia sobre outras vidas humanas. Essas ações se estendem também para os animais e o meio ambiente, algo que é retratado com clareza no filme.

Após as brigas com seu irmão, David é abandonado em uma floresta por sua mãe. A narrativa cria um ambiente de desconforto desde as primeiras cenas e impacta drasticamente o espectador ao despertar o senso de justiça, uma vez que David tem sentimentos como qualquer humano teria.

As hipóteses de o ser humano ser essencialmente bom ou mau dividiram pensadores e filósofos ao longo da história. Para John Locke e Thomas Hobbes, por exemplo, o comportamento humano em seu estado de natureza humana é algo insatisfatório e violento. Desse modo o estabelecimento de uma sociedade civil seria positivo por garantir ordem, liberdade, segurança e respeito (LEOPOLDI, 2002). Para esses teóricos, o ser humano é essencialmente mau, e a sociedade possibilita a bondade.

Jean Jacques Rousseau, por outro lado, percebia qualidades no estado selvagem do ser humano, chegando a ser considerado o filósofo do “bom selvagem”. Para ele, o desequilíbrio no sistema entre seres humanos e a natureza é rompido a partir do momento em que a sociedade e a civilização dominam essa relação, desse modo, nossos males seriam de nossa própria autoria (LEOPOLDI, 2002). Portanto, para Rousseau, o ser humano é essencialmente bom, mas a sociedade o corrompe.

No filme, através da jornada de David após ser abandonado, percebe-se que em um futuro próximo a lógica da descartabilidade e da produção excessiva de lixo se perpetua. Ele também não foi o único a ser abandonado: inúmeros outros andróides e robôs compõe uma “subsociedade” constituída em meio ao lixo. David, após ouvir de seus pais adotivos uma história da Fada Azul, se encontra determinado a encontrá-la, e assim como o clássico Pinóquio, sonha em se tornar humano.

Fonte: https://glo.bo/2tV1zF0

Percebe-se na trama, que o egoísmo e a falta de empatia podem estar presentes desde a infância, como se pode ver no filho biológico do casal. Isso se estende para a vida adulta, e associada à lógica de descarte do que não é mais útil, promove o abandono de pessoas e objetos. Para Bauman (2009) a fluidez das relações na contemporaneidade pode gerar uma espécie de corrida, e quem eventualmente não conseguir acompanhá-la, corre o risco de ser descartado, como lixo.

DNA

O Ser Humano, possui cerca de 25 mil genes estruturais, e cerca de metade desses são exatamente iguais à composição do arroz, por exemplo (PESSINI, 2009). Seriam então, os nossos componentes genéticos os determinantes do que é ser humano?

Entre os maiores desafios da bioética no século XXI, está sem dúvidas o transumanismo. Esse termo se refere à busca pelo melhoramento biotecnológico das capacidades humanas geneticamente.  Alguns exemplos são tecnologias de prolongamento do tempo de vida, a possibilidade de reprogramação do DNA e da mente humana, bem como a futura existência de uma consciência livre do corpo mortal (PESSINI, 2009), como apresentado no filme.

Para os transumanistas, o estado biológico humano é apenas transitório, sendo os corpos, uma espécie de prótese, um substrato biológico. O pensamento pós-humano esbarra, portanto em questões éticas. Os bioconservadores, contrários a tais intervenções, sugerem que a dignidade humana não deve se estender ao pós-humano, e se apegam ao status moral da condição humana (PESSINI, 2009). No filme, podemos ver um exemplo em que a dignidade pós-humana se estende apenas para seres geneticamente humanos. E mesmo que David se comporte, sinta e aparente como um ser humano, ele é descartado como um objeto, demonstrando uma contradição ética daquela sociedade. Tais dilemas também podem ser enfrentados pela nossa sociedade nos próximos anos.

Fonte: https://bit.ly/2EBSCFx

Comportamento                            

O comportamento é, talvez, o que defina o que é humano com mais precisão. Os comportamentos são atividades do organismo que mantém relação com o ambiente, seja de maneira respondente através de reflexos inatos ou de maneira operante, quando agimos esperando determinadas consequências (DE ROSE, 1997).  A maneira como o ser humano se comporta, seja pela influência genética (como os reflexos) ou da maneira como isso é aprendido através das relações sociais, compreende a essência das diversas manifestações do que é humanidade, seja ela para o bem, ou para o mal.

As diversas influências e contingências que atuam sobre a formação e desenvolvimento de um indivíduo estão sujeitas antes, a um macrocontexto sócio-histórico, e cada época, por sua vez, compreende as características humanas aceitáveis ou não. Dessa maneira, conceitos como a ética, presente no filme, estão sujeitos a mudanças de acordo com as novas decorrências da atividade humana sobre a tecnologia. Percebe-se que a mãe de David sentiu remorso abandoná-lo, porém ainda assim o descartou, assim como várias outras pessoas abandonaram seus andróides e robôs. Desse modo, se compreendermos o adjetivo “humanidade” como sinônimo de bondade e empatia, David pode ser considerado o personagem mais humano do filme.

Fonte: https://bit.ly/2H0L16Z

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: https://bit.ly/2VC8tdW

A.I. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Título original: A.I. Artificial Intelligence
Direção: Steven Spielberg
Elenco: Haley Joel Osment, Jude Law, Frances O’Connor, Sam Robards;
País: EUA
Ano: 2001
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Zahar, p. 7-55, 2009.

DE ROSE, Julio César Coelho. O que é comportamento. Sobre comportamento e cognição, v. 1, p. 79-81, 1997.

LEOPOLDI, José Sávio. Rousseau-estado de natureza, o “bom selvagem” e as sociedades indígenas. Revista Alceu, São Paulo, nº4, p. 158-172, 2002.

PESSINI, Leocir. Bioética e o desafio do transumanismo: ideologia ou utopia, ameaça ou esperança?. Revista Bioética, v. 14, n. 2, 2009.

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Sense8: a reconciliação com a ansiedade de separação

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“A única forma de alcançar o pleno conhecimento é o ato de amar, um ato que transcende o pensamento, que transcende as palavras. Ele é um mergulho ousado na experiência da união.”
Erich Fromm- A arte de amar.

Sense8 é uma série norte-americana original do serviço streaming Netflix, lançada em 2015 e produzida pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski e  J. Michael Straczynski com duração de 2 temporadas com 12 episódios cada. O título da série faz uma alusão a palavra do inglês “sensate”, que é o principal aspecto que caracteriza a união de 8 pessoas completamente desconhecidas, que moram em diferentes lugares do mundo, e passam a sentir suas vidas profundamente conectadas.

Fonte: https://bit.ly/2BYNGuL

Will Gorski (EUA), Riley Blue (Irlanda), Capheus Onyongo “Van Damme” (Quênia),  Lito Rodriguez (México), Sun Bak (Coreia do Sul), Nomi Marks (EUA), Wolfgang Bogdanow (Alemanha) e Kala Dandekar (Índia) são os protagonistas da trama. Subitamente, todos têm a visão de uma mulher atirando contra a própria cabeça, e a partir de sua morte descobrem estar psiquicamente conectados, capazes de sentir os outros sensorial e emocionalmente, ver, tocar e se comunicar entre si, ainda que estejam em lugares distintos fisicamente. Angelica é a mulher que “deu a luz” ao grupo antes de se matar para fugir do vilão Wsipers (Sussurros).

Na série, indivíduos com essa capacidade de conexão são chamados de Sensates e estão sempre conectados em grupos de oito pessoas, chamados de Cluster. Agora o grupo precisa se unir para entender suas novas habilidades e também o porquê de estarem sendo ajudados por Jonas, integrante do cluster de Angelica, e caçados por Whispers, chefe de uma organização que mata sensates.

Aparições de Angelica para Capheus (Quênia) e Riley (Irlanda).

Uma (re)descoberta em grupo

Algo que não deixa dúvidas é a inovação implementada (com sucesso) pelos produtores da série. Ainda que atualmente seja menos empolgante falar de Sense8 depois de seu término, que se deu devido ao exorbitante orçamento resultante de gravações em pelo menos oito cidades ao redor do mundo, lembro que ao assistir os primeiros episódios em 2015 pensei que nada no mundo era parecido com o que tinha acabado de assistir, isso é uma qualidade extremamente valiosa que já citei em outro texto.

Os três aspectos que mais chamam a atenção inicialmente são (1) a relação de união entre os personagens, (2) como isso se manifesta sexualmente, e por fim, (3) o resultado da interação das diversidades humanas. À medida em que o grupo descobre o porquê de terem sido unidos, e os motivos de estarem sendo caçados pela BPO (organização a qual Whispers pertence), precisam usar a conjunção de todas as suas habilidades para fugir e se proteger.

Um policial, uma DJ, um motorista de van, uma lutadora de kickboxing, um ator, uma farmacêutica, um gangster e uma hacker; essas são as profissões de cada um dos sensates. Agora, imagine todas essas habilidades combinadas em uma pessoa só, de acordo com a necessidade do momento. Sem dúvida, é uma combinação poderosa. Mas além de apenas habilidades físicas, a união dos sensates transpassa suas histórias de vida, seus traumas, seus medos e suas repressões, culminando em um sentimento mútuo de apoio, afetividade e amor. Essa intensa relação resulta em cenas não incomuns de orgias entre os personagens.

Fonte: https://bit.ly/2zSxIAV

Essas orgias transcendem também os estados físicos, e passam a mesclar-se com estados metafísicos, pois, nem sempre os personagens estão juntos no mesmo local geográfico. As relações sexuais transcendentes que mesclam diferentes expressões de sexualidade e diversas práticas sexuais, como se pode imaginar, não são vistas como belas por todos os olhos. Sense8 definitivamente não é conservadora.  A série não só incomoda a visão de sexualidade ocidental conservadora, como a confronta. Cada episódio é um convite ao expectador a se abrir para as diferentes faces do amor e do sexo, para a natureza humana sem máscaras.

Amor como problema fundamental da existência humana

O psicanalista alemão Erich Fromm, postulou sobre as necessidades humanas de se conectar com outras pessoas para superar a ansiedade da condição humana (você pode ler mais sobre ele aqui).

“Erich Fromm defendeu que a união entre os seres humanos, pelo princípio do amor, é uma resposta potente para a questão elementar da humanidade, a ansiedade de separação e a solidão/angústia existencial. Neste sentido, o amor se torna uma necessidade psíquica básica do indivíduo, e deve ser trabalhado a partir dos mesmos pressupostos da arte, ou seja, tem que ser entendido, observado, treinado e executado, num movimento que engloba não apenas os sentimentos, mas também a razão (evitando assim as polaridades).” (SOUSA, 2018).

Para o psicanalista, a consciência que o ser humano adquire ao se perceber separado gradualmente da mãe e posteriormente da própria natureza, do seu curto período de vida, do seu nascimento e morte contra a própria vontade, da sua solidão e separação, de modo que uma existência apartada e desunida se tornaria uma prisão insuportável. Desse modo, a experiência de separação seria fonte de toda a ansiedade humana (FROMM, 2000).

Personagens no episódio Amor Vincit Omnia (O amor conquista tudo). Fonte: https://bit.ly/2PcsyVx

O ser humano tenta, portanto, encontrar saídas para superar a ansiedade de separação através de: transes auto-provocados, como o sexo e uso de drogas; com a busca de conformidade, ou seja, uma transfiguração do eu para pertencer à homogeneização social; com a atividade criativa, no qual o indivíduo criativo une-se ao seu material, que representa o mundo fora dele; e também a união simbiótica (representada inicialmente pela união gestacional mãe-bebê), na qual o indivíduo busca superar o estado de separação se tornando parte de outra pessoa, ou incorporando outra pessoa em si, através de uma conexão psicológica. Porém, todas essas tentativas de fusão com o mundo seriam imaturas e passageiras (FROMM, 2000).

Ao examinar a história dos sensates, não é difícil perceber a solidão que os cercava. A rejeição familiar e da sociedade ou o medo dela os impelia para buscas diversas de superar suas angústias, como uso de drogas (Wollfgang e Riley), tentativas de se encaixar nos padrões sociais aceitáveis (Sun, Lito e Kala), atividades de sublimação no trabalho (Nomi, Capheus, Lito e Will). Mas, a partir do momento em que o Cluster encontra um novo significado para suas existências e todos os integrantes passam por um processo de aceitação e preservação individual e mútua, em doação de si aos seus parceiros, acontece o que Fromm denomina de “amor amadurecido”.

“Em contraste com a união simbiótica, o amor amadurecido é união sob a condição de preservar a integridade própria, a própria individualidade. O amor é uma força ativa no homem; uma força que irrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que o une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois.” (FROMM, 2000, p. 23-24).

Então chegamos ao grande paradoxo de Sense8, que nesse caso, oito sejam um, e, contudo, permaneçam oito. A situação de sustentação mútua entre os integrantes do grupo, os fizeram superar inúmeros desafios pessoais, porém, tal amor, não lhes custou sua integridade, suas habilidades e paixões distintas só se fortaleceram.

Fonte: https://bit.ly/2E9PELx

O amor seria um movimento ativo e não passivo; um crescimento, ao invés de uma queda; seria, portanto um fluxo de dar e não de receber. Dar, não se caracteriza aqui, na perspectiva mercantilizada do sentido de perda, mas sim como expressão de potência, onde se põe a prova o próprio poder, é um marco de superabundância, e acima de tudo, uma expressão de vitalidade (FROMM, 2000).

As esferas do “dar” englobam o sexo, como uma expressão de doação do próprio corpo ao outro, porém a mais importante seria a esfera do que é especificamente humano. Dar da própria vida, de seus sentimentos, do que vive em si, seria a mais alta expressão de amor. Enriquece, desse modo, sua própria vitalidade e a vitalidade do outro, só enriquecimento, sem perdas (FROMM, 2000).

Fonte: https://bit.ly/2IFrzui

O que torna Sense8 diferente de outras séries, não é só a relação de união entre os personagens, tampouco apenas como isso se manifesta sexualmente, mas o resultado da interação das diversidades humanas, daquilo que é especificamente humano: alegrias, tristezas, conhecimento e compaixão. A mescla de humanidades fascina os expectadores com o maior anseio de nossa existência: ser amado.

REFERÊNCIAS:

FROMM, Erich. A arte de amar. Trad. de Eduardo Brandão. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

SOUSA, S. L. Erich Fromm: só o amor salva o ser humano de sua angústia existencial. Portal (En)Cena: A Saúde Mental em Movimento: Palmas, 2018. Disponível em: <http://encenasaudemental.com/personagens/erich-fromm-so-o-amor-salva-o-ser-humano-de-sua-angustia-existencial/>. Acesso em: 04 de out. 2018.

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Quero gritar bem alto e não quero que alguém venha acudir

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Tenho andado por caminhos tortuosos e sombrios. Não reconheço minha face diante do espelho. Meus passos não são mais decisivos. Minha cabeça não permanece erguida. Meu olhar é vago e sem emoções, ou melhor, está perdido dentro de tantas, e tantas emoções.

Minha cama tem sido o refúgio. Existem dias difíceis, meu corpo não obedece aos comandos da mente, nem a mente ao do corpo. Quero apenas ficar aqui, com o meu vazio carregado de tudo.

Penso em esgotar mais uma vez minhas energias. Dentro de mim, sangra. A dor persiste na alma. Meus olhos não têm mais a mesma cor. Meus cabelos caem fio por fio, até ele diz que não aguento mais. Está insuportável.

Quero gritar bem alto. E não. Não quero que alguém escute e venha “acudir” mais uma vitima da depressão. Quero mesmo é amenizar o nó que amarra minha garganta sufocando minha alma.

Fonte: https://goo.gl/SQT3nz

É hora de partir, dizer adeus ao sistema e seus subsistemas. Nunca quis fazer parte dele, queria apenas encontrar o meu lugar. Meu SER E ESTAR no mundo.

Caminho em direção a tudo que tentei fugir pela manhã. Penso em quantas coisas poderia acontecer nessa estrada. Penso na sorte que teria em por um golpe premiado, toda a minha dor chegada ao fim em apenas um segundo. O nó na garganta seria desfeito. Meu coração derramaria todo o seu sangue e deixaria de sangrar aos pouquinhos como se fosse tortura. Meus olhos descansariam para sempre. O ultimo suspiro seria dado e fim.

Deus sabe o esforço que é estar ali fingindo conseguir trabalhar. Ir à faculdade. E dói ainda mais deixar de cumprir com meus compromissos. Estou doente. Não tem cirurgias, nem atestados.

Sou um zumbi humano, uma viva-morta vagando pelo mundo. Um dia sorrir, outro chora, Um dia sente fome, outro sem apetite. Um dia com vontade de correr maratona, outro sem conseguir levantar da cama. Um dia sem sentimento, outro maltratada por todos eles. E eu só queria dormir. Então, boa noite!

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Mulher Maravilha: um novo paradigma para a mulher moderna

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O filme Mulher Maravilha se inicia mostrando o mundo das Amazonas, na ilha de Themyscira, e como são criadas para serem guerreiras imbatíveis. Conhecemos a rainha Hipólita e sua pequena filha Diana, que se tornará a heroína da história. A Rainha narra a filha – que deseja se tornar uma guerreira – que as Amazonas foram criadas por Zeus para proteger os humanos contra a ira de Ares (deus da Guerra).

Na Mitologia Grega, as Amazonas eram integrantes de uma sociedade de mulheres guerreiras, que não permitiam a entrada dos homens e nem se casavam. Eram independente e lutavam com os homens que tentavam domina-las. Em algumas versões, elas eram proibidas de ter relações sexuais com os homens e esses eram proibidos de viver na comunidade amazona. Mas em outras versões- para preservar a raça–elas tinham relações sexuais com estrangeiros. Os meninos que nasciam destas relações eram, ou mortos, ou enviados ao pai; as meninas eram criadas pelas mães e treinadas em práticas agrícolas, e nas artes da guerra.

As amazonas aparecem em diversos mitos. Um dos mais famosos é um dos 12 trabalhos de Hércules, onde ele precisa roubar o cinturão da Rainha Hipólita. Nessa jornada, seu amigo Teseu sequestrou a irmã de Hipólita, Antíope, e essa morre em batalha contra suas compatriotas. Em vingança, por tentarem roubar o cinturão de Hipólita e por terem levado Antíope como refém, as Amazonas entram em guerra contra os gregos.

Na Mitologia, Hipólita e Antíope são filhas de Ares com a rainha Amazona Otrera. No filme, as irmãs, estão em guerra contra Ares, ou seja, elas estão em guerra com o Pai, por haverem sido reprimidas e esquecidas em uma ilha (no filme escondida por Zeus). O filme apresenta uma visão diferente da cultura patriarcal em relação ao mal. O mal entrou no mundo pelo masculino, em contraste com a cultura judaico – cristã, onde o mal entrou pela mulher. Essa talvez seja uma reação contrária a unilateralidade do patriarcado.

Contudo, no filme o mal também está presente na humanidade. O ser humano é um mosaico de opostos. Luz e sombra convivem em cada alma, e essa guerra interna é a marca do homem ocidental. A princesa Diana nasceu nessa ilha e foi treinada para ser uma guerreira desde criança. Diana é a grande heroína da história e traz uma imagem de feminino bastante valorizada nos dias atuais: o da mulher guerreira e independente.

As mulheres modernas se identificam com esse papel de guerreira e são treinadas desde novinhas a assumi-lo. Hoje a mulher tem sua carreira, cuida da casa, dos filhos e de si própria e cada vez mais desconfia do amor e do relacionamento. Mas ela também é a heroína, ou seja, ela irá restaurar a situação saudável da Psique (Von Franz, 2005).

O filme apresenta dois mundos bem distintos: o das Amazonas, escondido, matriarcal e com um ódio terrível dos homens e o dos humanos, em guerra e estritamente patriarcal. Diana tem como missão unir esses mundos. As Amazonas eram estritamente matriarcais, adoravam a deusa Ártemis – senhora da natureza e vida selvagem -, cultuavam a terra e eram agrícolas.

Como afirma Neumann (1995), o desenvolvimento da psicologia feminina no patriarcado está em oposição a Grande Mãe. Mas ele não deve levar a violentação da natureza feminina através do masculino, nem o feminino deve perder o contato com o Self feminino. O “aprisionamento no patriarcado” representa uma derrota diante da estabilidade matriarcal feminina, por isso a oposição das forças matriarcais forma uma oposição ao aprisionamento do feminino no patriarcado. Podemos ver a ação dessas forças de oposição nas Amazonas e seu ódio aos homens.

Essa força opositora pode parecer regressiva, mas existe nela um elemento positivo no desenvolvimento feminino. Diana é impulsionada por essa “regressão”. O ódio impulsionado pela sombra feminina leva a heroína a uma ampliação da personalidade. Seu nome vem da deusa romana equivalente a Ártemis. Deusa da Lua e da caça, Diana era uma caçadora vigorosa e indiferente ao amor. Portanto, vemos o desenvolvimento provindo do aspecto feminino do Self em uma ação “regressiva”.

Diana observa um avião das forças armadas caindo na ilha e resgata o capitão Steve Trevor. A ilha logo é invadida pelo grupo de alemães que o perseguia. Conhecendo Steve, Diana coloca em movimento as forças masculinas de sua natureza. Ela sai armada de uma espada com ele e passa a percorrer um caminho que se opõe a Grande Mãe. Com ele, Diana vai colocar em movimento as forças masculinas positivas, para então se apaixonar e abandonar toda a inflação que essas forças provocaram em si.

Diana como um ego ideal, mostra como o ego feminino empresta a força masculina positiva para então sucumbir (do ponto de vista do patriarcado) ao amor, assim como Psiquê no mito “fracassa” movida por amor a Eros. A heroína parte rumo ao encontro com Ares para mata-lo e acabar com a guerra, que está destruindo a humanidade. Nesse embate Diana irá se confrontar com o aspecto paterno terrível.

No processo de desenvolvimento psíquico, o confronto com os aspectos terríveis da uroboros materna e paterna são decisivos para a estruturação da personalidade. Diana usa a espada nesse confronto, ou seja, ela ainda se apropria dos aspectos masculinos da personalidade nesse embate. Mas ela realmente se descobre e atinge a realização ao abrir mão da espada.

Steve se sacrifica pilotando um bombardeiro. Ao presenciar a morte do amado – que se sacrifica pela humanidade – Diana acessa o amor e a compaixão, todos aspectos da coniuctio superior, que na alquimia é o objetivo máximo da opus e do processo de individuação (Edinger, 2006). Com esse confronto e com esse amor ela se descobre deusa e imortal, bem como descobre sua missão. Edinger (2006) comenta que a coniuctio superior, o Si – mesmo une e reconcilia os opostos, com isso o ego humano faz com que o Si – mesmo se manifeste. Mas esse sustentar os opostos equivale a uma paralisia que chega às raias de uma verdadeira crucificação.

Jung (1997) sobre a coniuctio diz:“(…) E uma imagem daquele que ama alguém e seu coração é ferido de amor. Assim Cristo foi ferido na Cruz pelo amor à Igreja. ” Ele cita Santo Agostinho: “Cristo caminha em frente como o esposo ao deixar seu aposento; como o presságio das núpcias, sai para o campo do mundo…chega ao leito nupcial da cruz e lá estabeleceu a união conjugal…e entregou-se em castigo no lugar da esposa…e uniu a si sua mulher por direito eterno. ”

Portanto, em Mulher Maravilha, vemos retratado simbolicamente o desenvolvimento feminino rumo a realização máxima do processo de individuação, que ocorre por meio do amor. Diana suporta o sofrimento em si própria e integra os aspectos positivos e negativos de forças arquetípicas. Ela une Logos e Eros em si e se torna um símbolo que pode espelhar o desenvolvimento da mulher moderna em seu processo de individuação.

REFERÊNCIAS: 

EDINGER, E.F. Anatomia da psique:O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Ed Vozes. Petrópolis, 1988.

JUNG, C.G. MysteriumConiuctionis. ed.Vozes. Petrópolis: 1997.

NEUMANN, E. Amor e Psique – Uma interpretação psicológica do conto de Apuléio. São Paulo, Cultrix: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed.Paulus. São Paulo: 2005.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MULHER MARAVILHA

Diretor: Patty Jenkins
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Connie Nielsen, Robin Wright;
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 12

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(ecos)sistemas

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“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato;
é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção.
Representa uma atitude de ocupação, preocupação,
de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.”

Leonardo Boff

Como o homem produz sua existência na contemporaneidade, tendo consciência de que ele também se produz nessa relação?

Questões como Humanidade, Cuidado, Responsabilidade Ambiental, Fraternidade e Vida, foram conceitos centrais e que nortearam a fala do Teólogo Leonardo Boff na última quarta-feira (04/06/2014), no Centro Universitário Integrado de Ciência, Cultura e Arte (CUICA), na abertura da Semana do Meio Ambiente de Palmas, promovido pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas/TO.

Na conferência intitulada “Meio Ambiente e Cidade – AS 4 Ecologias: Ambiental, Política e Social, Mental e Integral” Boff trouxe um panorama histórico e cultural do olhar do homem para o meio ambiente, enquanto tecia críticas ao modelo de organização social. O mundo no qual vivemos é fruto da ação desse homem concebido pós-capitalismo, e que, frente às revoluções cientificas e tecnológicas, iniciadas no século XVIII, e que ainda se propagam o homem começa a repensar sua inserção posição dicotômica: (ser)humano versus (uni)verso, e assim, produz novos saberes.

Em rápida analise, podemos entender que as transformações históricas e culturais acontecem em nível micro e macro, sempre alinhavada pelo modo como homem se relaciona com o meio ambiente (ecossistema) – de modo direto e indireto – e com seus iguais, aqui abrimos aspas para um tópico importante: a qualidade de nossas relações interpessoais, que também englobam: a promoção/construção de saúde e os processos de adoecimento e organização do modo de trabalho. Nesse aspecto, considero que a psicologia, assim como várias áreas das ciências da saúde e humanas, parece exercer um papel mais efetivo. É nesse cenário que ela encontra elementos para uma intervenção significativa.

Ainda falando de psicologia, acredito que o contexto central é – e parece-me que sempre será – a qualidade das/nas relações humanas, ou seja, o modo de implicação do ser (homem) nessas relações, num cenário de (co)responsabilidades e tomada de consciência/decisão. O resultado de toda e qualquer relação é, portanto, o homem, na produção de sua humanidade. Essa construção do ser não acontece isolada. Mas em nível grupal (relacional), intra e interinstitucional.

Na conjuntura social vigente, vê-se a necessidade de uma transformação no modelo institucional, cientifico, legislativo, cultural, religioso etc. A palavra chave é o Cuidado, não apenas do homem para com o homem, ou do homem para com o meio, mas sim, do homem com o todo, e como parte total desse todo.

É destaque um crescente movimento contrário ao regime social vigente, e que busca acordar nos Seres, habilidades que foram se perdendo, nesse modelo artificial e mecanicista de produção de vida que está posto, e que pauta-se em interesses particulares, muitas vezes de cunho egoísta.

Ao final da conferencia, passei a ver com mais clareza, que os seres são, todavia, resultado direto da qualidade de suas relações (diretas e indiretas), o que implica diretamente na necessidade de uma produção de cuidado. O processo de adoecimento instaura-se numa conjuntura: intra/inter/sujeitos, com o meio e, de volta, consigo mesmo. E não há como se isentar de nossa responsabilidade com o meio ambiente, que é o todo, sistematicamente interligado.

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Participação da Sociedade na Execução Penal

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“Abandone toda esperança aquele que por aqui entrar.”
Inscrição da porta do Inferno por Dante Alighiere em A divina comédia: Inferno

Quero, neste espaço, traçar um relato de minha participação como acadêmico do curso de Psicologia no Seminário “PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NA EXECUÇÃO PENAL: perspectivas de melhoria do sistema penal tocantinense”, que aconteceu no dia 22 de março de 2014, em Palmas – TO.

Na oportunidade se reuniram membros da Escola Superior da Magistratura Tocantinense (Esmat), representados da Secretaria Estadual de Defesa Social, Promotoria de Justiça, Centro de Direitos Humanos de Palmas, Universidades, Reeducandas do Sistema Prisional de Palmas e Comunidade em geral para debaterem o tema.

Não posso esconder minha euforia em participar de um evento como este. Afinal, não é todo dia que os Magistrados abrem as portas do Tribunal de Justiça para colocar em pauta a participação da sociedade no sistema penal –  pelo menos foi esta a pretensão que eu tive ao ler o nome do evento.

No discurso de abertura, pôde-se ouvir frases como:

“Prender por prender não é a solução.”

                              “Não é por estar preso que o homem perde a sua dignidade.”

E, na minha opinião, a mais realista e coerente com a temática do evento:

“Não há soluções imediatas para se resolver o problema dos presídios no Brasil.”

Os debates se iniciaram com mesa intitulada “A Realidade Carcerária no Estado do Tocantins”, que cumpriu com seu objetivo ao situar os presentes sobre a atual condição do sistema prisional de nosso estado. A mesa trouxe dados precisos quanto a números de reeducandos(as) e locais onde estes cumprem suas penas. Na sequência, floreios aos Secretários Estadual da Defesa Social do Tocantins, Dr. Nilomar dos Santos Farias, que apresentou o projeto para criação de um novo presídio em nosso estado. Tal medida, à primeira vista, parece resolver o problema da superpopulação dos presídios, da falta de unidades específicas para cumprimento de penas semiabertas e da carceragem em delegacias, prática comum no estado.

Em seguida houve a fala de reeducandas da Unidade Carcerária Feminina do Município de Palmas, que foi, sem sombra de dúvidas o ponto alto da noite. Elas sintetizavam a dor das pessoas que mesmo tendo cumprindo suas penas, não escapavam do julgo da sociedade. As falas dessas mulheres aproximaram os convidados de suas realidades, e fez com que eles percebessem como é sofrer pelo resto da vida por um erro cometido no passado.

O debate seguinte frisou a função da pena e da reclusão na Ressocialização dos cidadãos que cometem crimes, mas que diante da realidade carcerária encontrada em nossos presídios, não acontece. Afinal, o sistema presidiários brasileiro não reeduca, apenas pune, em regime de reclusão. Em seguida o evento chega a seu fim com a distribuição gratuita do Manual do Conselho da Comunidade na Execução Penal lançado pela Esmat na ocasião.

Não posso em minha fala desmerecer o evento, estratégia louvável, tanto da Esmat em abrir-se para esse debate com a comunidade, como a das reeducandas que de tão livre consentimento se propuseram a falar abertamente sobre sua realidade a uma sociedade que, direta ou indiretamente, é sua algoz.

Mas não posso deixar de falar do meu descontentamento e das muitas dúvidas que me restaram após o evento. A primeira, claro, diz da minha condição de estudante de psicologia, uma ciência que ainda que próxima, se coloca tão distante do judiciário e do direito. A segunda, é sobre o evento não ter aberto espaço para perguntas e/ou participação efetiva da comunidade por meio de um debate aberto. O que é muito triste. Claro sinal de que, mesmo com essas tentativas – volto a dizer: louváveis – o Judiciário ainda está muito aquém do que se espera no que tange à participação popular.

Fato curioso, era de que uma das falas mais frisadas da noite, cobrava da sociedade sua (co)responsabilidade com a reabilitação das(os) reeducandas(os) do sistema carcerário brasileiro.

Justamente por não poder fazer perguntas, voltei para casa com vários questionamentos, no que cerne à criação da nova unidade prisional de Palmas. Num momento em que a sociedade busca formas mais humanizadas de reabilitação destes reeducandos, investir em mais presídios não seria, portanto, um retrocesso? Claro que há ressalvas, até mesmo porque a planta da unidade não foi apresentada à comunidade na ocasião, mas, independente disto, não seria o momento de se pensar em criação de instituições que presem pelas reinserção social destes detentos, muito mais do que pela simples detenção? O que está em jogo aqui, além de outras coisas, é má aplicação de dinheiro público.

A verdade é que, por mais que alguns esforços de personagens específicos tenham sido notadas naquela noite, ainda há muito o que se fazer pela melhoria do nosso sistema prisional, que, acredito eu, precisará de vários anos para que alguma mudança efetiva e humanizada aconteça, no que tange à reformas no sistema prisional brasileiro. Até lá, resta-nos participar de eventos como estes e esperar pela oportunidade de falar de pontos que não foram abordados, para assim, exercermos, enquanto comunidade, nosso papel na reeducação dessas pessoas, que mesmo destituídos de seu direito de ir r vir, são nossos iguais.

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